Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
195/11.8TBGVA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
CONTA CORRENTE
DESPACHO SANEADOR
MÉRITO
Data do Acordão: 03/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 46º E 510º, Nº 1, AL. B) DO CPC.
Sumário: I – O artigo 510.°, n.° 1, alínea b), do Código do Processo Civil pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão.

II - Os títulos executivos são os indicados na lei como tal - art.º 46º -, estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, estando, assim, vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo.

III - O documento particular, para valer como título executivo, tem que nos indicar não só que a quantia definida é “x” mas também que é devida, e deverá fazê-lo em termos auto-subsistentes, ou seja, que dispensem demonstração complementar não coincidente com meras operações de liquidação.

IV - Os contratos de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples não representam qualquer constituição ou reconhecimento de dívida dos executados, mas apenas representam os termos e condições em que estes podem utilizar o dinheiro que a exequente lança na conta de depósitos à ordem aí identificada, a débito e a crédito, e para utilização no desenvolvimento da actividade empresarial do executado e sempre a pedido deste.

V - Só surgindo a obrigação deste – o creditado - no momento em que o crédito é concedido, nascendo, consequentemente, a dívida quando levanta o dinheiro ou recebe os bens a consumir.

VI - Assim sendo necessária a prova complementar a fazer ao abrigo do disposto na norma do artigo 50º do Código do Processo Civil.

VII - Se a tese, de quem defendia estender a letra da norma aos documentos particulares, já era difícil de aceitar na altura, diante da expressa restrição a “escrituras públicas” com que o preceito abria - justamente, alguma jurisprudência enunciava que “o art.º 50º do CPC não é aplicável, por interpretação extensiva, dos documentos particulares”- Acórdão do STJ 21.2.2002, in www.dgsi.pt -, depois da reforma, com várias alterações ao artigo 50º em que o legislador veio alargar o âmbito formal do preceito a qualquer documento autêntico ou documento autenticado, tornou-se patente que não estava na sua vontade admitir os documentos particulares simples.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1.Relatório

O Banco …, S.A. intentou execução comum para pagamento de quantia certa (€ 558.303,62) contra F… e T...

Junta com o requerimento executivo: a) documento particular datado de 17 de Março de 1999, subscrito pela Exequente e pelos Executados, sob a epígrafe “Contrato para Abertura de Crédito em Conta-Corrente de Utilização Simples”, nele se mencionando ser celebrado pelo prazo de 6 meses, até ao montante de € 498.797,90, acompanhado de duas alterações ao mesmo, de 25.02.2002 (este alterando o respectivo prazo para 30 meses) e 29.12.2002 (até ao montante de € 274.338,84) – documentos 1 a 4; b) escritura pública através da qual os executados constituem hipoteca sobre o prédio misto denominado …, a favor da Exequente “para garantia das obrigações pecuniárias decorrentes de quaisquer operações bancárias assumidas ou a assumir por F… e cônjuge T…, ou a sociedade por quotas “Transportes …, Limitada”, com sede em …, em conjunto ou em separado, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimos obrigacionistas (…)” – documento 5; c) certidão de registo predial relativa ao prédio referido na alínea anterior – documento 6; - notas de débito emitidas pela Exequente, onde figura como titular o executado F… – documentos 7 a 46.

Alega que no âmbito da sua actividade creditícia, a Exequente celebrou com os Executados os contratos juntos, tendo os executados se constituído fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à Exequente em consequência dos mesmos, para além de terem constituído hipoteca para garantia das obrigações contraídas nos contratos sobre o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Gouveia sob o n.º …, hipoteca que se encontra registada a favor da Exequente.

Os Executados deixaram de cumprir as suas obrigações emergentes dos contratos, nomeadamente, o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões, encontrando-se em dívida, em 11.04.2001, € 558.303,62.

Os executados F… e T… vieram deduzir Oposição à Execução, nos termos do disposto nos artigos 813º e ss., do Código de Processo Civil.

Para além de impugnarem os factos invocados no requerimento executivo que não resultam dos documentos 1 a 5 e os documentos juntos com o requerimento executivo como notas de débito, alegam, em síntese, que: o requerimento executivo é inepto, porquanto os factos alegados que fundamentam o pedido de pagamento da quantia exequenda, bem como a qualidade em que intervêm os executados, não se encontram provados pelos documentos juntos e estão em contradição com os mesmos. Por outro lado, inexiste título executivo, pois que os documentos juntos não importam constituição ou reconhecimento de qualquer dívida dos executados, tendo aliás as partes acordado que, para efeitos de execução da eventual dívida proveniente do incumprimento dos contratos, seria título executivo a livrança em branco aludida na cláusula 22 do documento 1 e cláusula 21 do documento 4.

É falso o contrato alegado no requerimento executivo com a nova numeração (o contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples celebrado em 17.03.1999 encontra-se revogado pelo contrato de 30.01.2001, o qual foi totalmente cumprido, nada devendo os executados à exequente no âmbito das operações com base no mesmo. O valor que a Exequente está a pedir aos Executados é o pagamento de uma quantia que o Município de … deverá à Caixa Leasing …, S.A.).

Em sede de oposição à execução, os Executados ainda pedem a condenação da Exequente como litigante de má fé, em multa e em indemnização a pagar aos Executados em quantia não inferir a € 40.000,00.

Invocam, para o efeito, que a Exequente deduziu um pedido contra os Executados cuja falta de fundamento não ignora, não podendo ignorar as consequências negativas de tal facto na esfera dos Executados.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 817º, n.º2 do Código de Processo Civil, veio a Exequente apresentar contestação, onde pugna pela improcedência da oposição à execução.

