Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
711/07.0TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
RESOLUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 442º, 798º, 801º, 802º, 808º DO CC, 456º CPC
Sumário: I – A resolução do contrato promessa e a restituição do sinal em dobro ( art.442 nº2 CC) pressupõe o incumprimento definitivo, sendo insuficiente a mora.

II - A interpelação admonitória consiste numa intimação formal, do credor ao devedor moroso, para que cumpra a obrigação dentro de prazo determinado com a expressa advertência de se considerar a obrigação como definitivamente incumprida.

III – A litigância de má fé pressupõe, para além do mais, a violação da obrigação de não fazer do processo um fim manifestamente reprovável.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

A (…) e B (…) intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, a presente acção com processo ordinário contra:

- C(…) & Filhos, L.da, pedindo que:

a) Se declare resolvido o contrato promessa de compra e venda a que alude o artº 3º da petição inicial, por incumprimento definitivo e culposo da Ré; e

b) Se condene a Ré pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados aos Autores pela frustração do negócio definitivo, liquidando-se o valor de tais danos na quantia de 17.500,00 €.

Alegou, para tanto, em resumo, que a Ré prometeu vender e os Autores prometeram comprar, pelo preço de € 4.987,98 €, além da fracção “O”, para habitação, no lote x...., um aparcamento correspondente a 1/6 do piso abaixo do solo a construir no lote ...., na ...., freguesia e concelho de ....; em 13/04/2005, a Ré outorgou com os Autores a escritura definitiva de compra e venda da fracção “O”, para habitação; mas a Ré jamais cumpriu a sua obrigação de outorgar a escritura do aparcamento, já que vendeu à firma construtora, (…) L.da, o lote ...., que nele levou a cabo a construção de um edifício.

Contestou a Ré, alegando, também em resumo, que se comprometeu a vender aos Autores, para além da fracção autónoma para habitação, um aparcamento/lugar de garagem colectiva, a escolher pelos Autores, no prédio urbano, sito na Urbanização da ...., Lote ....; aquando da outorga da escritura de compra e venda da fracção autónoma, para habitação, o sinal pago pelos Autores foi imputado na sua totalidade à compra da referida fracção, o que permitia concluir que os Autores se desinteressavam pelo aparcamento/lugar de garagem colectiva; todavia, posteriormente, a Ré, na dúvida, interpelou verbalmente os Autores, para virem escolher um dos aparcamentos, mas estes nunca fizeram a respectiva escolha, apesar de, à data, estarem disponíveis para escolha diversos lugares de estacionamento, na garagem colectiva do lote ....; a Ré interpelou os Autores por via postal registada, para que, no prazo admonitório de 15 (quinze) dias, viessem dizer qual o aparcamento que desejavam adquirir; mas os Autores nunca se dignaram a dar qualquer resposta à Ré, desinteressando-se do contrato prometido; termina pedindo a improcedência da acção e, em via de reconvenção, pede a condenação dos Autores a reconhecerem estar resolvido o contrato promessa objecto da acção, com culpa exclusiva dos Autores, devendo, ainda, serem estes condenados a pagar à Ré uma indemnização a liquidar em execução de sentença, mas nunca inferior a € 5.000,00; mais pediu a condenação dos Autores como litigantes de má fé.

Na réplica, os Autores pugnaram pela improcedência da reconvenção e pediram, por sua vez, a condenação da Ré como litigante de má fé.

Proferiu-se o despacho saneador, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, de que reclamou a Ré, sem êxito.

No decurso da audiência (fls. 178), a Ré apresentou articulado superveniente, que foi admitido.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, sem reclamações.

Finalmente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção improcedente e a reconvenção parcialmente procedente, decretou a resolução do contrato promessa relativo ao aparcamento a escolher pelos reconvindos no prédio construído no lote nº ...., do loteamento da Carapalha, por culpa dos Autores.

Mais condenou os Autores como litigantes de má fé, na multa de 4 Ucs e na indemnização, a favor da Ré, consistente nos honorários a pagar directamente ao ilustre mandatário desta, de 24 Urs.

Inconformados com o assim decidido, interpuseram os Autores recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito suspensivo.

