Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/15.8PCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
INSOLVÊNCIA
PROCESSO PENAL
ASSISTENTE
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 68.º, N.º 1, AL. A), DO CPP; ARTS. 146.º, N.ºS 1 E 2, E 160.º, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS; ART. 82.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: I – A massa insolvente de sociedade comercial, representada pelo administrador da insolvência, não tem legitimidade para se constituir assistente no âmbito de processo penal.

II – A legitimidade para aquele fim é da própria sociedade, representada pelos entes singulares que, à data da declaração da insolvência, são titulares dos órgãos sociais da pessoa colectiva.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 108/15.8PCLRA do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Leiria – Juízo Inst. Criminal – Juiz 3, finda a fase de inquérito, pelo Ministério Público, enquanto titular da ação penal, foi lavrado despacho de arquivamento relativamente aos factos, suscetíveis de integrar crimes de furto, denunciados por A... , enquanto sócia gerente de “ B... , Lda.”, contra C... e D... e por este último, também na qualidade de sócio gerente da dita sociedade, contra E... .

2. Em reação ao despacho de arquivamento veio a “Massa Insolvente de B... Lda.”, representada pela respetiva administradora, requerer, simultaneamente a constituição como assistente e a abertura da fase da instrução contra os arguidos C... e D... , pugnando pela sua pronúncia, imputando-lhes os crimes de furto e falsificação de documento.

3. Por despacho judicial de 13 de Dezembro de 2016 não foi a requerente admitida a intervir nos autos como assistente e, consequentemente, por inadmissibilidade legal, não foi, igualmente, admitida a fase de instrução.

4. Inconformada com a decisão recorreu a B... , Lda. (Massa Insolvente), formulando, então, as seguintes conclusões:

1. Vem a ora recorrente, Administradora de Insolvência em representação da Massa da sociedade insolvente “ B... , Lda.”, ofendida nos autos, inconformada com o despacho de 13.12.2016, que decidiu da inadmissibilidade da constituição de assistente e do pedido de abertura de instrução pela mesma.

2. Efetivamente, o despacho recorrido incorre em erro decisório, nos pressupostos de facto e de direito ao ter concluído, em suma, que os representantes da sociedade insolvente são os gerentes, no caso, os arguidos.

3. Assim, discorda a recorrente em absoluto da decisão do Tribunal de instrução Criminal que, em suma, não admitiu a constituição de assistente da “ B... , Lda. (Massa Insolvente)” representada pela Administradora de Insolvência, e, consequentemente, não admitiu o Requerimento de Abertura de Instrução com fundamento de que a ofendida “ B... (Massa Insolvente)” não pode ser representada, para esta finalidade, pela administradora de Insolvência, antes devendo ser pelos gerentes – esquecendo a Mm Juiz a quo que, no caso concreto, todos os gerentes eram arguidos nos autos e tem, consequentemente, um interesse contrário ao contraposto ao da ofendida B... .

4. Ora a ofendida “ B... , Lda. (Massa Insolvente)” tem  como propósito através do Requerimento de Abertura de Instrução formulado, que seja apurada a conduta imputada aos gerentes, os arguidos C... e D... , e os mesmos condenados pela prática dos crimes de furto previstos e punidos pelo art. 203º do Código Penal, ou de furto qualificado previsto e punido pelo art. 204º, al. a) do Código Penal e, ainda, pelos crimes de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1 do Código Penal, e ainda, o crime de insolvência dolosa e, por via desta condenação, ver os bens retirados da esfera patrimonial da massa insolvente, restituídos à mesma e/ou obtida indemnização equivalente à sua perda ou falta para a massa.

5. Assim discordando do aresto em crise, a massa insolvente da “ B... Lda.”, representada pelo Administrador de Insolvência, deve ser admitida como assistente nos presentes autos, permitindo assim, que enxertado no processo penal, seja admitida a deduzir pedido de indemnização civil e, assim, acautelar os interesses dos credores, em face dos atos praticados pelos gerentes arguidos.

6. Efetivamente, no caso, os gerentes não tem legitimidade ativa para se constituírem assistentes uma vez que foram eles que praticaram as condutas ou atos dolosos imputados de “retirada de bens/furto/frustração de créditos”, os quais lesam o património da insolvente (massa).