Nesse sentido, alega que deve ser julgada improcedente a invocada ineptidão da petição inicial (quer porque os executados interpretaram convenientemente o requerimento executivo, quer porque a indicação da qualidade de “fiadores solidários” no requerimento executivo resulta de um mero lapso de escrita, pretendendo-se antes escrever “mutuários”, o que resultam dos documentos 1 a 6 que servem de título à execução); os contratos juntos como titulando o crédito (docs. 1 a 4) e as respectivas notas de débito (docs. 8 a 46) constituem título executivo nos termos exigidos pela lei adjectiva; impugnam os artigos 6º a 24º da oposição e os documentos 1 a 4 juntos pelos executados.

A Exequente ainda pede a condenação dos Executados como litigantes de má fé, em multa e em indemnização a pagar à Exequente em quantia não inferir a € 5.000,00.

Invoca, para o efeito, que os Executados não ignoram que os factos por si alegados são falsos e que não lhes assiste qualquer razão.

A Sr.ª Juiz do Tribunal Judicial de Gouveia, em sede de despacho saneador, profere a seguinte decisão final:

“Em face do exposto, decide-se: julgar procedente, por provada, a presente oposição à execução e, em consequência, julgar extinta a execução a que estes autos se encontram apensos, nos termos do preceituado no artigo 817º, n.º4 do Código de Processo Civil.

Julgar improcedente o pedido de condenação da Exequente como litigante de má - fé;- julgar improcedente o pedido de condenação dos Executados como litigantes de má - fé.

Custas a cargo da Exequente, nos termos do disposto no artigo 446º, n.º1 e 2, do Código de Processo Civil.

…”

O Banco …, S.A, exequente nos autos, não se conformando tal decisão dela interpôs recurso.

Apresenta assim as suas conclusões:

...

Os executados respondem assim:

...

2. Do objecto do recurso

                         Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da recorrente - trata-se, como é sabido, de uma manifestação do princípio dispositivo, estruturador do nosso processo - cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Os documentos juntos com o requerimento executivo (não) valem como título executivo para a execução que corre termos no processo principal?

2.O Tribunal a quo devia ter convidado o exequente a apresentar novo requerimento executivo em que procedesse à detalhada liquidação da quantia exequenda, fazendo-o acompanhar de pertinente prova complementar de suporte da respectiva liquidação aritmética, nada obstando a que tal convite seja agora feito, nos temos do artigo 508º, nºs 2, 3 e 4 do C. Processo Civil, caso assim se entenda?

3. Não estando, ainda, em condições de decidir, sem permitir à parte (aqui apelante) a demonstração, através da produção de prova, de que a realidade comporta inúmeras variantes, violando o direito de acesso aos tribunais a que se refere o n.º 1, do art.º 20º da Constituição, o direito de acção previsto no art.º 2º, n.º 2 do CPC e o direito do contraditório previsto no n.º 3 do art.º 3 do CPC, o art.º 652º, n.º 3, d)- pois o juiz não procedeu à inquirição de testemunhas -, e, ainda, o art.º 510º, n.º 1, b), do CPC, já que conheceu imediatamente de mérito sem ter apreciado qualquer prova oferecida a e apenas com base em juízos de valor totalmente subjectivos?

3.Decisão

Começamos pelo princípio.

O Tribunal da 1.ª instância, podia decidir a acção logo no saneador – como foi feito, por se ter entendido já dispor o processo de todos os elementos necessários a uma decisão conscienciosa.

Só como pequena nota histórica escrevemos o seguinte:

No Código de Processo Civil de 1876 não existia despacho saneador.

Este despacho teve origem no despacho regulador do processo, criado pelo Decreto n.º 3, de 29 de Maio de 1907, vulgarmente designado decreto para a cobrança de pequenas dívidas, para os seguintes fins: 1.º- Conhecer de quaisquer nulidades insupríveis e das supríveis que as partes hajam devidamente arguido; mas neste caso o juiz só anulava o processado ou mandava suprir a irregularidade quando a nulidade pudesse influir no exame e decisão da causa; 2.º- Mandar passar cartas precatórias; 3.º- Designar dia, dentro dos dez imediatos, para o julgamento da acção, desde que não houvesse diligências a realizar (artigo 9.º).

Em 1926, a função de tal despacho foi ampliada, destinando-se a partir de então a limpar o processo das questões que podem obstar ao conhecimento do mérito - artigo 24.º do Decreto n.º 12.353 -.

A possibilidade de conhecimento do mérito da causa nesse despacho só foi consagrada no Decreto n.º 18.552, de 03.07.1930, que veio permitir o julgamento antecipado da lide, quando o processo contivesse todos os elementos necessários para esse efeito.

Avançando.

Nos termos que vêm estatuídos no artigo 510.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem - “Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos, ou de alguma excepção peremptória”. Caso em que o despacho “fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença”  - idem, mas n.º 3, ‘in fine’-.

Quando assim não puder ser, o artigo 511.º, n.º 1 desse Código estabelece que “O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”.

Não resistimos em escrever aqui a redacção anterior do primeiro preceito – antes da que lhe foi dada pelos Decretos-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro e n.º 180/96, de 25 de Setembro – que, a nosso ver, era bem mais impressiva no ponto que agora nos ocupa, quando afirmava: “conhecer directamente do pedido, se a questão de mérito for unicamente de direito e puder já ser decidida com a necessária segurança ou se, sendo a questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa”.

