Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
468/10.7TBFND-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INCIDENTES DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
JUNÇÃO DE PROVA DOCUMENTAL
TEMPESTIVIDADE
OFICIOSIDADE
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 293.º, N.º 1, 423.º, N.ºS 2 E 3, 590.º, N.ºS 2, AL.ª C), E 3, 6.º E 7.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Os incidentes da instância são regulados pelas normas que lhes são próprias (artigos 292.º e segs. do CPC) e, em tudo o que nelas não se encontre previsto e não seja incompatível com a natureza dos incidentes e com o seu regime específico, serão regulados pelas normas gerais e, subsidiariamente, pelas normas que regem o processo declarativo comum.

II – Ainda que, conforme previsto no art.º 293.º, n.º 1, do CPC, as provas devam ser requeridas nos articulados do incidente da instância (requerimento inicial ou oposição), nada obsta à junção de documentos em momento posterior, nos termos e nas circunstâncias descritas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 423.º, e nada obsta a que o tribunal possa determinar tal junção ao abrigo dos poderes/deveres que lhe são concedidos em normas processuais de carácter geral ou nas normas que regulam o processo declarativo comum.

III – Se, no âmbito de incidente de habilitação de herdeiros, a parte não junta com o requerimento inicial documentos necessários para fazer prova da qualidade de herdeiro (designadamente assento de nascimento ou escritura de habilitação de herdeiros), o juiz pode – e deve – notificar a parte para proceder à junção do documento em causa, ao abrigo do disposto nos artigos 590.º, n.º 2, c) e n.º 3 do CPC (designadamente quando pretende proferir decisão sem produção da prova testemunhal que havia sido indicada) e ao abrigo do dever de gestão processual e do princípio da cooperação previstos nos artigos 6.º e 7.º do CPC.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 468/10.7TBFND-E.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Castelo Branco - C.Branco - JC Cível - Juiz 2

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito da acção instaurada por AA e mulher BB contra CC e mulher DD e de incidente de liquidação que nela foi deduzido, foi determinada a suspensão da instância – por decisão de 09/11/2021 – por força do óbito da Autora BB que havia ocorrido em 30/05/2019.

Após esse facto, o Autor e EE, melhor identificados nos autos, vieram deduzir incidente de habilitação de herdeiros, alegando serem os únicos herdeiros da falecida (respectivamente, marido e filho) e requerendo a sua habilitação como herdeiros da Autora a fim de prosseguirem como sujeitos activos nos presentes autos.

Na sequência da apresentação desse requerimento, foi proferido despacho onde se determinou a notificação dos Requerentes para juntarem aos autos certidão de assento de nascimento do Requerente EE.

Ainda antes da notificação desse despacho, os Requerentes vieram juntar aos autos uma escritura de habilitação de herdeiros, dizendo que não a haviam junto com a petição inicial porque, por lapso, não se recordavam da sua celebração. Vieram ainda, uns dias depois – e após a notificação do despacho acima mencionado –, juntar o assento de nascimento do Requerente EE e, na sequência de notificação que, para tal, lhes foi efectuada vieram depois juntar a escritura integral da habilitação (uma vez que a inicial estava incompleta)

Os Réus foram então notificados – na pessoa do seu mandatário – para contestar o incidente, sendo que, com essa notificação, não lhe foram remetidos os documentos que já estavam nos autos (escritura de habilitação de herdeiros e assento de nascimento).

Na sequência dessa notificação, os Réus apresentaram contestação, pugnado pela improcedência do incidente e alegando, em resumo: que a filiação é um facto que só pode ser provado por documento; que os Requerentes não juntaram qualquer documento que atestasse que o Requerente EE era filho da Autora e que, não tendo sido junto com o requerimento inicial, tal documento já não pode ser junto aos autos, uma vez que, no âmbito dos incidentes, a prova tem que ser oferecida no requerimento inicial, não o podendo ser posteriormente

Posteriormente, por se ter constatado que os Requeridos não haviam sido notificados dos documentos juntos aos autos, determinou-se – por despacho de 02/10/2022 – que tais documentos lhes fossem notificados para o efeito de sobre eles se pronunciarem no prazo de dez dias.

A notificação foi efectuada, mas os Requeridos nada disseram.

Foi então proferida decisão que, julgando procedente o incidente de habilitação de herdeiros, declarou AA e EE, habilitados como herdeiros de BB, para prosseguir os ulteriores trâmites dos presentes autos em sua substituição.

