Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/16.7 T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: LEITURA DA SENTENÇA POR APONTAMENTO
OMISSÃO
LEITURA PÚBLICA
SENTENÇA
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 87.º; 321.º; 372.º E 373.º, DO CPP
Sumário: I - A sentença [só pode ser] lida publicamente depois de elaborada e assinada. A leitura de um rascunho do que seria uma putativa sentença, não é leitura da sentença como determina a lei processual penal.

II - A omissão da leitura pública da sentença em audiência de julgamento tem como consequência a nulidade, insanável, da sessão de julgamento que teve lugar em 26 de outubro de 2016 [leitura da putativa sentença] e dos termos subsequentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


*

I – Relatório.

1.1. A... , já devidamente identificado nos autos, foi administrativamente sancionado pela Câmara Municipal da Covilhã, atentas as disposições conjugadas dos art.ºs 89.º, n.º 2 e 3 e 98.º, n.ºs 1, al. s) e 4, ambos do regime jurídico da urbanização e da edificação [RJUE], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, e versão posteriormente introduzida através do Decreto-Lei n.º 26/2010, de 30 de março, no pagamento de uma coima cujo montante se arbitrou em € 1.000,00 (mil).

Porque irresignado, o arguido impugnou judicialmente essa decisão administrativa. Fê-lo com ganho de causa já que, por sentença junta aos autos de fls. 56/58 foi o mesmo absolvido daquela prática.

1.2. Controverte agora o Ministério Público tal veredicto, sendo que da motivação com que fundamentou o dissídio, extraiu as seguintes conclusões:

a) Por sentença proferida em 26.10.2016, depositada em 31.10.2016, notificada ao Ministério Público em 29.11.2016, o Tribunal a quo absolveu o recorrente por falta de elemento subjectivo.

b) O Ministério Público entende que a audiência de 26.10.2016 onde consta que foi lida a sentença nos autos é nula considerando que a sentença efectivamente não foi lida em audiência nem depositada.

c) Assim, nos termos dos art.ºs 321.º, n.º 1 e 87.º, n.º 5, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art.º 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra Ordenações [RGCO], impõe-se anular a sessão de julgamento que teve lugar em 26.10.2016 e os termos subsequentes do processo que dela dependem como a sentença, ordenando-se a sua repetição, com a leitura pública da sentença.

d) Não obstante o teor da ata de 26.10.2016, é evidente que a sentença não foi lida nessa sessão de julgamento, pois que nessa data ela não tinha sido elaborada, não existia e, portanto, não podia ter sido lida razão pela qual apenas foi depositada em 31.10.2016.

e) Ainda que assim não se entenda, importa considerar que na sessão da leitura da sentença realizada em 26.10.2016, foi dada a conhecer a sentença em termos muito genéricos dizendo o Mm.º Juiz que absolvia o arguido o que não consta na ata.

f) Apesar de se referir na respectiva ata que a mesma foi lida e notificada nesse momento, tal não aconteceu uma vez que a sentença só veio a ser depositada no dia 31.10.2016, ou seja, cinco dias depois.

g) No entanto, a sentença encontra-se datada de 26.10.2016, o que, manifestamente, não corresponde à realidade, pretendendo-se, dessa forma, esconder a data real da elaboração da sentença, pois que, se a mesma tivesse sido elaborada, assinada e lida nesse dia certamente não teria sido depositada em 31.10.2016.

h) A leitura a que se procedeu no dia 26.10.2016, não foi da sentença, mas apenas e tão só de um rascunho da mesma.

i) Ora, a leitura da sentença em audiência de julgamento é obrigatória nos termos das disposições legais contidas nos art.ºs s. 372.º 3 373.º, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, constituindo a falta de leitura da sentença nulidade insanável.

j) Considerando que a sentença escrita e depositada posteriormente pelo juiz nos autos foi incorporada sem prévia leitura pública a mesma é nula o que deve ser declarado.

k) Sem prescindir, a sentença recorrida padece da nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, por força do disposto no art.º 425.º, n.º 4 do mesmo diploma, ex vi do art.º 41.º do RGCO.

l) Para a sentença proferida pelo Tribunal a quo, foi determinante a valoração do facto não provado respeitante ao elemento subjectivo da conduta assumida pelo arguido.

m) Com efeito considerou o Tribunal a quo, além do mais, que i) da materialidade provada, mostra-se preenchido o elemento típico objectivo do tipo; ii) todavia, não se provou que o arguido não tenha agido com o cuidado necessário no sentido de assegurar e cumprir as suas obrigações de execução das obras ordenadas pela C. Municipal, pelo que, em outras considerações, há que absolver o arguido, o que se decide.

n) Tendo em conta que o Tribunal a quo funcionou como instância de recurso nos presentes autos, as conclusões formuladas pelo arguido/impugnante limitam as questões que podem ser conhecidas pelo mesmo.

o) Sucede, porém, que, em sede conclusões, o arguido/impugnante não alegou quaisquer factos que integrem a falta de elemento subjectivo mas tão só e apenas a falta da ilicitude do facto conforme resulta da conclusão n.º 1.

p) Com efeito, o arguido alegou que não fez as obras ordenadas pela entidade autuante/administrativa por entender que a sua realização carecia de licença e, em termos subsidiários, solicitou a sua condenação em admoestação.

q) Apenas era legalmente permitido ao Tribunal a quo confirmar a decisão administrativa contra ordenacional impugnada ou absolver o arguido por falta de ilicitude do facto ou condená-lo em admoestação.

