Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/19.1GBNLS-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: LEI 38-A/2023
ÂMBITO
IDADE
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1º E 2º, N.º 1, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8; 9º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
Ao aprovar a Lei n.º 38-A/2023, o legislador pretendeu que a mesma abrangesse os jovens a que as JMJ se destinavam, a saber, até perfazerem os 30 anos de idade.
Sumário elaborado pela relatora
Decisão Texto Integral:

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RELATÓRIO


        

1- No âmbito do Processo Comum (tribunal Coletivo) n.º 96/19.1GBNLS, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 4, em 31/10/2023, foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

Por acórdão de 12-07-2021, proferido pelo Juízo Central Criminal ... J..., transitado em julgado em 09-08-2021, os arguidos a seguir identificados, foram condenados pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01:

- AA, nascido a ../../1982, na pena de cinco anos e seis meses de prisão;

- BB, nascido a ../../1982, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, sujeita a regime de prova.

No mesmo acórdão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25.º, al. a), por referência ao art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, foram condenados os arguidos:

- CC, nascido a ../../1984, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, sujeita a regime de prova a elaborar pela DGRS;

- DD, nascido a ../../1981, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sujeito a regime de prova a elaborar pela DGRS.

- O arguido EE, nascido a ../../1989, foi também condenado por acórdão de 12-7-2021, proferido pelo Juízo Central Criminal ... J..., interpôs recurso do mesmo para o Tribunal de Relação de Coimbra, tendo sido condenado por este Venerando Tribunal pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência ao art. 3.º, n. os 1 e 2, al. g), do mesmo diploma, (nas penas parcelares de 6 anos e oito meses e sete meses, respetivamente) e em cúmulo jurídico na pena única de seis anos e dez meses de prisão, por acórdão transitado em julgado em ../../2022.

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Todos os arguidos tinham à data dos factos mais de 30 anos de idade relativamente aos crimes praticados e que não se encontram excluídos pelo artigo 7º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, pelo que não será de aplicar ao presente caso, a nenhum dos arguidos, quer a amnistia, quer o perdão previstos naquele diploma, uma vez que só se aplica aos indivíduos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos – cfr. artº 2º, nº1, nos termos definidos nos artº 3º e artº4º da referida Lei.

Notifique.


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2- Recurso do arguido EE (conclusões que se transcrevem integralmente):

“I. O presente recurso vem interposto do despacho proferido nos presentes autos em 31/10/2023, que decidiu não aplicar ao ora recorrente o perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, não podendo com ele conformar-se porque se funda na justificativa de que “todos os arguidos tinham à data dos factos mais de 30 anos de idade relativamente praticados e que não se encontram excluídos pelo artigo 7º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de a Agosto”.

II. O recorrente foi condenado por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 08/07/2021 na pena única de 6 anos e 10 meses pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por referência ao art.º 3.º, n. os 1 e 2, al. g), do mesmo diploma.

III. Na verdade, conforme resulta do Acórdão Condenatório, transitado em julgado em 20/01/2022, os factos ilícitos pelos quais o arguido/recorrente foi condenado remontam a, pelo menos, inícios de 2019, quando o arguido/recorrente tinha ainda 29 anos, sendo que os últimos factos, já em 2020, foram praticados quando o arguido/recorrente tinha 30 anos.

IV. Nenhum facto foi praticado pelo recorrente aos 31 anos, já que nasceu em ../../1989 e a sua detenção ao abrigo dos presentes autos ocorreu em finais de junho de 2020, quando se considera cessada a atividade criminal.

V. Assim, o recorrente praticou os primeiros factos quando tinha 29 anos e os últimos quando tinha 30 anos, sendo a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 concreta ao abranger as pessoas com 30 anos à data dos factos (cfr. art.º 2º, n.º 1 da referida Lei).

VI. Ainda que o crime de tráfico de estupefacientes em que foi condenado integre uma das exceções previstas no art.º 7º, n.º 1 da Lei n.º 38º-A/2023, de 02/08 (al. ix)), o crime de detenção de arma proibida beneficia do regime plasmado na referida lei.

VII. Uma vez que o art.º 3º do mencionado diploma determina o perdão de 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos e ordena ainda que o perdão incida sobre a pena única em casos de condenação em cúmulo jurídico (n.º4), então ao recorrente deve ser perdoado 1 ano da sua pena, atento o facto de reunir todos os requisitos legais para o efeito.

