Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1254/19.4T8ANS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
FIM
OBJECTO
CAPACIDADE
CRÉDITO BANCÁRIO
INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO
CESSÃO DE CRÉDITO
CRÉDITO CAMBIÁRIO
DATA DE VENCIMENTO
PRESCRIÇÃO
PACTO DE PREENCHIMENTO
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 6.º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
ARTIGOS 300.º, 577.º, 777.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 8.º, 78.º, 79.º DO DECRETO-LEI N.º 298/92, DE 31/12
ARTIGOS 5.º), N.º 1, ALÍNEA B), 6.º DO REGULAMENTO(UE) N.º 679/2016, DE 27/4
ARTIGOS 5.º), N.º 1, ALÍNEA B), 6.º DA LEI N.º 67/98, DE 27/10
ARTIGOS 70.º, 77.º DA LEI UNIFORME DAS LETRAS E LIVRANÇAS
Sumário: I – O fim de uma sociedade comercial (o lucro) não se confunde com o seu objecto social, sendo por aquele e não por este que se mede a capacidade das sociedades.

II) São válidos os negócios celebrados por uma sociedade comercial e que são necessários ou convenientes à obtenção de um lucro, mesmo que sejam alheios ao seu objecto social.

III) Nem só as instituições de crédito podem adquirir e ser titulares de um crédito emergente de crédito bancário.

IV) Como decorrência do referido em I) a III), nada obsta a que um crédito bancário, já vencido e em situação de incumprimento, seja cedido a uma sociedade que não seja instituição de crédito.

V) A necessidade de transmissão de dados pessoais que estão protegidos pelos regimes jurídicos da protecção de dados pessoais e do sigilo bancário não determina a inadmissibilidade ou nulidade da cessão do crédito bancário, ainda que ela seja efectuada sem o consentimento do titular desses dados.

VI – O prazo de prescrição das acções cambiárias conta-se a partir da data de vencimento que está inscrita no título, a não ser que essa data tenha sido aí colocada em violação do pacto de preenchimento, caso em que a data de vencimento relevante será aquela que resulta desse pacto.

VII - Constando do pacto de preenchimento que a credora ficava autorizada a preencher a livrança quando tal se mostrasse necessário, segundo o seu próprio juízo, e que a data de vencimento seria por ela fixada quando, em caso de incumprimento pelo devedor, decidisse recorrer à realização coactiva do respectivo crédito, não há preenchimento abusivo da livrança pela credora que nela apôs uma data de vencimento situada cerca de sete anos depois do evento que poderia legitimar o preenchimento do título.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A…- Unipessoal, Lda, com sede em …, instaurou execução contra B… e C…, residentes na …. e contra D… e E…, residentes na …., pedindo o pagamento do valor global de 7.498.254,81€, com fundamento em quatro contratos de crédito celebrados entre a F…, S.A. e sociedade G…, Ld.ª – que foi, entretanto, declarada insolvente – e no âmbito dos quais e para garantia do pontual pagamento das quantias mutuadas foram constituídas hipotecas e penhores, foi prestada fiança (em relação a um deles) e foram subscritas livranças em branco que foram avalizadas pelos ora Executados. Mais alega que tais contratos foram incumpridos, o que determinou o preenchimento das livranças que, apresentadas a pagamento, não foram pagas. Alega ainda que os créditos emergentes desses contratos e livranças foram cedidos à “H…” por escritura pública celebrada em 04/10/2018 e, posteriormente (por escritura de 29/04/2019), foram cedidos à ora Exequente.

Os Executados E… e D… vieram deduzir embargos à execução, alegando, em resumo:

- Que o crédito exequendo foi reclamado em dois processos de execução onde se encontrava penhorado o mesmo imóvel, pelo que se verifica a excepção de litispendência, ao menos parcial;

- Que a cessão de créditos à Exequente é nula por incapacidade jurídica desta e nos termos dos arts. 280.º e 294.º do CC, uma vez que esta não possui os requisitos necessários para o exercício da actividade das instituições de crédito; não possui o tipo social necessário (sociedade anónima), nem o objecto social, nem o capital mínimo necessário e não há qualquer escrutínio da qualquer entidade pública (v.g. Banco de Portugal, ou CMVM) sobre a sua organização interna e sobre os titulares dos seus órgãos sociais e ninguém sabe como é tratada a nevrálgica informação de que dispõe;

- Que o preenchimento das livranças corresponde a um acto nulo ou com abuso de direito, tendo em conta que o crédito em causa foi reclamado nos autos de insolvência da sociedade G…, Ld.ª, onde foi reconhecido pelo valor de 3.735 098,17€ (cerca de metade do valor que agora se reclama dos garantes) e tendo em conta que o preenchimento das livranças, por aquele montante, decorridos quase 7 anos sobre a declaração de insolvência do devedor principal e no mesmo dia em que a Instituição de Crédito “F…” cede a uma entidade terceira, que não é Instituição de Crédito, aquele seu crédito constitui, para além do mais e sempre, um evidente abuso de direito.

A Exequente contestou, dizendo, em resumo, que não se verifica a excepção de litispendência; que é a legítima titular do crédito exequendo, por força da cessão de créditos que lhe foi efectuada e da qual os Executados foram notificados sem que, nesse momento, tivessem manifestado qualquer oposição; que as livranças foram preenchidas em conformidade e ao abrigo do pacto de preenchimento e que não existe qualquer abuso de direito.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção de litispendência.

Foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu nos seguintes termos:

Com os fundamentos de facto e os de direitos enunciados, julgo totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos de executado e, em consequência, determino o prosseguimento da execução nos seguintes termos:

livrança n.º 500467943000712760

4.310.075,73 euros

selagem de 21.550,38 euros.

Juros vencidos desde a data de vencimento da livrança até 19 de novembro de 2019 no montante de 193.658,20 euros;

juros vincendos desde 20 de novembro de 2019 até integral pagamento, à taxa de 4%/ano.

livrança n.º 500467943021838623

1.420.108,42 euros;

selagem de 7.100,54 euros;

juros vencidos desde a data de vencimento da livrança até 19 de novembro de 2019 no montante de 63.807,61;

juros vincendos desde 20 de novembro de 2019 até integral pagamento, à taxa de 4%/ano;

livrança n.º 500227114034517693

803.470,48 euros;

selagem de 4.017,35 euros;

juros vencidos desde a data de vencimento da livrança até 19 de novembro de 2019 no montante de 36.101,14 euros;

juros vincendos desde 20 de novembro de 2019 até integral pagamento, à taxa de 4%/ano;

contrato referido em xlv):

capital de 290.727,76 euros,

juros até 19 de novembro de 2019 de 336.139,39 euros;

comissões de 87,00 euros” (negrito e sublinhados nossos).

