Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
462/06.2TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
COLISÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 03/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 70º, Nº 1, 335º E 1346º C. CIV.
Sumário: I – No actual estádio da dominialidade dos bens, cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade.

II – Por isso, admite-se que o proprietário de um imóvel se oponha à emissão de fumos, de fuligem, de vapores, de cheiros, de calor ou de ruídos, bem como à produção de trepidações e de outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio donde emanam – artº 1346º do C. Civ..

III – No artº 70º, nº 1, do C. Civ. expressa-se uma cláusula geral da personalidade humana, pelo qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

IV – Por isso, aceita-se que, no âmbito das relações de vizinhança, devem considerar-se ilícitos todos os actos que ofendam direitos de personalidade.

V – Mas como os direitos de natureza económica, como o da livre iniciativa económica e da propriedade privada, também têm protecção constitucional – artºs 61º e 62º -, o que conflitua com os direitos de personalidade, em tais situações impõe-se o recurso ao instituto da colisão de direitos – artº 335º C. Civ..

VI – A Constituição da República Portuguesa confere predomínio aos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos económicos, sociais e culturais, o que conduz a reputar de prevalecentes os direitos de personalidade, designadamente o direito ao repouso.

VII – Todavia, o direito hierarquicamente inferior deve ser respeitado até onde for possível e a sua limitação só pode verificar-se na medida em que o imponha a tutela do direito de personalidade.

VIII – O direito de oposição à emissão de ruídos subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior ao limite máximo legal – Dec. Lei nº 292/00, de 14/11 –, sempre que haja ofensa de qualquer direito de personalidade de um terceiro.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório.

A... e mulher, B...., residentes na ...., intentaram contra C...e mulher, D...., residentes na ...., acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário pedindo:

- o encerramento do estabelecimento de café X...., ou, subsidiariamente, a realização das obras necessárias ao isolamento acústico e vibrátil do estabelecimento, exaustão dos cheiros emitidos e substituição das portas da casa de banho e cadeiras;

- a sua condenação a respeitar o horário de funcionamento do café das 10 às 21 horas, abstendo-se de qualquer actividade fora desse período;

- a sua condenação a pagar-lhes indemnização pelos danos não patrimoniais, no valor de 7.500,00 euros para o marido e no valor de 15.000,00 euros para a mulher e a esta, ainda, no que se liquidar em execução de sentença e a uma indemnização de 289,92 euros a título de danos patrimoniais e no mais que se liquidar em execução de sentença.

       Alegam para tanto que são donos da fracção autónoma constituída por 1º andar direito, destinado a habitação, composto de 4 divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um hall e uma varanda, com a área útil de 108,60 m2, do prédio urbano, sito na .., descrito na matriz sob o artigo 1.268º e inscrito no registo predial a seu favor sob a descrição 465, ap. G-2. Fracção que compraram para nela habitarem e nela habitam desde 8 de Dezembro de 2000 até à presente data. No rés-do-chão desse edifício exploram os réus um café, onde se produzem ruídos que impedem que os autores de dormir, repousar e viver tranquilamente. Aqueles ruídos causam à autora mulher grande transtorno.     Juntaram documentos.


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Contestaram os réus excepcionando a sua ilegitimidade, porquanto o café é explorado pela sociedade “Café X...., Sociedade Unipessoal, Lda.”, em nome da qual o estabelecimento se encontra licenciado. A circunstância de os dois estarem no estabelecimento resulta dele ser o único sócio e ela ser funcionária. Em Junho de 2003, realizada uma avaliação ao ruído resultante do café, concluiu-se que os ruídos não excediam os limites legais. Ainda assim foram efectuadas algumas obras de isolamento, que especificaram, e a porta da casa de banho agora só funciona com um dos lados. Opõem que os autores têm na varanda da sua fracção, a escassos centímetros da janela do seu quarto, um aparelho de ar condicionado e com o qual se não incomodam. Não confeccionam quaisquer refeições no café, ressalvados alguns dias do ano de 2002. Impugnaram a pretensão indemnizatória dos autores.

Juntaram documentos.


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Os autores replicaram defendendo a improcedência da arguida ilegitimidade, ao contraporem que os gerentes respondem nos termos gerais para com terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções.

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Realizada a audiência preliminar, foi saneado o processo e julgada improcedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva. Seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, sem reclamação, procedeu-se à instrução dos autos com a realização de perícia colegial.

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Os autores deduziram incidente de intervenção principal provocada da sociedade “Café A X..., Unipessoal, Lda.”, E...e esposa, F...., alegando que, na pendência da acção, os demandados deixaram de explorar o café e o réu marido cedeu a sua quota a terceiros. Mais alegaram que, na sessão da audiência de julgamento marcada para 13 de Junho de 2008, o proprietário do imóvel, o chamado E...., mostrou disponibilidade para levar a cabo as obras necessárias ao isolamento, e o seu chamamento e da sociedade impunha-se para que a decisão produza o seu efeito útil normal.

Os réus propugnaram pelo indeferimento do incidente.

Incidente que foi rejeitado liminarmente.


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Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto sem reclamação, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

            Irresignados, os autores interpuseram recurso de apelação e, circunscrevendo as alegações, apresentaram as conclusões subsequentes:

            1. O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da lei, ao decidir a presente acção com base no D.L. 292/00, de 14 de Novembro, quando deveria ter considerado designadamente os arts. 25° da C.R.P., 70° e 483° do C.C.

            2. Os direitos dos autores recorrentes ao repouso, à tranquilidade, ao sono e ao silêncio são direitos de personalidade.

            3. Ao considerar indispensável para a procedência da acção “a prova de que o ruído provocado por aquelas fontes era superior ao permitido por lei”, a decisão recorrida ignora que os direitos de personalidade são protegidos contra qualquer ofensa ilícita, tendo-se por consubstanciada a gravidade do dano.