VIII. Caso assim não se entendesse, sempre teria o recorrente de ser amnistiado relativamente à pena parcelar respeitante a crime de detenção de arma proibida, nos termos do art.º 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08.

IX. O despacho recorrido não faz referência à data dos factos praticados pelo arguido/recorrente EE, fazendo apenas menção à sua data de nascimento (../../1989), à data do acórdão de 1ª instância (12/07/2021) e do trânsito em julgado do acórdão de 2ª instância (20/01/2022), errando ao considerar que todos os arguidos tinham mais de 30 anos de idade, pois tal não corresponde à verdade no que respeita ao recorrente.

Deste modo, requer-se a V.ª Ex.ª seja o presente recurso julgado procedente, por provado e, nessa sequência, seja o despacho recorrido revogado e substituído por outro que aplique ao arguido/recorrente a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, com o perdão de um ano sobre a pena única em que foi condenado (art.º 3º, nos 1 e 4) ou, alternativamente, caso assim não se entenda, seja amnistiado da pena parcelar em que foi condenado relativamente ao crime de detenção de arma proibida.


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3- Resposta do Ministério Público:

i) ao recorrente não é de aplicar a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, nem na vertente do perdão, nem da amnistia.

ii) o Tribunal fez uma correta valoração dos crimes e fez uma correta aplicação das normas que presidem à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, devendo improceder o recurso apresentado.


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4- No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se pelo parcial provimento do recurso, nos seguintes termos:

i) à data da prática do crime de detenção de arma proibida, o arguido tinha 30 anos de idade, só completando os 31 anos em novembro de 2020, uma vez que nasceu em ../../1989.

i) o crime de detenção de arma proibido, pelo qual o arguido foi condenado em sete meses de prisão, não se mostra excluído do perdão.

            ii) assim sendo, a pena respeitante a tal crime terá de ser perdoada na totalidade, desfazendo-se o cúmulo jurídico de penas e subsistindo, assim, apenas a pena correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes.
iii) o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, declarando-se o perdão da pena de sete meses em que o arguido foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida.


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         - CONHECIMENTO DO RECURSO

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que aplique ao arguido/recorrente a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, com o perdão de um ano sobre a pena única em que foi condenado (art.º 3º, nºs 1 e 4) ou, alternativamente, caso assim não se entenda, seja amnistiado da pena parcelar em que foi condenado relativamente ao crime de detenção de arma proibida.


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Conhecendo:

O recorrente alega, no essencial, o seguinte:

a) nasceu em ../../1989;

b) o recorrente praticou os primeiros factos que motivaram a sua condenação aos 29 anos e os últimos aos 30 anos;

c) tendo sido condenado numa pena única, relativamente a essa, deve aplicar-se o perdão previsto no artigo 3.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;                        d) caso assim se não entenda, sempre terá o recorrente de ser amnistiado relativamente à pena parcelar respeitante a crime de detenção de arma proibida, nos termos do artigo 4.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

O art. 1º da Lei n.º 38-a/2023, de 2 de agosto, declara qual o objeto da lei da seguinte forma: “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”.

No n.º 1 do art. 2º define o âmbito da lei do modo seguinte: “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” (sublinhado nosso).

O que importa decidir é se o legislador da Lei n.º 38-A/2023 (Amnistia), ao prever no art. 2º, n.º 1, que a Lei se aplica a ilícitos praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto exclui ou inclui os indivíduos que contavam entre 30 e 31 anos de idade na data em que praticaram os factos criminosos – como sucede no caso de que nos ocupamos.

Vejamos:

Em sede de interpretação de normas há que ter em conta o que se dispõe, de modo imperativo, no artigo 9.º do Código Civil:

«1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

A tal propósito, no Tratado de Direito Civil de ENNECCERUS, que continua a ser um texto modelar, se declara que a interpretação tem de partir do teor verbal da lei, o qual há-de ser posto a claro «tendo em conta as regras da gramática e designadamente o uso (corrente) da linguagem», tomando, porém, em particular consideração também os «modos de expressão técnico-jurídicos.»

Acrescenta, todavia, que além do teor verbal hão-de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) ([1]).

Em particular, no que respeita à interpretação das Leis de Amnistia, consideramos que o direito de graça assume uma natureza excecional e, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam «ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas. Nesta medida, são «insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir -se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e fica afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impondo-se uma interpretação declarativa.

Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» ([2]).

Ora, a lei declara a sua aplicabilidade a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto. Não sendo totalmente clara, uma vez que falta uma expressão incisiva, excludente, como “até completar 30 anos” (como sucede em outros diplomas legais), a preposição entre é suficiente para uma interpretação linguística limitadora: na verdade, a preposição “entre” indica uma situação ou espaço em meio ou dentro dele, um limite temporal ([3]); dito de outra forma, indica o espaço que separa duas coisas, o tempo que separa dois acontecimentos ou datas ([4]), o espaço entre duas épocas ou dois momentos, designando uma relação de situação em meio de, ou de situação no espaço que separa ([5]).

Deste modo, a expressão “entre 16 e 30 anos de idade” pode ter como sinónimo “entre os 16 e os 30 anos de idade”, resultando excluído o período temporal que ultrapasse o limite máximo fixado, situado nos 30 anos de idade: até que complete os 30 anos de idade. No entanto, admitimos, ainda que com reserva, que a expressão poderá ser objeto de interpretação ambígua do elemento literal, suportando aqueloutra significação de até ao final dos 30 anos de idade ([6]).

O recurso aos demais elementos de interpretação é, assim, determinante.

No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta o âmbito de aplicação definido na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1ª ([7]), onde se lê o seguinte:

Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.” (sublinhado nosso).

Sem dúvida que do elemento histórico se extrai a clara intenção do legislador em abranger exclusivamente os jovens entre a maioridade penal (dia em que completam 16 anos de idade) e o dia em que completem os 30 anos de idade.

O art. 2º da Proposta de Lei que acompanhou aquela exposição de motivos, no segmento em causa, não foi objeto de proposta de alteração ([8]), não restando dúvida que o legislador, ao aprovar aquela Lei, pretendeu que a mesma abrangesse os jovens a que as JMJ se destinavam, a saber, jovens até aos 30 anos.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, este é o sentido mais consentâneo com o uso corrente da língua portuguesa.

Assim, pese embora o legislador não tenha utilizado a proposição “até” na letra da lei, fê-lo na exposição de motivos da proposta de lei, elemento fundamental para a interpretação de um texto legal ambíguo (o que, como se referiu, admitimos poder suceder com a expressão em causa, embora com alguma dificuldade) ([9]). Ou seja, a lei é aplicável até ao dia anterior àquele em que o condenado complete 30 anos de idade.

Prosseguindo,

Os factos em causa nos autos foram praticados pelo recorrente desde o início de 2019 até ../../2020 (tráfico de estupefacientes) e em 25.6.2020 (detenção de arma proibida).

O arguido cumpriu os 30 anos de idade no dia 4.11.2019.

O crime de tráfico de substâncias estupefacientes do art. 21º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, por cuja prática o recorrente foi condenado, encontra-se excluído do benefício do perdão, como expressamente estatui o art. 7º, n.º 1, al. f)-ix) da Lei n.º 38-A/2023.

Assim, o único crime a considerar o crime de detenção de arma proibida.

Assente está ter o arguido praticado os factos criminosos quanto contava 30 anos de idade – a saber, a 25.6.2020.

Em consequência, não reúne as condições objetivas para beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, motivo porque se torna inútil o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso interposto.


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         - DECISÃO


Pelas razões mencionadas, declara-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Coimbra, 20 de março de 2024

Ana Carolina Cardoso (relatora por vencimento – processei e revi)

Isabel Valongo (2ª adjunta)

José Eduardo Martins (relator – vencido, nos termos do Voto que segue)


Voto de vencido:

Relativamente à questão que cumpre apreciar neste recurso, acompanho, na íntegra, a orientação que consta do recente Acórdão do TRE, de 6/2/2024, Processo n.º 19/19.8GASTC-E.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador Carlos Campos Lobo, in www.dgsi.pt, no qual pode ser lido o seguinte.

“(…). Considerando todo o expendido e todo o elemento literal da normação em causa, salvo melhor e mais avisada opinião, o entendimento tido pelo tribunal recorrido, extravasa completamente o texto da norma. Escrever-se entre 16 e 30 anos de idade, ainda que apelando ao significado desta preposição entre - situação ou espaço em meio ou dentro de, limite temporal - não afasta o patamar dos 30 anos de idade, antes o inclui. Ou seja, enquanto a idade se mantiver nos 30 anos, ao que se entende, está dentro desse limite/marco/patim.

