Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
173/21.9T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
NULIDADE
SUPRIMENTO
Data do Acordão: 03/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (TONDELA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 41.º E 58.º, N.º 1, DO RGCO; ART. 379.º, N.º 1, AL. A), DO CPP
Sumário: O incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, que deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

No processo supra identificado, foi proferida sentença que decidiu:

- julgar procedente o recurso de impugnação judicial apresentado por C..., S.A, actualmente com a denominação DR e, declarar nula a decisão administrativa, determinando, consequentemente, o arquivamento dos autos.


*

O Ministério Público, por discordar da decisão proferida interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

I. O auto de notícia especifica pormenorizadamente os fatos imputados à arguida e as normas violadas.

II. A decisão administrativa é omissa em fatos concretizadores dos elementos do tipo objetivo e subjetivo do ilícito contraordenacional imputado à arguida “C..., S.A”.

III. Na impugnação judicial, a arguida “C..., S.A”, suscita a questão da nulidade da decisão administrativa, por falta da descrição de fatos e do elemento subjetivo.

IV. Ainda, assim, o tribunal “a quo”, recebeu a acusação (cfr. artigo 62º, n.º 1, do RGCO), sem apreciar a invocada nulidade.

V. O tribunal “a quo”, deveria apreciar a nulidade suscitada e rejeitar a acusação por manifestamente infundada, conforme resulta do disposto nos artigos 311º, n.ºs 1, 2, alínea a) e 3º, alínea b), do Código de Processo Penal ex vi artigo 58º e 41º, n.º 1, da RGCO.

VI. Ou, ainda, decidir tais questões, por despacho, nos termos do disposto no artigo 64º, do RGCO.

VII. Não o fez e permitiu a realização do julgamento, para depois apreciar as nulidades invocadas e determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos.

VIII. Entendemos, salvo o devido respeito, que o tribunal “a quo” ao declarar a nulidade da decisão administrativa, deveria, como consequência, remeter os autos à autoridade administrativa para sanação daquela, e não, determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos.

IX. Pelo que, deve o presente recurso ser considerado procedente, por provado, e, em consequência, seja revogada a sentença, na parte que determinou o arquivamento dos autos, pugnando pela sua substituição por outra que devolva os autos à entidade administrativa com vista à sanação da declarada nulidade.

X. Caso contrário, verifica-se a violação do disposto nos artigos 58º, 41º do RGCO e artigos 122º, n.ºs 1 e 2, 311º, 2, alínea a) e 3º, alínea b), 374º e 379º, todos do Código de Processo Penal.


*

A arguida não respondeu ao recurso.

Nesta instância, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente e, consequentemente, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a remessa dos autos à ASAE para sanação da nulidade ocorrida, incluindo na decisão os concretos factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos da contraordenação imputada à arguida.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, a arguida respondeu, defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da sentença recorrida (por transcrição):

“II- Fundamentação:

Da discussão, da decisão administrativa e defesa resultam os seguintes:

Factos provados:

1. A recorrente comunicou em 08-03-2017, pelas 16:41, levar a cabo na sua actividade comercial as resultantes dos CAE constantes de fls. 103-106, para a loja de ....

2. Tal comunicação foi enviada à entidade administrativa no exercício do direito de defesa da recorrente, constando de fls. 34 e seguintes, recebida em 26-09-2018.

3. Tais CAE incluem a venda de produtos alimentares embalados.

4. Aos 5 de Junho de 2017, pelas 10:45, no estabelecimento comercial, à data denominado de “….”, sito na Av. (…) n.º (…), em (…), explorado pela arguida, foi sujeito a uma fiscalização.

5. Após averiguação do espaço comercial da arguida, não se observou qualquer informação relativa à modalidade de venda, e à data de início de período da venda com redução de preço que se encontrava a decorrer no estabelecimento comercial da arguida.

6. Foi solicitado o comprovativo de entrega de mera comunicação prévia para o acesso à actividade ali desenvolvida, o qual não foi apresentado.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

Fundamentação da decisão da matéria de facto:

(…).

Do direito:

Nos presentes autos suscita-se a questão da nulidade da decisão administrativa por falta de factos, sendo que nem sequer faz uma remissão para o auto de notícia.

Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjectivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

Tal omissão, constituindo violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do RGCOC, determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi do art. 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a nulidade da decisão administrativa.

Dispõe o n.º 1 do artigo 58.º do RGCO (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) que: “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias”.

É controvertida a questão de saber a consequência processual resultante da omissão destes requisitos.

Há quem defenda que consubstancia uma nulidade, por aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º do RGCO, nomeadamente, o regime previsto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal – neste sentido, cfr. MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, Dezembro de 2002, Vislis Editores, págs. 334 e 335, anot. 4.

Por outro lado, há quem defenda que consubstancia uma mera irregularidade (aplicando-se o regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal) – neste sentido, cfr. ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado”, 6.ª edição, Almedina, Março de 2005, pág. 109, anot. 2.

No âmbito da primeira das posições enunciadas – aplicação do regime das nulidades da sentença – defendem os Ilustres Comentadores referidos que, além do mais, se trata de vício de conhecimento oficioso, por entenderem que, se o artigo 380.º do Código de Processo Penal ao estabelecer que o regime das irregularidades da sentença, de menor importância, compreende o conhecimento oficioso, deverá concluir-se que também valerá este conhecimento oficioso para as nulidades previstas no artigo 379.º, “pois seria incongruente um regime legal em que houvesse a preocupação de correção oficiosa de irregularidades de menor importância e não se possibilitasse ao tribunal corrigir as de maior gravidade” (cfr. ob. loc. cit.).

Face ao exposto, cabe, pois, apreciar se a decisão administrativa recorrida preenche os requisitos enunciados no artigo 58.º do RGCO e, em caso negativo, qual a consequência processual dessa omissão.

A decisão recorrida é a de fls. 77 e seguintes dos autos.

Da leitura da decisão recorrida afere-se que esta não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, tanto objectivos como também nenhum de natureza subjectiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem se referindo a negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal), neste caso da contraordenação que lhe era imputada.

Ora, “no artigo 14.º do Código Penal, constata-se que o tipo subjetivo de ilícito conceitualiza-se na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo de ilícito, o mesmo será dizer, o dolo do tipo decompõe-se no conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento punitivo) de realização do fato. (…) do que no elemento intelectual do dolo verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias de fato que preenche um tipo de ilícito objetivo (cfr. os ensinamentos de Jorge de Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Janeiro de 2011, Coimbra Editora, páginas 348-351; bem assim a jurisprudência que, em concretização desses ensinamentos, definiu a estrutura do dolo como comportando um elemento intelectual e elemento volitivo, consistindo aquele na representação pelo agente de todos os elementos que integram o fato ilícito e na consciência de que esse fato é ilícito e a sua prática é censurável, de molde que «a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto” – vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 21.01.2014, processo n.º 2572/10.2TALRA.C1, Vasques Osório).

Portanto, «[n]um crime/ ou contraordenação doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quais o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo)» (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2011 no processo 150/10.5T3OVR.C1, Maria Pilar Oliveira).

Igualmente de relevo para a presente decisão, haverá de ter presente a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015): - «[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal».

Neste quadro doutrinal e jurisprudencial assim exposto, este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual «[a]jurisprudência fixada [pelo dito] Acórdão Uniformizador nº1/2015 não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. (…)

O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar também a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, (…) e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição» (aqui, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2016, no processo 2572/10.2TALRA.C2, Vasques Osório).

(Ac. TRC de 11-11-2020, que citamos integralmente).

Concordamos com o acórdão de fixação de jurisprudência supra referido, sendo que tais princípios jurídicos são aplicáveis também às contra-ordenações.

Estatui o art.º 58.º do RGCO que a «decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) [a] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas», havendo de considerar-se tais exigências (…) satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.

Os requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar).

Por isso, e pese embora não se preveja no diploma legal RGCO a consequência derivada da ausência da menção dos elementos indicados, a aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal (ex vi artigo 41.º do referido regime) haverá de determinar a nulidade da decisão, de harmonia com o disposto no artigo 379.°, n.º 1, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.

Logo, a «decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58º, do referido Diploma, está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.P., sendo estas, incontestavelmente de conhecimento oficioso pelo Tribunal» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2011, processo n.º 990/10.5T2OBR.C1, Alberto Mira; bem como, inter alia, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2009, processo n.º 686/08.8TTOAZ.P1, Fernanda Soares).