          4. A actividade comercial exercida pelos réus recorridos não estava licenciada pela Câmara Municipal, mas ainda que estivesse, e na esteira do que vem sendo decidido pelos Tribunais Superiores, designadamente os Ac. do S.T.J. de 06/05/1998 e o Ac. deste Tribunal da Relação de 16/05/2005, tal não afastaria o carácter ilícito do ofensa e nem assim o facto de a emissão de ruído estar contida nos limites legalmente fixados.

        5.        Em face dos factos provados, nomeadamente nas alíneas:

          0) - A laboração diária do estabelecimento referido em 1) produz barulhos, que se propagam ao interior do prédio referido em A), onde são audíveis.

          R) - Esses barulhos provêm essencialmente da cortina eléctrica colocada no porta de entrada do estabelecimento, do bater do manípulo da máquina de café e das máquinas flippers instaladas no estabelecimento.

          T) - O arrastar das cadeiras também provoca ruído.

          U) - As vozes dos clientes “ X...”", quando em quantidades elevadas, também provocam ruído e

          V) - O exaustor quando ligado, provoca ruído da ordem dos 34,5 dB(A) no interior do apartamento; não pode deixar de se concluir que os réus provocam  efeitos nocivos.

         6. E, atentos os danos causados aos autores recorrentes, que  comprovadamente aqueles ruídos provocam:

             Z) - O barulho proveniente do estabelecimento “ X...” causa à  autora transtorno.

            AA) - A autora sofre de um quadro depressivo.

            AS) - Em consequência dos barulhos provenientes do estabelecimento referido em 1), os autores andam incomodados.

            AC) - Quando a autora anda mais nervosa por causa dos barulhos vai dormir a casa de pessoas amigas.

            AD) - A autora chegou a dormir em casa de uma irmã; dúvidas não subsistem acerca da sua elevada gravidade, que justifica a tutela do direito.

          7.       A violação dos direitos de personalidade dos autores, pelos réus, não estava a coberto de qualquer licença camarária, era injustificada e ultrapassava largamente os limites do socialmente tolerável.

            8. É devida uma indemnização por danos morais aos autores, que deverá ser fixada equitativamente, e não segundo critérios de simbolismo ou miserabilistas.

            9. Deverá igualmente ser ordenado o isolamento do estabelecimento comercial dos réus, de onde provêm os ruídos, uma vez que os direitos de personalidade dos autores são violados pelo não direito dos réus.

            10. Em suma, não se aceita a decisão recorrida, por frontalmente se discordar da exigência de prova de que os ruídos ultrapassaram determinado número de decibéis, para que os ofendidos adquiram o direito à tutela da sua personalidade.

            11. A Constituição e a Lei não fazem depender a protecção dos direitos fundamentais de uma violação com grau ou intensidade preestabelecida. Basta o critério da gravidade, e esse, nos autos, está sobejamente preenchido.

            Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso.


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          Contra-alegaram os réus defendendo a improcedência do recurso, terminando com as seguintes conclusões:

            1. Deve ser mantida a sentença, não reconhecendo os argumentos aduzidos nessas mesmas alegações pelos motivos, entre outros, certamente considerados, que infra se discriminam.

            2. Com a entrada em vigor do Decreto–Lei nº 292/2000 de 14 de Novembro, pretendeu o legislador enquadrar e dar resposta ao problema da poluição sonora, alargando o seu âmbito de aplicação, designadamente, por via da regulação do ruído de vizinhança, que constituiu uma inovação em relação ao regime anterior, verificando o aumento de casos análogos ao que se discute nos presentes autos.

            3. Pelo que é de toda a pertinência a aplicação daquele diploma ao caso em apreço e nos moldes em que é feito, não recaindo, no entender dos recorridos, qualquer tipo de censura sobre o texto recorrido, aliás douto. Sem prescindir;

            4. Foi dado como provado – cfr. resposta ao quesito 34º da base instrutória – que “O estabelecimento referido em 1) é explorado por uma sociedade comercial denominada “Café X..., Unipessoal, L.da” – cfr. resposta q. 34 a fls 8 da sentença.

            5. E portanto, os réus recorrentes, não exploraram nem exploram o café, não laboravam sem a necessária licença, não persistiram em violar o direito ao repouso, ao sono e tranquilidade dos autores e muito menos a sua actividade provoca qualquer ruído.

            6. Daí a invocada ilegitimidade e, por isso, nenhuma responsabilidade individual lhes pode ser imputada. Ainda assim;

            7. O café tinha licença emitida pela entidade competente para o efeito, e o processo de contra-ordenação foi instaurado à sobredita sociedade, conforme resulta dos documentos juntos aos autos e da al. G) dos factos dados como provados, sendo certo, que as condições de licenciamento sofreram significativas alterações com a entrada em vigor do referido Decreto – Lei nº 292/2000 de 14 de Novembro.

            8. O que a Câmara Municipal de ...fez, foi avaliar as circunstâncias em função das novas normas em vigor. Mais;

            9. Os recorrentes lançam mão do processo de contra-ordenação instaurado pela Câmara Municipal de ...– Proc. nº1.469/2001 – para vincarem a ausência de licença, no entanto, mais uma vez esquecem que os relatórios de avaliação acústica efectuados, tiveram como referência os valores constantes no DL nº9/2007 de 17 de Janeiro que veio alterar o DL nº292/2000 de 14 de Novembro, cuja aplicação ao caso em apreço motivou o recurso interposto.

            10. E o mesmo se aplica quanto às respostas aos quesitos 10º, 13º e 41º  correspondente às als. S), V) e AJ) dos factos dados como provados, respectivamente, também eles estão sustentados no relatório pericial cujos valores são os constantes daquele diploma legal.

            No entanto;

            11. Do elencado dos factos dados como provados, não se pode concluir que os barulhos são perturbadores do sono, tranquilidade e descanso dos recorrentes, nem se retira qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física e moral dos recorrentes.

            12. Alguns dos barulhos apenas são audíveis na fracção propriedade daqueles, sendo certo que apenas os incomodava, e causava transtorno à recorrente, ao que não é alheio o facto desta sofrer de um quadro depressivo.