7. Dispõe o artigo 81º nº 4 do CIRE que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência”, motivo pelo qual vem sendo entendido que o Administrador de Insolvência não representa a sociedade no tocante à responsabilidade criminal da sociedade, porquanto “a representação desta continue a pertencer aos seus gerentes (tratando-se de sociedade anónima, aos seus administradores)”, certo é que, tratando-se de responsabilidade criminal dos gerentes da sociedade declarada insolvente, a representação e a defesa dos interesses patrimoniais da sociedade (massa insolvente) perante atos dolosos dos gerentes ou seus administradores pertence ao Administrador da Insolvência.

8. Ora, no âmbito dos presentes autos de processo penal, em que se discute a eventual condenação dos gerentes, arguidos, pela prática do(s) crime(s) que lhe é imputado pela Ofendida/Assistente, é manifesto que os ditos gerentes, constituídos arguidos, não têm legitimidade processual ativa, no caso, para defenderem o património e os interesses da insolvente.

9. Na verdade, falta aos gerentes constituídos arguidos, consequentemente, o interesse processual e estando vedada a possibilidade legal de se constituírem assistentes.

10. E, pretendendo a ofendida ver deduzido o pedido de indemnização civil nos presentes autos, têm os mesmos autos de processo criminal, indiscutivelmente, também um caráter patrimonial que interessa à insolvência (concretamente à Massa Insolvente), na medida em que tais montantes indemnizatórios estão dependentes do processo criminal.

11. Assim sendo, e por força da citada norma, diversamente do decidido, devia ser entendimento do tribunal a quo – como ora se pugna – que quem representa a sociedade arguida nos presentes autos, desde a sua declaração de insolvência, transitada em julgado, é o Administrador de Insolvência, o qual representa e gere os interesses e património da Massa Insolvente (representada nos autos pelo administrador de insolvência), até porque, e o Tribunal a quo não atentou, os gerentes são arguidos nos presentes autos, estando, assim, prejudicados os poderes de representação dos interesses e do património da sociedade insolvente pelos gerentes arguidos.

12. Neste sentido aliás, cabendo ao Administrador de Insolvência a representação dos interesses e do património da sociedade (Massa), o Ministério Público pugnou a fls. 388 pela admissibilidade da constituição de assistente e, consequentemente, do requerimento de abertura de instrução, designadamente tendo em consideração os crimes imputados.

13. Efetivamente, como é consabido, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – artº 81º, nº 1, e 55º, nº 1, do CIRE.

14. Ora a massa da Insolvente “ B... Lda” destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – art.º 46º, nº 1, do CIRE.

15. Por sua vez, é o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência – art.º 81º, nº 1 e 4, do CIRE – independentemente dos órgãos sociais do devedor se poderem manter em funcionamento após a declaração de insolvência (art.º 82º, nº 1, do CIRE).

16º Deste regime legal, extrai-se que as funções do administrador da insolvência se direcionam para todos os atos de defesa dos interesses de caráter patrimonial, que interessem à insolvência (nomeadamente a proteção da massa e dos credores), traduzindo, além do mais, o cumprimento de um dever legal de interesse público.

17. No caso vertente, a Administradora de Insolvência foi notificada por carta datada de 15-07-2016 (refª citius 825206009) do despacho de arquivamento e para, querendo, requerer a abertura de instrução, à luz do disposto no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP, (…) tendo nesse caso de se constituir assistente, devendo o requerimento ser dirigido ao Juiz de Instrução competente (…)” (o sublinhado é da notificação do tribunal a quo com ref.ª citius 82520609).

18. Mais fez constar o tribunal a quo, expressamente, em tal notificação datada de 15-07-2016 que a Administradora de Insolvência, “(…) nos termos do disposto no art. 68º, n.º 3, al b) do CPP poderá constituir-se assistente dentro do prazo estabelecido para a prática do ato acima identificado”.

19. Deste modo, assim notificada, a Administradora de Insolvência, veio, em representação da massa insolvente da empresa “ B... Lda.”, requerer apoio judiciário com a finalidade de se constituir “ofendida/assistente/demandante”, o que foi admitido, cujo requerimento de concessão de apoio judiciário e decisão de deferimento juntos aos autos a fls. …, “(…) para intervir no processo indicado, na qualidade de assistente e demandante deduzir pedido de indemnização civil)” – vd. Requerimento para concessão de apoio judiciário a fls … dos autos.

20. Dentro deste enquadramento fáctico e do quadro legal, sendo os gerentes ou representantes dos órgãos sociais da devedora (insolvente) arguidos a quem é são imputados a prática de crime que lesa o património da insolvente, é ao administrador da insolvência em representação da massa insolvente que cabe a tarefa da representação da sociedade insolvente para efeitos penais/pedido de indemnização civil, uma vez que está em causa a prática de crimes (furto/furto qualificado/frustração de créditos) que atentam contra o património da sociedade insolvente.

