Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84/20.5GBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES
CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA
NULIDADE DE SENTENÇA
VÍCIOS DO ARTIGO 410º
Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO DE JULGAMENTO
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
PROVA INDIRECTA OU INDICIÁRIA
CONCURSO EFECTIVO OU APARENTE DE CRIMES
PERDA DE PRODUTOS E VANTAGENS
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 205.º, N.º 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 111.º, Nº 2 E 4, 130.º, N.º 2, E 221.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 3.º, N.º 1, DA LEI N.º 109/2009, DE 15 DE SETEMBRO
ARTIGOS 127.º, 374.º, N.º 2, 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), 410.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: 1. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse (o da prova indirecta) um mecanismo cada vez mais recorrente na formação da convicção judiciária.

2. Se a burla informática que se realizou mediante a introdução de dados falsos na aplicação MB WAY corresponde igualmente ao cometimento pelo agente mediato do crime de falsidade informática, existe concurso efectivo entre o crime de burla e o crime de falsidade informática (cada um deles defendendo bens jurídicos de diversa natureza), na linha aliás da argumentação expendida pelos acórdãos de fixação de jurisprudência emanados pelo STJ,  a propósito do concurso entre os crimes de burla e de falsificação de documento, não se podendo defender que, nesta situação, existe apenas uma conduta única que esgota a ilicitude típica de ambos os crimes e que só formalmente se mostram eles preenchidos.

3. Tendo ficado demonstrado que o arguido obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de falsidade informática e de um crime de burla informática, não pode o tribunal deixar de condená-lo no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem (cfr. artigo 110º, nº 4, do CP), mostrando-se irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado e que tal pedido haja sido julgado procedente.

Decisão Texto Integral:

RECURSO Nº 84/20.5GBPMS.C1
Processo Comum Singular
Crime de Burla Informática e nas Comunicações
Crime de falsidade informática
Nulidade de sentença
Vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP
Erro de julgamento
Violação do princípio do in dubio pro reo
Prova indirecta ou indiciária
Concurso efectivo ou aparente de crimes
Perda de produtos e vantagens
Juízo Local Criminal de Porto de Mós
Tribunal Judicial da Comarca de Leiria

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
             1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo comum singular nº 84/20.... do Juízo Local Criminal ... (comarca de Leiria), por sentença datada de 31 de Janeiro de 2023, foi decidido: 
· «condenar o arguido AA pela prática de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15.09, na pena de duzentos dias de multa à razão diária de cinco euros;
· condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1, do Código Penal, o qual consome o crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, nºs 1 e 5, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15.09., na redação introduzida pela Lei n.º 79/2021, de 24.11, (correspondente ao artigo 6.º, nºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15.09., na redação em vigor à data dos factos), na pena de cento e cinquenta dias de multa à razão diária de cinco euros;
· condenar o arguido AA pela prática, em concurso efetivo, do crime de falsidade informática referido em 6.1., previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15.09, e do crime de burla informática e nas comunicações referido em 6.2., previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de duzentos e oitenta dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo a pena única de multa global de mil e quatrocentos euros;
· declarar perdida a favor do Estado a quantia de mil, cento e sessenta euros, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática dos ilícitos criminais supra, condenando o Arguido a pagar tal quantia ao Estado;
·
· julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos e, em consequência, condenar o arguido e demandado AA no pagamento ao demandante BB de uma indemnização, a título de danos patrimoniais, de mil, cento e sessenta euros».