            13. E portanto, como muito bem é referido na Douta Sentença, é desconhecido, por ausência de referência, qual a reiteração e intensidade dos barulhos, pelo que não

representam ofensa relevante do direito consagrado no artigo 70º do Código Civil. –

Nesta linha cfr. AC da RC de 23-02-98 – processo nº1882/98. Supra transcrito.

            14. Recorde-se que os barulhos provêm, essencialmente, da cortina eléctrica colocada na porta de entrada do estabelecimento, do bater do manipulo da máquina do café e das máquinas de flippers instaladas no estabelecimento e que posteriormente foram retiradas, mantendo-se apenas a máquina do café – cfr. al. p) dos factos dados como provados.

            15. Nem os danos revestem uma gravidade tal que mereçam a tutela do direito, por se tratarem de vulgares incómodos e comuns arrelias - nesta linha cfr. AC do STJ de 13-12-1995 – AD, 410º - 258º, supra transcrito.

            16. Na verdade, resulta do elencado dos factos dados como provados que alguns barulhos são apenas audíveis e que os autores andam apenas incomodados.

            17.  E os gastos com os medicamentos deriva somente do quadro depressivo que a recorrente apresenta, não podendo ser imputado ao incómodo causado pelos barulhos.

            18. Assim, não se encontrando verificados os pressupostos cumulativos contidos nos artigos 483º e 496º, ambos do Código Civil, ou seja, facto ilícito, nexo de causalidade e danos suficientemente graves para que mereçam a tutela do direito, não resulta a obrigação de indemnizar. Por fim;

            19. Sobre o referido no 9. das conclusões, aliás doutas, apresentadas pelos recorrentes, e na sequência do referido nas al. I), J) e L) dos factos dados como provados, não podem os recorridos encerrar um estabelecimento o qual nunca exploraram nem exploram.

            20. Ademais, encontra-se junto aos autos uma certidão do registo comercial relativa ao denominado “Café X..., Unipessoal, L.da” de cuja análise se retira que o sócio único cedeu a quota de que era titular, o que, pelo menos desde o dia 01.08.2007, não tem a posse do estabelecimento em causa, e em consequência, não pode encerrar o que nunca possui nem possuiu.

            Sendo assim, nestes termos:

            1. Deve manter-se, concordando-se, o teor da sentença, em todo o seu conteúdo.

            2. Mesmo que, por mera hipótese académica, se possa modificar a mesma na sua fundamentação, tendo por atenção a matéria de facto e de direito invocada nas alegações, a improcedência da acção não pode ser posta em causa, quer em função do que resultou da audiência de julgamento e da percepção dos próprios factos.


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          II. Delimitação do objecto do recurso

          Atento o preceituado nos artigos 684º, 3,  e 690º, 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior à introduzida pelo Decreto-Lei 303/07, de 24 de Agosto,  as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Perante o seu teor, cumpre-nos apreciar os seguintes pontos:
          - as relações de vizinhança;

          - a colisão de direitos fundamentais;

          - a responsabilidade civil por factos ilícitos dos réu;

          - os sujeitos passivos da obrigação de indemnizar.


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          III. Factos provados

          1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob a fracção “I”, do nº 465, da freguesia de Salvador, consistente no 1º andar direito, destinado a habitação, composto de 4 divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um hall e uma varanda, com a área útil de 108,60 m2, do prédio urbano, sito na ...., inscrito na matriz sob o artigo 1.268, sob o qual existe uma inscrição de aquisição a favor dos AA., com o nº G-2, por compra (al. A) dos factos assentes.

2. Desde 8 de Dezembro de 2000 até hoje é na fracção referida em A) que os autores habitam (al. B) dos factos assentes.

3. A Delegada de Saúde de ...enviou uma carta ao A., datada de 4-4-2003, cuja cópia se encontra junta a fls. 24, e que aqui se dá por reproduzida, e onde consta como assunto: “Reclamação - Perturbação causada pelo ruído” – “Café X...”, e ainda que: “Para conhecimento de V. Exa., relativamente à reclamação apresentada nestes serviços sobre o assunto supracitado abaixo se transcreve o ofício da Câmara Municipal que é do seguinte teor: “Em cumprimento de um despacho do Exmo. Senhor Vereador do Pelouro do Urbanismo, datado de 20-03-2003, e na sequência de uma reclamação apresentada pelo Sr. A..., informamos V. Exa. que foi instaurado processo de contra-ordenação ao estabelecimento de café acima referido em virtude do mesmo estar a funcionar sem a respectiva licença de utilização, bem como irão ser verificadas as condições de isolamento” (al. C) dos factos assentes).

4. No estabelecimento de café denominado “ X...” são diariamente atendidos clientes (al. D) dos factos assentes).

5. A Câmara Municipal de ...instaurou Processo de contra-ordenação nº 1.469/2001 em virtude de o estabelecimento referido em D) estar a funcionar sem licença de utilização (al. E) dos factos assentes).

6. Os autores apresentaram queixas em relação à situação do estabelecimento referido em D), quer à Câmara Municipal de ..., quer à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (al. F) dos factos assentes).

7. O Departamento de Administração Urbanístico da Câmara Municipal de ...enviou ao autor uma comunicação, datada de 29 de Março de 2005, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 29, e que aqui se dá por reproduzido, onde consta como assunto: “Pedido de Alteração de Edifício destinado a café/snack-bar/pastelaria – Processo nº 1.469/2001 –....”, e ainda que: “…informamos V. Exa. que foi dado conhecimento à firma reclamada, Café X..., do teor do relatório sobre a Avaliação Acústica tendo o mesmo sido resultado das medições realizadas no local por uma empresa certificada e homologada pelo que as suas conclusões são para serem respeitadas. Mais se informa que foi notificada a referida firma para no prazo de 60 dias proceder às correcções necessárias…”(al. G) dos factos assentes).

8. Por escritura de cessão de quotas e alteração e transformação em Unipessoal, lavrada em 18 de Outubro de 1999, a fls. 94, verso, do 2º Cartório Notarial de ..., G..... adquiriu as quotas que H.... e mulher, I..... , e J..... e mulher, L.... , eram titulares na sociedade comercial por quotas denominada “CAFÉ A X..., LDA.”, com sede na ..... Pela mesma escritura aquele G... unificou as quotas que adquiriu numa só, passando a ser o único sócio da sociedade, e sendo a mesma transformada em sociedade unipessoal (al. H) dos factos assentes).