Este, pois, o figurino do sistema, o qual, como parece claro, pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas também se não coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada – “… apontam claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo; assim, se uma dessas soluções impuser o prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito da causa”.

E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização de uma base instrutória e a passagem à instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.

“Normal é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho saneador. Excepcional é que, com o encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”, escreve o Prof. Antunes Varela e outros no seu “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, ano de 1985, a páginas 385.

Poderemos concluir que:

O artigo 510.°, n.° 1, alínea b) pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão.

Mas tal regime não se coaduna com tomadas de posição que, em nome da celeridade, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura.

E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização da base instrutória e passagem à fase da instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.

A questão de mérito nos autos tem a ver com a (in) exequibilidade dos documentos apresentados pela Caixa Geral de Depósitos e que titula a execução que corre seus termos contra os executados/oponentes.

Diz a apelante que “os contratos juntos como titulando o crédito (docs. 1 a 4) e as respectivas notas de débito (docs. 8 a 46) constituem título executivo nos termos exigidos pela lei adjectiva.

O contrato de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples, datado de 17 de Março de 1999 é um documento autenticado, uma vez que o mesmo se enquadra na hipótese do n.º3 do art. 35.º do Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto (C. do Notariado). Assim sendo, partindo do facto de estarmos perante um documento autenticado, tem aplicação ao caso concreto a disposição do artigo 50.º do C. Processo Civil, bem como toda a fundamentação da douta sentença relacionada com este aspecto. É forçoso concluir que conjugando a referida escritura com os contratos juntos sob os documentos 1 a 4, que os executados não põem em causa, a exequente dá a conhecer qual foi, em concreto, a obrigação pecuniária a que os devedores se obrigaram.

 E, ao juntar as notas de débitos, e assim, concretizar e liquidar essa obrigação, a exequente demonstrou, salvo melhor opinião, qual o montante em dívida e que resulta da obrigação pecuniária assumida”.

A Sr.ª juiz da 1.ª instância, para afastar tal argumentação escreveu assim:

“A Exequente deu à execução, além do mais, documento particular datado de 17 de Março de 1999, subscrito pela Exequente e pelos Executados, sob a epígrafe “Contrato para Abertura de Crédito em Conta-Corrente de Utilização Simples”, nele se mencionando ser celebrado pelo prazo de 6 meses, até ao montante de € 498.797,90, acompanhado de duas alterações ao mesmo, de 25.02.2002 (este alterando o respectivo prazo para 30 meses) e 29.12.2002 (até ao montante de € 274.338,84) – documentos 1 a 4 juntos com o requerimento executivo.

A questão que, antes de mais, se coloca é a de saber se tais documentos (contrato e suas alterações), só por si, constituem título executivo.

A resposta não pode deixar de ser negativa.

De facto, estamos no âmbito de um contrato de abertura de crédito em conta corrente, que tem na sua base um documento particular. Sendo o contrato de abertura de crédito aquele pelo qual o banco se obriga a pôr à disposição da outra parte certa quantia para esta utilizar nos termos e condições ajustados, obrigando-se esta a reembolsar, para além das comissões e dos juros, os montantes que foram colocados à sua disposição, nele se prevê a possibilidade de se convencionarem “prestações futuras” ou “obrigações futuras”.

Ora, para se poder afirmar a exequibilidade dos documentos particulares mencionados na alínea c) do artigo 46º, do Código de Processo Civil, os mesmos têm de formalizar “a constituição de uma obrigação”, ou seja, serem “fonte de um direito de crédito”, ou deles se poder reconhecer a “existência de uma obrigação já anteriormente constituída” – neste sentido, Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, 1º Vol., Coimbra, página 92.

Assim, o contrato de abertura de crédito, por si só, não mostra ou certifica qualquer dívida dos Executados à Exequente.

Não sendo o contrato suportado pelos documentos 1 a 4 juntos com o requerimento executivo, por si só, título executivo, a questão que se coloca é a de saber se o é (ou pode ser) acompanhado de documentos complementares, designadamente, os demais documentos juntos com o requerimento executivo.

Dispõe o artigo 50º, do Código de Processo Civil que “Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.

A citada disposição legal aplica-se às situações em que nos documentos se convencionam “prestações futuras” ou “obrigações futuras”, prevendo a possibilidade o documento inicial ser complementado por outro(s) e, assim, passar a constituir título executivo. Contudo, tal dispositivo não se aplica às situações em que o documento inicial apresentado é particular, como é o caso dos autos; mas apenas aos documentos autênticos (exarados por notário) ou autenticados (lavrado por particulares e autenticado pelo notário) – no sentido de que não é lícito interpretar extensivamente a norma do actual artigo 50º, do Código de Processo Civil aos documentos particulares, veja-se o Acórdão do STJ de 21.02.2002, AGR. n.º214/02-2ª, Sumários, 2/2002.

Assim, “No caso de se convencionarem prestações futuras, impõe-se uma obrigação suplementar, a apresentação de prova complementar do título executivo nos termos consignados no artigo 50º, do Código de Processo Civil, cuja aplicação é circunscrita aos “documentos exarados ou autenticados por notário”, não sendo, pois, de aplicação aos casos em que tais obrigações futuras se contenham em documentos particulares” – neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.01.2010, processo n.º 5548/08.6TCLRS.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.

Resulta, portanto, que o contrato suportado pelos documentos 1 a 4 juntos com o requerimento executivo não pode ser acompanhado de documentos complementares nos termos do artigo 50º, do Código de Processo Civil, e assim, constituir título executivo.

