Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
320/13.4GATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: COACÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
LIBERDADE DE ACÇÃO CONDICIONADA A COMPORTAMENTO IMPOSTO POR LEI
Data do Acordão: 03/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INST. CENTRAL DE COIMBRA – SEC. INS. CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 154.º DO CP
Sumário: I - O tipo de crime de coação protege o direito individual da liberdade de acção - liberdade de autodeterminação.

II - Tais liberdades não são passíveis de violação quando, ab initio, já se encontram excluídas por normativo penal e/ou contraordenacional.

III - Assim sucede quando - caso verificado nos autos - a suposta coação, mediante ameaça (o agente dirigiu a outrem estas palavras: “ó meu menino, meu grande filho da puta, meu cabrão, se voltas a despejar merda à porta da minha mãe eu quando for aí à terra passo-te com o carro por cima e parto-te os dentes todos da boca”), consubstancia um comportamento imposto por lei ao coagido, qual seja o de não voltar a despejar a fossa céptica à porta da mãe do arguido.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 320/13.4GATBU.C1 da Comarca de Coimbra, Coimbra – Inst. Central – Sec. Ins. Criminal – J2, findo o Inquérito o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente a um eventual crime de ameaça denunciado pelo assistente A... contra o arguido B... , ambos melhor identificados nos autos, do mesmo passo que considerou haverem sido indícios suficientes da prática pelo último de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do C. Penal, cuja notificação, nos termos e para o efeito do disposto no artigo 285º do CPP.

2. Na sequência do que veio o assistente a deduzir acusação particular contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do C. Penal, acusação, essa, acompanhada pelo Ministério Público, e requerer a abertura da instrução com vista à pronúncia do arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a) do C. Penal.

3. Finda a fase de instrução – no decurso da qual veio a ser comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos - foi proferido decisão instrutória, pronunciando o arguido pela prática de um crime de coação na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º e 22º, todos do C. Penal.

4. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

I. Não se conforma o Arguido/Recorrente com a Decisão proferida pelo Douto Tribunal “a quo”, pela qual o pronunciou pela prática pelo Arguido/Recorrente do crime de coação na forma tentada, p. e p. pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 154.º, artigo 155º e 22º todos do Código Penal, havendo, por isso, determinado pronunciar o Arguido/Recorrente.

II. É convicção do Arguido/Recorrente que nenhuma censura merecia o Douto Despacho de Arquivamento proferido nos presentes, no que à prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo n.º 1 do art. 153.º do CP, denunciada pelo Assistente, se refere.

III. Resulta do teor da decisão de pronúncia proferida pelo Tribunal “a quo” o seguinte:

“(…) – O arguido de imediato, dirigindo-se ao assistente, proferiu a seguinte expressão “ó meu menino, meu grande filho da puta, meu cabrão, se voltas a despejar merda à porta da minha mãe eu quando for aí à terra passo-te com o carro por cima e parto-te os dentes todos da boca”.

Ora, no caso em análise, resulta claramente da leitura da expressão proferida pelo arguido que a ação por este pretendida é que o assistente não despeje as fossas sépticas à frente da porta da mãe do arguido.

E a expressão utilizada pelo arguido é claramente suscetível de ser levada a sério pelo assistente, pois para além da agressividade das mesmas, continham ainda a ameaça de morte, caso este não agisse nos termos em que o arguido pretendia.

E pese embora não se tenha provado que o assistente omitiu a conduta para que foi constrangido, o certo é que aquela expressão tinha potencialidade para alcançar esse desiderato.

Assim, considerando que para a prática do crime de coação sob a forma tentada, basta que a conduta do arguido, sob a forma tentada com um mal importante, seja objetivamente capaz de obrigar outrem a praticar um ato, a omiti-lo, ou a suportar uma determinada atividade (art.º 22.º n.ºs 1 e 2 b) do CP), haverá que concluir que o arguido cometeu um crime de coação sob a forma tentada.

Mais há que dizer que da expressão utilizada resulta que o ato prometido é a morte, pelo que a conduta do arguido é subsumível ao art.º 154º do CP, com a agravação prevista no art.º 155º do CP.

(…)

Assim, terá a decisão de ser de pronúncia. (…)”.