9. Por escritura de cessão de quota e alteração parcial do pacto social, lavrada em 9 de Outubro de 2001, a fls. 91, do Cartório Notarial de Alcanena, aquele G... cedeu ao réu C...a quota de que era titular na sociedade comercial por quotas denominada “CAFÉ A X..., UNIPESSOAL, LDA.”, com sede na ..... Pela mesma escritura foi alterado o pacto social desta sociedade, passando a constar do mesmo que será o réu C...a exercer a sua gerência (al. I) dos factos assentes).

10. Por escritura de arrendamento, lavrada em 18 de Outubro de 1999, a fls. 87, do Cartório Notarial de ..., E...e mulher, F..., deram de arrendamento à referida sociedade denominada “CAFÉ A X..., LDA”, com sede na ....Pela letra “H”, correspondente ao rés-do-chão direito, destinada a estabelecimento comercial, constituído por uma divisão ampla e instalações sanitárias, do prédio urbano sito na ...., inscrito na matriz sob o artigo 1.268. Consta das condições do arrendamento que o local arrendado se destina a ser nele exercida a actividade de exploração de café (al J) dos factos assentes).

12. Os factos referidos em H) e I) encontram-se registados na Conservatória de Registo Comercial de ..., onde a sociedade “Café a X..., Unipessoal, Lda.” se encontra registada sob a matrícula nº 1.568 (al. L) dos factos assentes).

13. Em 20 de Junho de 2003, o estabelecimento de café referido em D) foi objecto de uma avaliação do ruído através da firma “M....”, que teve como resultado o que consta do relatório elaborado por aquela entidade, que se encontra junto de fls. 87 a 99, e que aqui se dá por integralmente reproduzido (al. M) dos factos assentes).

14. O estabelecimento referido em D) possui Alvará de Licença Sanitária, emitido em 3 de Junho de 1997, pela Câmara Municipal de ..., permitindo o funcionamento de um café no rés-do-chão do prédio sito na .....(al. N) dos factos assentes).

15. No verão de 2002, os réus realizaram obras no rés-do-chão do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o nº 465, da freguesia de Salvador, com vista ao funcionamento de um café, snack-bar e pastelaria denominado “ X...” (item 1º da base instrutória).

16. O “ X...”esteve equipado com aparelhos de ar condicionado, cortina eléctrica colocada na porta de entrada, aparelhos de frio tais como arcas frigoríficas, exaustores de grande potência, vitrinas, máquina de café, máquinas de flippers, mesas e cadeiras, rádio, porta de casa de banho tipo “Texas” e agora apenas tem um aparelho de ar condicionado, arcas frigoríficas, um exaustor, vitrinas, máquina de café, mesas e cadeiras, rádio e porta da casa de banho de uma só folha (item 3º da base instrutória).

17. A laboração diária do estabelecimento referido em 1) produz barulhos, que se propagam ao interior do prédio referido em A), onde são audíveis (itens 5º e 6º da base instrutória).

18. Esses barulhos provêm essencialmente de cortina eléctrica colocada na porta de entrada do estabelecimento, do bater do manípulo da máquina de café e das máquinas flippers instaladas no estabelecimento (itens 7º, 8º e 9º da base instrutória).

19. As portas da casa de banho do estabelecimento são do tipo “Texas”, isto é, abrem-se para ambos os lados, ficando a bater até se encostarem uma na outra, sendo que uma delas foi removida (item 10º da base instrutória).

20. O arrastar das cadeiras também provoca ruído (item 11º da base instrutória).

21. As vozes dos clientes do “ X...”, quando em quantidades elevadas, também provocam ruído (item 12º da base instrutória).

22. O exaustor, quando ligado, provoca ruído da ordem dos 34,5 dB(A) no interior do apartamento (item 13º da base instrutória).

23. O estabelecimento “ X...” está aberto de segunda-feira a sábado, das 8 às 24 horas (item 15º da base instrutória).

24. Os autores são reformados (item 20º da base instrutória).

25. A autora passa uma boa parte do dia em casa (item 21º da base instrutória).

26. O barulho proveniente do estabelecimento “ X...” causa à autora transtorno (item 24º da base instrutória).

27. A autora sofre de um quadro depressivo (item 25º da base instrutória).

28. Em consequência dos barulhos provenientes do estabelecimento referido em 1), os autores andam incomodados (item 28º da base instrutória).

29. Quando a autora anda mais nervosa por causa dos barulhos vai dormir a casa de pessoas amigas (item 30º da base instrutória).

30. A autora chegou a dormir em casa de uma irmã (item 30º da base instrutória).

31. Durante os anos de 2005 e 2006, os autores despenderam a quantia de 289,92 euros, em consultas e medicamentos (item 33º da base instrutória).

32. O estabelecimento referido em 1) é explorado por uma sociedade comercial denominada “Café a X..., Unipessoal, Lda. (item 34º da base instrutória).

33. No café do estabelecimento referido em 1) apenas se encontra instalado um aparelho de ar condicionado (item 35º da base instrutória).

34. Entre o tecto falso e a laje existe uma camada de espuma de poliuretano projectada (item 39º da base instrutória).

35. Actualmente a porta da casa de banho do estabelecimento referido em 1) encontra-se a funcionar apenas para um dos lados (item 40º da base instrutória).

36. Os autores têm colocada na varanda do prédio referido em A), uma bomba de calor e a um metro de distância deste aparelho foi registado um nível sonoro de 53,1 dB(A (item 41º da base instrutória).


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            IV. Enquadramento jurídico

            As questões colocadas pelo quadro factual descrito e pelas alegações dos apelantes buscam a solução jurídica ao nível das relações de vizinhança, dos direitos de personalidade, do direito do ambiente e da responsabilidade civil por factos ilícitos. Questões que se interpenetram para avaliar da tutela civilística das relações intersubjectivas aqui em jogo.