Inconformados com essa decisão, os Embargantes, E… e D…, vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questões a apreciar:

As questões suscitadas no recurso – delimitadas pelas conclusões das alegações dos Apelantes – são as seguintes:

1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

2. Nulidade da cessão de créditos a favor da Exequente por força das seguintes circunstâncias:

i) por incapacidade da Exequente (tendo em conta o seu objecto social);

ii) por força da natureza dos créditos cedidos, tendo em conta o regime a que está submetida a actividade das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras;

iii)  por força da violação do segredo bancário e da lei de protecção de dados que está envolvida na cessão de créditos;

3. Prescrição das obrigações cambiárias e preenchimento abusivo das livranças;

4. Prescrição dos juros vencidos há mais de cinco anos.


/////

III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto (a que acrescem os factos que ora se aditam por resultarem dos contratos juntos aos autos e que ficam a constar a negrito):

i. Por escritura pública celebrada em 4 de Outubro de 2018 a “F…, S.A.” vendeu à “H…”, os créditos vencidos de que era titular e que constam do Documento Complementar anexo à escritura junta a fls. 6 v.º a 17 dos autos de execução e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

ii. A cessão importou a transmissão para a H… de todos os acessórios dos créditos, incluindo, juros vincendos e juros vencidos devidos e não pagos, remuneratórios e moratórios, comissões e quaisquer outros montantes devidos pelos devedores à F… nos termos dos respectivos contratos e ainda das garantias respeitantes aos contratos.

iii. A sociedade H… consta da lista de entidades classificadas por tipo de actividade publicada pelo Central Bank of Ireland, no grupo de Financial Vehicle Corporation (FVCs).

iv. Por escritura pública celebrada em 29 de Abril de 2019 a “H…” vendeu à Exequente créditos vencidos de que era titular e que constam do Documento Complementar anexo à escritura e declararam pretender estabelecer uma parceria que permita a ambas atingirem os seus objectivos: a H… pretende obter o pagamento do preço dos créditos ora cedidos e a Exequente pretende vir a adquirir os imóveis id. no documento complementar; a H… aceita receber o preço que lhe é devido pela cessão de créditos apenas no momento em que a Exequente seja ela própria paga pelos créditos ora cedidos, seja por que forma ou via, nomeadamente, mas sem exclusão de outras, por via de celebração com terceiras partes de escrituras de compra e venda dos imóveis identificados, tudo cfr. documento junto a fls. 17 v.º a 26 v.º dos autos de execução e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais

v. A cessão importou a transmissão para a Exequente de todos os acessórios dos créditos, incluindo, juros vincendos e juros vencidos devidos e não pagos, remuneratórios e moratórios, comissões e quaisquer outros montantes devidos pelos devedores à F… nos termos dos respectivos contratos e ainda das garantias respeitantes aos contratos.

vi. Nos créditos cedidos estão incluídas as operações identificadas como PT … (fls. 20 v.º), PT … (fls. 22), PT … (fls. 23) e PT … (fls. 23) com o devedor G…, LDA..

vii. A cessão de créditos foi notificada aos Embargantes e nesse acto foram ainda informados que os seus dados pessoais que se encontram na base de dados da H… foram também comunicados à Exequente e que assume a qualidade de responsável pelo tratamento desses dados, mantendo-se as finalidades do tratamento, as categorias de dados, os fundamentos da legitimidade e os prazos de conservação comunicados oportunamente pela H…; mais informou que os Embargantes poderão exercer os direitos de acesso, rectificação, oposição, apagamento, portabilidade, limitação do tratamento e quaisquer outros direitos que sejam reconhecidos na lei, dirigindo-se, em tal caso, para os contactos indicados nesse documento ou apresentar reclamações em www.cnpd.pt e que para informações adicionais poderá consultar a politica de privacidade da Hipoges na íntegra no documento anexo, tudo cfr. documentos juntos a estes autos a fls. 122 a 129 v.º que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

viii. A sociedade Exequente tem por objecto social a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, recuperação, remodelação e manutenção de imóveis, arrendamento, promoção e gestão imobiliária, consultoria com os negócios imobiliários, projectos e avaliação imobiliária e construção civil e o capital social de 5 mil euros.

ix. A sociedade Exequente não se encontra inscrita no registo especial de instituições do Banco de Portugal e não se encontra registada junto da CMVM nem autorizada a desenvolver qualquer atividade de intermediação financeira em instrumentos financeiros em Portugal.

x. A sociedade “G…, LDA.” foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 2082/11.0TBPBL que corre termos no Juiz 3 do Juízo de Comércio de Leiria do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria no dia 04 de Fevereiro de 2012.

Contrato de crédito PT …

xi. No âmbito da sua actividade creditícia, a F…, S.A. celebrou em 22 de Novembro de 2001 com a sociedade G…, S.A., um contrato denominado Abertura de Crédito em Conta Corrente, identificado como operação PT …, que se mostra junto aos autos de execução a fls. 27 a 35 v.º (contrato e respectivo documento complementar) e aqui se dá por integralmente reproduzido.

xii. Nos termos das condições particulares do contrato, a F… concedeu-lhe um empréstimo até ao montante de 1.995.191,59 (um milhão novecentos e noventa e cinco mil e cento e noventa e um euros e cinquenta e nove cêntimos), do qual se confessou devedora ao banco mutuante.

xiii. Ficou acordado que o empréstimo concedido venceria juros à taxa contratual, sendo a mesma acrescida de 4 pontos percentuais, em caso de mora, a título de cláusula penal (atualmente 3%).

xiv. Para garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respetivos juros e demais encargos resultantes do contrato celebrado, foram constituídas as seguintes garantias:

1. Livrança em branco subscrita pela sociedade mutuária, sendo concedida ao Banco Mutuante a sua autorização expressa para preencher a mesma no que se refere às datas de emissão e de vencimento, local de pagamento e valor, o qual corresponderá aos créditos que o Banco seja titular por força do contrato em causa, sendo a mesma avalizada pelos ora Executados B…, C… , D… e E… , ali se referindo expressamente que a sociedade e os avalistas “…autorizam a F… a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria F… , tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: (…) a data de vencimento será fixada pela F… quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a F… decida recorrer à realização coactiva do respectivo crédito….

2. Hipoteca constituída sobre o prédio urbano na freguesia e concelho do …,  descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º 1116, e inscrito na matriz sob o artigo 3362, sobre o qual veio a ser constituída propriedade horizontal.

xv. O referido contrato foi objecto de um Contrato de Transformação em Regime de Conta corrente em Médio Prazo, conforme documento que se mostra junto a estes autos a fls. 36 a 39 v.º e aqui se dá por integralmente reproduzido.

xvi. O referido contrato veio a ser incumprido em 03 de Abril de 2011.

xvii. Em 04 de Outubro de 2018 encontrava-se em divida o capital de 1.995.191,59 acrescido de juros vencidos desde o incumprimento (03 de Abril de 2011) até 04 de Outubro de 2018 (inclusive) de 2.314.884,14 euros, pelo que o valor total em divida, nessa data (04 de Outubro de 2018) era de 4.310.075,73 euros.

xviii. A livrança foi preenchida pelo montante de 4.314.758,82 euros (quatro milhões trezentos e catorze mil e setecentos e cinquenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos), com vencimento a 04/10/2018.

xix. O imposto de selo sobre a livrança correspondente ao valor referido em xvii) é de 21.550,38 euros.

xx. Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga nessa data, nem posteriormente.

xxi. Em 19.11.2019 o montante em divida ascende ao capital de 4.310.075,73 euros e juros de 193.868,62 euros, ao que acrescem juros de mora diários, contabilizados até total pagamento bem como despesas de cobrança.

Contrato de crédito PT …

xxii. No âmbito da sua actividade creditícia, a F…, S.A. celebrou em 22 de Abril de 2003 com a sociedade G…, S.A., um contrato denominado Abertura de Crédito em Conta Corrente, identificado como operação PT …., conforme documento junto aos autos de execução a fls. 41 a 49 e cujo teor se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

xxiii. Nos termos das condições particulares do contrato, a sociedade mutuária, reconheceu ter-lhe sido concedido pelo banco mutuante, um empréstimo até ao montante de 650.000,00 euros, do qual se confessou devedora ao banco mutuante.

xxiv. Nos termos das condições particulares o contrato foi celebrado pelo prazo de vigência de dois anos.

xxv. A sociedade mutuária, encontrava-se obrigada a reembolsar o capital utilizado até ao término do contrato celebrado de acordo com a Cláusula Três do Documento Complementar anexo ao Contrato.

xxvi. Ficou ainda determinado que o empréstimo concedido venceria juros à taxa contratual e restantes condições enumeradas na Cláusula Cinco do referido contrato, sendo a mesma acrescida de 4 pontos percentuais, em caso de mora, a título de cláusula penal (atualmente 3%).

xxvii. Em caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos resultantes do contrato celebrado foram constituídas as seguintes garantias:

1. Livrança em branco subscrita pela sociedade mutuária, sendo concedida ao Banco Mutuante a sua autorização expressa para preencher a mesma no que se refere às datas de emissão e de vencimento, local de pagamento e valor, o qual corresponderá aos créditos que o Banco seja titular por força do contrato em causa, sendo a mesma avalizada pelos ora Executados B…,  C…,  D… e  E… ali se referindo expressamente que a sociedade e os avalistas “…autorizam desde já a F… a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria F… , tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: (…) a data de vencimento será fixada pela F… quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a F… decida recorrer à realização coactiva do respectivo crédito….