Alegaram, oportunamente, os apelantes, os quais finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “Na data de 10.12.04 recorrentes e recorrida outorgaram o contrato promessa objecto do presente litígio;

2ª – A escritura pública devia ser outorgada até 13.04.05 tendo ficado a cargo dos AA. a marcação do dia, hora e local para o efeito;

3ª – A R. até à data de 27.12.06 nunca disponibilizou aos AA. os lugares de aparcamento no lote .... para que eles escolhessem o lugar do seu aparcamento;

4ª – Por sua carta de 27.12.06 os AA. resolveram o contrato promessa que confirmaram com as suas cartas de 10.01.07 e 23.01.07 e respectivos fundamentos;

5ª – Como se vê da carta de 23.01.07 os AA. – tendo tido conhecimento do facto – alegaram até a impossibilidade de execução específica do contrato por a R. haver alienado o imóvel;

6ª – Após as referidas datas veio a R. por duas vezes referir aos AA. que ainda havia aparcamentos disponíveis no lote ....;

7ª – A R. veio a adquirir a fracção “A” no lote .... em 26.01.09 à Construtora (…), dando conta dessa aquisição por documento que juntou na 1ª sessão de julgamento;

8ª – Pretenderia a R. dar cumprimento ao contrato promessa após a referida compra sendo certo que tal seria após a resolução do contrato pelos AA., completamente fora de tempo e em condições completamente diferentes das previstas no contrato promessa;

9ª – Face aos factos expostos entendem a Meritíssima Juiz “a quo” que os AA. resolveram o contrato sem fundamento porque eles não marcaram a escritura que havia de ter lugar até 13.04.05, não indicaram a data e o local e até “mentiram” ao Tribunal porque afirmaram em sede de réplica que a R. nunca os interpelou para procederem à escolha do aparcamento, razão pela qual a Srª  Juiz se decidiu pela resolução do contrato, sem, mas a pedido da R. e por culpa e litigância de má fé dos AA;

10ª – Deve proceder-se à alteração do facto relativamente aos factos que constam da alínea N) dos factos dados como provados de modo a que dele conste o que se extrai do documento a que alude: “… ainda há aparcamentos disponíveis” e não “… viessem dizer qual o aparcamento que desejam adquirir”;

11ª – Com todo o respeito, a Meritíssima Juiz “a quo”, decidindo como decidiu, avaliou, erradamente, os factos e os documentos constantes dos autos; e, assim,

12ª – Decidindo pelo infundado da resolução do contrato por parte dos AA. e, ao invés, decidindo pela procedência da reconvenção violou pelo menos, as disposições legais e constantes dos artigos 432º, 808º,

8º, 562º, todos do C. Civil e 456º e 457º ambos do C.P.Civil”.

Contra-alegou a apelada, pugnando pela manutenção do julgado.


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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão anterior ao Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se é de alterar a decisão da matéria de facto da 1ª instância; se o contrato promessa ajuizado é de considerar resolvido por incumprimento da Ré e se, por via disso, deve improceder a reconvenção e proceder a acção; finalmente, há que apreciar se deve manter-se a condenação dos Autores como litigantes de má fé.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - A R. tem por objecto social a indústria de construção e engenharia civil, compra e venda (revenda) de terrenos para construção, prédios urbanos ou rústicos para urbanização dos mesmos e venda de lotes ou das construções realizadas em regime de propriedade horizontal, bem como qualquer outro ramo de negócio ou industria que a sociedade resolva explorar e seja legal;

2º - No âmbito da sua actividade, a R. adquiriu por compra, a «(…), Lda.», com sede na Rua da.... em ...., para construção urbana, os lotes n.ºs x....,y....e .... sitos à ...., freguesia e concelho de ....;

3º - No desenvolvimento da sua actividade, ainda em fase de construção, pelo preço de €4.987,98, prometeu vender e os AA prometeram

comprar-lhe, mediante acordo datado de 10.12.2004, além da fracção "O", para habitação no lote x...., um aparcamento correspondente a 1/6 (um sexto) do piso abaixo do solo a construir no Lote ...., sendo este último a escolher pelos AA, promitentes compradores, sendo ainda o referido aparcamento em estado de novo, a vender livre de todos os ónus ou encargos, limitações à venda ou direitos de terceiro que impeçam a livre e desonerada transmissão;