            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. «
2. MATÉRIA DE RECURSO: Recurso em matéria de facto e em matéria de direito;
3. FUNDAMENTO DO RECURSO: em matéria de facto erro de julgamento sobre a matéria de facto e ausências de provas para condenação; em matéria de direito, em caso de improcedência da impugnação da matéria de facto: concurso aparente de normas e dupla penalização em relação a perda de valores em favor do Estado e ao pagamento de indemnização civil.
4. …
5. …
6. …
7. Impugna-se a matéria de facto nos termos e para os efeitos do art. 412º, nº 3 alínea a) e b) do CPP, pelo que indicam-se
8. …
9. …
10. …
11.
12. …
13. …
14. …
15. …
16. Para o Tribunal, se o dinheiro foi posto na conta do arguido, conclui-se que foi o arguido que atuou na forma descrita na acusação, não se vislumbrando outra explicação plausível.
17. …
18. O Tribunal recorrido dá como provada a participação do recorrente na prática dos factos em causa nos presentes autos tendo em conta precisamente probabilidades.
19. Estes elementos de prova deixam, a nosso ver, e sempre salvo o elevado e merecido respeito por opinião diversa, dúvida razoável e inultrapassavel sobre se teria sido o arguido quem contactou o ofendido para aplicar-lhe um golpe.
20. A dúvida deve verter em favor do arguido …
21. …
22. O Tribunal faz uma errada ponderação da prova produzida quando atribui ao extrato bancário uma certeza absoluta quando na verdade no mais seria uma probabilidade forte que depois é arredada pelas regras da experiência e do normal acontecer e da análise de toda a outra prova produzida para de concluir que tratam-se de meras possibilidades entre tantas outras.
23. A nosso ver, o tribunal recorrido incorreu, assim, em erro notório na apreciação da prova, pelo que o acórdão recorrido padece do vício previsto no art. 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal, pelo que deverá o mesmo ser declarado oficiosamente.
24. Se assim se não entender, então deverá oficiosamente declarar-se como verificado o vício previsto no art. 410, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
25. Caso assim se não entenda, ainda, e se adira à tese de que o supra apontado vício integra antes a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. a), por violação do consignado no nº 2 do art. 374º, ambos do Código de Processo Penal, desde já se argui a mesma nos termos do consignado no art. 379º, nº2 do Código de Processo Penal
26.
27. Pelo exposto, alega o recorrente – ainda - e PARA TODOS OS EFEITOS LEGAIS a questão de constitucionalidade do artigo 127º do Código de Processo Penal, nos termos seguintes:
a. O artº 127º do CPP encontra-se ferido do vício da inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artº 32º nº 1 e 32º nº 5 da Lei Fundamental, porquanto a convicção do julgador pode até divergir do juízo contido no parecer dos peritos, mas tal divergência deve ser fundamentada – nº 2 do art. 163º do Código de Processo Penal.
b. Ora o tribunal recorrido utiliza apenas um extrato bancário para dar todos os factos como provados.
c. Pelo que tendo em conta que tal exame apenas estabelece uma probabilidade e não uma certeza e que essa probabilidade é afastada pela restante prova produzida, o Tribunal a quo deveria ter absolvido o arguido
d.
e. O acórdão condenatório valorou de um modo inconstitucional a prova em causa, fazendo uma interpretação inconstitucional do citado preceito (o artº 127º do CPP), violadora das garantias de defesa do recorrente consignadas no artº 32º nº 1 da CRP.
28.
29.
30. Está verificada a insuficiência da matéria de facto para a decisão …
31.
32.
33.
34.
35.
36. Da matéria de direito: entende o recorrente que a pena fixada pelo tribunal levou em consideração que o arguido teria cometido um crime de burla informática e um crime de falsificação informática em concurso efectivo quando na verdade se trata de um concurso aparente.
37. Comportamento ilícito do autor preenche, apenas de forma formal, diversos tipos legais de crime …
38. Mesmo que assim não se pense, o agente do crime não falsificou qualquer documento digital ou quaisquer dados informáticos, mas usou dados legítimos para cadastrar um número de telemóvel e aceder a conta sem autorização do titular, não tendo acontecido o crime de falsificação de dados informáticos.
39. A sentença também peca ao condenar pedido a favor do Estado a quantia de mil, cento e sessenta euros e ao mesmo tempo julgar parcialmente procedente e condenar o arguido a indemnizar o ofendido no mesmo valor, havendo no caso uma dupla condenação.



            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância.
 
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

… balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há alguma nulidade de sentença por falta de fundamentação?
2. Há algum vício do artigo 410º/2 do CPP, nomeadamente os invocados pela defesa, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova?
3. Houve erro de julgamento?
4. Houve violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do in dubio por reo (vislumbra-se alguma inconstitucionalidade na interpretação dada ao artigo 127º do CPP)?
5. Deveria o arguido ter sido apenas condenado por um crime, atento o concurso aparente de crimes?
6. Foi bem decretada a perda de vantagens a favor do Estado? 