IV) Constata-se que das diligências realizadas em sede de instrução não resultou a produção de prova que aditasse quaisquer indícios da prática de crime pelo Arguido/Recorrente, como reconhece o Douto Tribunal “a quo”, sendo manifesto que a decisão em apreço radica – apenas e só – na interpretação e subsunção jurídica pronunciada pelo Tribunal “a quo” relativamente aos elementos probatórios carreados para os autos em sede de inquérito.

V) Não se conforma o Arguido/Recorrente com a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal “a quo”.

VI) Pois que, da leitura do tipo incriminador incito no n.º 1 do artigo 154.º do Código Penal (coação) logo se alcança que o que se pretende proteger com tal normativo é o direito individual de liberdade de ação, de resto constitucionalmente consagrado. Visando tal norma a proteção da livre autodeterminação da vontade e da livre expressão da mesma, por parte do ofendido.

VII) A coação é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade e consubstancia-se, como diz a lei, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim. E, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.

VIII) In casu importa aferir se a conduta do Assistente visada pela expressão alegadamente proferida pelo Arguido/Recorrente dependia da livre vontade deste ou se, pelo contrário, já se encontrava limitada pela própria lei, estando assim em causa a apreciação da existência de indícios quanto à ameaça do Arguido/Recorrente ao Ofendido, enquanto meio de coação.

IX) E entende o Arguido/Recorrente, S.M.O., que tal liberdade do Assistente já se encontrava, originariamente, limitada.

X) Como bem havia concluído o Digno Magistrado do Ministério Público a expressão alegadamente proferida pelo Arguido/Recorrente e dirigida ao Assistente não foi apta a colocar em causa o bem jurídico tutelado pela norma, i.e., a liberdade de decisão e determinação e de ação do Assistente.

XI) Tal liberdade – de “(…) despejar merda à porta (…)” da mãe do Arguido/Recorrente – já se encontrava limitada, dado que a verificar-se sempre incorreria o Assistente na prática de um crime (de dano, p. e p. pelo art. 212º, ou de poluição, p. e p. pelos art. 279º e 290º, todos do Código Penal) ou de uma contraordenação. E a liberdade individual tem como limite os direitos, liberdades e garantias de terceiros – neste caso, as da Mãe do Arguido/Recorrente.

XII) Resulta evidente que a expressão proferida pelo Arguido/Recorrente não se reputa adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação do Assistente, antes seria apta a motivá-lo a conformar-se com o direito, respeitando os direitos de terceiro e, bem assim, não praticando qualquer crime. Como tal, o anúncio do mal incito na expressão alegadamente proferida pelo Arguido/Recorrente apenas se poderá entender como um apelo dirigido ao assistente para que não pratique uma conduta lesiva dos direitos da mãe do Arguido/Recorrente.

XIII) Entendimento este que vem sendo o sufragado pela Jurisprudência, como resulta do Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 13.05.2014, em sede dos autos com o n.º 29/11.3GEALR.E1, consultável in www.dgsi.pt, onde, sobre questão similar, se pode ler o seguinte:

“(…) I – Não é suscetível de integrar o crime de ameaça a expressão proferida pelo arguido quando se dirigiu aos ofendidos “se fizerem mais algum mal ao F., corto-vos os pulsos e o pescoço”, pois tal expressão, no contexto em que foi proferida, não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação daqueles dentro das margens de liberdade individual tuteladas pela ordem jurídica. II – O crime de ameaça também não se compadece com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma conduta dependente da vontade dos visados (…)”.

XIV) E Também no Douto Acórdão proferido em 15.05.2012, pelo mesmo Venerando Tribunal, em sede dos autos com o n.º 539/10.0GAOLH.E1, consultável in www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte:

“(…) III. A ameaça proferida pelo arguido não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação do visado com ela, pois que apenas constitui o anúncio de uma ofensa corporal que o motivará a conformar-se com o direito, respeitando a integridade física de terceiro, não praticando qualquer crime.

Traduz um apelo dirigido ao queixoso para que não agrida ninguém, ou seja, ao cabo e ao resto, para que não pratique qualquer crime. Pelo que não há crime de ameaça (…)”.