2. Hipoteca constituída pela sociedade mutuária a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre o prédio urbano na freguesia e concelho do .., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º 1116, e inscrito na matriz sob o artigo 3362, sobre o qual veio a ser constituída propriedade horizontal.

xxviii. O contrato veio a ser incumprido em 04 de Fevereiro de 2011.

xxix. Em 04 de Outubro de 2018 encontrava-se em divida o capital de 650.000,00 acrescido de juros vencidos desde o incumprimento (04 de Fevereiro de 2011) até 04 de Outubro de 2018 (inclusive) de 770.108,42 euros, pelo que o valor total em divida, nessa data (04 de Outubro de 2018) era de 1.420.108,42 euros.

xxx. A livrança foi preenchida pelo montante de 1.421.714,23 euros (um milhão, quatrocentos e vinte e um mil setecentos e catorze euros e vinte e três cêntimos), com vencimento a 04/10/2018.

xxxi. O imposto de selo sobre a livrança correspondente ao valor referido em xxix) é de 7.100,54 euros.

xxxii. Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga nessa data, nem posteriormente.

xxxiii. Em 19.11.2019 o montante em divida ascende ao capital de 1420.108,23 euros e juros de 63.807,61 euros, ao que acrescem juros de mora diários, contabilizados até total pagamento bem como despesas de cobrança.

Contrato de crédito PT …

xxxiv. No âmbito da sua actividade creditícia, a F…, S.A. celebrou em 20 de Julho de 2005 com a sociedade G…, S.A., um contrato denominado Abertura de Crédito em Conta Corrente, identificado como operação PT …, conforme documento que junto aos autos de execução a fls. 51 a 61 v.º e cujo teor se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

xxxv. Nos termos das condições particulares do contrato, a sociedade mutuária, reconheceu ter-lhe sido concedido pelo banco mutuante, um empréstimo até ao montante de 375.000,00 euros do qual se confessou devedora ao banco mutuante.

xxxvi. Nos termos das condições particulares o contrato foi celebrado pelo prazo de 18 meses.

xxxvii. A sociedade mutuária, encontrava-se obrigada a reembolsar o capital utilizado até ao término do contrato celebrado de acordo com a Cláusula Três do Documento Complementar anexo ao Contrato.

xxxviii. Ficou ainda determinado que o empréstimo concedido venceria juros à taxa contratual e restantes condições enumeradas na Cláusula Cinco do referido contrato, sendo a mesma acrescida de 4 pontos percentuais, em caso de mora, a título de cláusula penal (atualmente 3%).

xxxix. Em caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos resultantes do contrato celebrado, e já junto como doc. 10, foram constituídas as seguintes garantias:

1. Livrança em branco subscrita pela sociedade mutuária, sendo concedida ao Banco Mutuante a sua autorização expressa para preencher a mesma no que se refere às datas de emissão e de vencimento, local de pagamento e valor, o qual corresponderá aos créditos que o Banco seja titular por força do contrato em causa, sendo a mesma avalizada pelos ora Executados B…,  C…,  D… e  E… ali se referindo expressamente que a sociedade e os avalistas “…autorizam desde já a F… a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria F…, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: (…) a data de vencimento será fixada pela F… quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a F… decida recorrer à realização coactiva do respectivo crédito…;

2. Hipoteca constituída pela sociedade mutuária a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre o prédio urbano na freguesia e concelho do …, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º 1116, e inscrito na matriz sob o artigo 3362, sobre o qual veio a ser constituída propriedade horizontal;

3. Hipoteca constituída pelos Executados E… e D… a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre a fracção autónoma designada pela letra “E”, do prédio urbano sito na freguesia de …. e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 2344 e inscrito na matriz sob o artigo 4864, constituída para garantia de capital até ao montante de € 100.000,00;

4. Hipoteca constituída pela Executada C… a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, do prédio urbano sito na freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de  … sob o n.º 1186 e inscrito na matriz sob o artigo 7463, constituída para garantia de capital até ao montante de 100.000,00 euros;

5. Penhor constituído pelos Executados B… e C… , sobre as aplicações financeiras melhor descritas na cláusula seis, ponto II, alínea A);

xl. O contrato foi objecto de um Contrato de Transformação em Regime de Conta corrente em Médio Prazo, cfr. documento junto aos autos de execução a fls. 62 a 65 v.º e cujo teor se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

xli. Sucede que o referido contrato veio a ser incumprido em 20 de Abril de 2011.

xlii. A livrança foi preenchida a livrança pelo montante de 803.470,48 euros, com vencimento a 04 de Outubro de 2018.

xliii. Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga nessa data, nem posteriormente.

xliv. Em 19.11.2019 o montante em divida ascende ao capital de 803.470,48 euros, juros de 36.101,14 euros (contabilizados desde o vencimento da livrança), imposto do selo s/ livrança de 4.017,35 euros, ao que acrescem juros de mora diários, contabilizados até total pagamento bem como despesas de cobrança.

Contrato de crédito PT …

xlv. No âmbito da sua actividade creditícia, a F…, S.A. celebrou em 25 de Março de 2010 com a sociedade G…, S.A., um contrato denominado Mútuo com Hipoteca e Fiança, identificado como operação PT …, conforme documento junta aos autos a fls. 67 a 76 e cujo teor se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

xlvi. Nos termos das condições particulares do contrato, a sociedade mutuária, reconheceu ter-lhe sido concedido pelo banco mutuante, um empréstimo no montante de 290.727.76 euros do qual se confessou devedora ao banco mutuante.

xlvii. O contrato foi celebrado pelo prazo de vigência estabelecido na cláusula 2ª do documento complementar.

xlviii. A sociedade mutuária, encontrava-se obrigada a reembolsar o empréstimo concedido em prestações semestrais, de capital e juros, sucessivas e iguais, vencendo-se a primeira no semestre seguinte ao do final do prazo de diferimento, no dia correspondente ao da celebração do presente contrato e as restantes em igual dia dos semestres seguintes de acordo com a Cláusula Seis do Documento Complementar.

xlix. Ficou ainda determinado que o empréstimo concedido venceria juros à taxa contratual e restantes condições enumeradas na Cláusula Quarta e Quinta do referido contrato, sendo a mesma acrescida de 4 pontos percentuais, em caso de mora, a título de cláusula penal (atualmente 3%).

l. Em caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e demais encargos resultantes do contrato celebrado foram constituídas as seguintes garantias:

1. Fiança constituída pelos Executados para garantia do presente contrato;

2. Hipoteca constituída pelos Executados E… e D… a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre a fracção autónoma designada pela letra “E”, do prédio urbano sito na freguesia de … e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 2344 e inscrito na matriz sob o artigo 4864, constituída para garantia de capital até ao montante de € 115.000,00;

3. Hipoteca constituída pela Executada C… a favor do banco mutuante entretanto transmitida para a ora Exequente face à cessão de créditos celebrada, sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, do prédio urbano sito na freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 1186 e inscrito na matriz sob o artigo 7463, constituída para garantia de capital até ao montante de 115.000,00 euros.

li. O contrato deixou de ser cumprido em 25 de Setembro de 2010.

lii. Em 19 de Novembro de 2019, estava em divida 626.954,15 euros através da soma das seguintes parcelas: Capital: 290.727,76 euros; juros de 336.139,39 euros, comissões de 87,00 euros.

