Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3845/12.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INVENTÁRIO
VALOR DA CAUSA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 289º, Nº 1, 290º, Nº 3 E 308º, Nº 3 DO NCPC; 299º, Nº 4 DO NCPC; 2061º E 2101º, Nº 2, DO C. CIVIL.
Sumário: I – O inventário tem vários valores, sendo de considerar tal processo como um processo em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, aplicando-se, pois, o estatuído no artº 308º, nº 3 do CPC (ou 299º, nº 4 do nCPC).

II – Nos inventários o valor inicialmente aceite (provisório) será corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários, sem necessidade de ser proferido qualquer despacho para corrigir tal valor.

III – O valor do inventário, estando apresentadas as relações de bens, será o expresso pelos documentos que as acampanharem e pela indicação que dcompete fazer ao cabeça de casal.

IV – Em processo de inventário não é admissível a desistência do pedido (artºs 289º, nº 1, 290º, nº 3 do nCPC; 2061º e 2101º, nº 2, do C. Civil).

Decisão Texto Integral:

I - Relatório:
A) - 1) - No processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de J… - e que veio depois a prosseguir também para partilha dos bens da sua viúva, M… -, instaurado no Tribunal Judicial de Viseu, em 13/12/2012, por I…, que deu à acção o valor de € 500,00 e que veio a ser nomeada como cabeça-de-casal, foi, na sequência do despacho que decidiu a reclamação relativa à relação de bens que havia sido oferecida, apresentada nova reclamação de bens, que depois foi objecto de rectificação (despacho de 11/02/2015).

2) - Designada a conferência de interessados foi a mesma adiada e, por requerimento de 15/06/2015, veio a requerente do inventário, invocando a sua qualidade de cabeça de casal informar que pretendia “desistir do processo”.

Entendendo aquele requerimento como uma desistência do pedido, a Mma. Juiz da Instância Local - Secção Cível - J3, da Comarca de Viseu, por sentença de 23/06/2015, homologou tal desistência, ordenando o oportuno arquivamento dos autos.

B) - Notificado desta sentença homologatória, dela veio recorrer o interessado A…, tendo esse recurso sido recebido, como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

II - No final da sua alegação recursória o Apelante ofereceu as seguintes conclusões:

Terminou assim: “...deve ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, substituindo-a por outra que declare a nulidade da desistência do pedido em processo de inventário, ordenando o prosseguimento dos presentes autos de inventário, em conformidade com o acordado entre todos os interessados na conferência de interessados realizada em 08-06-2015, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais até à partilha dos bens das heranças em causa, nos termos pugnados pelo recorrente neste recurso...».

III - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [1]).

Para além do atinente ao valor do inventário e da violação do contraditório que o Apelante imputa ao Tribunal “a quo”, a questão essencial que importa solucionar consiste em saber, se a homologação da desistência do pedido, a que se procedeu na sentença ora impugnada, era possível face ao quadro normativo aplicável.

IV - Fundamentação:

A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.

B)- 1) - O valor do inventário.

Ao tribunal da Relação não compete fixar o valor da causa, mas sim decidir sobre essa fixação quando a mesma tenha sido levada a cabo pela 1ª Instância e dessa decisão - ainda que conjuntamente com outra(s) versando matérias diferentes -, seja interposto recurso com objecto de que faça parte essa questão.

O que a Relação pode e deve fazer é averiguar se a causa, atento o que se puder entender quanto ao respectivo valor, admite recurso, pois que, se não o admitir e uma vez que o despacho que recebe o recurso não vincula o Tribunal Superior, não poderá conhecer do respectivo objecto, tendo de o julgar como findo.

Ora, não obstante ao inventário ter sido dado o valor de € 500,00, no Requerimento inicial, não é esse valor - que não permitiria o recurso - que agora se terá de atender para efeitos de admissibilidade de recurso.

Sendo aplicável, no momento da instauração do inventário, o CPC na versão anterior àquela que foi introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26/06, vejamos a questão do valor do inventário à luz da legislação anterior, para depois a confrontarmos-mos com a que consta do NCPC, já que é de arredar, liminarmente, a aplicação do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março.

Com a advertência de que iremos reproduzir o que se escreveu no Acórdão proferido por esta Relação nos autos de recurso de Agravo nº 235/07.5TBCLB-B.C1[2], por nós relatado e tendo como Adjuntos, os ora Srs. Conselheiros Gregório Silva de Jesus e Martins de Sousa, aqui fica o trecho que, focando a questão do valor do inventário, interessa ao caso “sub judice”[3]:

[...] «O inventário tem, efectivamente, vários valores, sendo de considerar tal processo, como se infere da fundamentação da decisão recorrida, um processo em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, aplicando-se, pois, o estatuído no art.º 308º, nº 3, do CPC[4]. Sucede, até, que para se considerarem esses diversos valores, não é necessário ir proferindo sucessivos despachos a fixá-los.