4º - No âmbito do referido contrato, igualmente garantiu a R. que, quer em relação à fracção, quer em relação ao aparcamento prometidos vender, não existe qualquer crédito, garantia ou reclamação de terceiros que tenha por efeito a impugnação da promessa ou da venda prometida ou que tenha por efeito afectar a livre disposição;

5º - Na data de 13.04.2005, a R. outorgou com os AA a escritura definitiva de compra e venda da fracção "O" para habitação;

6º - A Ré celebrou um contrato de compra e venda outorgado no dia 16 de Agosto de 2005, onde vendeu na totalidade o prédio urbano, sito na ...., lote ...., na freguesia e concelho de ...., a um terceiro adquirente, a sociedade comercial "(…), Lda.", no qual é sita a garagem, objecto do contrato prometido;

7º - A R. não outorgou com os AA. a escritura definitiva de aparcamento;

8º - A construtora (…) Lda.» levou a cabo no lote .... a construção de um edifício, com aparcamentos;

9º - Os AA. acederiam da sua habitação ao aparcamento objecto do assente em C), através do elevador e passando pelo interior das garagens dos lotes x.... e 78;

10º - Os AA. residem em ....;

11º - Os prédios construídos nos lotes x....,y....e .... têm 6, 7 e 6 aparcamentos, respectivamente;

12º - Aquando da outorga da escritura de compra e venda da fracção autónoma, para habitação, supra identificada, o sinal pago pelos Autores foi imputado na sua totalidade à compra da referida fracção;

13º - Depois de 13.04.2005, mas antes de 03.01.2007, a R. pediu aos AA. para irem escolher um dos aparcamentos dos vários ainda disponíveis para escolha na garagem colectiva do lote ....;

14º - A Ré, por via postal registada dirigida aos Autores, solicitou-lhes, em 3 de Janeiro de 2007, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, viessem dizer qual o aparcamento que desejavam adquirir (nota: a matéria deste item foi alterada, como se verá adiante);

15º - A Ré comunicou à "(…), Lda.", o contrato promessa que havia celebrado com os Autores;

16º - Tendo sido acordado entre a Ré e a "(…), Lda." que esta respeitaria o contrato prometido pela Ré;

17º - A "(…)Lda." comprometeu-se perante a Ré a vender aos Autores, logo que interpelada para tanto, o lugar na garagem colectiva/aparcamento que os mesmos escolhessem, fazendo seu o preço acordado entre Autores e Ré;

18º - Posteriormente, a "(…), Lda." veio informar a Ré de que tinha os aparcamentos, todos, praticamente vendidos, ou prometidos vender;

19º - A Ré celebrou com a "(…) Lda." um contrato promessa de compra e venda, sobre o aparcamento n.º 6 do referido prédio urbano (lote ....), com data de 15 de Maio de 2007, a fim de poder manter o mesmo disponível para os Autores;

20º - Os Autores não procederam à marcação da escritura de compra e venda do aparcamento prometido vender;

21º - Nos termos do contrato promessa referido em 3º, artigo 4º:

“1. a escritura pública de compra e venda será celebrada até 4 meses, em local e hora a designar pelos PROMITENTES COMPRADORES;

2. A designação referida na alínea anterior deverá ser comunicada ao PROMITENTE VENDEDOR, com antecedência mínima de 10 dias em relação à data acima mencionada, através de carta registada com aviso de recepção para a morada indicada neste contrato”.