Julgou-se não provado:

Que tenham ocorrido pagamentos, nomeadamente, no processo de insolvência da mutuária ou nas ações executivas 419/10.9TBPBL e n.º 672/10.8TBPBL.


/////

IV.

1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

(…)

2. Nulidade da Cessão de créditos a favor da Exequente

Em desacordo com a sentença recorrida (que julgou improcedente essa nulidade), sustentam os Apelantes – reafirmando a sua pretensão inicial – que a cessão de créditos a favor da Exequente é nula nos termos dos arts. 280.º e 294.º do CC.

E, na sua perspectiva, tal negócio é nulo porque:

i) A Exequente não tinha capacidade jurídica que lhe permitisse ser cessionária daqueles créditos, tendo em conta o princípio da especialidade do fim das pessoas colectivas (art.s 160.º n.º 1 do CC e 6. CSC) e tendo em conta que não cumpria as exigências apertadas do RGICSF, por não possuir nem o tipo social necessário (sociedade anónima), nem o objecto social, nem o capital mínimo necessário, não havendo qualquer escrutínio de qualquer entidade pública (v.g. Banco de Portugal, ou CMVM) sobre a sua organização interna e sobre os titulares dos seus órgãos sociais.

ii) O negócio em questão implicou por parte da F…(cedente inicial) a transmissão ilegítima de dados pessoais e consequente violação da Lei de Protecção de Dados Pessoais, com violação do sigilo profissional a que estava submetida sem que a situação possa ser enquadrada nas excepções previstas no art. 79.º do RGICSF.

Analisemos então a questão.

Conforme resulta da matéria de facto, o crédito em causa nos autos estava na titularidade da F…, S.A. e emergia de contratos de crédito (créditos em conta corrente e mútuo) que havia celebrado com a sociedade G…, S.A. e que estavam em situação de incumprimento desde 04/02/2011, 03/04/2011, 20/04/2011 e 25/09/2010.

Conforme também resulta da matéria de facto, por escritura pública celebrada em 04/10/2018, a “F…, S.A.” vendeu esses créditos à “H…” e esta, por sua vez, cedeu-os à Exequente por escritura pública de 29/04/2019.

E é esta venda/cessão de créditos que os Embargantes entendem ser nula por força, designadamente, da incapacidade jurídica da Exequente para o efeito, tendo em conta o seu objecto social que está definido no ponto viii. da matéria de facto (compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, recuperação, remodelação e manutenção de imóveis, arrendamento, promoção e gestão imobiliária, consultoria com os negócios imobiliários, projectos e avaliação imobiliária e construção civil) e tendo em conta que não cumpria as exigências apertadas do RGICSF.

O art. 6.º da Código das Sociedades Comerciais (CSC) dispõe que “A capacidade da sociedade compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular”. Registe-se que o art. 160.º do CC dispõe nos mesmos termos em relação às pessoas colectivas em geral.

Significa isso, portanto, que, além das restrições específicas (impostas por lei ou pela circunstância de os direitos e/ou obrigações serem inseparáveis da personalidade singular), a capacidade das pessoas colectivas em geral e das sociedades em particular está limitada pelo seu fim; é em função do fim da pessoa colectiva que se delimita a sua capacidade, abrangendo esta, como se referiu, tudo o que seja necessário ou conveniente à prossecução desse fim.

Importa notar, no entanto,[1] que o fim da sociedade não se confunde com o seu objecto social, resultando claramente do n.º 4 do citado art. 6.º do CSC que o objecto social não limita a capacidade da sociedade (ainda que os respectivos órgãos sociais tenham o dever de não o exceder); o que limita e delimita a capacidade da sociedade é o seu fim e este corresponde ao lucro, conforme se extrai do disposto no art. 980.º do CC.

Ora, nessa perspectiva, não se poderá considerar que um negócio de cessão de créditos esteja necessariamente excluído do âmbito da capacidade de uma sociedade, seja qual for o seu objecto social. Com efeito, ainda que o negócio em causa não tenha qualquer relação com o seu objecto social, ele não poderá ser considerado, necessariamente, como um acto que não seja necessário ou conveniente à prossecução do seu fim, ou seja, à obtenção de um lucro.

Pensamos, portanto, que, por aí e por aplicação das citadas regras e normas legais, não será possível concluir pela falta de capacidade da cessionária (Exequente) e pela consequente nulidade do negócio.

Resta saber se existia alguma específica restrição à cessão de créditos, por força da natureza dos créditos cedidos e tendo em conta o regime a que está submetida a actividade das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

Os Apelantes entendem que sim, mas não nos parece que seja o caso.

Como ponto de partida, importará realçar que, conforme disposto no art. 577.º do CC, a cessão de créditos será admissível se não for proibida por determinação da lei ou convenção das partes e, portanto, o que interessa saber é se a cessão de créditos aqui em causa era (ou não) proibida por lei.

É indiscutível que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) – aprovado pelo Dec. Lei n.º 298/92 de 31/12 – consagra, no seu art. 8.º, o princípio da exclusividade relativamente a determinadas actividades ali previstas, determinando que elas só podem ser exercidas pelas entidades ali enunciadas, designadamente pelas instituições de crédito e sociedades financeiras nos termos ali definidos. E é também indiscutível que, como referem os Apelantes, a Exequente não é uma instituição de crédito ou sociedade financeira e tão pouco reúne as condições exigidas no citado diploma para as referidas instituições ou sociedades e, nessa medida, é indiscutível que a Exequente não está habilitada ao exercício das actividades que estão reservadas àquelas instituições.

Nessas circunstâncias, o que interessa saber é a se a cessão de créditos efectuada envolve (ou não) o exercício das actividades que, por força do citado diploma, estão reservadas às instituições de crédito.

E pensamos que não.

Com ressalva das situações ali excepcionadas (que não ocorrem no caso sub judice), dispõe a citada disposição legal que só as instituições de crédito podem exercer a atividade de recepção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização por conta própria e que só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as atividades referidas nas alíneas b) a i), r) e s) do n.º 1 do artigo 4.º, com exceção da consultoria referida na alínea i), ou seja, só essas instituições ou sociedades podem exercer as seguintes actividades:

- Operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring;

- Serviços de pagamento, tal como definidos no artigo 4.º do regime jurídico dos serviços de pagamento e da moeda eletrónica;

- Emissão e gestão de outros meios de pagamento, não abrangidos pela alínea anterior, tais como cheques em suporte de papel, cheques de viagem em suporte de papel e cartas de crédito;

- Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo, opções e operações sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobiliários;

- Participações em emissões e colocações de valores mobiliários e prestação de serviços correlativos;

- Atuação nos mercados interbancários;

- Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários;

- Gestão em gestão de outros patrimónios;

- Emissão de moeda eletrónica;

- Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba.

Ora, a aquisição dos créditos aqui em causa não envolve o efectivo exercício pela cessionária (a Exequente) de nenhuma das referidas actividades que, nos termos da citada disposição legal, estão reservadas às instituições de crédito.

Importa notar que o que está em causa não é uma cessão da posição contratual que, enquanto tal, tivesse envolvido a transmissão da totalidade da posição contratual da instituição de crédito (F…) nos contratos de crédito que havia celebrado e que estão na origem da obrigação exequenda; o que está em causa é apenas uma cessão dos créditos emergentes desses contratos e que estão vencidos e em incumprimento há vários anos. E isso significa que, na prática, o direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.

 Não encontramos, portanto, qualquer impedimento à admissibilidade da cessão de créditos resultante da circunstância de a Exequente não ser uma instituição de crédito; a cessão dos créditos em causa não implica, como vimos, que a Exequente vá exercer qualquer actividade ou praticar qualquer acto que estejam reservados às instituições de créditos.

