Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1355/13.2TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: AVAL
OBRIGAÇÃO
AVALISTA
AUTONOMIA
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 217º, Nº 4 DO CIRE.
Sumário: I – A obrigação derivada da prestação de aval é autónoma da do avalizado pois o avalista, ao prestar o seu aval, obriga-se ao pagamento da quantia inscrita no título de crédito e não ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, sendo assim a sua obrigação perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, não sendo idênticas as responsabilidades assumidas pelos avalistas decorrentes dos respectivos títulos com todas as demais que foram negociadas no negócio jurídico subjacente, e no qual o avalista não interveio.

II - Sendo o plano de insolvência constituído por um conjunto de medidas que só visa a sociedade insolvente, regulando os termos e condições em que os débitos dele constantes irão ser pagos e não sendo as obrigações dos condevedores do insolvente ou dos terceiros garantes, afectadas por aquele plano – art.º 217º, n.º 4, do CIRE – o facto do credor não poder exigir à insolvente o pagamento do seu crédito, para além dos termos aí acordados, não é impeditivo de poder exigir a totalidade do crédito nos termos em que o podia fazer anteriormente a esse plano aos avalistas da insolvente.

III - Aplicando-se o plano de insolvência somente à sociedade insolvente que está impossibilitada de cumprir as suas obrigações nada impede que o credor accione os avalistas com vista ao cumprimento da obrigação que assumiram em consequência do aval prestado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


Os Executados deduziram oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe foi intentada, com fundamento em que a livrança que serve de título executivo foi abusivamente preenchida pelo exequente Banco A…, SA, uma vez que a sociedade subscritora (S…, Lda.) foi declarada insolvente, tendo sido aprovado um plano de recuperação com vista à satisfação dos créditos em dívida, incluindo o da aqui Exequente, pelo que não poderá exigir dos oponentes uma obrigação que, nos termos legais, não pode exigir à subscritora de uma livrança.

A Exequente contestou, defendendo a improcedência da oposição, ale­gando que, nos termos do contrato de empréstimo celebrado, os oponentes constituí­ram-se avalistas da sociedade subscritora da livrança, o que, nos termos da lei, os investe na posição de devedores solidários da mesma, e, nesse sentido, respondem pelo pagamento integral da livrança, ao abrigo do artigo 47º, n.º 1, da LULL.

Concluiu pela improcedência da oposição.

Foi proferido saneador-sentença que julgou a oposição improcedente.

O Executado interpôs recurso desta decisão, formulando as seguintes con­clusões:

...

Não foi oferecida resposta.

1. Do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações do Recorrente cumpre apreciar a seguinte questão:

A Portadora de uma livrança não pode reclamar dos avalistas o pagamento do seu valor quando a subscritora foi declarada insolvente, tendo sido aprovado um plano de recuperação que contemplava um pagamento diferido e reduzido do crédito titulado por aquela livrança ?

2. Os factos

3. O direito aplicável

Na sequência da execução que lhe foi intentada os Executados deduziram oposição, defendendo que pelo facto de ter sido, no processo de insolvência da devedora principal, aprovado e homologado o pagamento de todos os créditos reconhecidos e homologados naquele processo, com uma redução a 10% dos juros reclamados, as obrigações dos avalistas, como é a sua, se deve considerar extinta, não podendo, por esse motivo, prosseguir a execução.

Na decisão recorrida, fazendo-se referência à existência de divergência jurisprudencial quanto à questão colocada, concluiu-se que a votação de um plano de insolvência contem um conjunto de medidas que só se aplica à sociedade insolvente, não sendo, deste modo, de admitir que o credor fique impossibilitado de accionar os respectivos avalistas, não insolventes, os quais não se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.

Saber se a aprovação de um plano de insolvência com novos prazos e con­dições para cumprimento de uma obrigação anteriormente contraída beneficia não só a sociedade insolvente como os próprios avalistas tem sido uma questão debatida na jurisprudência, não obtendo, no entanto uma resposta uniforme.