XV) Entende o Arguido/Recorrente não haver resultado suficientemente indiciado nos autos, como se impõe – enquanto pressuposto da prolação de decisão de pronuncia – a prática pelo mesmo de qualquer ilícito, fosse o crime de ameaça, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 153º do CP, a que se refere o Requerimento de Abertura de Instrução, fosse o crime de coação, na forma tentada, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 154.º, n.º 2 do artigo 155º e 22º do Código penal, como resulta da Decisão de Pronúncia.

XVI) Impondo-se, portanto e S.M.O., a censura à Decisão de Pronúncia proferida pelo Tribunal “a quo”, que assim deverá ser revogada e substituída por outra que determine a não pronúncia do Arguido/Recorrente por qualquer um dos identificados crimes – o que se roga.

Nestes termos

E nos melhores de Direito, que V. Exas Doutamente suprirão, deve a Decisão Recorrida, que pronunciou o Arguido/Recorrente pela prática do crime de coação, na forma tentada, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 154.º, n.º 2 do artigo 155.º e 22º do Código Penal, ser revogada, substituindo-se por outra que determine a sua não pronúncia, relativamente aos factos descritos no Requerimento de Abertura de Instrução e, bem assim, pela prática de qualquer crime.

5. Foi lavrado despacho de admissão de recurso, fixando-lhe o regime de subida e efeito.

6. Ao recurso respondeu a Exma. Procuradora da República, concluindo no sentido de não se mostrarem indiciados os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de ameaça e/ou de coação.

7. Remetidos os autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, acompanhando a resposta apresentada em 1.ª instância, defende a procedência do recurso.

8. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, reagiu o assistente/recorrido, pugnando pela confirmação da pronúncia do arguido.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

      De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões, sem prejuízo das questões que importe oficiosamente conhecer, ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso dos autos importa, pois, decidir se foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou, se pelo contrário, por falência dos mesmos, a decisão instrutória deveria ter sido - no seguimento do despacho de arquivamento do inquérito - antes, de não pronúncia.

2. A decisão recorrida [transcrição parcial]:

(…)

Apoiados, pois, nestas conclusões doutrinais e jurisprudenciais, analisemos o caso a que se reportam os presentes autos.

IV - Ora, da análise dos elementos probatórios juntos aos autos, e designadamente das diligências levadas a cabo em sede de instrução resulta claro, segundo entendemos, existirem indícios suficientes da prática pelo arguido da seguinte factualidade: 

- No dia 13.12.2013, pelas 18h.01m., o arguido telefonou para o telemóvel de C... , sogra do arguido e pediu para falar com o assistente.

- O assistente encontrava-se no café (...) , em Póvoa de Midões, reunido com os sogros, D... e C... , com a mulher, E... e com a advogada desta, F... .

- O assistente atendeu o telefone e colocou o telefone em alta voz.

- O arguido de imediato, dirigindo-se ao assistente, proferiu a seguinte expressão “ó meu menino, meu grande filho da puta, meu cabrão, se voltas a despejar merda à porta da minha mãe eu quando for aí à terra passo-te com o carro por cima e parto-te os dentes todos da boca”. 

- O assistente respondeu “com licença” e desligou o telefone.

- Em virtude do referido, o assistente sentiu medo do arguido e alterou a sua rotina de deslocação ao Café, que é explorado pela mulher, permanecendo aqui menos tempo, pois tinha receio ode se encontrar com o arguido, cuja mãe residia no prédio junto ao café e que este poderia vir visitar.

- Em virtude do referido, a mulher do assistente providenciou junto da Câmara pela limpeza das caixas de esgoto e, a recomendação dos funcionários da Câmara, chamou os bombeiros para limpeza dos tubos.

- Nesta altura a mulher do assistente tomou conhecimento de que não existia ligação das caixas para a rede geral de esgotos.

- O assistente e a mulher decidiram então encerrar o café, o que sucedeu em Janeiro de 2014, pois perceberam que as caixas das fossas sépticas podiam encher a qualquer momento e transbordar.