A Exequente juntou, ainda, com o requerimento executivo, escritura pública através da qual os executados constituem hipoteca sobre o prédio misto denominado “…”, a favor da Exequente “para garantia das obrigações pecuniárias decorrentes de quaisquer operações bancárias assumidas ou a assumir por F… e cônjuge T…, ou a sociedade por quotas “Transportes …, Limitada”, com sede em …, em conjunto ou em separado, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimos obrigacionistas, até ao montante de cem mil contos (…)”;

Trata-se de uma escritura pública de hipoteca constituída para garantia do pagamento das responsabilidades dos Executados, provenientes de prestações futuras do credor.

Sendo um documento autêntico, nos termos do citado artigo 50º, do Código de Processo Civil, constitui título executivo desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas dele constantes ou, sendo o mesmo omisso, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.

Ora, os demais documentos juntos (notas de débito para além dos já analisados documentos 1 a 4) não constituem, por si só, título executivo por não preencherem qualquer das hipóteses normativas estatuídas no artigo 46º, n.º1, do Código de Processo Civil.

A questão que se coloca é a de saber se podem ser considerados documentos passados em conformidade com as cláusulas da escritura pública que provem que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.

Como vimos, o contrato de abertura de crédito contido nos documentos 1 a 4 juntos com o requerimento executivo não o prova (limitando-se, tal como a escritura, a prever a possibilidade de se convencionarem “prestações futuras” ou “obrigações futuras”).

Restam-nos as notas de débito. Ora, quanto a estas, não nos parece que possamos considerá-las “passadas em conformidade com as cláusulas da escritura”.

Por um lado, na escritura pública, os outorgantes (exequente e executados) não convencionaram atribuir a determinados documentos, relacionados com a mesma, a qualidade de “título executivo”.

Por outro lado, não resulta, de forma completa e transparente, que tais notas de débito e a escritura constituem uma unidade negocial cumprida através das prestações realizadas. De facto, são aquelas documentos avulsos que podem respeitar a negócios jurídicos sem qualquer ligação com a escritura pública não titulando, nesse caso, prestações realizadas em cumprimento do inicialmente convencionado – veja-se, a propósito, o Acórdão do STJ de 12.05.1981, BMJ, 307º, 205, cujo sumário se encontra transcrito em Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, Abril 2008, pág. 154.

Apresentando a escritura pública em apreço uma formulação muito vaga, fica necessariamente a dúvida quanto a saber se as notas de débito em causa foram emitidas de acordo com as “operações bancárias” naquela referidas e, portanto, se obedecem às condições estabelecidas no documento que constitui título base – que é o que exige o artigo 50º, do Código de Processo Civil.

Além disso, do teor daquelas notas de débito não resulta suficientemente demonstrada a disponibilização e utilização do crédito, isto é, das prestações da creditante, nos termos alegados no requerimento executivo.

Porque “uma escritura pública, em que se convencionem prestações futuras só poderá servir de base à execução, quando resultar dela e dos documentos posteriormente emitidos, por forma a não deixar dúvidas, que ela e esses documentos constituem uma unidade negocial, cumprida através das prestações realizadas” (Acórdão da Relação do Porto de 09.12.1982, Col. Jur. 1982, 5º, 227), e porque, como vimos, dúvidas existem de que assim seja, não pode deixar de se concluir que a escritura pública em apreço, ainda que acompanhada das notas de débito juntas, não constitui título executivo.

Outra conclusão não se compadece com o carácter de “ suficiente certeza” que o título executivo, atenta a sua idoneidade para constituir uma condição de exequibilidade extrínseca da pretensão, não pode dispensar.

Assim, em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, deve a Exequente previamente instaurar a competente acção declarativa, munindo-se, assim, em caso de procedência dessa acção, do respectivo título executivo.

Inexoravelmente se impõe, assim, a conclusão de que os documentos juntos com o requerimento executivo não valem como título executivo para a execução que corre termos no processo principal, assim se julgando procedente a excepção invocada pelos Opoentes, o que determina a absolvição dos mesmos do pedido – neste sentido, Castro Mendes, Acção Executiva, pág. 7 a 13 – fim de citação.

Como é sabido, toda a execução, tem por base um título executivo, pelo qual se determina o seu fim e limites - as exigências da lei quanto à formação do título, os requisitos necessários para que o título tenha força executiva destinou-se a estabelecer a garantia ou a dar a segurança de que onde está um titulo executivo está ao mesmo tempo um direito de crédito.

De facto, para que possa ser pedida a realização coactiva de uma prestação, o dever de prestar respectivo tem de, desde logo, constar de um título, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva, não bastando alegar a existência do título, sendo antes necessário exibi-lo, sendo sempre indispensável que ele tenha força executiva.

O título executivo é, assim, pressuposto ou condição geral de qualquer execução, sua condição necessária e suficiente, não podendo existir acção executiva sem título.

É um facto notório que a reforma adjectiva dos DL 329-A/95, de 12.12, e 180/96, de 25.9, veio conferir exequibilidade aos documentos particulares dos quais conste obrigação pecuniária, assinada pelo devedor, a liquidar por simples cálculo aritmético, sempre no sentido do aceleramento da tutela dos direitos em vista nas acções executivas.