22º - Por escritura pública datada de 26 de Janeiro de 2009 no Cartório Notarial, sito na.... em ...., (…), na qualidade de procuradora da Sociedade (…), Lda." e (…) na qualidade de sócios e gerentes da (…), Lda", respectivamente nas qualidades de vendedor e comprador, declararam que em nome da sua representada, pelo preço já recebido de 11.515,00€, livre de ónus ou encargos, vende à representada dos segundos outorgantes um sexto da fracção autónoma designada por letra A, correspondente à cave - aparcamento n.º 6 do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na .... Lote ...., na freguesia e concelho de .... inscrito na matriz predial urbana com o art.º w...., com o valor patrimonial tributário correspondente à fracção de 11.515,00€, descrito na Conservatória do Registo Predial de ...., sob o n.º 5121, da freguesia de ...., com o regime de propriedade horizontal pela ap. 30 de 28 de Novembro de 2006 e registo de aquisição a favor da vendedora pela ap. 22 de 12 de Agosto de 2005, tendo os segundos outorgantes declarado aceitarem a venda para a sua representada, destinando-se o imóvel adquirido a revenda;

23º - As declarações de compra e venda incorporadas na escritura pública referida em 22º surgem na sequência do acordo assente em 19º.


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O DIREITO

1 - A decisão da matéria de facto

Na conclusão 10ª da sua alegação recursiva, os apelantes insurgem-se contra a matéria vertida na alínea N), que corresponde ao item 14º supra, defendendo que a expressão que aí consta “… viessem dizer qual o aparcamento que desejam adquirir” deve ser substituída por “… ainda há aparcamentos disponíveis”.

Recordemos a redacção daquele item 14º: “A Ré, por via postal registada dirigida aos Autores, solicitou-lhes, em 3 de Janeiro de 2007, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, viessem dizer qual o aparcamento que desejavam adquirir”.

A matéria deste item proveio do quesito 14º da base instrutória, que veio a ser dado como provado, com a ressalva da substituição de 5 de Janeiro por 3 de Janeiro (vide fls. 199).

E a matéria de tal quesito foi extraída do artº 14º da contestação, cuja redacção foi transposta para a base instrutória.

Na fundamentação da decisão da matéria de facto, afirma-se, em relação à resposta aos quesitos 12º a 14º, que «a testemunha (…) confirmou-o, sem haver sido contraditada. Além disso, atendemos aos documentos de fls. 37-38 e 39-40”.

Essencial para a resposta ao quesito 14º é o documento junto a fls. 39, que constitui a carta dirigida pela Ré aos Autores, com data de 03/01/2007. Nessa carta, a Ré comunica aos Autores, além do mais, que: “4 – Também não é verdade que não tenhamos salvaguardado o aparcamento em questão, tanto mais que ainda há aparcamentos disponíveis e continuamos a reiterar que se mantém o preço acordado no contrato e ainda por liquidar.

Somos, uma vez mais a lamentar a vossa atitude, uma vez que, sempre tivemos por V. Ex.as uma grande consideração e pareço e, nunca nos recusámos a resolver todas as situações que nos colocaram, e esta, também a resolvemos, salvaguardando-a com a entidade a quem vendemos o prédio do lote .....

Mais se solicita, que nos informem num prazo de 15 dias, contados a partir da recepção da presente carta, se ainda estão interessados na aquisição do aparcamento, a fim de tomarmos as devidas diligências junto da entidade que nos adquiriu o prédio”.

Perante aquele documento de fls. 39, é indiscutível que, na verdade, a Ré não comunicou aos Autores que viessem dizer qual o aparcamento que desejavam adquirir. O que a Ré solicitou aos Autores, através de tal carta foi para que «nos informem num prazo de 15 dias (…) se ainda estão interessados na aquisição do aparcamento».

A resposta ao aludido quesito deve traduzir o que a Ré solicitou aos Autores, através da sua carta de 3/1/2007, que não foi o que consta da resposta ao quesito 14º, nem tão pouco é aquilo que os apelantes sugerem na sua conclusão 10ª.

Assim, esta Relação decide alterar a resposta ao quesito 14º da seguinte forma:

14º - A Ré, por via postal registada dirigida aos Autores, solicitou-lhes, em 3 de Janeiro de 2007, que, no prazo de 15 dias, a informassem se ainda estavam interessados na aquisição do aparcamento.