Resta-nos analisar a questão sob o ponto de vista – que também é colocado pelos Apelantes – da eventual violação do segredo bancário e da lei de protecção de dados que possa estar envolvida na cessão de créditos e das respectivas implicações na validade dessa cessão.

É indiscutível que, conforme disposto no art. 78.º do RGICSF, os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional estão vinculadas ao dever de segredo ou sigilo não lhes sendo permitido, sem autorização do cliente, revelar ou utilizar informações respeitantes, designadamente, aos nomes dos clientes e operações bancárias com eles celebradas, ressalvadas as excepções previstas na lei e, mais concretamente, no art. 79.º do referido diploma legal.

Destinando-se a proteger as relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, esse dever visa também – e sobretudo – proteger o direito pessoal à reserva da privada, consagrado no art. 26º da Constituição da República Portuguesa que também encontra protecção no âmbito da Lei da Protecção de Dados Pessoais e do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) da União Europeia (Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril), sendo certo que, nos termos destes diplomas, o tratamento de dados pessoais (onde se inclui, designadamente, a sua transmissão, comunicação ou disponibilização) só pode ser efectuado nas situações e nas condições aí previstas.

É indiscutível, por outro lado, que a cessão de créditos emergentes de operações bancárias (no caso, operações de créditos) envolvem, necessariamente (porque, de contrário, não seriam exequíveis) a transferência ou transmissão para o cessionário de todas as informações necessárias à identificação do crédito e do respectivo devedor, ou seja, elementos que estão a coberto do segredo bancário e protegidos pela legislação de protecção de dados.

Nessas circunstâncias, a entender-se – como pretendem os Apelantes – que o segredo bancário e a legislação de protecção de dados vedavam a possibilidade de tais elementos/informações serem transmitidos ao cessionário no âmbito de um contrato de cessão de crédito, tal significaria, na prática, que as instituições de crédito estavam impedidas de efectuar cessões de créditos sem autorização do cliente. Sucede que uma tal solução não parece corresponder à solução pretendida pelo legislador, uma vez que, aquilo que seria normal, nessa situação, é que o legislador tivesse previsto expressamente a inadmissibilidade legal daqueles negócios sem o consentimento do devedor e, a nosso ver, a legislação em causa – referente ao sigilo bancário e à protecção de dados pessoais – não pode ser vista como meio indirecto e enviesado de consignar a inadmissibilidade desses negócios, sendo certo que não é essa a sua finalidade e o seu objectivo. O raciocínio correcto – em nosso entender – será o de que, não estando vedada por lei a possibilidade de a instituição de crédito ceder os seus créditos sem consentimento do cliente, essa cessão é admissível e válida ao abrigo do disposto no art. 577.º do CC e, sendo admissível e válido esse negócio, também não poderá deixar de considerada legítima a transmissão dos dados necessários à identificação do crédito cedido e respectivo devedor, na medida em que essa transmissão é inerente e indispensável à cessão do crédito e corresponderá, naturalmente, a uma obrigação do cedente perante o cessionário.

Na verdade, o segredo bancário e a inadmissibilidade de tratamento/comunicação de dados pessoais não são absolutos e comportam excepções.

A Lei n.º 67/98 de 27/10 (reportamo-nos a esta lei por ser a que estava em vigor à data das cessões de crédito aqui em causa, apesar de ela já ter sido revogada pela Lei n.º 58/2019 de 08/08) dispõe, no seu art. 6.º que:

O tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para:

a) Execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negocial efectuadas a seu pedido;

(…)

e) Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados”.

E o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) da União Europeia, acima citado, dispõe em termos semelhantes nos respectivo art. 6.º.

Ora, sendo admissível, em face da lei, a cessão de créditos efectuada, a admissibilidade do tratamento/comunicação dos dados ao cessionário era legítima, independentemente do consentimento do respectivo titular, à luz das citadas disposições legais, na medida em que tal comunicação visava a prossecução do interesse legítimo da cedente de, ao abrigo da sua liberdade contratual, ceder os seus créditos, tal como visava a prossecução do interesse legítimo da cessionária que carecia daqueles dados com vista à execução/cobrança do crédito e nenhuma razão existiria para considerar que o direito do titular dos dados à sua protecção devesse prevalecer sobre aqueles direitos/interesses da cedente e da cessionária, importando notar que, conforme exigido no art. 5.º, n.º 1, alínea b), da citada Lei e do citado Regulamento, o tratamento dos dados assim efectuado é inteiramente compatível com as finalidades para as quais eles haviam sido recolhidos (finalidades que se relacionavam, naturalmente, com a execução do contrato e cumprimento das respectivas obrigações).

Abordando especificamente o tema da eventual violação do segredo bancário e do regime de protecção de dados pessoais na cessão de créditos, Nelson Ricardo Pereira da Rocha[2] (citado na sentença recorrida) não equaciona, em momento algum, a possibilidade de eventual nulidade de uma cessão de créditos por força da violação do segredo bancário e do regime de protecção de dados pessoais, afirmando, designadamente[3], que: “…o fundamento da cessão de dados será o contrato de cessão de créditos celebrado entre as partes, que se traduz, as mais das vezes uma compra e venda de créditos. Sem repetir o que aquando da caracterização do instituto se disse, ele encontra-se previsto no artigo 577.º do CC, prevendo o mesmo artigo que a cessão de créditos dispensa o consentimento do devedor. Ora, parece-nos que, ao dispensar o consentimento do devedor, a cessão de créditos dispensará igualmente o consentimento do devedor também relativamente à cessão dos seus dados, garantido que seja, no entanto, que o tratamento dos seus dados seja feito nos termos da LPDP”. E acrescenta[4] que “Do ponto de vista da LPDP (…) o fundamento para o tratamento de dados residirá na alínea e) do artigo 6.º da LPDP, nos termos da qual é fundamento para o tratamento de dados “a Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados” (…) a legitimidade para o tratamento emergirá do facto de, para a execução do contrato celebrado entre o cedente e o cessionário – que é o responsável pelo tratamento – ser necessário o tratamento dos dados pessoais dos devedores cedidos”. E continua dizendo[5] que “…caso a lei permitisse que as cessões de créditos em incumprimento ficassem dependentes do consentimento dos titulares dos dados estaria a colocar um entrave potencialmente intransponível no âmbito contratual. A isto acresce que, dispensando a cessão de créditos a necessidade de consentimento do cedido, não seria razoável que a lei impusesse depois o consentimento do cedido quanto à transmissão dos seus dados. Se tal se verificasse, o comércio jurídico moderno e o dinamismo do sistema financeiro ficaria em larga medida comprometido. Ademais, a tendência tem sido, não só nesta área, a progressiva simplificação de procedimentos e requisitos, de forma a satisfazer precisamente esse dinamismo comercial, que constitui um dos grandes traços caracterizadores da sociedade atual”.

Segundo o citado autor, o que será necessário é que a cessão de créditos seja feita em concordância com todas as normas e princípios aplicáveis à protecção de dados, exigindo-se, por um lado, a necessidade de obtenção de autorização da CNPD para o seu tratamento (arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP)[6] e exigindo-se, por outro lado, que o responsável pelo tratamento de dados garanta a observação das medidas de segurança previstas no artigo 15.º da LPDP, por força do previsto no artigo 7.º, n.º 2 do mesmo diploma legal e que o cessionário fique também obrigado a garantir a observação dos direitos que assistem ao titular dos dados[7].

Refira-se que, no caso, essas medidas de segurança terão sido observadas, uma vez que a Exequente assumiu a qualidade de responsável pelo tratamento dos dados e a observância dos direitos que assistem ao titular dos dados e nem sequer sabemos se foi (ou não) obtida autorização da CNPD.