Tem sido apontado pela jurisprudência que à «decisão administrativa não é exigível o rigor formal que deve informar uma decisão criminal, havendo apenas que acatar o disposto no artigo 58º do RGCO», devendo «as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa (…) ser menos profundas do que as exigidas para os processos criminais» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.07.2009, processo n.º2761/08-1, Maria Fernanda Palma) –, é na própria definição do que seja uma contraordenação que se deteta tratar-se de «todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima» (artigo 1.º do R.G.C.O.), acrescentando-se que só «é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência» (artigo 8.º do mesmo diploma legal).

Tal desvio do rigor formal, não se pode traduzir, como no caso dos autos, na ausência completa de factos.

Entendemos que tal questão desagua no princípio da vinculação temática, o qual percorre todo o Processo Penal, após a fase de inquérito, tem uma multiplicidade de vertentes mas que se centram na estrutura acusatória do processo penal, conforme é postulado no artigo 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Tal princípio traduz-se na impossibilidade de o Tribunal, seja em sede de instrução seja em sede de julgamento, se pronunciar sobre factos que não tenham sido arrolados pela acusação, ou pelo requerimento de Abertura de Instrução, artigo 309º, n.º 1 e artigo 359º todos do Código de Processo Penal.

Tal princípio tem como génese o princípio do acusatório e do contraditório na defesa, ou seja, visa permitir ao arguido que se possa defender e assegurar que, além dos factos constantes da acusação ou pronúncia, não haverá outros a considerar, ou seja, não poderá haver uma condenação por factos que surjam de surpresa ou autonomamente investigados pelo Juiz.

Tais normas são aplicáveis no processo de contra-ordenação, por força do artigo 41º do RGCO.

Dos elementos dos autos, não obstante a extensão da decisão, sobre as normas e finalidades das mesmas, certo é que factos, não possui.

Logo a decisão administrativa proferida nos presentes autos é nula, porque omissa em factos concretizadores dos elementos do tipo objectivos e subjectivos contra-ordenacional imputado (e pela qual condenou) a Recorrente, sendo que esta neste tipo de processos, reveste a natureza de uma “acusação”.

Tal nulidade, porque não foi retirada a acusação (artigo 65º-A do RGCO), determina que, nos termos do artigo 64º do mesmo diploma, sejam arquivados os autos por falta de objecto.

O conhecimento das restantes questões suscitadas encontra-se prejudicado.

(…)

III – Decisão:

Por tudo o exposto o tribunal julga procedente o recurso apresentado por C..., S.A, actualmente com a denominação, DR, pessoa colectiva n.º (…), com sede em (…), ao abrigo do disposto da conjugação das normas previstas nos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCO e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa junta aos autos, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, o que se decide, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro), resultando prejudicado o conhecimento do de mais impugnado pela arguida.


***


APRECIANDO

Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82, de 27.10 (RGCO), este tribunal conhece apenas da matéria de direito, isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, conforme acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, I-A Série de 28-12-95.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, no presente recurso a questão suscitada consiste em saber se, verificando-se a nulidade da decisão administrativa, por preterição do dever de fundamentação nos termos do artigo 58º, n.º 1, al. b), do RGCO, pode tal nulidade ser sanada pela autoridade administrativa; ou, ao invés, como defende a sentença recorrida, trata-se de nulidade insanável, a determinar o arquivamento dos autos.


*

Alega o recorrente:

“o auto de notícia especifica pormenorizadamente os fatos que determinaram a violação das normas e a instauração dos autos de contra ordenação, certo é que a decisão administrativa é omissa quanto aos mesmos.

Na impugnação judicial a arguida “C..., S.A”, suscita a questão da nulidade da decisão administrativa, por falta da descrição de fatos e do elemento subjetivo.

Ainda, assim, o tribunal “a quo”, recebeu a acusação (cfr. artigo 62º, nº 1, do RGCO), sem proceder à apreciação das nulidades suscitadas.

O tribunal “a quo”, deveria rejeitar a acusação por manifestamente infundada, conforme resulta do disposto nos artigos 311º, nº 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Penal ex-vi artigo 58º e 41º, nº 1, da RGCO.