            Na disciplina jurídica das relações de vizinhança, durante muito tempo objecto de tratamento preferencial no domínio dos direitos reais. O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art. 1305º do Código Civil). Mas no actual estádio da dominialidade dos bens cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade. Por isso, admite-se que o proprietário de um imóvel se oponha à emissão de fumos, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio donde emana (artigo 1346º do Código Civil).

Nesta perspectiva de enquadramento dos factos, os autores são proprietários de uma fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal, onde habitam desde 8 de Dezembro de 2000, e os réus exploram um estabelecimento de café que funciona no mesmo edifício, no rés-do-chão direito (como resulta das respectivas inscrições matriciais e descrições registrais). Opõem-se os autores aos ruídos que procedem da exploração do estabelecimento de café, perturbadores da sua comodidade e bem-estar, não obstante eles resultarem da utilização normal do prédio de que emanam. O estabelecimento de café já funcionava naquela fracção quando os autores foram habitar para a sua casa (escritura de arrendamento comercial outorgada em 18 de Outubro de 1999) e, como deriva da experiência comum, uma actividade de café é sempre geradora de ruído que ultrapassa largamente os níveis de um prédio destinado à habitação. E, por isso, temos de ajuizar que as emissões dadas por demonstradas (ruídos provenientes de equipamentos, do arrastar de cadeiras e de vozes de clientes) integram o uso normal do prédio e até o destino da fracção. Ainda assim, se esses ruídos causarem aos autores um prejuízo substancial ao uso do seu imóvel, estarão os mesmos legitimados a deduzir-lhes oposição.  Sem olvidar que os proprietários vizinhos têm de gerir a sua recíproca liberdade, na conciliação dos interesses em conflito de uma forma equilibrada e razoável, está demonstrado que a laboração diária do estabelecimento produz barulhos, que se propagam ao interior do prédio dos autores, onde são audíveis. Barulhos que provêm essencialmente de cortina eléctrica colocada na porta de entrada do estabelecimento, do bater do manípulo da máquina de café e das máquinas flippers ali instaladas. Também as portas da casa de banho, do tipo vaivém, ao abrirem para ambos os lados, ficam a bater até encostarem uma na outra (embora, entretanto, uma delas tenha sido removida). O arrastar das cadeiras também provoca ruído e as vozes dos clientes, quando em elevado número, também provocam ruído. Igualmente, o exaustor, quando ligado, provoca ruído na ordem dos 34,5 dB(A) no interior do apartamento dos autores, tudo provindo de um estabelecimento que funciona de segunda-feira a sábado, das 8 às 24 horas (n.ºs 17 a 23 dos factos provados). Ruídos que, no apelo a critérios de razoabilidade, têm de considerar-se substanciais, porque, sendo os autores reformados, passarão grande parte do seu tempo no interior do apartamento, tal como está comprovado relativamente à autora, e o barulho proveniente do estabelecimento causa-lhes transtorno e incomodidade, a ponto de quando a autora anda mais nervosa por causa dos barulhos vai dormir a casa de pessoas amigas, nomeadamente a casa de uma irmã (n.ºs 24 a 26 e 28 a 30 dos fundamentos de facto).

            A realidade que os factos elencados retratam produz um “dano essencial”: exigindo-se um prejuízo essencial, põem-se de lado as emissões que não produzam um dano dessa natureza. Prejuízo que deve ser apreciado objectivamente, atendendo à natureza e finalidade do prédio atingido e não segundo a sensibilidade do seu dono[1].

            De qualquer modo, essa substancialidade tem uma dimensão mais ampla, postulada pela tutela geral dos direitos de personalidade, incorporada no artigo 70º, 1, Código Civil, que expressa uma cláusula geral da personalidade humana, pela qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Tutela que se consubstancia no direito a exigir do infractor responsabilidade civil ou a requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida[2]. Direitos que são protegidos contra qualquer ofensa ilícita, independentemente de culpa e da intenção de prejudicar o ofendido[3] e que dispõem de consagração constitucional, como o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66º). É na esfera protectiva dos direitos de personalidade que se integra a relação existencial do homem com a natureza, na procura de um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, operativo nas relações entre particulares. Direito que é, desde logo, um direito negativo, no sentido de que traduz um direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de acções ambientalmente nocivas. Dimensão em que o direito ao ambiente impõe proibições ou deveres de abstenção, pelo que é um dos direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe aplicável o respectivo regime constitucional específico (artigo 17º)[4]. E, por isso se aceita que, no âmbito das relações de vizinhança, devem considerar-se ilícitos todos os actos que ofendam direitos de personalidade[5].

          O direito ao desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo é, no entanto, limitado pelos direitos ao desenvolvimento da personalidade dos demais indivíduos da comunidade jurídica, devendo os titulares desses direitos iguais ou da mesma espécie, em caso de concreta colisão, ceder na medida do necessário para que todos esses direitos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes[6].

          No caso presente é inquestionável que esse direito, o direito ao repouso, foi perturbado pelo funcionamento do café, mas os direitos de natureza económica, como o da livre iniciativa económica e da propriedade privada, têm também protecção constitucional (artigos 61º e 62º). Assim, quer o direito dos autores à saúde e ao repouso, quer o direito dos que exploram o estabelecimento de café têm consagração na lei fundamental e apresentam-se conflituantes entre si. Proposição que impõe o recurso ao instituto de colisão de direitos (artigo 335º do Código Civil).

          O apelo ao aludido instituto apenas se coloca se, existindo dois diferentes direitos pertencentes a titulares diversos, não se mostre possível o exercício simultâneo e integral de ambos, o que pressupõe, evidentemente, a efectiva existência, validade e eficácia de tais direitos conflituantes. Aquela norma prevê para a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, a cedência recíproca  na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior perda para qualquer dos seus beneficiários.  Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior. Portanto, numa primeira abordagem, impõe-se uma tarefa de ponderação e harmonização no caso concreto, através do princípio da concordância prática” ou a “ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”, por forma a atribuir a cada um desses direitos a máxima eficácia possível. Sendo inviável essa harmonização, ocorre a prevalência do direito que seja tido como superior[7].