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2 – A resolução do contrato promessa

A sentença recorrida concluiu que não existiu incumprimento culposo por banda da Ré em relação ao contrato promessa celebrado com os Autores, relativamente ao aparcamento. Os Autores/apelantes vêm defender o entendimento adverso, ou seja, o de que a culpa do não cumprimento do contrato é de imputar à Ré, pelo que a acção devia proceder e a reconvenção improceder, em relação à pedida resolução do contrato, já que, em relação ao decidido sobre o mais peticionado, a sentença não se mostra impugnada. Vejamos.

Nos termos do disposto no art. 410º, n.º 1, do C. Civil (diploma a pertencerão todos os artigos doravante citados sem menção de origem), diz-se contrato-promessa a convenção pela qual as partes se obrigam a celebrar entre si ou com terceiro um outro contrato.

Ao contrato-promessa são aplicáveis as normas relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações.

No que aos contratos em geral concerne, existem três formas de não cumprimento: a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora ou atraso no cumprimento e o cumprimento defeituoso (Prof. A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., II, págs. 62 e segs.).

A falta de cumprimento ocorre quando a prestação deixou de ser executada no devido tempo e já não pode ser cumprida por se tornar impossível (art.ºs 801º e 802º).

Pode, ainda, o não cumprimento definitivo resultar da falta irreversível de cumprimento, equiparado por lei à impossibilidade (art.º 808º, n.º 1). Tal sucede quando a prestação, sendo materialmente possível, perdeu o interesse, objectivamente justificado, para o credor.

Com efeito, dispõe o referido artº 808º, n.º 1, que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, (...) considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”.

Estatui, por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito que “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente”.

Naquele artigo consagram-se, assim, duas causas de inadimplemento definitivo: em primeiro lugar, quando se verifica a perda do interesse do credor na prestação devida, com a demora do devedor e, em segundo lugar, quando o devedor moroso não cumprir no prazo razoável, adicional e peremptório (admonitório), fixado pelo credor.

Uma terceira causa de incumprimento definitivo ocorrerá quando o devedor declara, inequivocamente, que não cumprirá o contrato (cfr. Ac. STJ, CJ/STJ, 1999, I, p. 61).

Quanto à causa da falta de cumprimento, existem duas modalidades de não cumprimento: o que é imputável ao devedor e o que não lhe é imputável. Só nos casos de não cumprimento imputável ao devedor se pode rigorosamente falar em falta de cumprimento.

Nos contratos em geral, quando o devedor não realiza, culposa e definitivamente, a prestação a que está obrigado (art.ºs 762º, n.º 1, e 406,º n.º 1), o credor pode exigir uma indemnização correspondente aos danos causados (art.ºs 798º e 801º) e pode pedir a resolução do contrato (art.º 801º, n.º 2).

A resolução de um contrato, que pode ser definida como “a destruição da relação contratual, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes que pretende ver regressadas as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido celebrado” (Prof. Antunes Varela, Direito das Obrigações”, 3ª Edição, 2º vol., pág. 242), não sofre qualquer desvio em sede de contrato-promessa, excepto no que se refere às suas consequências.

Trata-se de um direito potestativo que só pode ser exercitado pelo contraente fiel existindo um fundamento, legal ou convencional, nos termos do art.º 432º. Da existência de fundamento depende a legitimidade do exercício de tal direito, daqui se concluindo que se trata de um poder vinculado.

E, de acordo com o Dr. Brandão Proença (Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, pág. 24, nota 34), a resolução é ilegítima quando é declarada pelo próprio contraente relapso ou faltoso, sendo legítima quando se funda num incumprimento legal ou convencional imputado à contraparte. Se o fundamento resolutivo não existe, ou é meramente aparente, estar-se-á no domínio da arbitrária desvinculação do contrato e perante uma ilícita violação do princípio pacta sunt servanta. E tal corresponderá a uma recusa de cumprimento, que como foi já referenciado, será incluído na declaração séria e firme de não cumprir de que resulta um incumprimento definitivo, face ao comportamento do devedor.