- O arguido sabia que a sua conduta era apta a causar medo no assistente e a prejudicar a sua liberdade de determinação, o que quis, agindo de forma livre voluntária e consciente e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Efetivamente, quando prestou depoimento em inquérito o assistente confirmou a ocorrência dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução e tal versão do sucedido foi corroborada pelos depoimentos das testemunhas C... , D... , E... , F... , ouvidas em sede de inquérito, que ouviram a conversa telefónica em causa nos autos, uma vez que o assistente colocou o telefone em “alta voz”.

Em instrução, inquiriram-se ainda as testemunhas G... e H... , que não ouviram o telefonema mas sabem que houve um rebentamento de uma fossa séptica no café que a mulher do assistente explora, enquanto arrendatária, sendo senhorio o aqui arguido.

Quanto ao arguido, não prestou declarações.

Assim sendo, e pese embora em sede de instrução se deva valorar o princípio da presunção de inocência, o certo é que os depoimentos prestados em inquérito e em instrução são unânimes quanto ao facto de que existia um problema entre o assistente e o arguido relacionado com as fossas sépticas do café explorado à data dos factos pela mulher do assistente, tendo várias destas testemunhas ouvido a conversa telefónica que teve lugar entre o arguido e o assistente e no decurso da qual aquele proferiu a expressão que consta do requerimento de abertura da instrução. Há pois indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos acima descritos.

A questão está pois em saber se estes factos integram a prática de um ilícito criminal.

Julgamos que sim, embora não o crime de ameaça que ao arguido é imputado, p. e p. pelo art.º 153º n.º 1 do CP mas sim, ao invés, o crime de coação p. e p. pelo art.º 154º do CP.

Senão, vejamos.

De acordo com o disposto no art.º 154º do CP, comete o crime de coação “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade”.

Através da incriminação desta conduta pretendeu o legislador reprimir jurídico-penalmente os ataques ou afetações ilícitas da liberdade individual de decisão e de ação em todas as suas possíveis manifestações e singulares expressões, acolhendo-a como bem jurídico intrassocial[1] e tutelando-a enquanto interesse jurídico individual e próprio de cada indivíduo à imperturbada formação e atuação da sua vontade, à possibilidade de, nas múltiplas formas de interação social, tranquilamente se conformar e dispor de si mesmo, dentro dos limites traçados pela lei.

O crime de coação abrange não só as ações que apenas restringem a liberdade de decisão e de ação mas também as que eliminam em absoluto a possibilidade de resistência.

Decorre do texto legal que a conduta típica consiste em constranger outrem a adotar um determinado comportamento: praticar ou omitir uma ação ou suportar uma ação.

Por sua vez os meios utilizados nessa coação consistem na violência ou a ameaça com um mal importante.

Quanto à violência, diz Maia Gonçalves no Código Penal Anotado, 18ª ed., pág. 598 e 599. “Por violência deve entender-se não só o emprego de força física, mas também a pressão moral ou intimação. E não se exige que a força física ou a intimidação sejam irresistíveis; basta que tenham potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do ato ou à omissão ou a suportar a atividade. A violência pode mesmo consistir em uma omissão, v.g. privando outrem de alimentos, mas deve ser levado em conta o circunstancialismo concreto, pois, v.g., a violência ou a intimidação suscetíveis de coagir um jovem podem não ter potencialidade para coagir um homem adulto.” 

Por outro lado, a violência que é meio de cometimento deste crime tanto pode ser dirigida contra a pessoa coagida como contra qualquer outra pessoa que, pelas suas relações com a coagida, suporte o efeito da violência, de modo a ficar privada da sua livre determinação. 

Por seu turno, quanto à «ameaça com mal importante», a mesma tanto se poderá reportar à prática de um ato ilícito, como de um ato lícito, e deve ser adequada a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante.

Quanto ao que deve ser entendido por mal importante há uma larga margem de indefinição, a ser preenchida pelo prudente critério do julgador. Não se quis, evidentemente, tornar punível toda a atividade social suscetível de causar um mal, mas só a atividade suscetível de causar um mal importante, ou seja um mal que tenha um acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que causa ou pode causar. 

Estamos perante um crime de resultado, ou seja, a consumação deste crime exige que a pessoa objeto da ação tenha efetivamente sido constrangida a praticar a ação, a omitir a ação ou a tolerar a ação, de acordo com a vontade do coator e contra a sua própria vontade.