          A Constituição da República Portuguesa confere predomínio aos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos económicos, sociais e culturais, o que conduz a reputar de prevalecentes os direitos de personalidade e, em concreto, o direito ao repouso. Todavia, o direito hierarquicamente inferior deve ser respeitado até onde for possível e a sua limitação só pode verificar-se na medida em que o imponha a tutela do direito de personalidade. Mesmo assim, defende-se que, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo[8].

          Estão sob confronto um direito de natureza pessoal (o dos autores) e um direito de natureza patrimonial (o dos réus), mas não é, em abstracto, que encontraremos a solução desta antinomia de interesses. Será em concreto, na ponderação das especificidades da situação e na avaliação dos interesses em jogo, que buscaremos o modo de exercício dos direitos de autores e réus. No caso, é possível graduar a coexistência dos dois direitos, num sacrifício recíproco e num juízo de proporcionalidade e razoabilidade que faculte a menor lesão possível dos direitos conflituantes.

            À luz das considerações tecidas, debrucemo-nos, de novo, sobre o quadro fáctico apurado. O estabelecimento de café esteve equipado com aparelhos de ar condicionado, cortina eléctrica, colocada na porta de entrada, aparelhos de frio, tais como arcas frigoríficas, exaustores de grande potência, vitrinas, máquina de café, máquinas de flippers, mesas e cadeiras, rádio, porta de casa de banho tipo vaivém e agora apenas tem um aparelho de ar condicionado, arcas frigoríficas, um exaustor, vitrinas, máquina de café, mesas e cadeiras, rádio e porta da casa de banho de uma só folha (n.ºs 16, 33 e 35 dos factos provados).  Houve uma redução nos equipamentos existentes no estabelecimento susceptíveis de produzir ruídos. Apesar disso, a laboração diária do estabelecimento produz barulhos, que se propagam ao interior do prédio dos autores, onde são audíveis, os quais provêm essencialmente do bater do manípulo da máquina de café e das máquinas flippers instaladas no estabelecimento, do arrastar das cadeiras, das vozes dos clientes, quando em elevado número, e do exaustor, quando ligado. O estabelecimento, com licenciamento administrativo, está aberto de segunda-feira a sábado, das 8 às 24 horas (n.ºs 17 a 18 e 20 a 23 dos fundamentos de facto). Dentro de critérios de normalidade, é aceitável que o apurado ruído, resultante do regular funcionamento do estabelecimento de café, perturbe o direito ao repouso dos vizinhos da casa de habitação que se situa por cima, situação agravada pelo facto desses vizinhos (os autores) serem reformados e passando a autora uma boa parte do dia em casa. É assim que aquele ruído causa incómodos e transtornos aos autores, com exacerbação quanto à demandante, que chega a ter de dormir em casa de pessoas amigas, como seja a sua irmã (n.sº 24 a 26 e 28 a 30 dos factos apurados). Esta intensificação dos incómodos relativamente à autora não deverá ser alheia ao estado depressivo de que padece. Compreendemos que a autora, em estado de depressão, tenha hipersensibilidade ao ruído e, como tal, seja por ele mais afectada do que o marido.

Julgamos que estes transtornos e incómodos lesam o bem-estar dos autores e o seu direito ao sossego e repouso, mas não lhe conferem direito ao encerramento do estabelecimento. Essa solução não é tolerada pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e é rejeitada pelos princípios ínsitos à colisão de direitos: primeiro prossegue-se a harmonização dos direitos conflituantes e só esgotada essa via se dá primazia ao direito prevalecente.

Existem materiais de isolamento e insonorização que facultam a conciliação dos dois direitos em conflito, permitindo eliminar ou, pelo menos, minimizar, para níveis razoáveis, os ruídos inerentes ao funcionamento do estabelecimento de café. Não podemos escamotear que vivemos numa sociedade ruidosa, em que todos os equipamentos de uso diário, mesmo doméstico, geram barulhos e trepidações e, nem por isso, deixamos de a eles recorrer. Tanto assim é que os próprios autores detêm na sua varanda uma bomba de calor que, a um metro de distância, causa um nível sonoro de 53,1 dB(A) e, apesar do ruído que emite, não prescindem de ar condicionado (n.º 36 dos factos provados).  Tudo a significar que os autores têm de cultivar um aceitável nível de tolerabilidade aos ruídos por si gerados, aos ruídos envolventes e, consequentemente, também aos ruídos provenientes do estabelecimento de café dos vizinhos, desde que sejam reduzidos a mínimos aceitáveis. Dum ou doutro modo, incumbe ao infractor do direito a um ambiente sadio a mobilização dos meios técnicos existentes em ordem à insonorização e isolamento acústico do estabelecimento, como mecanismo indispensável a poder continuar a exercer o seu direito à iniciativa privada e ao desenvolvimento da actividade económica. Não assim quanto à exaustão dos cheiros da comida, já que não resultou provado que os mesmos invadissem o prédio dos autores, nem quanto à substituição das portas da casa de banho e das cadeiras e eliminação do bater do manípulo do café. Aquelas, porque foi removida uma das portas de batente, com a consequente eliminação do ruído que produzia no balanço, e estes, porque constituem peças indispensáveis num estabelecimento desta natureza. Para além disso, normalmente, as cadeiras são arrastadas pelos clientes, conduta que os demandados nunca poderão evitar (n.ºs 18 e 19 dos fundamentos de facto), e o bater do manípulo de café, tendo em conta a actual tecnologia, é um gesto imprescindível no uso das máquinas de café em estabelecimentos deste jaez. Impedir os demandados do uso de cadeiras e de máquina de café industrial conduziria à extinção daquela actividade comercial. Sem embargo destas considerações, estamos certos que uma adequada insonorização esbaterá todos esses ruídos inerentes à actividade comercial  do café.