Houve uma ampliação no “numerus clausus”, no que interessa ao nosso caso por se ter conferido exequibilidade aos documentos particulares dos quais conste obrigação pecuniária a liquidar por simples cálculo aritmético, assinados pelo devedor, não se exigindo agora que a prestação pecuniária esteja liquidada no título, que nele figure certa soma ou importância em dinheiro.

Também sabemos, que os títulos executivos são os indicados na lei como tal - art.º. 46º -, estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, estando, assim, vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo – neste preciso sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 26 e Amâncio Ferreira, Curso do Processo de Execução, p. 21.

A força executiva provem das garantias que o título oferece como atestação da existência da dívida; essas garantias são uma consequência das formalidades de que o título está revestido. Não se pode deixar de ter em vista a obrigação tal como está expressa no título, tal como ela surgiu e se incorporou no documento de constituição. É necessário que o título esteja em condições de certificar a existência daquela obrigação que entre as partes se constitui e formou. A obrigação a considerar é que nasceu do acto jurídico a que o título dá forma.

O artigo 46º, nas suas diversas alíneas, diz quais os títulos com força executiva.

 “À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

Este documento tem que nos indicar não só que a quantia definida é “x” mas também que é devida, e deverá fazê-lo em termos auto-subsistentes, ou seja, que dispensem demonstração complementar não coincidente com meras operações de liquidação - não devemos confundir esta demonstração com a confirmação de aspectos parcelares ou relativos à globalidade do mesmo, feita em sede de eventual oposição ulterior -.

A validade do título não pode estar dependente da existência de um processado declarativo temporal e logicamente enxertado e de verificação ocasional.

Há-de bastar-se por si próprio - do título executivo devem resultar, dada a necessidade de se acautelar a certeza e segurança das obrigações, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias o que não sucede quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título, isto é, não estão por ele documentados nos termos exigidos pelo referenciado artigo 46.º/1, alínea c).

A Exequente deu à execução, além do mais, documento datado de 17 de Março de 1999, subscrito pela Exequente e pelos Executados, sob a epígrafe “Contrato para Abertura de Crédito em Conta-Corrente de Utilização Simples”, nele se mencionando ser celebrado pelo prazo de 6 meses, até ao montante de € 498.797,90, acompanhado de duas alterações ao mesmo, de 25.02.2002 (este alterando o respectivo prazo para 30 meses) e 29.12.2002 (até ao montante de € 274.338,84) – documentos 1 a 4 juntos com o requerimento executivo.

Ao contrário do que vem alegado pela recorrente, os documentos que alicerçam a execução interposta são particulares - artigo 363º, nº 1, final, e nº 2, final, do Código Civil -, sendo que lhe falece a índole de autenticado - artigo 363º, nº 3 do Código Civil -.

 Importa lembrar que a autenticação, que se traduz na confirmação do documento perante o notário e nos termos prescritos pelas leis notariais - artigos 35º, nº 3 (São autenticados os documentos particulares confirmados pelas partes perante notário) e 150º, nº 1 (Os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário; 2 - Apresentado o documento para fins de autenticação, o notário deve reduzir esta a termo), do Código do Notariado -, tem o sentido de lhe conferir maior solenidade com um objectivo de conceder às partes uma maior prudência na respectiva outorga.

Daí que, no elenco das espécies dos títulos, ainda hoje, a lei não trate indistintamente aqueles documentos que, particulares, sejam ainda autenticados pelo notário, daqueles outros que, particulares também, contudo o não sejam; os primeiros assemelhados, para fins de exequibilidade, aos autênticos; intuindo-se que a lei infere destes uma maior garantia de genuinidade, uma compleição probatória que supera aquela que possa emergir dos particulares simples.

Como é sabido, o contrato de concessão de crédito é uma operação bancária - art.363.º do Código Comercial - através da qual o banco ou sociedade financeira coloca à disposição do cliente determinado montante - mútuo bancário -, através de diversas modalidades - por exemplo, mútuo, abertura de crédito, desconto -.

O contrato de abertura de crédito pode revestir a modalidade de conta corrente - abertura de crédito em conta corrente - e de descoberto em conta-corrente, sendo regulado pelas respectivas declarações negociais - arts.362.º, 363.º do Código Comercial e artigo 405.º do Código Civil -.

Na abertura de crédito a entidade creditante obriga-se a disponibilizar a outra - creditado - determinada soma em dinheiro, que este pode utilizar.

Assim, a abertura de crédito pode ser caucionada ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças; de acordo com o critério da sua realização, a abertura de conta pode ser simples ou em conta corrente, consoante o crédito é utilizado de uma só vez ou em tranches.

Discute-se a exacta natureza do contrato de abertura de crédito. Seja ela qual for, neste contrato salienta-se o seu fundamento final - a disponibilidade de dinheiro, mas que não equivale a um crédito: o crédito surge, mas posteriormente, por via potestativa, em simples execução do contrato.

Trata-se, assim, de um contrato-quadro, que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa. O contrato de abertura de crédito corresponde a uma operação económica unitária e a um tipo contratual autónomo, sedimentado na praxis comercial e bancária, designadamente através de cláusulas contratuais gerais e usos bancários. Pelos seus efeitos imediatos, é um contrato único, mas exige, no seu desenvolvimento e para que seja possível atingir a sua plena função económico-social a constituição de outras relações jurídicas, designadamente contratuais.

Quer dizer, nos seus efeitos imediatos, o contrato de abertura de crédito é susceptível de conduzir à celebração de outros contratos, v.g. de mútuo bancário.