Aliás o legislador não usou a preposição até – aqui efetivamente se fixaria o limite/espaço para além do qual se não pode ir –, nem afastou quem tivesse já 30 anos de idade, usando uma forma excludente como cristalinamente o fez no DL nº 401/82, de 23 de Setembro - Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes – no seu artigo 1º, nº 2.  É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.

Diga-se, também, que contrariamente ao que se deixa antever pelo decidido em 1ª instância, que quem tiver trinta anos e uns meses de idade já não se encontra no marco dos 30 anos, parece não fazer muito sentido. Tem-se 30/40/50 anos de idade, no espaço temporal de 12 meses, desde a data que os atinge, até perfazer 31/41/51. É o que parece advir da normalidade da vida quotidiana.

Anote-se ainda que a leitura ensaiada no tribunal a quo - até perfazer 30 anos de idade -, colocaria sempre a questão de saber como calcular esse exato momento da exclusão - nos 29 anos, 11 meses e 29 dias, sendo o último dia visto até às 24 horas, ou já nos 30 anos, precisos, considerados estes na data e hora de nascimento do indivíduo.

Face a todo o expendido, crê-se que, na verdade, assiste razão ao arguido recorrente e que, no campo de abrangência do dispositivo em ponderação, cabe o universo de condenados que tenham 30 anos e enquanto os tiverem, medidos em tempo de 365 dias nesse estatuto/marco, à data da prática dos factos.”

No caso em apreço, os factos praticados pelo ora recorrente aconteceram desde o início de 2019 até ../../2020 (tráfico de estupefacientes) e em 25/6/2020 (detenção de arma proibida), conforme resulta da certidão junta aos presentes autos.

Pois bem, uma vez que o arguido completou os 30 anos de idade em 04/11/2019, não divergimos do recorrente quando este defende que praticou os primeiros factos que motivaram a sua condenação aos 29 anos e os últimos aos 30 anos, uma vez que só completou os 31 anos de idade no dia em ../../2020, razão pela qual o recorrente se encontra abrangido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Assim sendo, há que apreciar em que medida deve o arguido beneficiar da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Está em causa uma pena única de seis anos e dez meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico de apenas duas penas parcelares aplicadas pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, (pena de seis anos e oito meses) e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006de 23 de fevereiro, por referência ao artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea g), do mesmo diploma (pena de sete meses de prisão).

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, no seu artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, prevê a aplicação do perdão sobre a pena única, tendo existido cúmulo jurídico, com a condição dessa pena única não ser superior a oito anos

Além disso, preceitua, no seu artigo 7.º, n.º 3, que “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”

Acontece que o crime de detenção de arma proibida pelo qual o arguido foi condenado em sete meses de prisão não se mostra excluído do perdão, de acordo com o disposto no mencionado artigo 7.º.

Assim sendo, salvo o devido respeito, a pena de sete meses respeitante ao crime de detenção de arma proibida deveria ser perdoada na totalidade, desfazendo-se o cúmulo jurídico das penas, subsistindo, assim, a pena de seis anos e oito meses de prisão correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes, razão pela qual entendo que seria de conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deveria ser substituído por outro que viesse a aplicar o respetivo perdão.

                                             José Eduardo Martins



[1] Cf. cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111, cit. no AUJ de 25.20.2001, publicado no DR I S-A, Nº 264, DE 14-11-14, P. 7220.
[2] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023 de 01-02-2023
[3] Cf. https://dicionario.priberam.org/entre-
[4] https://www.lexico.pt/entre/
[5] https://portuguesaletra.com/significados/significado-de-entre/
[6] Cf. o Acórdão da Relação de Évora de 6.2.2024, proc. 19/19.8GASTC-E.E1, rel. Carlos Campos Lobo, em www.dgsi.pt , o único publicado até à data sobre a matéria.
[7] https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095
[8] Excetuando a proposta apresentada pelo PSD, no sentido de ver eliminada a limitação do âmbito de aplicação da lei aos jovens referidos, mas que votou depois favoravelmente o texto final.
[9] Discordamos, pois, com a fundamentação contida nos Acórdãos da Relação de Évora de 6.2.2024, cit., e de 5.3.2024, proc. 299/17.3GBASL-I.E1, rel. Margarida Bacelar, em www.dgsi.pt