Terminou pedindo que no provimento do recurso e, ao abrigo do disposto no art.º 75.º, nºs 1 e 2, al. b) do RGCO seja declarada a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo.

1.3. Sem qualquer resposta do recorrido, cumpridas as formalidades devidas e remetidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o art.º 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer conducente a idêntico provimento do recurso.

1.4. Observado o disposto pelo subsequente art.º 417.º, n.º 2, mais uma vez nada disse o recorrido.

1.5. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.


*

II – Fundamentação.

2.1. Constitui jurisprudência pacífica dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas pelo recorrente na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal), mas isto sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente.

No caso vertente, e à míngua de questões deste último teor, são duas as questões decidendas:

- A falta de leitura da sentença na audiência realizada no dia 26 de outubro de 2016 acarreta a nulidade dessa mesma audiência e, na afirmativa, corolário?

- Tal sentença incorreu em excesso de pronúncia e por isso padece do vício de nulidade tal como consagrado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal?

2.2. Para exacta dilucidação da primeira das questões colocadas, importa fazer prévia referência à extractação de uma série de actos processuais cuja prática vem mencionada nos autos como tendo ocorrido. Assim:

- Finda a produção de prova e concluídas as alegações orais na sessão de julgamento realizada no dia 12 de outubro de 2016 (ano de todos os actos processuais a referir), o Mmo. Juiz designou para leitura da sentença o dia 26 seguinte (fls. 53).

- Com esta data mostra-se elaborada uma acta, consignando ter sido realizada a leitura da sentença (“que antecede”, consignou-se) e notificação aos sujeitos processuais presentes (fls. 54).

- Acto contínuo e ainda com data de 26 de outubro mostra-se proferido despacho pelo Mmo. Juiz mencionando que “Vou entregar em mão a sentença” (fls. 55). Sentença que é fls. 56 a 58.

- A fls. 59 dos autos foi exarada Cota, com data de 31 de outubro referindo a Sra. funcionária que recebeu nessa data “das mãos do Mm.º Juiz a sentença que antecede”.

- A fls. 60 e com a mesma data de 31 de outubro, o Sr. Secretário Judicial exarou Declaração de Depósito da sentença.

- Em 30 de novembro foi lavrada nova Cota consignando-se que por virtude de ainda não ter sido feita, apenas então ia ser notificado o Ministério Público da sentença em causa (fls. 64).

- Sucedendo, porém, que a fls. 65 foi consignado que a notificação desse agente foi realizada a 29 de novembro!

A descrição vinda de fazer demonstra, por si só, como foram sucessivos e vários os percalços desta tramitação processual, ao menos tal como documentalmente retratada.

Para decidir da sorte deste fundamento do recurso mostra-se decisivo apurar se a sentença não foi efectivamente lida no dia 26 de outubro.

Ora, ante o relatado, esta é conclusão que parece inequívoca.

Na verdade, e assim não fora, seria congruente que na acta de fls. 54 se tivesse consignado que a mesma foi lida e notificada aos presentes quando acto contínuo e com a mesma data o Sr. Juiz refere (fls. 55) que a vai entregar em mão nesse mesmo dia? Porquê a entrega “em mão” se ela até já tinha sido notificada?

E, se já elaborada, porquê o seu depósito apenas no dia 31 de outubro, data do recebimento “das mãos do M.mº Juiz”?

Circunstâncias estas que, como aduz o Ministério Público, e se afigura perfeitamente concebível, apenas decorrem de a “leitura” a que se procedeu no dia 26 de outubro mais não fosse do que um rascunho do que seria uma putativa sentença.

Pergunta seguinte, então, a de quais as consequências daí resultantes?

A situação não se mostra nova para os nossos tribunais já chamados a pronunciarem-se em situações similares.

A título meramente exemplificativo, o acórdão do TRL, de 23 de junho de 2005[1], sumariado “É nula a sentença lida por apontamento”, bem como o aresto indicado nas alegações de recurso, que seguiremos de perto, qual seja o do TRE, in processo n.º 1273/08.6 PCSTB.E1. Assim:

A situação relatada não integra qualquer das nulidades da sentença, tal como vêm previstas no art.º 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, antes tem a ver com as consequências da falta de leitura – pública - da sentença na audiência de julgamento, pois que, não obstante o teor da dita acta de 26 de outubro, é evidente que a sentença não foi lida nessa sessão de julgamento, pois que nessa data ainda não tinha sido elaborada, não existia e, portanto, não podia ter sido lida.