 O reconhecimento desta realidade e a utilização, neste contexto, da categoria do contrato-quadro – para caracterizar a relação entre o contrato inicial e os sucessivos contratos a que pode dar origem – não podem, porém, ter como consequência prejudicar a coerência e a unidade da operação económica nem a autonomia e o carácter unitário do contrato de abertura de crédito.

Pelo contrário, deste modo sublinha-se o carácter instrumental e dependente dos sucessivos actos – designadamente contratos – que concretizam o programa fixado no contrato-quadro - acerca do seu conteúdo, ler o Acórdão desta Relação de 19.12.2012, relatado pelo Sr. Desembargador Henrique Antunes, que aqui acompanhamos -.

Assim, os contratos de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples não representam qualquer constituição ou reconhecimento de dívida dos executados, mas apenas representam os termos e condições em que estes podem utilizar o dinheiro que a exequente lança na conta de depósitos à ordem aí identificada, a débito e a crédito, e para utilização no desenvolvimento da actividade empresarial do executado e sempre a pedido deste.

Tais contratos não constituem título executivo que, de resto, a partes a isso expressamente afastaram ao fazer constar dos mesmos que tinha sido entregue, devidamente assinada e com autorização de preenchimento, uma livrança em branco - confrontar clausula 22 do documento 1 e clausula 21 do documento 4 -.

Aquelas livranças seriam preenchidas pela exequente, em caso de incumprimento dos contratos pelos executados, com a data a ser fixada por aquela, para efeitos de realização coativa do respetivo crédito.

Isto é, acordaram, exequente e executados, que para efeitos de execução da eventual dívida proveniente do incumprimento dos contratos, seria título executivo a livrança.

Afastaram, assim, as partes contratantes, que para efeitos de exigência do pagamento da dívida proveniente do incumprimento, os contratos não seriam títulos executivos, sendo que, legalmente como supra referimos também o não poderiam ser.

O que, de resto, se compreende pois a determinação do valor da dívida por incumprimento de um contrato e a data do incumprimento não resultam diretamente dos contratos, mas sim, da data em que a parte faltosa é notificada da declaração de resolução do contrato com fundamento em incumprimento definitivo e não em caso de simples mora.

Pois é a própria natureza das cláusulas dos contratos de abertura de crédito de conta-corrente (lançamento a crédito e a débito) que originam mora e nunca o incumprimento definitivo.

Ora, neste particular, teremos de concordar com a Sr.ª Juiz da 1.ª instância quando afirma que “…, o contrato de abertura de crédito, por si só, não mostra ou certifica qualquer dívida dos Executados à Exequente.”

Diz-nos, ainda, a alínea d) da citada norma que, à execução pode servir de base, “os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”

Nos termos do artigo 9.º n.º 4, do Dec. Lei n.º 195/93 de 20 de Agosto – transforma a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos - “os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.

Pretende a apelante, com tal norma, confere força executiva aos documentos juntos.

Salvo o devido respeito, confrontando os documentos que a exequente utiliza para fundamentar a instância, estes, em lugar algum mostram a existência de uma obrigação.

Pensamos que tal norma foi uma antecipação – na protecção especial que o Estado conferia a tal instituição – à actual alínea c) do artigo 46.º. E, quanto a esta norma, já vimos que os documentos apresentados aí não cabem.

Mas pode a exequente, mesmo assim, beneficiar da norma do artigo 50.º?

Como nota prévia teremos de dizer o seguinte, - para que as normas não se confundam na sua função e aplicação.

Enquanto o artigo 804.º prevê a demonstração do vencimento de uma obrigação constituída pelo título, o artigo 50.º reporta-se à constituição de uma obrigação depois do título e sobre prestações que cabem ao credor e só este está em causa nestes autos - sobre a evolução do preceito, Acórdão do STJ de 11.2.1999, Col. Jur., Ano VII, Tomo I, pág.105.

Pode ler-se no artigo 50.º: “Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras podem servira de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.

Esta norma alarga a exequibilidade dos documentos exarados ou autenticados pelo notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, àqueles em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras.

Este preceito corresponde ao anterior nº 2 do mesmo art.º 50.º - § único do art.º 51.º do CPC de 1939 -, cujo nº 1 passou, com nova formulação, para o art.º 46.º, al. b).

Como todos sabemos, tal normativo legal, no texto anterior à revisão do Código do Processo Civil, deu lugar a dificuldades de interpretação, sendo certo que após aquela também não ganhou clarificação textual.

Neste normativo contemplam-se, pois, dois tipos de situações: a convenção de prestações futuras, sendo indispensável, então, a prova de que "alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio" e a previsão da constituição de obrigações futuras, exigindo-se, aqui, a prova de que "alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes".

Em ambos os casos, a exequibilidade do documento fica dependente da apresentação de um outro documento, passado em conformidade com as cláusulas fixadas no primeiro.

Bem se compreendendo a necessidade de prova de que a obrigação foi efectivamente contraída.

Pois, convencionando-se ou prevendo-se prestações futuras, tal convenção ou previsão mais não contém senão uma promessa de empréstimo, que, só por si, não pode, naturalmente, constituir título executivo contra o creditado.

Só surgindo a obrigação deste no momento em que o crédito é concedido, nascendo, consequentemente, a dívida - A. Reis, Processo de Execução, vol. I, p. 162, embora a propósito de anotação do art. 51,º, § único (respeitante à convenção de prestações futuras) do CPC de 1939. Nascendo a obrigação do devedor – as prestações futuras a que o art. 50.º alude são as que devem ser efectuadas pelo credor e não as que o devedor tenha de satisfazer - quando levanta o dinheiro ou recebe os bens a consumir.