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
1. «No dia 6 de Abril de 2020, o arguido AA gizou um plano com vista à apropriação de quantias monetárias do ofendido BB, com recurso à aplicação MB WAY.
2. O MB WAY é uma solução interbancária que permite fazer compras online e em lojas físicas, gerar cartões virtuais MB NET, enviar, pedir dinheiro e dividir a conta e ainda utilizar e levantar dinheiro através do smartphone, numa aplicação própria ou nos canais de uma instituição bancária.
3. A adesão e ativação pode ser realizada através de acesso a uma caixa automática multibanco ou através de download da aplicação MB WAY.
4. Os dados de adesão e registo no MB WAY são sempre o número de telemóvel e o pin MB Way, pelo que se no processo de adesão e ativação for associado um número de telemóvel pertença de outrem que não o titular da conta bancária, aquele fica com acesso irrestrito a esta e assume os poderes e as prerrogativas associadas ao titular.
5. No caso de transferência bancária, e após acesso à conta nos termos descritos, basta selecionar o contacto da pessoa a quem se quer enviar o dinheiro, indicar o valor a transferir e validar a operação, após o que, de imediato, é processada a transferência do dinheiro para a conta do contacto selecionado.
6. Na data indicada, cerca das 12h00m, o arguido, na concretização do plano gizado, através do telemóvel com o n.º ...92, contactou o Ofendido e mostrou-se interessado na aquisição de um sofá, que o Ofendido tinha publicitado para venda, nesse mesmo dia, cerca das 11h00m, no site OLX, pelo preço de €125,00.
7. Acordado o negócio, e para pagamento do indicado preço, o Ofendido forneceu ao Arguido o IBAN da conta de que é titular - IBAN  ...44 -, do Banco 1..., agência de ..., para transferência, pelo arguido, do valor acordado.
8. Cerca das 16h00m desse mesmo dia, o arguido telefonou ao ofendido e disse-lhe, erroneamente, que devido a um problema no seu computador, não conseguia fazer a transferência do dinheiro.
9. O Arguido mais sugeriu ao ofendido o pagamento por MB WAY, ao que o Ofendido lhe disse que nunca tinha utilizado essa aplicação e que não sabia como a utilizar, prontificando-se o Arguido, de imediato, a ajudar o Ofendido.
10. Acreditando na seriedade do que lhe era proposto e mediante indicação do Arguido, o Ofendido deslocou-se a um ATM sito em ....
11. Aí, o Arguido informou o Ofendido, erroneamente, que teria de introduzir o número de telemóvel que aquele lhe iria indicar, ao invés do número de telemóvel do Ofendido enquanto utilizador da aplicação, e, após, um código, que seria por ele também indicado.
12. O Ofendido, não dominando o funcionamento daquela aplicação e convencido de que se tratava de uma transação legítima, introduziu o seu cartão bancário associado à indicada conta bancária com o IBAN  ...44, por si titulada, ativou o serviço referido, através da introdução do número de telemóvel (...92) e do código que lhe foram então fornecidos pelo Arguido.
13. Com tal operação, o Arguido acedeu à indicada conta bancária do Ofendido.
14. Então, ainda nesse dia, às 15:35:26, 15:36:59, 16:37:28 e 16:38:16, o Arguido efetuou quatro transferências bancárias, nos valores, respetivamente, de €750,00, €250,00, €100,00 e €60,00, tudo no montante global de €1.160,00, da referida conta bancária do Ofendido, para a conta com o IBAN  ...55, do Banco 2..., agência de ..., titulada pelo arguido, e associada ao serviço MB WAY do n.º de telemóvel ...43.
15. O Arguido obteve desse modo proventos económicos que não lhe eram devidos, no valor global de €1.160,00 (mil, cento e sessenta euros), e em prejuízo do Ofendido.
16. O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de aceder informaticamente à conta bancária do Ofendido, tomando conhecimento da totalidade dos dados da mesma, bem sabendo que não o podia fazer, por a tanto não estar autorizado, e que acedia a dados sigilosos e legalmente protegidos.
17. O Arguido agiu ainda de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de, para fazer suas as quantias do ofendido a que não tinha direito, e através da associação de um número de telemóvel pertencente a outrem que não o ofendido (titular da conta) e consequente indicação do contacto para envio do dinheiro, respetivo montante e validação das operações, introduzir dados no sistema informático, dos quais resultou a produção de dados que sabia não genuínos, com consequente concretização das transferências que ordenou, lesivas do Ofendido.
18. O Arguido agiu também de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de, para fazer suas as quantias do ofendido a que não tinha direito, adulterar dados da aplicação MB WAY, através da associação de um número de telemóvel pertencente a outrem que não o ofendido (titular da conta), com o propósito de, contra a vontade deste e sem motivo legítimo, efetuar, dessa mesma conta e na sequência da validação das operações, transferências de fundos no valor global de €1.160,00, causando desse modo o correspondente prejuízo ao Ofendido.
19. O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
           [situação do Arguido]
20. O Arguido encontra-se, presentemente, em situação de reclusão, à ordem dos autos n.º469/20...., a aguardar a realização de julgamento.
21. O Arguido não tem antecedentes criminais.
*
O Tribunal não se pronuncia quanto ao demais alegado, nomeadamente em sede de Contestação, por se afigurar que tratar-se de matéria de direito/conclusiva e/ou e/ou de mera repetição e/ou de caráter meramente instrumental/circunstancial irrelevante atento o crime sub judice e a boa decisão da presente causa, outrossim por se encontrar em direta oposição com a matéria alegada na Acusação Pública e devinda provada».