 

Inconformados com essa decisão, os Requeridos vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1º - Dá-se aqui por integralmente reproduzida a sentença ora em crise.

2º - Vieram o Autor e EE requerer o presente incidente de habilitação de herdeiros contra os requeridos, na qualidade de únicos e universais herdeiros da Autora BB, alegando que “a presente acção deverá prosseguir com aqueles na posição que esta ocupava”.

3º - Os Requerentes no requerimento inicial não juntaram qualquer documento (certidão de nascimento ou escritura de habilitação de herdeiros) que prove que o requerente EE é filho do autor e da falecida BB

4º - Nos incidentes a prova é oferecida no requerimento inicial, estando vedada às partes que o façam em momento posterior.

5º - De todo o modo, fora de dúvida é que a filiação nestes autos constitui facto essencial à pretensão dos Requerentes, e a mesma só se prova por meio de prova documental que não foi nem poderá ser junta aos presentes autos

6º - A lei assinala prazos e limites para as partes apresentarem e produzirem os respetivos meios de prova, conferindo àqueles prazos um caráter preclusivo (princípio da preclusão da prova).

7º - E, assim, na ação declarativa comum, as partes devem - note-se o caráter vinculativo - juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas com os respetivos articulados – artigos 552.º, n.º 2 e 572.º, al d) do Código de Processo Civil.

8º - E, em relação à prova documental, não vigoram critérios muito diversos, conforme se encontra estabelecido no artigo 423.º do Código de Processo Civil.

9º - Por estes condicionalismos se vê que, reconhecendo embora a lei às partes um interesse legítimo na instrução da causa, não lhes permite o exercício desse direito de forma arbitrária.

10º - Bem pelo contrário, condiciona esse exercício a determinados pressupostos, fora dos quais aquele direito pode ficar comprometido. E, neste contexto, não faz sentido que esses pressupostos possam ser contornados por recurso aos poderes/deveres que a lei comete ao juiz em sede instrutória.

11º - Como salienta Lopes do Rego: “O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste – não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”.

12º - E neste sentido se tem também pronunciado a esmagadora maioria da jurisprudência, vide .Ac. TRG, Proc. 14/15.6T8VRL-C.G1, de 20/03/2018.

13º - Ora, vertendo estes ensinamentos para a situação dos presentes autos, considerando tudo o que supra se disse ora resta concluir que os requerentes não apresentaram requerimento probatório, como se retira do articulado que apresentram, não cumpriram o ónus que sobre si recaía, não indicando tempestivamente o ónus probatório que lhes assistia, constituindo a seu conduta processual um comportamento grosseiro e indesculpavelmente negligente.

14º - Posto isto, não se conforma a R. ora Recorrente e daí apresente o presente recurso por via do qual reclama que seja reconhecido que o douto Tribunal a quo, por via oficiosa não deveria ter determinado a junção dos documentos que não foram juntos com o requerimento inicial (vide certidão de nascimento e escritura de habilitação de herdeiros).

15º - Repetindo, efetivamente competia aos Requerentes., o ónus de no seu requerimento inicial apresentar todas as provas demonstrativas dos factos por si alegados.

16º - O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

17º - Assim, se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse” (assim, Nuno Lemos Jorge; “Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, in Julgar, nº 3, p. 70).

18º - Não pode, pois, o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.

19º - Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-02-2016 (Processo n.º 788/14.1T8VNG, rel. PEDRO MARTINS): “O princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) não pode ser utilizado para, objectivamente, auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do art. 423 do CPC”.

20º - O disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.

21º - Assim, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-03-2018 (Processo 14/15.6T8VRL-C.G1, rel. JOÃO DIOGO RODRIGUES):

“1- De acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade.

2- Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir.

3- Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia”.

22º - Nos termos do nº 1 do artigo 227º do CPC “ O acto de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e cópia dos documentos que a acompanhem (…)”

23º - Os Requerentes no seu requerimento inicial não juntou documentos

24º - Posteriormente o Juiz a quo notificou os requerentes para juntar documentos, o que os Requerentes fizeram.

25º - Nem o despacho a ordenar a junção, nem o requerimento de junção de documentos foram notificados aos ora Recorrentes.

26º - Nem com a citação/notificação para contestar o incidente de habilitação foram os recorrentes notificados do despacho a ordenar a junção aos autos dos documentos, nem do requerimento de junção de documentos, apenas e só do requerimento inicial no qual não se juntam, nem se protestam juntar documentos.