De qualquer forma, ainda que tal autorização não tivesse sido obtida, tal circunstância não teria idoneidade – a nosso ver – para determinar a nulidade do contrato celebrado. Não existindo, sequer, qualquer indício de que a CNPD não autorizasse o tratamento dos dados nessas circunstâncias (tendo em conta que está em causa a mera comunicação de dados à cessionária e não uma qualquer divulgação desses dados com maior amplitude), nada na lei aponta para o facto de a falta daquela autorização conduzir à nulidade do negócio; ela poderia determinar responsabilidade civil, contraordenacional ou criminal nos termos dos referidos diplomas, mas não determinaria a invalidade do contrato.

Importa notar que, ao contrário do que sustentam os Apelantes, a pretensa nulidade do contrato não encontra apoio nos arts. 280.º e 294.º do CC.

Nos termos das referidas disposições legais, o negócio jurídico será nulo quando o seu objecto seja física ou legalmente impossível ou contrário à lei ou quando seja celebrado contra disposição legal de carácter imperativo.

Não é isso – pensamos nós – que aqui acontece.

O contrato em causa nos autos é uma cessão de créditos. Ora, a cessão de créditos é um negócio expressamente previsto na lei e, portanto, é admissível e o seu objecto é legalmente possível; o seu objecto correspondia à cessão de um concreto e determinado crédito e essa cessão era possível e admitida em face da lei. Ainda que se considerasse que o negócio em questão envolvia a violação do segredo bancário ou a violação do regime da protecção de dados pessoais, nem por isso se poderia considerar que as prestações dele decorrentes eram legalmente impossíveis ou contrárias à lei, na medida em que essa circunstância não era abstractamente idónea para inviabilizar, em absoluto e em qualquer circunstância, a sua realização ou para concluir, sem mais, que a mesma era contrária à lei. Na verdade,  a lei não proíbe, em absoluto, a realização de negócios que impliquem a comunicação de dados pessoais protegidos, exigindo apenas a verificação de determinados requisitos ou pressupostos (o consentimento do titular dos dados, a autorização da CNPD ou a verificação de outras situações concretas ali previstas) e, portanto, não há fundamento para concluir que o negócio cujas prestações envolvam a transmissão de dados daquela natureza seja celebrado contra disposição legal de carácter imperativo ou que o seu objecto seja legalmente impossível ou contrário à lei; a nulidade do negócio a que aludem as citadas disposições é algo que, em princípio, resultará apenas do confronto entre o negócio e a lei e que não depende da averiguação, em concreto, de quaisquer outras circunstâncias ou formalidades (como seriam as de saber se existia – ou não – consentimento do titular dos dados; se existia – ou não – autorização da CNPD ou se existia – ou não – qualquer outra circunstância que, à luz da lei, justificasse a transmissão dos dados).

A tudo aquilo que se disse acresce ainda o facto de os Embargantes – aquando da celebração dos contratos com a F…– terem autorizado a comunicação dos seus dados em caso de cessão de créditos o que, só por si, também legitimaria tal comunicação nos termos acima mencionados.

Assim, também sob este ponto de vista, não encontramos razões para concluir pela nulidade do negócio.

3. Prescrição das obrigações cambiárias e preenchimento abusivo das livranças

No que toca a esta matéria, os Apelantes fundamentam o seu recurso e a sua discordância relativamente à decisão recorrida nos termos e nas circunstâncias que poderemos resumir nos seguintes termos:

i) em face do disposto art. 70º da LULL, aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma – onde se dispõe que as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento – o credor dispõe de três anos para preencher e levar à execução as livranças que garantem as respectivas dívidas;

ii) tendo como pano de fundo o disposto no art. 300º do CC (que fulmina com nulidade todos os negócios destinados a modificar os prazos legais de prescrição ou a facilitar ou dificultar as suas condições de operatividade), os pactos de preenchimento devem ser interpretados como estabelecendo um limite temporal para a data de vencimento da obrigação cambiária que deveria ter sido aposta nas livranças preenchidas, limite que se fixa nas datas de incumprimento definitivo do contrato de subjacente, ou na data da resolução do contrato (o que, no caso dos autos, coincide);

iii)  que um acordo de preenchimento que estipulasse a possibilidade de a credora poder apor qualquer data de vencimento que lhe aprouvesse nas livranças, seria (e será) nulo por distorcer e modificar as regras e prazos da prescrição cambiária;

iv)  que, nessas circunstâncias, o conteúdo dos pactos de preenchimento constantes dos Docs. 5, 6, 8, 10 e 11 juntos com o requerimento executivo (onde se lê que “A data de vencimento será fixada pela F… em caso de incumprimento pelos devedores das obrigações assumidas ou para efeitos da realização coactiva do respectivo crédito.”) deve ser interpretado nesse sentido;

v) que, por essas razões, deveria ter sido aposta em cada uma das livranças as datas do incumprimento definitivo dadas como provadas nos pontos XVI, XXVIII e XLI da matéria de facto provada, todas de 2011;

vi)  que, não tendo aposto essas datas, a Exequente violou o pacto de preenchimento (nos termos em que ele deve ser interpretado);

vii) que, atendendo a essas datas, a obrigação estaria prescrita.

Começamos por referir que – conforme já dissemos supra – os Embargantes não invocaram oportunamente a prescrição das obrigações cambiárias, importando notar, além do mais, que, atendendo à data de vencimento aposta nas livranças em causa nos autos (04/10/2018) e o disposto no art. 70º da LULL – aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma –, não se poderia ter como verificada essa excepção.

Com efeito, dispondo a norma citada que as acções contra o aceitante relativas a letras (ou livranças) prescrevem em três anos a contar do seu vencimento, é indiscutível que a data do vencimento a que aí se alude (que marca o início do prazo de prescrição aí estabelecido) será, naturalmente e em princípio, a data que consta do título; só assim não será se essa data tiver sido aí colocada de forma indevida ou abusiva, ou seja, em violação do pacto de preenchimento. Assim tem considerado, aliás, a nossa jurisprudência, como se pode ver pelos Acórdãos do STJ de 24/10/2019 (processo n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2), 04/07/2019 (processo n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1) e 19/06/2019 (processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1); Acórdãos da Relação do Porto de 11/05/2020 (processo n.º 56/19.2T8LOU-B.P1) e de 07/01/2019 (processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1) e Acórdãos da Relação de Coimbra de 18/02/2021 (processo n.º 51/19.1T8SRE-B.C1) e 14/12/2020 (processo n.º 4161/18.4T8PBL-A.C1)[8].

Assim, o que importa saber é se a data de vencimento aposta nas livranças corresponde ou não a um preenchimento abusivo por estar em desconformidade com o acordo que regulava os termos em que tal preenchimento havia de ser feito. Foi essa, aliás, a excepção que os Embargantes invocaram oportunamente (na petição inicial de embargos) e que, como tal, foi apreciada – e julgada improcedente – pela sentença recorrida.

Tendo em conta a matéria de facto provada, não há qualquer dúvida relativamente ao facto de que as livranças em causa nos autos estavam incompletas no momento em que foram subscritas (pela subscritora e pelos avalistas) e entregues ao credor. Estavam em causa, portanto, livranças em branco no que toca à data de emissão, data de vencimento, local de pagamento e valor a pagar.

Quem emite ou subscreve uma letra ou livrança em branco atribui – expressa ou tacitamente – àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato – o pacto de preenchimento – pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida e a violação deste acordo ou contrato consubstancia aquilo que se designa por preenchimento abusivo. Tal violação não poderá ser oposta ao portador do título salvo se este o tiver adquirido de má-fé ou cometendo falta grave (cfr. artigo 10º da LULL), mas poderá, naturalmente, ser invocada no âmbito das relações imediatas e entre os sujeitos que tiveram intervenção no acordo ou pacto de preenchimento.