2.2. Inexistindo FACTOS NÃO PROVADOS, motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição):

«O Tribunal, sempre norteado pelas regras da experiência comum, formou a sua convicção a partir dos elementos documentais juntos aos autos em sede de inquérito e de julgamento, nomeadamente o teor da declaração de fls. 10 e dos elementos bancários de fls. 25 e 26, 32, 33 e 55 a 96; conjugados com a prova pessoal/testemunhal produzida em audiência de julgamento, a saber o depoimento prestado pelo ofendido BB, empregado de armazém 42 anos de idade, o qual confirmou, e explicitou, o teor daqueles elementos documentais, que, por si só, são, já, bastante elucidativos quanto à imputação das condutas em causa ao Arguido.
O Ofendido não só localizou os factos na Páscoa de 2020, como narrou, de forma completa e concreta todo o sucedido, concretizando: que pôs à venda na internet um sofá no OLX peço preço de 130 euros, recebeu o contacto do Arguido interessado, e por inocência fez o que ele (o Arguido) recomendou, usando o MB Way, que então desconhecia como funcionava e nem tinha tal aplicação, concretamente dirigindo-se a um multibanco, sito no ..., sendo só inserir os códigos que ele lhe deu, introduzindo o número de telemóvel do Arguido segundo instrução deste, julgando estar a agir de modo a receber o preço, o qual, porém, percebeu rapidamente que não iria receber, e de facto não recebeu. Referiu, ainda, que, ao invés, lhe foram retirados quatro “tranches” da sua conta, a última no valor de 60 euros, tendo tentado entrar em contacto com o Arguido, que jamais lhe atendeu, nunca mais tendo recuperado a quantia total em causa de 1.160 euros.
A observação dos ditos elementos documentais, conjugada com o depoimento do Ofendido, à luz das regras da experiência comum, permite, de forma sustentada e legítima, concluir que foi o Arguido quem atuou da forma descrita, contactando e enganando o Ofendido, acedendo à sua conta e daí logrando retirar as quantias em causa, que entraram diretamente na sua conta bancária, não se vislumbrando outra explicação possível e razoável no quadro probatório acima explicitado e de acordo com aquilo que é normal acontecer.
Quanto à situação atual de reclusão do Arguido, considerou-se a pesquisa efetuada em 26.01.2023; e, no que concerne à ausência de antecedentes criminais, teve-se em atenção os respetivos certificados de registo criminal, juntos aos autos em 03.01.2023».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. NULIDADE DE SENTENÇA
           