          A sentença impugnada declinou a pretensão dos autores por considerar que os ruídos produzidos são inferiores ao valor máximo de nível sonoro estabelecido no regulamento geral sobre o ruído, aprovado pelo Decreto-Lei 292/00, de 14 de Novembro. Também os apelados advogam essa tese, mas sem razão. A consagração legal de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento, nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo. E quem desrespeite esse limite legal incorre em ilícito de mera ordenação social. Porém, o direito de oposição à emissão de ruídos subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior ao limite máximo legal, sempre que haja ofensa de qualquer direito de personalidade de um terceiro[9]. O mesmo é dizer que a ilicitude dispensa a aferição do nível de ruído pelos padrões legais, vector que interessa somente para o direito da comunidade ao ambiente e qualidade de vida.

          De igual modo, nos parece proporcionado e razoável o horário de funcionamento do estabelecimento comercial, que liberta os autores durante o período nocturno, entre as 0:00 e as 8:00 horas, traduzindo um número de horas susceptível de garantir a pessoas reformadas (ignoramos a sua idade, mas, por regra, desde logo pela ausência de fadiga, dormem menos horas por noite).

Não ignoramos que no âmbito dos direitos de personalidade, não atendemos aos parâmetros de um homem médio ou cidadão normal e comum. Como direitos eminentemente pessoais, inerentes a cada pessoa per se, tais direitos devem ser entendidos como corporizados numa pessoa individualizada, ao lesado com a sua individualidade própria, com a sua sensibilidade[10]. Mesmo respeitando a sensibilidade dos autores, o critério judicial de conformação do quadro factual não pode deixar de apelar a conceitos de normalidade, razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de bastar a prova de qualquer ruído para conduzir à procedência de toda e qualquer oposição à sua emissão.

De todo o exposto, concluímos que os ruídos produzidos no café X... violam o direito dos autores ao sossego e a sua defesa determina, tal como vem peticionado pelos autores, em via subsidiária, a implementação de obras necessárias ao isolamento acústico e vibrátil do estabelecimento.

2. Verificado o facto voluntário e ilícito do agente, prescindido de culpa, como acentuámos, indaguemos os danos que, em termos de causalidade adequada, dele derivaram para os autores e fixemos o seu quantum indemnizatório.

       Ao nível dos danos patrimoniais, pedem os demandantes o valor dos danos emergentes consubstanciados em consultas e medicamentos despendidos. Perguntava-se: “Durante os anos de 2005 e 2006, em resultado dos incómodos provocados pelo estabelecimento referido em 1, os autores despenderam a quantia de 289,92 euros, em consultas e medicamentos?” (item 33º). Item que obteve resposta restritiva: “Provado que durante os anos de 2005 e 2006, os autores despenderam a quantia de 289,92 euros em consultas e medicamentos.” Consequentemente, não resultou provado o nexo causal, naturalístico, entre esse dispêndio e os incómodos e transtornos gerados pelos ruídos provenientes do estabelecimento nem que tais danos possam ainda sobrevir. Impendendo sobre os autores o ónus da prova dos factos constitutivos do direito indemnizatório a que se arrogam (artigo 342º, 1, do Código Civil), sobre eles recaem as desvantagens da ausência de prova desse facto, conduzindo ao insucesso esse pedido e a pretendida ulterior liquidação.

            Os danos de índole não patrimonial movem-se num “campo onde quase todas as discricionariedades são relevadas, onde todas as incoerências são dificilmente sindicáveis e onde os voluntarismos discursivos têm terreno fértil para medrar …”[11]. Danos cuja ressarcibilidade depende da assunção de gravidade suficiente para justificar a intervenção reparadora do direito (artigo 496º, 1, do Código Civil). A gravidade do dano é um conceito relativamente indeterminado, que carece de preenchimento valorativo em função do quadro factual apurado. Avaliação que deve ter em conta as circunstâncias de cada caso, mas em que a gravidade deve medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado[12].

            O ressarcimento dos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, e às demais circunstâncias do caso (entre as quais se contam, seguramente, a natureza e gravidade do dano sofrido e os sofrimentos, físicos e psíquicos dele decorrentes), devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida[13]. Indemnização que não visa, ainda assim, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, buscando um justo grau de compensação.

Está demonstrado que os autores sofreram transtornos e incómodos, em maior grau a autora mulher, que chegou a dormir em casa de uma irmã. Contrapõem os apelados que estes danos não têm gravidade que justifique o seu ressarcimento, no que dissentimos. A casa de habitação é para qualquer cidadão um local de repouso, tranquilidade e de lazer, qualidades que não são fruídas na sua plenitude se ruídos exteriores perturbam essa ambiência. Atendendo ao circunstancialismo apurado, designadamente o período temporal a que foram sujeitos a tal incómodo (em 2003 já os autores reclamavam dos ruídos), julgamos equitativas e compensadoras as indemnizações de 7.500,00 euros pelos transtornos padecidos pelo autor e de 12.500,00 euros pelos transtornos sofridos pela autora e, quanto a ela, no que ulteriormente se apurar.

 Aqui chegados, resta averiguar se impende sobre os réus a correspondente obrigação de indemnizar.

3. O estabelecimento comercial gerador de danos para os autores é explorado por uma sociedade comercial denominada “Café a X..., Unipessoal, Lda.” A quota dessa sociedade adveio à titularidade do réu C...por escritura de cessão de quota e alteração parcial do pacto social, lavrada em 9 de Outubro de 2001,  o qual exerce a sua gerência (n.ºs 9 e  32dos factos assentes).

            “Prima facie”, não tendo os réus praticado estes actos geradores da obrigação de indemnizar, não lhes pode ser assacada a correspondente responsabilidade. Os actos ilícitos foram cometidos pela sociedade comercial que detém a exploração do estabelecimento de café.  

            O reconhecimento jurídico da personalidade da pessoa colectiva determina a que as normas jurídicas que visem o seu património e a sua actuação lhe sejam imputadas. É o património da pessoa colectiva que responde pelas respectivas dívidas e os ilícitos cometidos pelos seus órgãos são ilícitos próprios. De outro modo, a pessoa colectiva não seria um sujeito de direito, diferente dos seus suportes humanos[14].