Como refere Taipa de Carvalho Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 358, “Para haver consumação, não basta a adequação da ação (isto é, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante) e a adoção, por parte do destinatário da coação, do comportamento conforme à imposição do coator, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela ação de coação haja uma relação de efetiva causalidade. Se a conduta (ação, omissão ou tolerância de uma determinada ação) do sujeito passivo, isto é, do destinatário da coação - apesar de coincidente com a que o coator impunha - foi livremente decidida ou devida a apelo de terceiros (p. ex., forças policiais, familiares ou amigos) e, não consequência ou resultado direto da ação de coação, isto é, do medo da concretização da ameaça (o que se verifica, quando o sujeito passivo estava decidido a não ceder às exigências comportamentais do coator), não há consumação, mas apenas tentativa

E, continua o referido autor, dizendo Obra citada, pág. 365 que “Haverá tentativa punível, quando o destinatário da adequada (cfr. supra § 19) ação de coação adota um comportamento que objetivamente está conforme a imposição do coator, mas não por medo da coação, mas exclusivamente porque tal corresponde à sua vontade, quer esta vontade já se tenha decidido antes da ação de constrangimento (antes de receber a ameaça coativa) ou só se tenha formado posteriormente. O comportamento do sujeito passivo ou destinatário da coação não é, neste caso, efeito direto da ação de constrangimento e, portanto, apesar da adequação desta, não há consumação mas apenas tentativa”. 

Acresce que a imputação deste crime tem necessariamente que ser dolosa, ainda que sob a forma de dolo eventual – basta que o agente, independentemente das suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz sejam suscetíveis de constranger outrem e com tal se conforme.

Ora, no caso em análise, resulta claramente da leitura da expressão proferida pelo arguido que a ação por este pretendida é que o assistente não despeje as fossas sépticas à frente da porta da mãe do arguido. 

E a expressão utilizada pelo arguido é claramente suscetível de ser levadas a sério pelo assistente, pois para além da agressividade das mesmas, continham ainda a ameaça de morte, caso este não agisse nos termos em que o arguido pretendia.

E pese embora não se tenha provado que o assistente omitiu a conduta para que foi constrangido, o certo é que aquela expressão tinha potencialidade para alcançar esse desiderato.

Assim considerando que para a prática do crime de coação sob a forma tentada, basta que a conduta do arguido, sob a forma de ameaça com um mal importante, seja objetivamente capaz de obrigar outrem a praticar um ato, a omiti-lo, ou a suportar uma determinada atividade (artº 22º nºs 1 e 2 b) CP), haverá que concluir que o arguido cometeu um crime de coação sob a forma tentada

Mais há que dizer que da expressão utilizada resulta que o ato prometido é a morte, pelo que a conduta do arguido é subsumível ao art.º 154º do CP, com a agravação prevista no art.º 155º do CP.

Aqui chegados, nada mais do que concluir que é mais provável a condenação do arguido pelos factos e crimes de que vem acusado do que a sua absolvição.

Assim, terá a decisão de ser de pronúncia.

VI - Por tudo o que exposto fica, decide-se:

Ao abrigo dos artigos 307º e 308º do CPP, em processo comum com intervenção do tribunal singular, pronunciar o arguido B... , pela prática de um crime de coação na forma tentada, p. e p. pelo art.º 154º n.º 1 e n.º 2 e 155º e 22º do Código Penal, porquanto: 

- No dia 13.12.2013, pelas 18h.01m., o arguido telefonou para o telemóvel de C... , sogra do arguido e pediu para falar com o assistente.

- O assistente encontrava-se no café (...) , em Póvoa de Midões, reunido com os sogros, D... e C... , com a mulher, E... e com a advogada desta, F... .

- O assistente atendeu o telefone e colocou o telefone em alta voz.

- O arguido de imediato, dirigindo-se ao assistente, proferiu a seguinte expressão “ó meu menino, meu grande filho da puta, meu cabrão, se voltas a despejar merda à porta da minha mãe eu quando for aí à terra passo-te com o carro por cima e parto-te os dentes todos da boca”. 

- O assistente respondeu “com licença” e desligou o telefone.