21. Assim, o despacho a proferir deveria ter sido, conforme pugnou aliás o Ministério Público, a fls. 338 dos autos, nos termos do disposto no artigo 81º, nº 1 e 4, do CIRE, de admitir a constituição de assistente e, consequentemente, o requerimento de abertura de instrução.

22. Efetivamente, a massa da insolvente “ B... Lda.” representada pelo Administrador de Insolvência é titular de um interesse imediato e direto no resultado do processo-crime que tem por objeto os bens que integram a massa e que foram retirados à esfera patrimonial da insolvente pelos seus gerentes, constituídos arguidos.

23. Assim sendo, face a todo o exposto e nos termos das disposições legais citadas, mal andou o tribunal a quo ao decidir como decidiu, da pretensa legitimidade ativa dos gerentes da representação da sociedade insolvente nos autos sendo que, no caso, os gerentes são, precisamente, os arguidos nos presentes autos, a quem é imputada a prática de crimes que lesam a massa insolvente, cabendo, consequentemente, diversamente do despacho recorrido, ao Administrador de Insolvência defender os interesses e o património da Massa Insolvente.

24. Ainda que assim não se entendesse, sempre seria a recorrente admitida a se constituir assistente na medida em que, como vem decidindo a Jurisprudência Superior “Tem legitimidade para adquirir o estatuto de assistente, quem, nos termos do art.º 68º nº 1 al. a) do CPP, seja, mesmo que, remotamente titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação, devendo ser considerado “ofendido”, atendendo-se ao tipo legal preenchido com a conduta alegadamente criminosa por parte de terceiros, sendo violado ou posto em perigo os seus interesses pela norma ou normas incriminadoras, mesmo que “in casu” se postule por uma conceção restritiva de tal conceito” – vd. Acórdão da Relação de Lisboa, de 29.05.2015, www.dgsi.pt.

25. Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou o disposto no art. 81º nº 1 e 4 do CIRE e o art.º 68º, nº 3, al a) e b) e art. 287º, nº 1, al b) do CPP, com manifesto erro decisórios nos pressupostos de direito e de facto, que desde já se invocam, devendo ser revogado o aresto em crise.

Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o aresto em crise e substituído por outro que admita a requerida constituição de assistente pela Administradora de Insolvência em representação da “ B... , Lda. (Massa Insolvente)” e, consequentemente, o seu requerimento de abertura de instrução, a fim de serem os gerentes, arguidos, pronunciados pelos crimes imputados e, assim, condenados nas respetivas penas aplicáveis e que se vierem a determinar e bem assim, no pagamento da indemnização civil correspondente e devida à massa insolvente, tudo com as legais consequências.

Assim decidindo, farão Vossas Excelências, a costumada Justiça!

5. O recurso foi admitido com subida imediata e efeito devolutivo.

6. Ao recurso respondeu a arguida C... Moreira, apresentando a seguinte conclusão:

Estando em causa a eventual prática de crimes de furto relativamente a bens da sociedade B... , Lda., a qual, não obstante ter sido judicialmente declarada insolvente, ainda não se encontra extinta, é essa sociedade e não a respetiva Massa Insolvente quem dispõe de legitimidade para intervir nos autos como assistente.

Nestes termos, deve o recurso improceder.

7. Também o Ministério Público reagiu ao recurso, concluindo:

1. As funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.

2. Após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.

3. Um dos aspetos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime e, assim, a todas estas questões, a representação da sociedade caberá, portanto, ao respetivo gerente.

4. A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação.

5. Pelo que, deverá manter-se a representação legal da sociedade insolvente, em conformidade com os termos estatutários.

6. A decisão ora recorrida de não admissão de constituição de assistente fez uma correta aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e bem assim da jurisprudência aplicável.

7. Pelo que, não existindo a violação de qualquer norma legal, deve negar-se provimento ao recurso interposto pela B... , Lda. (Massa Insolvente), mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Todavia, Vossas Excelências, melhor apreciando farão a costumada Justiça!