O entendimento a seguir é aquele que Lopes Cardoso explanou, afirmando o seguinte[5]: «…enquanto nas causas em geral o valor se considera fixado no que as partes acordaram ou no que o juiz considerou conforme à realidade nos precisos termos do art. 315.-2 do Cód. Proc. Civil, relativamente ao processo de inventário não é assim que as coisas se processam.

Desde sempre se teve como idóneo que o valor do inventário, para respeito da regra que manda determiná-lo «pela utilidade económica imediata» (art. 305.°-l), haverá de coincidir com o dos bens a partilhar (…). Ora, este valor só a sequência do processo consentirá surpreendê-lo, pois o mecanismo do inventário (avaliações, licitações, etc.) está justamente orientado no sentido da valorização rigorosa deles, pressuposto necessário da igualação de lotes e repartição equitativa do património hereditário.

Fruto de meros conceitos doutrinários (…) e jurisprudenciais (…) este princípio foi proposto para ser objecto de regra de direito positivo no momento em que, por alturas de 1961, se procedeu à reforma processual (…). E hoje decorre líquido do art. 308.°-3 do Cód. Proc. Civil vigente, preceito que só não reproduz ipsis verbis o texto proposto pela Comissão Revisora pelas razões sucintamente alinhadas na revisão ministerial (…).

Temos, pois, que nos inventários «o valor inicialmente aceite será corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários» (…).

Esta regra suscita três considerações: - a primeira implica que o valor inicialmente aceite é meramente provisório; a segunda que, contra o que pode surpreender-se da sua gramática, não é forçoso proferir qualquer despacho para corrigir tal valor, mercê da sequência do processo; e a última que esses elementos atendíveis os irá fornecendo sucessivamente o processo consoante as várias fases que vão ocorrendo no decurso da sua tramitação.».

E é na sequência deste entendimento que se deve considerar, que o valor do inventário, estando apresentadas as relações de bens, “…será o expresso pelos documentos que as acompanharam e pela indicação que competia fazer ao cabeça-de-casal…».[6]

(...)

Afigura-se-nos patente que o valor resultante da relação de bens compreende os bens que, embora não hajam sido relacionados “ab initio”, tenham sido aditados posteriormente pelo cabeça-de-casal “sponte sua”, ainda que por efeito do reconhecimento parcial de reclamação de um outro interessado. [...]».

O entendimento ora acabado de explanar é de adoptar também, “mutatis mutandis”, no âmbito do NCPC, “maxime”, por aplicação do disposto no seu artº 299º, nº 4.

Ora, como diz o Apelante, tendo a cabeça-de-casal apresentado, subsequentemente ao despacho que julgou a reclamação de bens “...nova relação de bens, em que a soma do valor dos bens a partilhar (ativo) era de 36.219,83 €” e que a rectificação posterior quanto à verba nº 17 elevou para 40.036,17 € - valor este muito superior ao da alçada do tribunal de 1ª Instância -, a conclusão que há a extrair é de que é este o valor do inventário para efeito de recurso, nada obstando, pois, ao conhecimento do respectivo objecto.

Acresce que assiste razão ao Apelante quando diz que, tendo sido proferida a sentença ora impugnada, sem que a ele tenha sido dada a oportunidade de, anteriormente à prolação da mesma, se pronunciar sobre o pedido de desistência que a mesma homologou, foi violado o princípio do contraditório. Basta ler o que dispõe no artº 3º, nº 3, do NCPC, para se chegar a esta conclusão que, assim, dispensa mais considerandos.

2) - A homologação da desistência do pedido.

Não interessa agora se era lícito ou não à Requerente do inventário, desistir da respectiva instância, pois que a decisão - e é esta que temos de sindicar - o que julgou válida e homologou foi uma desistência do pedido.

Ora o entendimento que seguimos é o de que, em processo de inventário, não é admissível a desistência do pedido, louvando-nos, para tal, das razões aduzidas no Acórdão do STJ, de 02/12/2010 (Revista nº 1629/04.3.TBLSB-B.L1.S1), do qual, respigamos o seguinte trecho, que nos parece mais significativo para a resolução do caso “sub judice”:

[...]«O inventário tem, como nos parece incontroverso, como objectivo último a partilha dos bens da herança pelos respectivos titulares (cfr. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 356), do que decorre que se não está perante um verdadeiro processo de partes, pois os interessados não são propriamente adversários na lide, mas antes de mais devem ser vistos como aliados num desiderato comum. Por isso, tal meio processual está na disponibilidade de todos, porque a todos assiste o direito de dissolver a universalidade da herança ou de nela se manter e, daí, que, uma vez instaurado e por todos aceite, o processo ficou à disposição de todos e não apenas daquele ou daqueles que o requereram.