- Em virtude do referido, o assistente sentiu medo do arguido e alterou a sua rotina de deslocação ao Café, que é explorado pela mulher, permanecendo aqui menos tempo, pois tinha receio ode se encontrar com o arguido, cuja mãe residia no prédio junto ao café e que este poderia vir visitar.

- Em virtude do referido, a mulher do assistente providenciou junto da Câmara pela limpeza das caixas de esgoto e, a recomendação dos funcionários da Câmara, chamou os bombeiros para limpeza dos tubos.

- Nesta altura a mulher do assistente tomou conhecimento de que não existia ligação das caixas para a rede geral de esgotos.

- O assistente e a mulher decidiram então encerrar o café, o que sucedeu em Janeiro de 2014, pois perceberam que as caixas das fossas sépticas podiam encher a qualquer momento e transbordar.

- O arguido sabia que a sua conduta era apta a causar medo no assistente e a prejudicar a sua liberdade de determinação, o que quis, agindo de forma livre voluntária e consciente e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…).

3. Apreciação

Insurge-se o recorrente com a decisão instrutória na parte em que o pronunciou pela prática de um crime de coação na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º e 22º, todos do C. Penal, assistindo-lhe, a nosso ver, razão.

E porquê?

A Senhora juiz, debruçando-se sobre o crime de ameaça [artigo 153.º do C. Penal], traduzindo-se este no prenúncio de um mal futuro, dependente da vontade do agente, afastou-o – e bem - pois, perante o teor da expressão proferida, sempre esbarraria a construção na circunstância de o anunciado mal futuro, ficar na dependência de determinada conduta do visado, não dispensando, pois, a sua colaboração.

Com efeito, quando se diz «…se voltas a despejar merda à porta da minha mãe eu quando for aí à terra passo-te com o carro por cima e parto-te os dentes todos da boca», naturalmente que comprometido fica o requisito da dependência do mal anunciado da vontade – exclusiva - do agente.

Efetivamente, como realça o acórdão do TRE de 03.06.2014, proc. n.º 11/12.3GAFALR.E1, disponível em www.dgsi.pt, «Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais Superiores a asserção de que a ameaça formulada pelo agente ativo só preenche a tipicidade do n.º 1 do art. 153.º do CP quando consubstanciar a cominação de um mal futuro, cuja realização depende exclusivamente da vontade do agente ativo e não de algum comportamento do agente passivo ou de um terceiro», o que não foi o caso.

E coisa diferente não decorre das palavras de Taipa de Carvalho quando escreve: «Indispensável é, em terceiro ligar, que a ocorrência do “mal futuro” dependa (ou apareça como dependente …) da vontade do agente. Esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência (…). Assim, não há ameaça, mas sim uma advertência ou aviso, quando A, visando que B lhe pague a importância do cheque que não tinha provisão, afirma que o vai meter na prisão (…)» - [cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 343].

Sucede, porém, que com a incriminação do tipo de coação – pelo qual o recorrente se mostra pronunciado - o que se protege é o direito individual da liberdade de ação – liberdade de autodeterminação -, traduzindo-se aquela na imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.

É, assim, nos termos da própria lei, o constrangimento de outrem por determinado meio – violência ou ameaça de mal importante – com vista a determinado fim que tanto pode ser o de provocar uma conduta [ativa ou omissiva] ou o de fazer suportar uma atividade.

Ora, no caso em apreço, como ademais não deixa de resultar da decisão instrutória e decorre, inequivocamente, dos autos, a suposta coação, mediante ameaça, encontrar-se-ia condicionada a um comportamento ilícito por parte do coagido, qual seja o de não voltar a despejar a fossa séptica à porta da casa da mãe do arguido.

Mas, se assim é, não há que falar em direito individual de liberdade de ação, nem, consequentemente, em prejuízo da liberdade de autodeterminação por via de uma conduta do arguido, posto que a mesma, em momento anterior por imposição legal, já não existia.

Bem vistas as coisas a situação encontra paralelo em muitos outros comportamentos que não escapam ao quotidiano, como é o caso por exemplo a conduta de um pai que dirigindo-se ao agressor da sua filha lhe diz: «Se voltas a bater à minha filha dou cabo de ti».

Que coação, que constrangimento? A não vazar a fossa séptica à porta da mãe do arguido?