27º - Não tendo sido notificados dos documentos acima mencionados, a ora recorrentes não puderam pronunciar-se quanto ao teor dos mesmos, e só tomando conhecimento dos mesmos e da existência dos mesmos nos autos com a prolação da sentença ora em crise.

28º - Assim sendo, e nos termos do nº 1 do artigo 198º do CPC a citação/notificação é nula por não terem sido observadas as formalidades prescritas na lei, nulidade que expressamente se invoca.

30º - Em face do exposto a sentença ora em crise é nula por violação dos artigos 227º, 411º, 423º, 552.º, n.º 2 e 572.º, al d) todos do Código de Processo Civil

Termos em que dando-se provimento ao presente recurso, deve ser proferido acórdão que declare nula a sentença ora em crise e que substitua a sentença por outra que julgue improcedente o incidente de habilitação de herdeiros.

Ou no caso de assim não se entender que seja proferido acórdão que julgue nula a citação/notificação para contestar o incidente de habilitação de herdeiros, e consequentemente, seja anulado todo o processado posteriormente nos presentes autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se os documentos que foram juntos aos autos após a apresentação do requerimento inicial (escritura de habilitação de herdeiros e assento de nascimento) podiam (ou não) ser considerados para fundamentar a decisão, o que equivale a saber se tais documentos podiam ser juntos após a apresentação do requerimento inicial e/ou se a sua junção podia ser determinada pelo juiz;

· Saber se a notificação dos Requeridos/Apelantes para deduzir oposição ao incidente é nula por omissão de formalidades prescritas na lei.


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III.

Com base na prova documental junta aos autos, a 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1) No dia .../.../2019, em ..., faleceu BB, no estado de casada com AA.

2) No dia 06-07-2019, foi lavrado no Cartório Notarial em ... da notária FF, documento de habilitação dos herdeiros de BB, no âmbito do respectivo procedimento simplificado, através do qual AA e EE foram declarados únicos e universais herdeiros da falecida BB.


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IV.

Sustentam os Apelantes – em desacordo com a decisão recorrida – que o incidente de habilitação de herdeiros deveria ser julgado improcedente por falta de prova de factos que eram essenciais à sua procedência.

Argumentam para o efeito:

- Que os factos em questão (filiação) só podiam ser provados por documentos;

- Que, não tendo sido juntos com o requerimento inicial – como impõe o art.º 293.º do CPC –, esses documentos não mais podem ser juntos aos autos;

- Que o incumprimento desse ónus da parte (ónus de indicar tempestivamente as provas) não pode ser contornado pelo recurso aos poderes oficiosos do juiz em sede de instrução, uma vez que o juiz não pode, ao abrigo do princípio do inquisitório, suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes;

 - Que, nessas circunstâncias, não podia o Tribunal a quo, por via oficiosa, ter determinado a junção dos documentos que não foram juntos com o requerimento inicial (certidão de nascimento e escritura de habilitação de herdeiros).

Sustentam, portanto, os Apelantes que, estando em causa um incidente de habilitação de herdeiros que envolvia factos carecidos de prova documental (assento de nascimento ou escritura de habilitação de herdeiros), a circunstância de essa prova não ter sido junta com o requerimento inicial implicaria, forçosamente, a improcedência do incidente, uma vez que a falta de apresentação dessa prova no momento oportuno (com o requerimento inicial, nos termos previstos no art.º 293.º) faria precludir em definitivo o direito de produzir essa prova; a parte não mais poderia apresentar essa prova e o Tribunal também não se poderia substituir à parte para o efeito de determinar a junção dos documentos em falta, uma vez que – dizem – o juiz não pode, ao abrigo do princípio do inquisitório, suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes.

Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a posição dos Apelantes.

Vejamos.

Os incidentes da instância – como é o caso da habilitação de herdeiros – vêm regulados nos artigos 292.º e segs. do CPC onde se estabelecem algumas regras/disposições de carácter geral (aplicáveis a todos os incidentes) e normas específicas para cada um dos incidentes tipificados na lei.