3.1.1. De forma muito implícita, é denunciada pela defesa uma nulidade de sentença por falta de fundamentação do raciocínio que levou o tribunal a condenar o ora arguido recorrente.
Estaremos perante a nulidade do artigo 379º, nº 1, alínea a) por referência ao estatuído no artigo 374º, nº 2 do CPP?
Sabemos que o artigo 374º, nº 2 do CPP exige que depois da enumeração dos factos provados e não provados, se faça na sentença uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do tribunal.
O dever de fundamentação[1] das decisões judiciais é uma realidade, ainda que com contornos variados, imanente a todos os sistemas de justiça que nos são próximos, mesmo que sejam detectáveis variáveis do grau de exigência em função das matérias em causa, do tipo de decisão ou da tradição histórica e cultural de cada povo.
Afirmando-se progressivamente como verdadeira conquista civilizacional a partir da Revolução Francesa, o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo” a que aludem o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[2], o artigo 7º da Carta Africana dos Direitos Humanos (outrora ainda lido como «do Homem») e dos Povos e, por exemplo, o artigo 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe a Constituição, no nº 1 do artigo 205º, que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o nº 1 do artigo 208º, que determinava que "as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei".
A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei".
A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
Numa sentença (cfr nota de rodapé nº 2), após o relatório, segue-se, já no contexto dos fundamentos, a descrição dos factos provados (e não provados), a qual, para ser facilmente compreensível, devendo obedecer à lógica própria de quem descreve um episódio concreto da vida real.
Em apoio dos factos considerados provados deve então a sentença passar a expressar a justificação da respectiva decisão, isto é, fazer a análise crítica da prova produzida, esclarecer quais os meios de prova que conduziram à convicção anteriormente enunciada.
Sem pretender ser exaustivo, a motivação da convicção do juiz no âmbito da análise crítica da prova implica que o Tribunal indique expressamente:
· quais os factos provados que cada testemunha revelou conhecer;
· quais os elementos que dos mesmos depoimentos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou;
· quais as razões que o levam a valorar determinado meio de prova em detrimento de outro ou outros meios de prova com ele contraditório;
· quais as razões porque não foi dada relevância a determinada prova ou meio de prova;
· quais as razões porque julgou relevantes, ou irrelevantes, certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória a prova resultante de documentos particulares, ou retirou certas conclusões da inspecção ao local, etc.

3.1.2. Com a devida vénia, transcrevemos parte do Acórdão desta Relação, no Pº 770/08.8PBCBR.C1:
«Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Num segundo nível intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que as inferências hão-se basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimento científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.
O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador.
Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O artigo 349º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º do mesmo diploma).
É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do Código de Processo Penal).
No plano de análise em que nos movemos importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)».
As presunções naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.
As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004, «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
(…)
A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».
Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo.
As enormes dúvidas que suscita a primeira e a escassa incidência prática da segunda levam a que a maioria das situações acabe por se resolver através de um terceiro meio de prova: precisamente a referida prova indiciária, ou circunstancial, plasmada nos juízos de inferência. A conclusão é então imposta pela aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente demonstrados e que constituem a premissa menor.
Como efeito, no que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação dos arguidos, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira, quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas) a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados».
           