8. Na Relação a Exma. Procuradora – Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do recurso dever improceder.

9. Cumprido o n.º 2 do artigo 417º do CPP nenhum dos intervenientes reagiu.

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Revelando-se pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, mostrarem-se os poderes cognitivos do tribunal de recurso limitados em função do teor das conclusões [sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso], no caso em apreço a questão a decidir traduz-se em saber se no âmbito de um processo de natureza criminal, uma vez arquivado o inquérito por insuficiência de indícios da prática do crime ou de quem foram os seus agentes, pode a Massa Insolvente de uma sociedade - ainda não extinta -, representada pelo administrador da insolvência, ser admitida a intervir nos autos na qualidade da assistente e, assim, a requerer a abertura da instrução.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho recorrido:

Nos presentes autos veio a Massa Insolvente de B... Lda. requerer a sua constituição como assistente e requerer a abertura de instrução em conformidade com o disposto no artigo 287º, nº 1, al. a) do CPP.

O Ministério Público veio pronunciar-se no sentido de a requerente ser admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente – fls. 338.

Notificados os arguidos para, querendo, se pronunciarem sobre o pedido de constituição como assistente, veio a arguida C... opor-se à requerida constituição como assistente, defendendo que a Massa insolvente não tem legitimidade para se constituir como assistente nos autos – fls. 353 a 359.

Cumpra apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação.

Nos presentes autos investigaram-se factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática de eventuais crimes de furto, p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal, ou de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º nº 2 al. a), ambos do Código Penal, estando em causa a subtração de bens que se encontravam no estabelecimento comercial “ B... Lda.”, sito na zona da Nova Leiria, em Leiria.

O Ministério Público entendeu que da análise dos elementos constantes dos autos não resultavam indícios suficientes de que os arguidos tenham praticado o crime de furto.

Em conformidade foi proferido despacho de arquivamento.

Na sequência do despacho de arquivamento veio a Massa Insolvente de B... Lda., representada pela Administradora da Insolvência Maria do Céu Carrinho, requerer a constituição de assistente e a abertura de instrução.

Ora como já se deixou consignado o legislador consagrou no artigo 68º do CPP um conceito restrito de ofendido, ao permitir a constituição de assistente apenas ao titular “dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

Revertendo ao caso concreto, entendemos que a requerente não pode ser considerada como “ofendido” nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º, nº 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal, na medida em que não é o titular do direito que a norma incriminadora subjacente à sua denúncia pretende proteger com a correspondente incriminação.

A sociedade insolvente é representada no processo penal pelos representantes legais da mesma na data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após essa declaração nos termos determinados no disposto no artigo 82º, n.º 1 do CIRE.

O Administrador da insolvência assume a representação do devedor para os efeitos de caráter patrimonial que interessa à insolvência (art. 55º do CIRE).

Ou seja, as funções do Administrador da Insolvência direcionam-se para a liquidação da massa insolvente e os seus poderes de representação limitam-se aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência.

Face ao que se deixa exposto entende-se que a representação da pessoa coletiva se deve fazer por quem a representa e tratando-se de pessoa coletiva insolvente será a mesma representada pelos órgãos sociais com poderes de representação referidos no artigo 82º, nº 1 do CIRE.

Assim sendo e dado que a requerente não tem legitimidade não se admite a mesma a intervir nos autos na qualidade de assistente.


*

Uma vez que a requerente não foi admitida nos autos a intervir na qualidade de assistente não tem a mesma legitimidade para requerer a abertura de instrução em conformidade com o disposto no artigo 287º, nº 1, al. b) do CPP.

Assim sendo não se admite a instrução requerida por Massa Insolvente de B... Lda. Por inadmissibilidade legal (artigo 287º, nº 3 do CPP).

(…)

3. Apreciação

Nos presentes autos em que, entre outros, figuram como arguidos e simultaneamente queixosos – enquanto imputam, reciprocamente, um ao outro a prática de crimes de furto de bens pertencentes à sociedade – A... e D... , sócios gerentes de “ B... , Lda.”, declarada insolvente, mas ainda não extinta, finda a fase de inquérito por ter considerado, face à prova recolhida, não haverem resultado indícios suficientes do cometimento, por qualquer deles, dos denunciados crimes, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento.

Na sequência do assim decidido veio, então, a “Massa Insolvente da B... Lda.”, representada pela administradora da insolvência, requerer a constituição como assistente e, do mesmo passo, a abertura da instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos C... e D... , a quem imputa os crimes de furto e falsificação de documento.

 Pretensões, essas, não admitidas no despacho em crise, surgindo a rejeição da instrução, por inadmissibilidade legal, como consequência da falta de legitimidade da requerente para intervir nos autos na qualidade de assistente.