  Aquando da ultima alteração legislativa à nomenclatura do contrato-promessa, entendeu o Prof. Antunes Varela que o mecanismo sancionatório do sinal poderia ser desencadeado logo que o devedor entrasse em mora (Sobre o contrato-promessa, pág. 150) e o Prof. Almeida Costa, com uma posição híbrida, defendeu que a transformação da mora em incumprimento definitivo se afastava, quanto ao contrato-promessa, do regime geral sendo a exigência do sinal uma cláusula resolutiva tácita de resolução (Direito das Obrigações, pág. 345, e “Contrato-promessa – uma síntese do regime actual”, pág. 62). No mesmo sentido, de que o direito de exigir o sinal em dobro poderia ser exercitado logo que o devedor incorresse em mora, sendo desnecessário converter a mora em incumprimento definitivo, decidiram os Acs. da Relação do Porto de 8/6/89, C.J., T.III, pág. 214; 2.9.92, C.J., T.IV. pág. 240;e R. de Coimbra de 12.1.93, C.J., T.I., pág. 13; 26.5.92, C.J., T.III, pág. 115; e 20.3.90, C.J., T.II, pág. 52).

  Em sentido contrário, tem entendido a doutrina maioritária que a mora é insuficiente para o imediato accionamento do regime sancionatório do sinal, sendo necessário ocorrer a transformação da mora em incumprimento definitivo, nos termos do art.º 808º, isto é, pela perda do interesse do credor, objectivamente apreciada, pela comunicação de um dos contraentes, de forma categórica, da intenção de não cumprir, ou na sequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório (a que o Prof. Baptista Machado chamou de interpelação admonitória, termo hoje por todos adoptado) que o credor fixe razoavelmente ao devedor em mora, e sempre que a prestação seja ainda possível. Pelo que, em caso de mora, haverá lugar à execução específica, em caso de incumprimento definitivo poderá ser desencadeado o mecanismo da resolução (salvaguardando-se as hipóteses correspondentes ao chamado incumprimento fraco, em que poderá ainda o credor exigir a execução do contrato).

  Este é o entendimento sufragado pelos Profs. Calvão da Silva (Sinal e contrato-promessa, pág. 92), Januário da Costa Gomes (Em tema de contrato-promessa, pág. 47), Galvão Telles (Direito das Obrigações, pág. 112), Ana Prata (O Contrato-Promessa e o seu regime civil, pág. 796 e 797), Brandão Proença (Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral – A Dualidade Execução Específica – Resolução, pág. 155 e segs.), e, para além do mais, pelos Acs. do S.T.J. de 16/12/93, C.J., T.III, pág. 185, e de 27.04.99, C.J.,S.T.J., T.II, pág. 62. E é também o entendimento que temos sufragado.

Deste modo, só no caso de inadimplemento definitivo da promessa, o promitente lesado fica com o caminho aberto para a resolução do contrato-promessa, designadamente para o promitente comprador exigir o dobro do sinal entregue, por sinal se presumindo toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor (art.º 441º) ou, tendo havido tradição da coisa, o valor que esta tiver ao tempo do incumprimento e, em alternativa, de requerer a execução específica do contrato, gozando ainda do direito de retenção sobre e coisa pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente vendedor (art.ºs. 442º n.º 1 a 3).

No que tange à prova do incumprimento, há que ter presente o disposto no art.º 799º, n.º 1, norma aplicável à culpa ou impossibilidade de cumprimento a que se refere o art. 801º (Galvão Teles, Direitos das Obrigações, pág. 313). Mas, embora nele se estabeleça a presunção de culpa na falta de cumprimento, o credor tem de provar o facto ilícito do não cumprimento (Antunes Varela, ob. cit., vol. V, pág. 97).

No entanto, e no que concerne ao contrato-promessa de compra e venda, já não se entende que funcione a presunção da culpa do devedor se não se atribuir especialmente a um dos promitentes o dever de provocar a celebração da escritura de compra e venda, uma vez que qualquer dos promitentes é devedor no que respeita à obrigação de outorga numa escritura (Ac. R.L. de 23.05.79, C.J., Ano IV, T.3, pág. 787).