3.2.3. Com este pano de fundo, vejamos, então, o nosso caso concreto e analisemos a forma como fez o tribunal recorrido esse exame crítico das provas quanto à imputação criminosa ao arguido do delito em causa ou à sua desresponsabilização.
Lida a decisão recorrida, só podemos afirmar, em alto e bom som, que o exame crítico foi suficientemente feito em texto corrido, que satisfaz plenamente os requisitos legais – é perceptível a forma como a Exmª Juíza de ..., só com base no depoimento do ofendido e em prova documental, chega à conclusão da culpabilidade do arguido.
Concorde-se ou não, o tribunal explicou-se de forma breve mas sábia.
Sublinhe-se ainda que a lei não impõe que esse raciocínio tenha que ser demonstrado  facto a facto – deve é ser suficientemente claro de forma a que quem leia a sentença fique indubitavelmente convencido da bondade daquela decisão (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/02/2008, processo nº 2445/07-1 in www.dgsi.pt).
In casu, de juíza convencida de que o arguido foi o autor deste «golpe» (usando as palavras da defesa), a Exmª julgadora de ... passou a juíza convincente pois tudo é perfeitamente entendível pela leitura encadeada da sua motivação.
No fundo, discutiu a prova produzida em julgamento de forma crítica (o seu teor é suficientemente esclarecedor), tomando as opções decisórias que lhe parecem mais adequadas e plausíveis relativamente aos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço (no ponto seguinte veremos se tomou a boa decisão, com base na arguição dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP).
Pode a defesa discordar deste juízo de convicção, encontrado com base em prova directa e indirecta.
Mas não pode invocar que o tribunal não fundamentou a sua posição – lida a sua fundamentação, ela é escorreita e suficientemente cabal (acreditou numa versão dos acontecimentos – a veiculada pela tese acusatória e não numa qualquer outra), assente em indícios de prova indirecta que expôs.
Como tal, e sem necessidade de mais explanações, até desnecessárias face à unilateralidade das acusações feitas, cai por terra a alegada nulidade, inexistente como nos parece evidente.  

3.2. SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

3.2.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP -, na medida em que não se invocam quaisquer excertos de depoimentos em audiência, não tendo sido cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP);
- e, se for o caso, a dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Já na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

3.2.2. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[3].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[4].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[5].

3.2.3. No nosso caso, a defesa alega os vícios das alíneas a) e c) do artigo 410º, nº 2.
Reitera-se o que atrás se escreveu:
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autos que o tribunal não investigou, desde que constassem das peças processuais que constituem o objecto do processo, embora o pudesse ter feito e ainda ser possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a proferir e desde que tal vício resulta do próprio texto da decisão e não de elementos ela estranhos, como sejam os conteúdos da prova.
A essência do vício invocado consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, ou seja, é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada.
Não é isso em definitivo que está em causa para a defesa (não há factos em falta[6] para permitir, juridicamente, a condenação do arguido pela prática dos crimes em apreço) – estará mais em causa um erro notório na apreciação da prova.
Ou seja:
O tribunal violou as regras da experiência ou efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios?
Usou mal a chamada prova indirecta?
Pergunta-se, portanto: foi temerária a utilização da valoração da chamada prova indirecta nos autos?