Ou, decidir tais questões, por despacho, nos termos do disposto no artigo 64º, do RGCO.

Não o fez e permitiu a realização do julgamento, para depois apreciar as nulidades invocadas e determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos.

Ainda assim, entendemos, salvo o devido respeito, que o tribunal “a quo” ao declarar a nulidade da decisão administrativa, deveria, como consequência, remeter os autos à autoridade administrativa para sanação daquela, e não, determinar a absolvição da arguida e arquivar os autos.”

Com efeito,

Como reconhece o recorrente e consta na sentença recorrida «a decisão administrativa, (…) não indica que concretos produtos estavam a ser vendidos, a que preço, em que condições e que redução havia, quais os dizeres existentes na loja para cada produto, ou pelo menos a título exemplificativo; não obstante o cuidado do agente autuante que identificou que produtos estavam a ser vendidos, preço e dizeres nos expositores.

Tal narração concretizada, por motivos que se desconhecem, não foi transcrita para a decisão administrativa, nem sequer é feita qualquer remissão.

(…) Da leitura da decisão recorrida (fls. 77 e segs.) afere-se que esta não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, tanto objectivos como também nenhum de natureza subjectiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem se referindo a negligência, neste caso da contraordenação que lhe era imputada.».

O artigo 1º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) – DL n.º 433/82, de 27 Out., define a contra-ordenação como todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima, e nos termos do n.º 1 do artigo 8º só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

Quer isto dizer que um dos princípios basilares do direito contra-ordenacional é o princípio da culpa.

E para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo «no propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional» e a negligência na «falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei» (Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2007, 4.ª edição, pág. 139).

Conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 58º (sob a epígrafe Decisão Condenatória) do DL n.º 433/82, de 27 de Out.:

A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas,

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

O RGCO não contém qualquer disposição que preveja a consequência jurídica para a preterição de algum desses requisitos, pelo que, como bem sublinha a sentença recorrida, tem a doutrina e a jurisprudência divergido acerca da qualificação do vício decorrente da inobservância dos requisitos formais a que alude o artigo 58º, n.º 1 do RGCO, para uns nulidade, insanável ou sanável, ou até mesmo de mera irregularidade.

Assim, para António Beça Pereira ([1]) a inobservância de alguns dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do citado artigo 58º consubstancia uma irregularidade, e será segundo as regras deste instituto (art. 123º do CPP) que se apurará da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (inclusive). E acrescenta que, não se afigura correcto aplicar, subsidiariamente (ex vi art. 41º), o disposto no artigo 379º do CPP (nulidades da sentença), uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória/administrativa, esta, nos termos do n.º 1, do artigo 62º do RGCO, converte-se em acusação. Mais acrescentando que não se afigura como correcto aplicar, subsidiariamente, o disposto no n.º 3 do artigo 283º do CPP (nulidades da acusação) uma vez que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não se converte em acusação.

Contrariamente, Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa (in. ob. cit.) consideram que a falta de observância dos requisitos constantes do n.º 1 do artigo 58º do RGCO constitui uma nulidade da decisão de harmonia com o preceituado nos artigos 374º, n.ºs 2 e 3 e 379º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do artigo 41º RGCO.

Segundo estes Autores, em anotação ao artigo 58º, “os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.   Por isso, as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício dos seus direitos.”

Por sua vez, Oliveira Mendes e Santos Cabral ([2]) consideram que “a polémica deverá ser resolvida com apelo às razões que levaram à consagração da necessidade de fundamentação da sentença penal, pois, a decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal – cfr. artigo 374º do CPP – embora de uma forma simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo.

“Colocada a necessidade da fundamentação, e radicando a mesma num incontornável direito a conhecer as razões do sancionamento, é evidente que o mesmo é comum aos dois tipos de processo e, consequentemente, entende-se que o incumprimento dos requisitos enumerados no n.º 1 implica a existência de uma nulidade nos termos cominados no artigo 379º do Código de Processo Penal.

Importa, porém, salientar que nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada” ([3]).