Revertendo ao caso dos autos, fluí dos factos provados que os Autores, enquanto promitentes compradores, celebraram com a Ré, enquanto promitente vendedora, um contrato-promessa de compra e venda, mediante o qual esta prometeu vender àqueles, que prometeram comprar, para além do mais que aqui não releva, 1/6 da fracção que emglobará os aparcamentos do lote ...., em construção, pelo preço de € 4.987,98.
A escritura pública de compra e venda seria celebrada até 4 meses, em local e hora a designar pelo promitentes compradores.
O contrato promessa outorgado entre as partes tem a data de 10 de Dezembro de 2004 (vide fls. 36).

E as partes vieram a outorgar, no dia 13 de Abril de 2005, a escritura de compra e venda da fracção destinada à habitação, sendo certo que a totalidade do sinal pago pelos Autores à Ré foi imputado à compra daquela fracção (vide itens 5º e 12º). Quer isto dizer que, em relação à venda do aparcamento, deixou de existir sinal.

A venda do aparcamento não veio a realizar-se. Mas a culpa respectiva não pode, à luz dos factos provados, ser assacada à Ré. Na verdade, esta pediu aos Autores para escolherem o aparcamento no lote ...., antes da propositura da presente acção e solicitou-lhes que a informassem se ainda estavam interessados na respectiva aquisição, sem que eles tenham procedido à escolha ou informado do seu interesse na aquisição (vide itens 13º e 14º).

E não obstante a Ré ter vendido o lote .... a um terceiro, o certo é acautelou ela o cumprimento do contrato celebrado com os Autores, em relação ao aparcamento (vide itens 15º a 19º).

E os Autores, a quem incumbia, nos termos contratados, a marcação da escritura de compra e venda, nunca procederam à marcação dessa escritura (item 20º).

Entende-se, por isso, não estar demonstrado ter havido mora por banda da Ré. E, se não existiu mora, muito menos pode considerar-se ter havido incumprimento definitivo de sua parte.

A interpelação admonitória consiste numa intimação formal, do credor ao devedor moroso, para que cumpra a obrigação dentro de prazo determinado com a expressa advertência de se considerar a obrigação como definitivamente incumprida (vide, neste sentido, o Acs. do S.T.J. de 31/3/2004 e 16/5/2005, in www.dgsi.pt., e o Ac. da Relação do Porto de 14/4/2005, no mesmo endereço).

As características da interpelação admonitória são, pois, as seguintes:

- a intimação para o cumprimento;

- a fixação de um prazo peremptório para o cumprimento;

- a comunicação de que a obrigação se terá definitivamente por não cumprida se não se verificar o cumprimento daquele prazo.

Ora, dos factos provados não se pode de modo algum extrair que a Ré se tenha colocado numa situação de incumprimento definitivo. Daí que a acção tivesse de improceder, em relação à pedida resolução do contrato, como bem decidiu a sentença recorrida.

E se é assim em relação à Ré, resta averiguar se existe fundamento para decretar a resolução do contrato com base no incumprimento dos Autores.

A sentença recorrida considerou, em relação à conduta dos Autores, que “a não prova de factos impeditivos (da sua parte), por confronto com o assente em M), N), O), P) e Q), não obstante igualmente nada obstar à R./reconvinte a marcação da escritura de compra e venda, até 16 de Agosto de 2005, permite inferir, como justificada, a perda de interesse desta última na celebração do contrato prometido, tanto mais que os AA./reconvindos preferiram prosseguir com a presente acção”.

Mas, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a conclusão tirada não encontra apoio bastante nos factos provados. Vejamos.

Não obstante incumbir aos Autores a marcação da escritura (vide cláusula 4ª do contrato), a Ré tinha e tem a possibilidade de tomar a iniciativa da marcação da escritura, sem necessidade de recorrer a Tribunal, convertendo a eventual mora dos Autores em incumprimento definitivo (vide, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 27/1/2005, proferido no processo 0436996, www.dgsi.pt).

De outro modo, a Ré poderia ver eternizada a situação de não outorga da escritura referente ao contrato promessa outorgado.

Das interpelações feitas pela Ré aos Autores não se pode de modo algum extrair que estes se tenham colocado numa situação de incumprimento definitivo, já que nenhuma das comunicações a que se alude nos itens 13º e 14º reveste as características da interpelação admonitória supra assinaladas e que aqui nos dispensamos repetir.