Assim sendo necessária a prova complementar - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, p. 107.

A forma desse outro documento - comprovativo da realização da prestação da constituição de obrigações - pode ser livremente estipulada no, digamos documento inicial.

Todavia, tal documento complementar do "documento exarado ou autenticado por notário" tem de obedecer às condições neste previstas – neste sentido, Lopes Cardoso, "Manual de Acção Executiva", 3. edição, páginas 73/74; J. Lebre de Freitas, "A Acção Executiva à luz do Código Revisto", 2. edição, página 49; e J. P. Remédio Marques, "Curso de Processo Executivo Comum", 1998, páginas 72/73, e, ainda, o Acórdão do STJ de 4 de Maio de 1999, pesquisado no site www.dgsi.pt -.

Aliás, para evitar dúvidas, a lei fala em que, sendo omissas as cláusulas no documento autenticado pelo notário, o documento suplementar tem que ser revestido de força executiva própria - art.50º, na redacção dada pelo DL nº116/2008, de 4.7-.

E, se não for junto tal documento, não há prova da existência da obrigação dotada de força executiva – Acórdão do STJ de 6.2.2007, lido na Col.Jur.,Ano XV, Tomo I, págs. 70/71 - .

Na redacção precedente à da revisão de 1997, no segmento relativo à convenção de prestações futuras - que era, então, o seu nº 2 -, apenas mencionava as escrituras públicas, sendo já então defendido, para lá de outras controvérsias interpretativas que suscitava, impor-se-lhe uma interpretação extensiva, nele se devendo considerar previstos outros títulos negociais e, designadamente, o documento particular exequível de que constasse a obrigação - José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva (depois da reforma da reforma”)”, 5ª edição, página 55, nota (41), o que tinha correspondência em alguma jurisprudência: “o contrato de abertura de crédito titulado por documento particular, assinado pelo devedor, sendo as obrigações pecuniárias determináveis nos termos da liquidação do exequente, através da junção do extracto de conta corrente, constitui título executivo”  - Acórdão do STJ de 15.5.2001, retirado do site www.dgsi.pt -.

No entanto, aquela revisão veio estender a letra do preceito ao documento exarado ou autenticado por notário - desde 2008 ainda por outras entidades ou profissionais com competência para tal -, não se referindo expressamente ao documento particular.

Se tal posição - de estender a letra da norma aos documentos particulares -já era difícil de aceitar na altura diante da expressa restrição a “escrituras públicas” com que o preceito abria - justamente, alguma jurisprudência enunciava que “o art.º 50.º, do CPC não é aplicável, por interpretação extensiva, dos documentos particulares”- Acórdão do STJ 21.2.2002, in www.dgsi.pt -,depois da reforma - com várias alterações ao artigo 50.º em que o legislador veio alargar o âmbito formal do preceito a qualquer documento autêntico ou documento autenticado - tornou-se patente que não estava na sua vontade admitir os documentos particulares simples.

Em face da alteração legislativa, parece-nos, com todo o respeito por opinião contrária, que se quis exigir a prova complementar da realização da prestação constitutiva dum contrato real prometido por documento autêntico ou autenticado, o que não é o caso, porque a abertura de crédito, quer assuma a natureza de um contrato preliminar - promessa de mútuo - ou de contrato – quadro, insere-se em documento particular.

É certo que, no Ponto 24 de tal documento, as partes contratantes convencionaram que o extracto da conta de abertura de crédito e os documentos de débito emitidos pela Caixa e, por ela relacionados com a mesma serão havidos, para todos os efeitos legais e, designadamente, para efeito do disposto no artigo 50.º do Código do Processo Civil, como documento suficiente para prova e determinação dos montantes em divida, mas, como se escreve no Acórdão do STJ de 3.11.2011, buscado no site www.dgsi.pt, está “...vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo”.

E, na falta da prova da realização da prestação e se ela não pode ser feita, como é o caso em análise neste recurso, então o título não pode ser executivo - neste sentido, vejam-se os acórdãos, do TRL de 26/01/2010, do TRC de 07/02/2012, do TRC de 25/01/2011 e do TRL de 07/01/2010 -.

Diremos, ainda, que na escritura de constituição de hipoteca, de 23.12.1993, os executados limitam-se a dar de garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias de operações bancárias a assumir pelos executados e pela sociedade por quotas Transportes …, Lda., até ao montante máximo de 100.000 contos, o prédio misto denominado “...”

Em parte alguma daquela escritura de hipoteca é referido que os executados se declaram devedores daquela quantia de 100.000 contos.

E, muito menos, os executados assumem pessoalmente dívidas da sociedade ali identificada Transportes …, Lda.

Dúvidas não há que através daquela escritura os executados não constituem, nem reconhecem quaisquer dívida, mas tão só declaram que dão de garantia, para pagamento de operações bancárias suas e da referida sociedade, o seu prédio misto.

Na escritura de hipoteca não se convencionaram prestações futuras. A escritura pública dada à execução limita-se a constituir uma hipoteca, que é um direito acessório, que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro.

A escritura ajuizada não é instrumento de constituição de qualquer obrigação, ainda que futura, não prova a existência de qualquer obrigação.

Sendo certo que pelo art.º 46.º, al. b) já citado, e não fora este preceito, a escritura pública não constituiria título executivo, já que por si não importa a constituição nem o reconhecimento de uma obrigação, já que, esta que constituiu a hipoteca  - art.º 686.º, nº 1 do Código Civil - não é instrumento de constituição de qualquer obrigação, ainda que futura, se não se prova a existência da mesma.