Neste contexto, pese embora a argumentação expendida no recurso, destacando, entre outras, a circunstância de todas as pessoas capazes de representar a sociedade haverem sido constituídas arguidas – aspeto que, encontrando respaldo nos autos, descura o facto da sua qualidade, simultaneamente, como queixosos – a única questão que realmente importa encarar traduz-se em saber se a “Massa Insolvente da B... Lda.”, representada pela respetiva administradora, pode, no âmbito de um processo-crime, constituir-se assistente e, assim, provocar a abertura da instrução tendente à pronúncia dos arguidos.

Com o devido respeito, afigura-se-nos que a resposta não poderá deixar de ser negativa.

Na verdade, é incontroverso que com a declaração de insolvência, a sociedade dissolvida entra em liquidação, mantendo, contudo, a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicáveis até à sua extinção, com o registo do encerramento da liquidação, as normas atinentes às sociedades não dissolvidas – [cf. artigos 146º, n.ºs 1 e 2 e 160º, n.º 2 do CSC], conservando-se os órgãos sociais do devedor, após a declaração de insolvência, em funcionamento – [cf. artigo 82.º, n.º 1 do CIRE].

Caminhando um pouco mais no seio do quadro legal.

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente - [cf. artigo 1.º do CIRE].

A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo - [artigo 46.º, n.º 1 do CIRE].

(…) a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – [cf. artigo 81.º, n.º 1 do CIRE], assumindo este a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência – [cf. o n.º 4 do artigo 81.º], cabendo-lha a exclusiva legitimidade, durante a pendência do processo de insolvência, para propor e fazer seguir as ações a que se reporta o artigo 82.º do CIRE, as quais, nos termos do seu n.º 6, correm por apenso ao processo de insolvência.

Em suma, como bem sintetiza o acórdão do TRL de 13.09.2011 (proc. n.º 142/10.4IDSTB-A.L1 – 5) «Basicamente: (i) o processo de insolvência visa a liquidação da massa insolvente para repartir o respetivo produto pelos credores; (ii) o administrador da insolvência – que é apenas um órgão da insolvência – assume a representação da insolvente tão-somente para efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência; e (iii) os órgãos sociais da insolvente mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência».

Da análise que precede do quadro legal, quer quanto ao fim do processo de insolvência, quer quanto às funções, exercício e poderes do administrador da insolvência, quer, por fim, quanto à coexistência, após a declaração de insolvência – nos termos sobreditos - da sociedade e até à sua extinção, de duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõe [cf. acórdão do TRC de 25.06.2014 (proc. n.º 2140/06.3TAAVR-A.C1; no mesmo sentido vide os acórdãos do TRE de 15.10.2013 (proc. n.º 33/10.9IDEVR.E1), TRL de 12.10.2011 (proc. n.º 674/08.4IDLSB-A.L1-3), TRC de 28.09.2011 (proc. n.º 123/09.0IDSTR.C1)], não se vê como se possa defender, num processo crime, a admissão como assistente da massa insolvente, representada pelo respetivo administrador.

Nem as normas que dispõem sobre a legitimidade para tanto, a saber as inscritas no artigo 68.º do CPP, o permitem, nem tal se mostra compatível com a posição processual e atribuições do assistente – [cf. o artigo 69º do CPP].

Como, aplicando a lei, decidiu o despacho recorrido quem, no âmbito do processo penal, representa a sociedade insolvente são os respetivos representantes legais à data da declaração da insolvência, os quais se mantém em funções em tudo o que seja alheio à administração e disposição da massa insolvente ou à representação do devedor para efeitos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, restrições estas onde manifestamente não se inscreve a intervenção, precedida da admissão, como assistente no processo penal.

Adiante-se, ainda – aspeto que o requerimento de recurso deixa antever como constituindo a maior preocupação -, não poder a circunstância de resultar inviabilizada a ação cível enxertada no processo penal a condicionar a decisão relativa à legitimidade para intervir nos autos como assistente; caso contrário, assistir-se-ia a uma inversão das coisas sem o mínimo apoio legal, bastando, para tanto, atentar no regime decorrente das normas dos artigos 71.º a 74º do CPP para perceber que – como não podia deixar de ser - é aquela que adere à ação penal e não o invés, razão pela qual o pedido de indemnização civil só pode ser deduzido no processo de natureza penal quando este – pela mão de quem para tal tem legitimidade – prossegue os seus termos.

Em suma, não merece censura o despacho recorrido.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Fixa-se a taxa de justiça a cargo da recorrente em 3 (três) UCs.

Coimbra,  24 de Maio de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)