Pode, pois, dizer-se que não há aqui um verdadeiro conflito de interesses, porque o objectivo - a partilha da herança - é comum e, sendo assim, a desistência da herança não parece que possa compaginar-se com tal finalidade, sob pena da sua concretização representar o prejuízo de um direito já nascido para o sujeito passivo da relação processual (cfr. Ac. do STJ de 26-7-74, BMJ 239-162).

Como se escreve no Ac. do STJ de 18-5-99, que seguimos de perto, "a desistência do pedido é um instituto processual que arranca da arrogância prévia por um autor, não um simples interessado, contra um réu, não outro mero interessado, de um direito cujo reconhecimento processual pretende. Ora, no processo de inventário, o seu requerente ou requerentes não afirmam qualquer direito seu contra os restantes interessados. A sua exacta função como requerentes, quando em correlação com os outros interessados, é tão só a de manifestar o seu direito à partilha e a de chamar os restantes co-interessados ao processo para que com ele colaborem nesse fim. Se estes o aceitarem e intervierem no processo, aquela finalidade volve-se em comum e o processo torna-se num instrumento adjectivo de todos, não sendo mais lícito a qualquer deles, isoladamente, extingui-lo, designadamente pelo exercício duma pretensa desistência do pedido" (BMJ 487-321).

Por outro lado, porque a consequência típica da desistência do pedido é a extinção do direito que se pretendia fazer valer (art. 295°, 1 do CPC), que o mesmo é dizer que, com a desistência, o autor renuncia ao direito que se arroga contra o réu, não podendo, por tal, propor nova acção sobre o mesmo objecto (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3° vol., 478), a mesma está vedada quando "importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis" (art. 299°, 1 do CPC), como acontece in casu, por não poder renunciar-se ao direito de partilhar (art. 2101°, 2 do CC), isto é, tal direito não está na disponibilidade das partes (neste sentido, para lá dos já citados, ver os Acs. do STJ de 26-4-94 e da RC de 9-3-99, respectivamente, CJ, STJ, II, II, 66 e CJ.XXIV, II, 17 e do STJ de 30-1-97 e da RP de 18-5-99 e 18-6-2001, todos em www.dgsi.pt).

Esta proibição que tem subjacente um princípio de interesse e ordem pública, desde logo, porque limita a concentração da propriedade das coisas, acarreta a nulidade de qualquer negócio que a contrarie (art. 280° do CC), o que acontece com a desistência do pedido no processo de inventário, porque traduzida, como se disse, na afirmação de vontade relativamente a direito de que a lei afasta a livre disponibilidade.

A desistência do pedido por parte do requerente importaria, face à força e autoridade do caso julgado que se formasse com o transito em julgado da sentença que a homologou, a renúncia ao direito de partilhar, o que estando legalmente vedado, como sobredito ficou, conduz forçosamente à nulidade desse acto, nulidade esta de conhecimento oficioso (artºs. 280° e 286° do CC).

Destarte, não era de homologar o termo de desistência do pedido formulado pelo requerente, impondo-se, por isso, a revogação da respectiva sentença homologatória. [...]».[7]

Transpondo esta argumentação para o caso “sub judice” e adaptando-a, no plano adjectivo, ao NCPC, dir-se-á, pois, que, examinando a desistência da Requerente, que considerou reportar-se ao pedido, não podia, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, à luz do direito substantivo (artºs 2061º e 2101º, nº 2, do Código Civil) e daquilo que determinam os artºs 289º, nº 1 e 290º, nº 3 do NCPC, julgar válida tal desistência, cumprindo-lhe, consequentemente, recusar a respectiva homologação.

Importa, pois, em consequência do exposto, na procedência da Apelação, revogar a sentença recorrida e determinar o prosseguimento do inventário.

V - Decisão:

Em face de tudo o exposto, na procedência da Apelação, revoga-se a sentença homologatória impugnada e determina-se que se dê seguimento aos normais termos do processo.

Custas pela desistente, que deu causa ao recurso.

Coimbra, 03/11/2015


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[1] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.
[2] Não publicado, ao que julgamos saber.
[3] As notas de rodapé também se transcrevem, embora não respeitando a numeração que as mesmas têm no texto original.
[4] Cfr. Gama Prazeres, Manual do Processo de Inventário Obrigatório (ou Orfanológico) e Facultativo (ou de Maiores), 1965, pág. 61.
[5] Partilhas Judiciais, volume III, Almedina, 1980, 3ª edição, pág. 214 e segs.
[6] Lopes Cardoso, Obra e volume citados, pág. 216.
[7] Cfr. em sentido idêntico a jurisprudência citada trecho transcrito do Acórdão do STJ, de  02/12/2010 e, em especial o Acórdão, de 18/05/1999, desse mesmo Tribunal, publicado no BMJ nº 487, 1999, pág. 321 e também em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.