Como escreve Nelson Hungria (Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, 149 e ss) a tutela jurídica da liberdade individual exerce-se e só perdura enquanto esta gravite na órbita do direito. Proteger a manifestação de uma vontade em conflito com a lei penal – e/ou – acrescentamos nós – contraordenacional - seria contrário ao próprio fundamento da repressão. Não pode haver garantia à liberdade de delinquir.

Orientação que transparece do acórdão do TRE de 13.05.2014, proc. n.º 29/11.3GEALR.E1 (convocado pelo recorrente) na parte em que discorre:

«Podemos no entanto estar aqui perante a prática de um crime de coação, p. e p. pelo art. 154º, nº 1 do C. Penal (…)

Este crime tal como a ameaça, tutela também a liberdade pessoal.

No entanto, para aferir da tipicidade da conduta do arguido, devemos refletir sobre qual a margem de liberdade tutelada pelas normas em causa e pelo direito penal em geral.

De facto, o arguido quis constranger os ofendidos a uma omissão, a de deixarem de insultar e agredir o seu neto F. Mas pergunta-se, eram os ofendidos livres, à luz do direito, de praticar estas condutas. Situam-se as mesmas dentro da margem de liberdade individual tutelado pela ordem jurídica.

Parece-nos claro que não (…). O direito não pode pois proteger a liberdade dos cidadãos de praticarem condutas ilícitas (…)».

Numa outra perspetiva, conduzindo, embora, a idêntico resultado, lê-se no acórdão do TRP de 09.10.2013, proc. n.º 300/10.1GACNF.P1: «É pressuposto da ameaça (…) a a promessa de um mal futuro e que dependa da vontade do agente. Se esse mal não depender da vontade do agente, estaremos perante um simples aviso ou advertência.

Ora, a promessa do mal em causa na situação em apreço (uma agressão física por parte do agente) está dependente de uma conduta que depende da vontade do destinatário (que este volte a riscar o automóvel do agente). Não está, pois, verificado este pressuposto da ameaça.

(…) poderíamos estar perante um crime de coação p. e p. pelo artigo 154.º do Código Penal. No entanto, como a ação se destina a evitar um facto ilícito típico (…), estará justificada nos termos da alínea c), in fine, do n.º 3 desse artigo 154.º»

A mesma ideia se retira do acórdão do STJ de 17.04.91, AJ n.º 18 quando refere: «Pressuposto do crime (…) é a perda de liberdade de determinação, o constrangimento, de alguém que é levado a praticar um ato que não deseja, a um “non facere” contra a sua vontade de agir, ou, finalmente, o ter de suportar, contra a sua própria vontade, uma atividade alheia (…), e isto em consequência de violências (físicas ou morais) ilegítimas que lhe são feitas (…)», prosseguindo: «A punição da coação retira o seu fundamento do propósito legal de defesa dos indivíduos contra qualquer força ou ameaça à sua personalidade física ou moral, que contenda com a liberdade de determinação e que não sejam obrigados legalmente a suportar (cf. art.º 70.º do C. Civil) e radica-se, em última análise, na própria Constituição que, no seu art.º 24.º, n.º 1, expressamente declara que a integridade moral e física dos indivíduos é inviolável».

A coação é, assim, um crime contra a liberdade pessoal de decisão e de ação, liberdades, essas, que, como aduz o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, não são passíveis de afronta quando, como é o caso [veja-se a subsequente conduta da mulher do coagido ao providenciar junto da Câmara e dos Bombeiros pela limpeza da caixa dos esgotos e, bem assim, o ato de encerramento do café com vista a evitar que as caixas das fossas sépticas enchessem e voltassem a transbordar], já se encontram vedadas em função da lei penal e/ou contraordenacional.

Não se mostram, pois, reunidos os pressupostos dos quais o legislador, no artigo 308.º do CPP, faz depender a pronúncia do arguido, circunstância que conduz à revogação da decisão recorrida.

III – Decisão

Termos em que, julgando procedente o recurso, se revoga a decisão instrutória enquanto pronunciou o arguido/recorrente pela prática de um crime de coação agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º e 22º, todos do C. Penal.

Sem custas.

Coimbra, 2 de Março, de 2016

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora]

(Isabel Valongo - adjunta)


 

 

 
 

 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I., pg.340.