Face às questões suscitadas no recurso de impugnação judicial, a sentença recorrida pronunciou-se sobre a falta de fundamentação da decisão administrativa no sentido de que: «Dos elementos dos autos, não obstante a extensão da decisão, sobre as normas e finalidades das mesmas, certo é que factos, não possui.

Logo a decisão administrativa proferida nos presentes autos é nula, porque omissa em factos concretizadores dos elementos do tipo objectivos e subjectivos contra-ordenacional imputado (e pela qual condenou) a Recorrente, sendo que esta neste tipo de processos, reveste a natureza de uma “acusação”.

Tal nulidade, porque não foi retirada a acusação (artigo 65º-A do RGCO), determina que, nos termos do artigo 64º do mesmo diploma, sejam arquivados os autos por falta de objecto.».

“Na verdade, as decisões administrativas não constituem efectivamente verdadeiras sentenças e a aplicação subsidiária das disposições processuais penais tem de ser analisada de harmonia com a natureza dos processos contra-ordenacionais e da sua especificidade, de forma a que sejam adequadamente compreendidas as exigências contidas naquele artigo 58º, as quais se aproximam de algum modo dos requisitos previstos para a acusação referidos no artigo 283º do CPP.

Porém, a exigência de fundamentação é requisito também da decisão administrativa - art. 58º, n.º 1, al. c) -, diferentemente do que naturalmente se verifica com a mera peça acusatória em processo criminal.

E, embora nos termos do artigo 62º, n.º 1, do RGCO, a apresentação pelo Ministério Público dos autos ao juiz (e não propriamente apenas a decisão administrativa), valha como acusação, isso não significa que à decisão administrativa seja aplicável o regime estrito das nulidades da acusação, por referência ao artigo 283º do CPP, consagrado nos artigos 119º e 120º do mesmo diploma.

Afigura-se, assim, que a decisão, apesar de toda a sua especificidade e com vista à finalidade que prossegue, terá de cumprir as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO e que, caso não as cumpra, por via do art. 41º do RGCO - por aplicação subsidiária, com a necessária harmonização, atentando em que as autoridades administrativas estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, também com as necessárias adaptações -, incorrerá em nulidade, com a disciplina do artigo 379º do CPP, com as consequências previstas no artigo 122º do mesmo Código - tornando inválido o acto em que se verificarem, bem como todos os actos que dele dependerem e que possam por eles ser afectados -.”  cfr. Ac. RE de 3-12-2009, proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1, in www.dgsi.pt.

Acresce que as nulidades de sentença são sanáveis, nos termos do n.º 2 do artigo 379º, não constando, por isso, do elenco taxativo das nulidades insanáveis do artigo 119º do CPP.

 Por isso, existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas no artigo 58º do RGCO, esta não está sanada, o que não significa que não deva ser suprida pela autoridade administrativa que inicialmente tramitou o processo, por referência ao n.º 2 do artigo 374º do CPP – v. entre outros, o acórdão do STJ de 21-12-2006, proferido no proc. nº. 06P3201, acessível em www.dgsi.pt -, aliás de harmonia, com o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, dando-se oportunidade (…) de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto. Tal decorre da circunstância de o processo (…) ser uma sequência de actos, os quais nem sempre estarão entre si numa relação causal ou de dependência.

No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 21-9-2006, no proc. n.º 06P3200 e, de 6-11-2008, no proc. n.º 08P2804; da RL de 28-4-2004, no proc. n.º 1947/2004-3 e de 19-2-2013, no proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5; da RE de 3-12-2009, no proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1 e, de 25-9-2012 no proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1; todos disponíveis in www.dgsi.pt.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência,

- revogar a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que, por se verificar a nulidade da decisão administrativa, ordene o envio do processo à autoridade administrativa (ASAE), com vista a que, de acordo com o ora decidido, proceda à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade (incluindo na decisão os concretos factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos da contraordenação imputada à arguida).

Coimbra, 30 de Março de 2022

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente – artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)

Alberto Mira [presidente da 5.ª secção (criminal)]

 


[1] - Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, 6ª Edição, Almedina, pág. 109.
[2] - Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2ª Edição, Almedina, pág. 157.
[3] - ob. cit., pág. 159.      Cfr. ainda Ac. RC de 4-6-2003, CJ, Tomo 3, pág. 40.


Sem tributação.