Na situação dos autos, os Embargantes vieram invocar precisamente essa excepção de preenchimento abusivo, alegando que o preenchimento das livranças não respeitou os termos do acordo que havia sido firmado no que toca, designadamente, à data de vencimento, sustentando que as datas de vencimento a apor nos títulos deveriam ser as datas do incumprimento definitivo dadas como provadas nos pontos XVI, XXVIII e XLI da matéria de facto provada, todas de 2011.

Mas, na verdade, não podemos ter como verificada essa situação de preenchimento abusivo.

No caso, existiu um pacto de preenchimento expressamente firmado entre as partes e, nos termos desse pacto, a sociedade subscritora e os avalistas autorizaram expressamente a credora a preencher a sobredita livrança nos seguintes termos: “…quando tal se mostre necessário, a juízo da própria F… , tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: (…) a data de vencimento será fixada pela F… quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a F… decida recorrer à realização coactiva do respectivo crédito…”. Não há dúvida, portanto, que, nos termos desse acordo ou pacto, a credora foi expressamente autorizada a preencher as livranças quando entendesse (sem dependência de qualquer prazo) e a apor a data de vencimento que entendesse fixar quando decidisse recorrer à realização coactiva do crédito. O momento de preenchimento das livranças e a data de vencimento a inscrever nos títulos foi deixada, portanto, na total disponibilidade da credora sem dependência de qualquer prazo; a credora poderia preencher as livranças quando decidisse proceder à cobrança do crédito (independentemente da data de incumprimento e do tempo decorrido desde esse incumprimento), apondo a data de vencimento que entendesse conveniente.

Sustentam, no entanto, os Apelantes que não é essa a correcta interpretação do pacto de preenchimento. Dizem que, a interpretar-se desse modo o pacto seria nulo, nos termos do art. 300.º do CC, por distorcer e modificar as regras e prazos de prescrição cambiária e que, como tal, deverá ser interpretado como estabelecendo um limite temporal para a data de vencimento da obrigação cambiária que deveria ter sido aposta nas livranças preenchidas, limite que corresponde às datas de incumprimento definitivo do contrato de subjacente, ou à data da resolução do contrato.

Sobre essa argumentação, caberá dizer, em primeiro lugar, que os Embargantes não invocaram, oportunamente, qualquer nulidade do pacto de preenchimento e caberá dizer, em segundo lugar, que, de qualquer forma, essa nulidade nunca poderia ser julgada procedente.

É certo que, como referem os Embargantes, Carolina Cunha[9] vem defendendo a existência de um limite temporal para o preenchimento do título que foi subscrito em branco, apelando à interpretação da vontade das partes no sentido de estabelecer esse limite temporal e afirmando, designadamente, o seguinte[10]: “…sustentar que “não se tendo provado qualquer acordo das partes sobre a ocasião em que uma letra em branco deveria ser preenchida, a mesma pode sê-lo em qualquer altura uma vez que a lei não fixa qualquer prazo para o efeito”, parece-nos inadequado, pelo menos nos casos (a maioria, supomos) em que a ausência de estipulação relativa à “ocasião” em que o título deve ser preenchido não significa que seja impossível retirar do contexto em que o acordo de preenchimento é celebrado – e, sobretudo, da sua remissão para o evento que legitima o portador a completar o título – um limite temporal que, uma vez ultrapassado, torne o preenchimento abusivo porque desconforme à vontade pelo subscritor em branco (e cuja ignorância pelo portador, sua contraparte na relação fundamental, não pode deixar de se qualificar de culposa)”. E, continua dizendo[11], “A circunstância de não haver sido estipulado um prazo fixo para o preenchimento da livrança não significa que não possa extrair-se, por via interpretativa, uma limitação temporal: seguramente que não correspondia à vontade das partes, reconstituída com as ferramentas objectivistas proporcionadas pelo nosso ordenamento jurídico e integrada, se necessário, com auxílio correctivo da boa fé (art. 239º CCivil), que o credor pudesse preencher e acionar o título cinco, dez ou mesmo doze anos depois da verificação do facto que legitimava esse comportamento. Será mais ou menos difícil, em cada caso concreto, traçar a pertinente fronteira temporal, mas não é admissível que se invoque tal dificuldade para deixar o devedor à mercê do credor”, mais acrescentando[12] que “…as partes, ao colocarem o devedor numa situação de “quase-sujeição” face ao exercício do poder potestativo de preenchimento do credor, não podem – porque a ordem jurídica não tolera – deixar absolutamente em aberto o limite temporal de semelhante sujeição. E, na verdade, tipicamente não deixam: na generalidade dos casos é possível afirmar que o sujeito que assinou em branco e cuja manifestação de vontade releva para po art. 10º LU contava que o preenchimento viesse a ter lugar dentro de um lapso de tempo razoável subsequente ao facto que o justifique”.

Todavia – como decorre, aliás, dos excertos citados – essas considerações relevam particularmente nos casos em que as partes não regularam expressamente essa matéria (a data de vencimento a apor nos títulos) no pacto de preenchimento; é nessa situação que se pode ter por adequado colmatar essa omissão por via da interpretação da vontade das partes ou da procura daquela que teria sido  a sua real vontade – especificamente da vontade de quem assina o título em branco – para o efeito de reconstituir um acordo tácito no que toca a essa matéria, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 239.º do CC.

Pensamos, no entanto, que essas considerações não relevam quando as partes previram e regularam expressamente essa matéria no pacto de preenchimento que celebraram. E não relevam porque, existindo uma vontade expressamente manifestada, não existia qualquer omissão ou dúvida que importasse sanar com recurso à interpretação e procura daquela que seria a real (ou presumida) vontade das partes no concreto contexto que envolveu o negócio; a vontade a considerar será, nesse caso, aquela que foi expressamente manifestada.

Ora, no caso em análise, as partes regularam expressamente a questão da data de vencimento, dizendo que ela ficaria ao critério da F… e seria fixada quando esta decidisse recorrer à realização coactiva do crédito.

É certo que não foi estabelecido um prazo certo ou fixo, mas tal aconteceu por vontade das partes que foi expressamente manifestada, não sendo, por isso, legítimo recorrer a pretensas interpretações dessas vontades no sentido de estabelecer um limite temporal para o preenchimento que as partes não pretenderam estabelecer.

Tão pouco se poderá dizer que essa circunstância – de deixar nas mãos do credor a liberdade de definir o momento de preenchimento do título e a fixação da data do respectivo vencimento – seja algo que não é consentido ou tolerado pela ordem jurídica. Desde logo, porque, estando em causa um título de crédito, é seguro afirmar que ele virá a ser preenchido por outrem e, logo que entre em circulação, não poderá ser oposta ao portador de boa-fé que não tenha cometido qualquer falta grave a inobservância de qualquer pacto de preenchimento que tivesse sido celebrado (cfr. art. 10.º da LULL); a lei consente, portanto, que o título seja preenchido muitos anos depois, sem qualquer limitação temporal, sem que o devedor possa opor essa circunstância ao portador de boa-fé. É certo, por outro lado, que a lei admite, nos termos gerais, que a determinação do prazo de uma prestação seja deixada ao critério e à vontade do credor (art. 777.º, n.º 3, do CC). Nessas circunstâncias, não encontramos razões aparentes para considerar que, no âmbito dos títulos de crédito, as partes não possam acordar que o momento do respectivo preenchimento e a fixação da data do respectivo vencimento é decidido e definido pelo credor. O mais que aqui se poderia considerar era que, à semelhança do que acontece na situação prevista no art. 777.º, n.º 3, do CC, a pessoa que assinou o título em branco pudesse requerer ao tribunal a fixação de um prazo para que o credor procedesse ao respectivo preenchimento.