            É a sociedade que responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários (artigo 6º, 5, do Código das Sociedades Comerciais). A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um único sócio, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social (artigo 270º-A do Código das Sociedades Comerciais) e, tal como nas demais sociedades por quotas,  as dívidas contraídas pela sociedade são garantidas apenas pelo património social, a ela sendo imputada a actividade que desenvolve, maxime as consequências dos actos ilícitos praticados pelos seus órgãos (artigo 197º, 3, e 270º-G do Código das Sociedades Comerciais).

            Aduções que determinam a rematar que só a sociedade poderá ser responsabilizada pelos danos por ela causados aos autores, o que logo se deduz do princípio geral da independência da esfera jurídica das sociedades comerciais face aos sócios.

            O Código das Sociedades Comerciais inclui normas de responsabilização dos administradores das sociedades comerciais para com os credores sociais e para com os sócios e terceiros (artigos 78º e 79º). Permitimo-nos, desde já, adiantar que elas não têm aplicação ao caso sub judice.

          A primeira das citadas normas estatui que os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (n.º1). Trata-se de uma responsabilidade de natureza extra-contratual, decorrente da prática, pelos administradores/gerentes, de facto ilícito, por acção ou omissão, traduzido na violação de deveres de normas de protecção destinadas a proteger credores sociais desde que o facto tenha implicado a insuficiência do património social para a satisfação dos seus créditos. O mesmo é dizer que a responsabilidade dos gerentes/administradores decorre da inobservância culposa de disposições legais ou estatutárias destinadas à protecção dos credores, quando essa violação cause insuficiência patrimonial. Partindo do pressuposto que os gerentes/administradores devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, recaindo sobre eles um dever geral de diligência (artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais), o seu acto ilícito tem de afectar, o património social e torná-lo insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade. Não está em causa qualquer actuação do réu C...que tenha determinado a insuficiência do património social para a satisfação dos créditos sociais e, por isso, a norma não cobre o quadro descrito.

            A segunda das preditas normas preceitua que os gerentes, administradores ou directores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções (n.º 1). Trata-se de uma responsabilidade aquiliana, uma imputação delitual comum, que obriga o lesado a fazer prova de todos os seus pressupostos, a saber o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. E neste âmbito, a responsabilidade por facto de terceiro exige a comissão (artigo 500º do Código Civil)[15]. A alegação dos autores não perspectivou este enquadramento da responsabilidade do gerente da sociedade “Café X...” pelos danos que directamente lhes foram por ele causados, “em termos que não são interferidos pela presença da sociedade”, de modo a ajuizar que tudo se passou em tais moldes que “a representação da sociedade, mesmo a ser invocada, se mostre irrelevante”[16]. Ora, por regra, o administrador/gerente da sociedade prossegue o interesse da sociedade, mas qualquer conduta que, nesse âmbito, seja por si assumida é feita em “modo colectivo, ou seja, através da particular técnica da personalidade da pessoa colectiva”[17]. Os apelantes invocaram e comprovaram ocorrências danosas, congénitas à actuação da pessoa colectiva e que, sem outro enfoque, não podem ser imputadas ao réu marido, como pessoa singularmente considerada, e ainda menos a sua mulher, que nada tem a ver com o escopo social.

            Donde insistirem os réus, logo na contestação e agora também nas alegações, na impossibilidade de lhes ser assacada qualquer responsabilidade individual. Deploravelmente, não obstante os réus terem excepcionado a sua ilegitimidade (não se tratando, no entanto, de pressuposto processual mas de questão ligada ao mérito da causa, tal como foi decidido no despacho saneador), não requereram os autores a intervenção principal provocada da sociedade, incidente que acabaram por deduzir extemporaneamente, assim determinando à sua inadmissibilidade.  

            A referência feita pelos apelados de que o réu C...não é já titular da quota na sociedade que explora o café nem o seu gerente, facto ocorrido na pendência da causa e documentalmente comprovado nos autos, é irrelevante para o desfecho da acção e para a execução da decisão. No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou do direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo. E ainda que este não intervenha no processo, a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ressalvado o caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção (artigo 271º, 3, do Código de Processo Civil).

            Do explanado resulta que é inviável imputar aos réus a definida obrigação de indemnizar, o que conduz a acção ao total inêxito, não obstante a diversidade da fundamentação apresentada.

            Decaindo na apelação, suportam os autores as custas (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).


*

            V. Decisão

            Perante o narrado, acordam os Juízes do Tribunal  da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente e, por diversos fundamentos, confirmar a decisão plasmada na sentença recorrida.


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, III, 2ª ed., págs. 178 e 179.
[2] Capelo de Sousa, “O Direito Geral de Personalidade”, 1995, pág. 104.
[3] Heinrich Ewald Höster, “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 258.
[4] Gomes Canotilho e Vital Moreira,  “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, I, 2007, pág. 845.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, I, 4ª ed., pág. 104.
[6] Capelo de Sousa, ibidem, pág. 358.
[7] Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 3ª ed., pág. 1195.
[8] Capelo de Sousa, “A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição”, II, 1978, pág. 547.
[9] Acs. STJ 2-07-2009, in CJ online, ref. 3911/2009; 6-05-98, in online, ref. 9427/1998; R. L. de 7-02-08, de 15-01-08, in www.dgsi.pt, ref. 9061/2007-8, 10787/2006-1, respectivamente; R.C. de 19-02-04, in CJ online, ref. 8343/2004; R. C. de 16-05-00, in CJ online, ref. 3707/2000; R.P. de 27-04-95, in CJ online, ref. 336/1995

[10] Ac. R. P. de 27-04-95, in BMJ, 446, pág.351; R. C. de 16-05-00, in CJ online, ref. 3707/2000.

[11] João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Danos Ressarcitórios”, 2001, pág. 348.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”; Anotado, I, 4ª ed., pág. 499.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 501.
[14] António Menezes Cordeiro, “Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais”, 1997, pág. 321.
[15] Menezes Cordeiro, ibidem, págs. 487 e 496.
[16] Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 496.
[17] Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 522.