Quanto ás notas de débito, como o afirmou já a 1.ª instância, não nos parece que possamos considerá-las “passadas em conformidade com as cláusulas da escritura”.

Por um lado, na escritura pública, os outorgantes (exequente e executados) não convencionaram atribuir a determinados documentos, relacionados com a mesma, a qualidade de “título executivo”.

Por outro lado, não resulta, de forma completa e transparente, que tais notas de débito e a escritura constituem uma unidade negocial cumprida através das prestações realizadas.

De facto, são aquelas documentos avulsos que podem respeitar a negócios jurídicos sem qualquer ligação com a escritura pública não titulando, nesse caso, prestações realizadas em cumprimento do inicialmente convencionado – veja-se, a propósito, o Acórdão do STJ de 12.05.1981, BMJ, 307º, 205, cujo sumário se encontra transcrito em Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, Abril 2008, pág. 154 -.

Apresentando a escritura pública em apreço uma formulação muito vaga, fica necessariamente a dúvida quanto a saber se as notas de débito em causa foram emitidas de acordo com as “operações bancárias” naquela referidas e, portanto, se obedecem às condições estabelecidas no documento que constitui título base – que é o que exige o artigo 50º, do Código de Processo Civil -.

Além disso, do teor daquelas notas de débito não resulta suficientemente demonstrada a disponibilização e utilização do crédito, isto é, das prestações da creditante, nos termos alegados no requerimento executivo.

 Limitando-se tal escritura publica a constituir a hipoteca, que é um direito acessório, que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, não poderá a exequente lançar mão do artigo 5o.º.

Como se pode ler no Acórdão do STJ de 15.10.92, retirado do site www.dgsi.pt, “A escritura pública que se limita a documentar a constituição duma hipoteca, sem que a correlativa prestação do credor tivesse sido ainda constituída, não configura título executivo, ainda que o exequente junte àquele documento prova da abertura do crédito garantido pela referida hipoteca.

Assim sendo, acertada foi a decisão da 1.ª instância, ao decidir que “… os documentos juntos com o requerimento executivo não valem como título executivo para a execução que corre termos no processo principal, assim se julgando procedente a excepção invocada pelos Opoentes, o que determina a absolvição dos mesmos do pedido”.

E, esta decisão foi, acertadamente, proferida em fase do despacho saneador, já que os autos mostram já, todos os elementos necessários à sua boa decisão.

Diferentemente seria, se este Tribunal de recurso tivesse o entendimento de que aos autos se aplicava a norma do artigo 50.º

Contrariamente ao sustentado pela apelante, ao conhecer imediatamente do pedido, a Sr.ª Juiz não violou o princípio do contraditório, no plano da alegação, da prova e do direito.

Com efeito, no plano da alegação, a ré teve oportunidade na “contestação” de se pronunciar sobre os factos alegados no requerimento de oposição à execução, tendo assim sido assegurado o seu direito de resposta.

No plano da prova, o princípio do contraditório apenas exige que “às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos da causa, que lhes seja consentido fazê-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, tidas em conta, porém, as necessidades de andamento do processo, que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes e que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal” - Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, págs. 98 e 99 -.

No plano do direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie, proibindo-se as chamadas decisões-surpresa.

Ora, nos articulados as partes discutiram todos os fundamentos em que o Tribunal da 1.ª instância se baseou na sua decisão.

Não se mostra, pois, violado o princípio do contraditório nas suas diversas vertentes.

 Sumariando:

I. O artigo 510.°, n.° 1, alínea b), do Código do Processo Civil pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão.

II. Os títulos executivos são os indicados na lei como tal - art.º. 46º -, estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, estando, assim, vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo.

III. O documento particular, para valer como título executivo, tem que nos indicar não só que a quantia definida é “x” mas também que é devida, e deverá fazê-lo em termos auto-subsistentes, ou seja, que dispensem demonstração complementar não coincidente com meras operações de liquidação.

IV. Os contratos de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples não representam qualquer constituição ou reconhecimento de dívida dos executados, mas apenas representam os termos e condições em que estes podem utilizar o dinheiro que a exequente lança na conta de depósitos à ordem aí identificada, a débito e a crédito, e para utilização no desenvolvimento da actividade empresarial do executado e sempre a pedido deste.

V. Só surgindo a obrigação deste – o creditado -no momento em que o crédito é concedido, nascendo, consequentemente, a dívida quando levanta o dinheiro ou recebe os bens a consumir.

VI. Assim sendo necessária a prova complementar a fazer ao abrigo do disposto na norma do artigo 50.º do Código do Processo Civil.

VII. Se a tese, de quem defendia estender a letra da norma aos documentos particulares, já era difícil de aceitar na altura, diante da expressa restrição a “escrituras públicas” com que o preceito abria - justamente, alguma jurisprudência enunciava que “o art.º 50.º, do CPC não é aplicável, por interpretação extensiva, dos documentos particulares”- Acórdão do STJ 21.2.2002, in www.dgsi.pt -,depois da reforma, com várias alterações ao artigo 50.º em que o legislador veio alargar o âmbito formal do preceito a qualquer documento autêntico ou documento autenticado, tornou-se patente que não estava na sua vontade admitir os documentos particulares simples.

4.Decisão

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em confirmar a decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª instância.

Custas pela apelante.

 (José Avelino Gonçalves (Relator )

(Regina Rosa)

(Artur Dias)