Na sua carta de 3/01/2007 (fls. 39), a Ré não faz qualquer interpelação admonitória aos Autores, limitando-se a solicitar-lhes que, num prazo de 15 dias, informarem a Ré se ainda estão interessados na aquisição do aparcamento. Essa carta está longe de configurar uma interpelação admonitória.

Nem tão pouco transparece dos factos provados, de resto, nem sequer foram alegados factos bastantes nesse sentido, a perda do interesse da Ré no cumprimento do contrato por parte dos Autores. Na verdade, não basta invocar a perda do interesse, sendo necessário traduzir em factos essa perda do interesse em cumprir o acordado.

Atente-se que a própria Ré alegou que «está em perfeitas condições de cumprir o contrato promessa de compra e venda ao qual os Autores se vincularam» (vide artº 33º da contestação). E se assim é, não pode dizer-se que ela tenha perdido o interesse na outorga do contrato.

Decorre do exposto que a resolução do contrato ajuizado pedida pela Ré não pode proceder, pelo que a reconvenção, nesta parte, tem de ser julgada também improcedente.


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3 – A litigância de má fé

Os Autores foram condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização à parte contrária.

Essa condenação assentou na seguinte fundamentação:

“Em sede de réplica, estes negaram ter alguma vez recebido comunicação da R. para escolherem o aparcamento no lote ...., tendo-se demonstrado precisamente o contrário.

Sucede que a escritura de compra e venda deveria ser outorgada até 10 de Abril de 2005, tendo-se provado que as notificações para escolha do aparcamento apenas tiveram lugar após 13.04.2005. Logo, será que o facto de os AA. haverem faltado à verdade quanto a este aspecto poderia ter sido relevante para a sorte da causa?

Face ao que acima dissemos, a resposta não pode deixar de ser afirmativa, pois que foi essa circunstância, conjugada com o terem sido duas as vezes em que os AA. foram interpelados nesse sentido pela R., no espaço de três anos e mais de seis meses, e a incumbência contratual de designação do local, dia e hora da escritura a cargo dos primeiros, que determinou o nosso juízo resolutivo do contrato promessa assente em C), imputável aos AA.

Ou seja, perante a matéria assente, os AA. alegaram factos relevantes que sabiam não corresponder à verdade, pelo que, apesar de saberem que não tinham razão, litigaram e deduziram “pretensão (...) conscientemente infundada”.

De acordo com o disposto no artº 456º, n.º 2, als. a), b), c) e d) do C. de Proc. Civil, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

O que prescreve este artigo constitui o reverso do dever de cooperação aflorado nos artºs 266º e 266º-A, do referido código. As partes devem agir de boa fé e cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

Ora, salvo o devido respeito por entendimento diverso, não vemos que ressaltem dos autos elementos bastantes que permitam concluir terem os apelantes conscientemente deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterado a verdade dos factos ou feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade ou entorpecer a acção da justiça.

É certo que os apelantes, na réplica, impugnaram genericamente os factos alegados pela Ré nos artigos 1º a 21º da sua contestação (vide artº 8º da réplica). Mas nem por isso é de concluir terem eles litigado com má fé.

Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes pelo citado artº 266.º, a litigância de má fé pressupõe, para além do mais, a violação da obrigação de não fazer do processo um fim manifestamente reprovável. «Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada», de tal modo que a «simples proposição da acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir» (Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, 2.º, 263).

Ora, não emerge dos autos que os apelantes se propusessem alcançar um fim ilegal, impedir a descoberta da verdade ou entorpecer a acção da justiça.

Não se mostra, assim, justificada a condenação dos ora apelantes como litigante de má fé, pelo que a sentença recorrida, também nesta parte, não se pode manter.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, a qual se substitui por outra que julga a reconvenção improcedente em relação ao pedido de resolução do contrato promessa ajuizado, dele absolvendo os Autores, absolvendo-se também os Autores da condenação como litigantes de má fé.

Custas, em primeira instância, da acção pelos Autores e da reconvenção pelos Réus, sendo as do recurso devidas por ambos, na proporção de 1/3 para os apelantes e de 2/3 para a apelada.