Uma parte considera que com a aprovação daquele plano deixa de existir o título inicial, passando a existir um outro integrado, constituído pelo próprio plano que determina a inexigibilidade da obrigação dos avalistas, pois já não subsiste o título inicial que legitimava a execução dos avalistas.[1]

Outra parte da jurisprudência, com a qual nos identificamos, defende que a obrigação do avalista se mantém, independentemente dos acordos que sejam feitos no âmbito da relação subjacente, pois estes não têm a virtualidade de interferir na relação cambiária.[2]

A obrigação derivada da prestação de aval é autónoma da do avalizado pois o avalista, ao prestar o seu aval, obriga-se ao pagamento da quantia inscrita no título de crédito e não ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, sendo assim a sua obrigação perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, não sendo idênticas as responsabilidades assumidas pelos avalistas decorrentes dos respectivos títulos com todas as demais que foram negociadas no negócio jurídico subjacente, e no qual o avalista não interveio.[3]

No que respeita aos acordos celebrados com o devedor insolvente, dispõe o art.º 217º, n.º 4, do CIRE,  :

As providências previstas no plano de insolvência com incidência no pas­sivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.

Em anotação a este preceito, Carvalho Fernandes e João Labareda [4], fazendo referência à diferença de regime face ao que constava do art.º 63º do CPE­REF, dizem que seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário.

Sendo o plano de insolvência constituído por um conjunto de medidas que só visa a sociedade insolvente, regulando os termos e condições em que os débitos dele constantes irão ser pagos e não sendo as obrigações dos condevedores do insolvente ou dos terceiros garantes, afectadas por aquele plano – art.º 217º, n.º 4, do CIRE – o facto do credor não poder exigir à insolvente o pagamento do seu crédito, para além dos termos aí acordados, não é impeditivo de poder exigir a totalidade do crédito nos termos em que o podia fazer anteriormente a esse plano aos avalistas da insolvente.

Aplicando-se, pois, o plano de insolvência somente à sociedade insolvente que está impossibilitada de cumprir as suas obrigações nada impede que o credor accione os avalistas com vista ao cumprimento da obrigação que assumiram em consequência do aval prestado.

Invocam ainda os recorrentes que o Exequente aos demandá-los exigindo-lhes mais do que pode exigir ao devedor principal está a agir com abuso de direito, configurando a sua actuação o exercício ilegítimo de um direito.

A doutrina do abuso de direito tem, a função de obstar a injustiças clamo­rosas, a que poderia conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei.

Para se estar perante abuso de direito é necessário que o titular o exerça com manifesto excesso, conforme decorre do art.º 334º do C. Civil.

Assim, haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida esta segundo o critério social dominante [5].

Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, obser­vando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifesta­mente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. [6]

No caso que nos ocupa em que o apelado executa uma letra contra os ava­listas, pese embora a redução, no plano de insolvência, do seu crédito perante a subscritora, o exercício do direito de executar os avalistas não contraria o fim econó­mico e social desse direito, atenta a autonomia das obrigações cambiárias, não se revelando por isso abusivo.

Assim, improcede o recurso.

Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se improcedente o recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Regina Rosa

                  Artur Dias

[1] Neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos:

do T. R. P., de 12.2.1996, relatado por Guimarães Dias ,  e

do T. R. G, , de 24.4.2012, relatado por Araújo de Barros, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .

[2] Neste sentido, os seguintes acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt :

S. T. J.:

de 4.12.2007, relatado por Salvador da Costa, e

de 26.2.2013, relatado por Azevedo Soares;

T. R. L., de 26.6.2012, relatado por Pedro Brighton;

T. R. P., de 12.9.2013, relatado por Teresa Santos; 

T. R. G.:

de 4.12.2008, relatado por Raquel Rego;

de 11.9.2012, relatado por Catarina Gonçalves;

de  30.5.2013, relatado por Manuel Bargado,

de 5.12.2013, relatado por Helena Melo;

de 6.2.2014, relatado Isabel Rocha.

[3] Ac. S. T. J. de 23.10.2007, relatado por Mário Cruz, acessível em www.dgsi.pt .

[4] No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, pág. 130, ed. 2005, Quid Júris.

[5] Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ n.º 85, pág. 253.

[6] Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral , vol. I, pág. 564, 9ª ed., Almedina.