No entanto, é fácil constatar que essas normas não têm amplitude bastante para regular/definir todas as situações/vicissitudes que possam ocorrer no âmbito dos incidentes da instância e, portanto, elas terão que ser, necessariamente, completadas com outras normas processuais, sejam elas as de carácter geral (aplicáveis, em princípio, a todos os processos e incidentes), sejam elas as normas aplicáveis ao processo comum de declaração. Na verdade, ainda que isso não esteja expressamente previsto, não poderemos deixar de entender que as normas do processo comum de declaração são subsidiariamente aplicáveis no âmbito dos incidentes da instância em tudo aquilo que não se encontre regulado nas normas específicas dos incidentes ou nas normas de carácter geral e que não contrarie o regime especial aí fixado, seja porque tal solução se pode extrair do disposto no art.º 549.º do CPC (ainda que tal não resulte literalmente do que aí se encontra disposto, uma vez que um incidente da instância não é, em rigor, um processo especial), seja porque a existência de lacunas ou casos omissos não deixaria de implicar a aplicação analógica daquele regime. Neste sentido, afirmam José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto[1] que “Embora não constituam processos especiais (…), os incidentes (…) também levam à aplicação das normas do processo ordinário nos casos omissos, na medida em que a analogia das situações o impuser”. No mesmo sentido se pronuncia Miguel Teixeira de Sousa[2], dizendo que “Aos incidentes da instância aplicam-se as disposições próprias, bem como as disposições gerais e comuns que constam dos art. 293.º ss. (art. 549.º, n.º 1, ext.). (b) Subsidiariamente, aplica-se aos incidentes da instância o que se acha estabelecido para o processo declarativo comum (art. 549.º, n.º 2, ext.)”. Ainda no mesmo sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa 26/05/2022[3] onde se diz, citando Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil anotado, 2.ª Edição, anotação 5, pág. 359) e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC anotado, vol. I, 4.ª ed., p.597), o seguinte: «As linhas estruturantes são definidas nos artgs. 293.º, 294.º e 295.º, disposições a observar em quaisquer incidentes que surjam na pendência de uma causa, salvo havendo regulamentação especial que deva prevalecer. Por outro lado, as hipóteses não reguladas directamente em cada concreto incidente e não contidas na previsão dos artgs. 293.º a 295.º deverão ser resolvidas pelas disposições gerais e comuns e, subsidiariamente, pelas disposições que regulam o processo declarativo comum, por extensão da norma do art.º 549.º, n.º 1».

É certo que, conforme determina o art.º 293.º do CPC, no âmbito dos incidentes da instância as partes devem requerer os meios de prova no requerimento inicial. Mas essa disposição apenas visa fixar o momento oportuno para apresentação do requerimento probatório – à semelhança do que acontece no âmbito do processo declarativo onde a lei também fixa esse momento – sem que daí se possa concluir que esses meios de prova não possam, em circunstância alguma, vir a ser requeridos em momento posterior (ainda que com aplicação de sanção) ou determinados oficiosamente pelo juiz. Na verdade, tal como acontece nos incidentes da instância, os documentos, no âmbito do processo declarativo, também têm que ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos que com eles se pretendem provar (cfr. art.º 423.º, n.º 1, do CPC) sem que isso impeça a possibilidade de eles serem juntos posteriormente, ainda que com condenação em multa (cfr. n.º 2 do citado art.º 423.º), ou a possibilidade de a sua junção ser ordenada pelo tribunal, ao abrigo dos seus poderes/deveres consignados no art.º 411.º do mesmo diploma. E se isso é possível no âmbito do processo de declaração, nenhuma razão encontramos para que não o seja também no âmbito dos incidentes da instância; o regime específico dos incidentes não impede essa possibilidade (apenas não a prevê expressamente) e, como tal, não há razões para não aplicar, subsidiariamente, o regime previsto para o processo declarativo.

Revertendo para a situação dos autos, importa referir/esclarecer que, apesar de terem sido juntos aos autos dois documentos (assento de nascimento e escritura de habilitação de herdeiros), apenas importa aqui considerar a referida escritura, uma vez que foi esse documento (e apenas esse) que fundamentou a decisão recorrida.

Ora, a primeira nota que importa reter em relação a esse documento é que a sua junção não foi determinada pelo juiz; tal junção foi requerida, de forma espontânea, pelos Requerentes (o documento cuja junção foi determinada pelo tribunal foi apenas o assento de nascimento, sendo certo que, como se referiu, não foi esse o documento que serviu de fundamento à decisão recorrida).

Com efeito, e conforme resulta dos autos, a referida escritura (de habilitação de herdeiros) foi junta por iniciativa dos próprios Requerentes – três dias depois do requerimento inicial – antes da notificação de qualquer despacho do Tribunal e antes da notificação dos Requeridos para deduzir oposição.