E não se diga – como pretendem os Apelantes – que o pacto de preenchimento, se interpretado nesses termos, seria nulo, nos termos do art. 300.º do CC, por distorcer e modificar as regras e prazos de prescrição cambiária.

Com efeito, se é certo que, nos termos da citada disposição, são nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição, já não é verdade que seja esse o caso do negócio aqui em causa: o pacto de preenchimento.

O referido pacto – ao determinar que a credora poderia preencher o título e apor a data de vencimento quando entendesse e decidisse recorrer à realização coactiva do crédito – não interferiu e não alterou o prazo de prescrição a que alude o art. 70.º da LULL; o prazo aqui estabelecido é, conforme se referiu, um prazo de três anos a contar do vencimento do título e o pacto de preenchimento não alterou esse prazo.

Na verdade, os Apelantes argumentam como se a data de vencimento das livranças tivesse que coincidir com a data do evento que justifica e legitima o preenchimento do título (o incumprimento e exigibilidade da obrigação que o título pretendia garantir); só assim se compreenderia a alegação de que, ao estipular a aposição de uma data de vencimento muito posterior ou ao deixar a definição dessa data ao critério do credor, os outorgantes estivessem, de algum modo, a dilatar os prazos de prescrição. Mas, na verdade, não é assim, pois é certo que não existe qualquer disposição legal que aponte para a necessidade de coincidência daqueles momentos.

Importa esclarecer que o que se estabelece no citado art. 79.º é o prazo de prescrição da obrigação cambiária que está inscrita no título e tal obrigação caracteriza-se pelo seu carácter literal, autónomo e abstracto, que, como tal, existe nos termos que constam do título e independentemente da relação subjacente que deu origem à sua emissão. Nessas circunstâncias, a data de vencimento da obrigação cambiária não se afere pela relação subjacente ou pelos eventos com ela relacionados; a data de vencimento da obrigação cambiária é, por regra e por princípio, aquela que se foi aposta no título e, quando o título é assinado em branco, os termos do seu preenchimento (incluindo a data de vencimento) são aferidos exclusivamente com recurso ao pacto de preenchimento, apenas sendo legítimo recorrer, para esse efeito, à relação subjacente para o efeito de interpretar e determinar, quando necessário, os termos do referido pacto. Não fará, portanto, sentido afirmar que o pacto de preenchimento altera os prazos de prescrição da obrigação cambiária quando, ao definir os termos em que o título será preenchido, determina a data de vencimento que nele vai ser aposta e que vai marcar o início do prazo de prescrição. Nos mesmos termos em que as partes acordam, em qualquer contrato que celebrem, os prazos de vencimento das respectivas obrigações e nos mesmos em que a lei admite (cfr. art. 777.º, nº. 3, do CC) que a determinação do prazo da prestação seja deixado na disponibilidade do credor (sem que se possa dizer que, por essa razão, as partes estão a alterar ou interferir com os prazos legais de prescrição), também o pacto de preenchimento tem por missão e objectivo estabelecer, por acordo das partes, os exactos termos da obrigação cambiária a inscrever no título que foi assinado em branco, designadamente, a data do respectivo vencimento, sem que se possa dizer que, quando estabelecem essa data ou quando acordam deixar a sua definição ao critério do credor, estão a alterar qualquer prazo de prescrição; o que estão a fazer é apenas a definir o momento ou o prazo do vencimento da obrigação ou a determinar os termos em que deve ser definido esse momento ou prazo; o prazo de prescrição estabelecido continuará inalterado e corresponderá ao prazo estabelecido na lei a contar do vencimento.  

As partes estariam a alterar os prazos de prescrição se estabelecessem que a obrigação prescrevia em determinado prazo (inferior ou superior ao estabelecido na lei) a contar do vencimento e estariam a interferir com esses prazos se estabelecessem causas de suspensão ou interrupção da prescrição não previstas na lei ou se eliminassem algumas dessas causas de suspensão ou interrupção; não existirá, no entanto, qualquer alteração ou interferência nos prazos legais de prescrição quando – como aqui aconteceu – as partes se limitam a estabelecer a data de vencimento da obrigação ou os termos de determinação dessa data.

Não existe, portanto, a apontada nulidade do pacto de preenchimento.

Assim, apesar de terem sido preenchidas cerca de sete anos depois do incumprimento das obrigações que lhes estavam subjacentes com aposição de data de vencimento correspondente a esse momento, as livranças em causa foram preenchidas em conformidade com o pacto de preenchimento, uma vez que, nos termos deste pacto, a credora podia preencher o título e apor a data de vencimento que entendesse quando decidisse recorrer à realização coactiva do seu crédito.

Neste sentido se pronunciaram os seguintes Acórdãos (a que já aludimos):

O Acórdão do STJ de 24/10/2019, em cujo sumário se lê: “Tendo sido concedido à exequente, no pacto de preenchimento, liberdade para fixar a data de vencimento das livranças subscritas em branco, ao invés de a fixar por referência à data relevante do incumprimento ou da resolução dos contratos garantidos por tais títulos, como pretende a embargante, carece de fundamento o invocado preenchimento abusivo das livranças dadas à execução”;

O Acórdão do STJ de 04/07/2019, em cujo sumário se lê: “…tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela – ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva – tenha incorrido em preenchimento abusivo”.

Não existiu, portanto, qualquer violação ou inobservância do pacto de preenchimento, pelo que a data de vencimento das livranças a considerar para efeitos de prescrição é a data que nelas foi aposta. Não se configura, portanto, qualquer prescrição das obrigações cambiárias (prescrição que – reafirma-se – os Embargantes nem sequer invocaram em momento oportuno).

Improcede, portanto, esta questão (relacionada com a prescrição e o preenchimento abusivo das livranças).

4. Prescrição de juros

Invocam ainda os Apelantes a prescrição dos juros contabilizados até cinco anos antes da data de preenchimento das livranças, no que toca aos contratos referidos nos pontos XI, XV, XXI, XXXIV e XL da matéria provada e os juros contabilizados até cinco anos antes da data de entrada da acção executiva no que toca ao contrato referido no ponto XLV da matéria de facto.

Fundamentam essa pretensão no disposto no art. 310.º, d), do CC.

Sucede, no entanto, que os Apelantes não invocaram, oportunamente, tal prescrição e, não podendo a mesma ser apreciada oficiosamente pelo tribunal (nos termos do art. 303.º do CC, ela necessita de ser invocada por aquele a quem aproveita), ela não foi apreciada pela decisão recorrida. E, não tendo sido invocada oportunamente em 1.ª instância, também não poderá sê-lo agora em sede de recurso, tendo em conta que os recursos têm com objectivo a reapreciação – e eventual alteração – de decisões proferidas, não cabendo, no seu âmbito, a apreciação de questões novas que não foram antes suscitadas (e apreciadas) e que nem sequer são de conhecimento oficioso.

Consequentemente, não se conhece dessa questão.

O recurso improcede, portanto, integralmente, confirmando-se a sentença recorrida


******

(…)

/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                              (José Avelino Gonçalves)                    


[1] Cfr. a este propósito, Alexandre Soveral Martins, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Vol. I, 2.ª edição, págs. 122 e segs.
[2] A proteção dos dados do cliente bancário na cessão de crédito em incumprimento (Dissertação conducente ao grau de Mestre Em Ciências Jurídico-Empresariais sob a orientação do Professor Doutro Pedro Leitão Pais de Vasconcelos), disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31830/1/ulfd133822_tese.pdf.
[3] Pág. 62.
[4] Pág. 63.
[5] Pág. 64.
[6] Pág. 57.
[7] Pág. 63 e 64.
[8] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[9] Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, 2012, págs. 604 e segs.
[10] Cfr. ob. cit., págs. 605 e 606.
[11] Ob. cit., pág. 607.
[12] Ob. cita., pág. 608.