A propósito regem os art.ºs 372.º e 373.º, ambos do mesmo diploma adjectivo, e dos quais sobressai:

- por um lado, que a sentença – depois de assinada – “é lida publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes. A leitura do relatório pode ser omitida…”, ou seja, é lida publicamente depois de elaborada e assinada, sendo, logo “após a leitura”, depositada pelo Juiz na secretaria;

- por outro, que - quando não for possível proceder imediatamente à elaboração da sentença - o presidente fixa publicamente a data dentro dos dez dias seguintes para a leitura da sentença e, na data fixada, procede-se publicamente à leitura da sentença e ao seu depósito na secretaria.

Ou seja, a sentença é lida publicamente depois de elaborada e assinada.

Ora, se em relação ao prazo para a leitura da sentença estabelecido no indicado art.º 373.º se vem entendendo que se trata de prazo meramente ordenador – não afectando o valor do acto nem acarretando quaisquer consequências jurídicas[2] – já a sua leitura, publicamente, em audiência, é obrigatória, como resulta de tais preceitos, o que supõe a prévia elaboração e respectiva assinatura, enquanto documento autêntico que ficará a constar do processo, pois que enquanto não for elaborada não pode ser lida, porque inexistente.

E sendo assim, como é, não se pode afirmar que a sentença foi lida publicamente, em 26 de outubro, porque nessa data não existia, não tinha sido elaborada.

A consequência dessa falta de leitura pública da sentença, depois de elaborada, é a nulidade – insanável – da audiência de julgamento onde é suposto ter tido lugar e não teve, ex vi art.º 321.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no qual se estatui que “a audiência de julgamento é pública, sob pena de nulidade insanável”, não podendo a exclusão da publicidade, quando admitida, abranger, “em caso algum, a leitura da sentença” (art.º 87.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).

Como se escreveu a este propósito no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 698/2004, de 15 de dezembro de 2004, in processo n.º 991/04[3], citando Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 801), “«a publicidade das audiências dos tribunais… é seguramente uma exigência do próprio conceito de Estado de direito democrático (art.º 2.º)», que se justifica pela necessidade de «reforçar as garantias de defesa dos cidadãos perante a justiça, mas também em proporcionar o controlo popular da justiça, robustecendo, por isso, a legitimidade pública dos tribunais»”.

Conforme ainda nota desse aresto, em idêntico sentido pode ver-se o acórdão do mesmo Tribunal Constitucional, n.º 110/85 (Acórdãos do TC, 6.º vol., pág. 273 e seguintes), onde – escreve-se – “depois de se afirmar que a razão de ser histórico-constitucional do princípio da publicidade da audiência deve encontrar-se numa «conquista que foi contra o secretismo do processo inquisitorial do “antigo regime”», se acentua… que se trata, «sobretudo, de garantir uma espécie de controlo da justiça pela colectividade, tornando possível a todo e qualquer cidadão o acesso à sala de audiência e possibilitando o conhecimento público de todas as declarações e depoimentos… permitindo, a final, apreciar fundadamente a sentença que vier a ser proferida».

Por outro lado, e no que respeita agora ao âmbito material de aplicação daquele princípio, pode seguramente afirmar-se que, independentemente das dúvidas que possam legitimamente colocar-se sobre o exacto alcance do conceito de «audiência», tal como é utilizado no art.º 206.º da Constituição, o mesmo abrange, além da própria audiência de discussão e julgamento, a decisão judicial a proferir na sequência da mesma” (aí se dá conta, citando, de novo, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., loc. cit., que as razões apontadas para a publicidade da audiência valem quanto à decisão, o que decorre do princípio do Estado de direito democrático).

Neste mesmo sentido podem ver-se o acórdão da RL de 27 de maio de 2009, in www.pgdlisboa.pt, onde se identificam, no mesmo sentido, os acórdãos daquele tribunal de 9 de setembro de 2008; 6 de janeiro de 2009, e 3 de fevereiro de 2009, respectivamente processos n.ºs 4872/2008, 8306/2008 e 831572008, todos in www.dgsi.pt, e da RG de 9 de março de 2009, processo n.º 2625/08, também in www.dgsi.pt.

Conclusão pois a de que a omissão da leitura pública da sentença em audiência de julgamento tem como consequência a nulidade, insanável, da sessão de julgamento que teve lugar em 26 de outubro de 2016 e dos termos subsequentes.


*

III – Dispositivo.

Assim, em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em anular a sessão de julgamento que teve lugar a 26 de outubro de 2016 e os termos subsequentes do processo que dela dependem, ordenando-se a sua repetição, com a leitura pública da sentença.

Sem tributação.



Coimbra, 24 de maio de 2017

(Brizida Martins – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)


[1] In Colectânea de Jurisprudência, Ano XXX, Tomo III, pág. 139,
[2] Cfr. v.g., acórdão do STJ, de 15 de outubro de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, Ano V, tomo 3, pág. 197.
[3] Acessível em www.tribunalconstitucional. pt.