Nessas circunstâncias e em relação a essa escritura, não faz sentido dizer-se – como dizem os Apelantes – que ela não pode ser considerada porque o juiz não podia determinar a sua junção, sendo totalmente irrelevante a argumentação dos Apelantes a propósito da possibilidade (ou não) do uso, por parte do juiz, dos seus poderes oficiosos em matéria probatória ou instrutória para o efeito de determinar a junção de tal documento; a junção do documento em questão – reafirma-se – foi da iniciativa da parte (Requerentes) e não foi determinada pelo juiz. O que o juiz determinou, em momento posterior, foi apenas a junção integral desse documento por ter constatado que ele estava incompleto (faltava uma folha); mas isso, salvo o devido respeito, corresponde apenas ao convite à rectificação de um lapso evidente em relação a um documento cuja junção aos autos já estava requerida e que, de modo algum, pode ser confundido com o uso dos poderes – conferidos ao juiz (cfr. art.º 411.º do CPC) – de ordenar, oficiosamente, a junção de documentos probatórios.

Nessas circunstâncias, a única coisa que poderá ser discutida em relação a esse documento é se os Requerentes podiam (ou não) proceder à sua junção após a apresentação do requerimento inicial.

Ora, não encontramos razões válidas para entender que não.

Com efeito, por aplicação das regras do processo declarativo comum, nos termos acima mencionados, a falta de apresentação do documento no momento que a lei define como oportuno (no caso, com o requerimento inicial) não obsta a que ele possa ser junto em momento posterior nas condições e situações descritas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 423.º do CPC, sendo certo que, conforme também já se referiu, o regime específico dos incidentes não impede essa possibilidade (apenas não a prevê expressamente) e, como tal, não há razões para não aplicar, subsidiariamente, o regime previsto para o processo declarativo. Nessas circunstâncias, o máximo que aqui poderia ser discutido era se devia (ou não) ter existido condenação em multa (questão que, no entanto, não se integra no objecto do recurso).

De qualquer forma e independentemente de tudo isso, não poderemos deixar de notar que o documento em causa foi junto aos autos logo depois de apresentada a petição inicial (três dias depois) e antes da notificação dos Réus. Ora, tendo em conta que, por força do disposto no art.º 260.º do CPC, tem vindo a entender-se que, antes da citação do réu, o autor pode alterar sem restrições a petição inicial (alterando os sujeitos, o pedido e/ou a causa de pedir)[4], parece que também nada obstaria a que, por aplicação dessa regra, se devesse admitir aquele requerimento e o documento que com ele foi junto aos autos enquanto rectificação ou complemento da petição inicial, uma vez que os Requeridos ainda não haviam sido notificados. Com efeito, se, antes da citação/notificação podem ser alterados os elementos estruturantes da lide, por maioria de razão se deverá admitir o mero aditamento dos meios probatórios, designadamente, documentos.

Poderia ainda entender-se que o documento em questão era um “documento essencial” ou “um documento de que a lei faça depender o prosseguimento da causa” para os efeitos previstos no n.º 3 do art.º 590.º do CPC, ou seja, um documento que, por força da lei, tinha que ser obrigatoriamente junto com o requerimento inicial e cuja falta determinaria uma irregularidade desse requerimento que obstava ao prosseguimento do incidente (caso em que não se colocaria a hipótese – acima referida – de o requerimento poder ser junto em momento posterior, porquanto sem ele a instância não poderia prosseguir). Pensamos, aliás, que será esse o caso da habilitação notarial no incidente de habilitação que seja deduzido com esse fundamento nos termos previstos no art.º 353.º do CPC.

Importa notar, no entanto, que, nesse caso, sempre estaria em causa um vício/irregularidade do requerimento perfeitamente sanável que impunha ao juiz o dever de providenciar pela sua sanação/correcção mediante notificação à parte para juntar o documento em falta – dever que lhe era imposto pelo n.º 3 do citado art.º 590.º e pelo dever de gestão processual e do princípio da cooperação que, em termos genéricos (aplicáveis, portanto, no âmbito de quaisquer processos, procedimentos ou incidentes previstos na lei processual civil), estão consagrados nos artigos 6.º e 7.º do CPC – não havendo, por isso, razões para não aceitar o documento que a parte viesse juntar, de forma espontânea e antes de para tal ser notificada pelo Tribunal.

Refira-se, de qualquer forma, que, ainda que o documento em questão não tivesse sido junto por iniciativa da parte, nada obstaria a que o Tribunal a notificasse para proceder à sua junção (como aconteceu, aliás, com o assento de nascimento).

Na verdade, ao proceder desse modo, o Tribunal estava apenas a actuar em conformidade com o dever que lhe era imposto pelo art.º 590.º do CPC, convidando a parte que tinha o ónus de provar o facto em questão para juntar o documento necessário, fosse porque estava em causa um documento essencial do qual dependia o prosseguimento do incidente (n.º 3 do citado art.º 590.º) ou porque, de qualquer forma, sempre estaria em causa um documento que era necessário e suficiente para conhecer do mérito da pretensão após os articulados (tendo em conta que os factos em questão se provavam por documento) sem que fosse necessária a produção da prova testemunhal que havia sido requerida (cfr. alínea c) do n.º 2 do art.º 590.º).

Não assiste, portanto, razão aos Apelantes quando vêm sustentar que o documento em questão não podia ser considerado e que, como tal, o incidente deveria ter sido julgado improcedente.

Assim e no que toca a essa questão, improcede o recurso. 

Os Apelantes invocam ainda a nulidade da sua notificação nos termos do n.º 1 do art.º 198.º do CPC (os Apelantes pretenderão referir-se ao art.º 191.º).

Argumentam para o efeito:

- Que, nos termos do nº 1 do artigo 235º do CPC (pretenderão referir-se ao art.º 227.º) “O acto de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e cópia dos documentos que a acompanhem”;

- Que apenas foram notificados do requerimento inicial (no qual não se juntam, nem se protestam juntar documentos) não tendo sido notificados do despacho a ordenar a junção de documentos, nem do requerimento da respectiva junção;

- Que, não tendo sido notificados dos documentos acima mencionados, não puderam pronunciar-se quanto ao teor dos mesmos, sendo certo que só tomaram conhecimento deles com a prolação da sentença ora em crise.

Também aqui os Apelantes carecem de razão.

É certo que, nos termos do art.º 227.º, n.º 1, do CPC “O ato de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem…”, disposição que não diverge substancialmente daquilo que também se encontra previsto no n.º 3 do art.º 217.º do mesmo diploma, onde se determina que “A citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto”.

Não há dúvida, portanto, que, aquando da notificação dos Requeridos para contestar o incidente, teria que ser remetido o duplicado do requerimento inicial e cópia dos documentos que o acompanhassem.

É certo que, aquando da notificação dos Requeridos para contestar o incidente, apenas lhes foi enviado o requerimento inicial (que não fazia referência a quaisquer documentos), sem que lhes tivessem sido enviados os documentos que, entretanto, já haviam sido juntos aos autos.

Mas, se isso é verdade, já não é verdadeira a alegação dos Apelantes quando dizem: que não foram notificados dos documentos acima mencionados; que só tomaram conhecimento deles com a prolação da sentença e que, como tal, não tiveram oportunidade de sobre eles se pronunciar. E não é verdade porque o que está evidenciado nos autos é que, tendo sido detectada a falha da notificação anteriormente efectuada (que não ia, como se disse, acompanhada dos documentos), foi determinado – por despacho de 02/10/2022 – que a notificação em causa fosse efectuada, concedendo aos Requeridos o prazo de dez dias para se pronunciarem. Mais evidenciam os autos que essa notificação (dos documentos em causa) foi efectuada em 04/10/2022 – na pessoa do mandatário dos Requeridos – e os Requeridos nada disseram no prazo de dez dias e nada disseram durante os dias subsequentes e até ao dia em que foi proferida a decisão final (07/11/2022).

Não se configura, portanto, qualquer nulidade, tanto mais que não existiu qualquer prejuízo para a defesa dos Requeridos, sendo certo que tiveram efectiva oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão formulada e respectivos fundamentos e sobre os documentos que foram juntos aos autos (cfr. n.º 4 do art.º 191.º do CPC).

De qualquer modo, qualquer irregularidade que tivesse existido sempre se encontraria sanada, por não ter sido arguida oportunamente. Pelo menos quando foram notificados dos documentos, os Requeridos teriam tomado conhecimento da pretensa irregularidade da sua notificação, sem que a tivessem arguido no prazo legal.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra, 14 de março de 2023

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                    



[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, pág. 237.
[2] CPC online – anotação ao regime dos incidentes da instância – disponível em http://blogippc.blogspot.com.
[3] Proferido no processo n.º 5686/20.7T8ALM-B.L1-2, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 17/11/2021 (processo n.º 3834/18.6T8VFR.P1.S1) e Acórdão da Relação de Lisboa de 26/09/2017 (processo n.º 8152/16.1T8LRS-C.L1-7), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., Almedina 1997, pág. 218 e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª edição, pág. 519