3.2.4. Falemos um pouco sobre prova indirecta, aquela de que a sentença lançou mão para considerar, sem dúvidas, que o arguido foi o autor material destes crimes.
Ela está sujeita à livre apreciação do tribunal, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.
Nesse sentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. ...6 in www.dgsi.pt.
Já nos referimos à prova indirecta em vários dos nossos arestos desta Relação, escritos desde 2009 a 2011.
Sabemos que fundamental em muitos casos da vida judiciária em que não é possível obter prova directa dos factos é a valoração da chamada “prova indirecta”.
Neste sentido: CC, in “DD de inocência em ...”, 1992: “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”.
Entendemos, assim, que há que ultrapassar os rígidos cânones da valoração pelo julgador exclusivamente da prova directa, para atribuir à prova indirecta, indiciária ou por presunções judiciais o seu específico relevo nos casos de maior complexidade.
Mittermayer, in “Tratado de La Prueba em Matéria Criminal”, 1959, dizia já o seguinte: “…o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.
Por outro lado, há que afirmar que ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.
Este entendimento, que já começou a ser seguido na jurisprudência nacional, tem sido defendido pela jurisprudência de Espanha, conforme os seguintes Ac do Tribunal Supremo de Espanha: Ac nº 190/2006, de 1 de Março de 2006; Ac nº 392/2006, de 6 de Abril de 2006; Ac nº 562/2006, de 11 de Maio de 2006; Ac nº 560/2006, de 19 de Maio de 2006; Ac nº 557/2006, de 22 de Maio de 2006; e Ac nº 970/2006, de 3 de Outubro de 2006 (ver todas estas referências in Revista Julgar, nº 2, 2007 – Euclides Dâmaso Simões – “Prova Indiciária).
A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J., ano XXVII, 2º, página 44), “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Nesta parte, importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289.
Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, tomo 4º, pág. 555.
No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1º, pág. 51.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras de experiência, incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, nº 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular».
Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que «o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade».
Ana Brito, em brilhante artigo intitulado «A valoração da prova e a prova indirecta», publicado em e-book do CEJ («Da Prova Indirecta ou por Indícios», Julho de 2000), disserta sobre a figura da prova indirecta, resumindo muito do que atrás se escreveu:
«(…)
Nas lições escritas em 1975, Figueiredo Dias, realça a “deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso”. Ensina que livre apreciação significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”.
Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional. Curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável. Esclarece ainda Figueiredo Dias que a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
(…)
Paulo Sousa Mendes adverte que “o julgador moderno tem, cada vez mais, de produzir abundante fundamentação dos seus juízos probatórios. Para o efeito ele faz apelo não só aos meios de prova científicos, mas também às chamadas regras da experiência”.
(…)
Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido. É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo”.
O juiz terá sempre que “averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas…
As regras da experiência, os critérios gerais, não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar?” (aqui, Paulo de Sousa Mendes cita Castanheira Neves).
Revemo-nos nas conclusões deste autor, que são as seguintes: “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz”.
(…)
No acórdão do STJ, de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, afirma-se que “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.”
Também no acórdão do TRL, de 13/02/2013, relatado por Carlos Almeida, se desenvolve: “Nas questões humanas não pode haver certezas… Também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade” (…). A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo”.
(…)
A prova indirecta determina especiais exigências de fundamentação.
Nas várias classificações das provas, a distinção mais importante segundo Taruffo, é a que distingue entre provas directas e indirectas.
Seguindo de perto este autor, a distinção assenta na conexão entre o facto objecto do processo “e o facto que constitui o objecto material e imediato do meio de prova”.
“Quando os dois enunciados têm que ver com o mesmo facto, as provas são directas”, pois incidem directamente sobre um facto principal.
“O enunciado acerca deste facto é o objecto imediato da prova”.
“Quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência acerca de um facto relevante, então as provas são indirectas ou circunstanciais”.
Trata-se de uma distinção funcional que depende da conexão entre as provas e os factos
Indirectas podem ser quaisquer provas, obtidas por qualquer meio.
(…)
Cavaleiro Ferreira declara que a apreciação das provas indirectas pressupõe “grande capacidade e bom senso do julgador”, que “as complexas operações mentais que o manejo da prova indiciária implica exigem raras qualidades” E enumera: “inteligência clara e objectiva, experiência esclarecida, integridade de carácter, ausência de fácil ou emotiva impressionabilidade”.
(…)
Também Santos Cabral, em estudo sobre a prova indiciária e a sua valoração, conclui:
“As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária”.
(…)
Destaco dois pontos do sumário do acórdão STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, que deve merecer leitura integral:
“O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões”».

3.2.5. Analisemos ENTÃO o caso vertente.
Raciocinou assim o tribunal:
Sempre norteado pelas regras da experiência comum, formou a sua convicção a partir dos elementos documentais juntos aos autos em sede de inquérito e de julgamento, nomeadamente o teor da declaração de fls. 10 e dos elementos bancários de fls. 25 e 26, 32, 33 e 55 a 96, prova essa conjugada com a prova pessoal/testemunhal produzida em audiência de julgamento, a saber o depoimento prestado pelo ofendido BB, o qual confirmou, e explicitou, o teor daqueles elementos documentais, que, por si só, são, já, bastante elucidativos quanto à imputação das condutas em causa ao Arguido.
Falando sobre o teor do seu depoimento, o tribunal leu-o da seguinte forma:
«O Ofendido não só localizou os factos na Páscoa de 2020, como narrou, de forma completa e concreta todo o sucedido, concretizando: que pôs à venda na internet um sofá no OLX peço preço de 130 euros, recebeu o contacto do Arguido interessado, e por inocência fez o que ele (o Arguido) recomendou, usando o MB Way, que então desconhecia como funcionava e nem tinha tal aplicação, concretamente dirigindo-se a um multibanco, sito no ..., sendo só inserir os códigos que ele lhe deu, introduzindo o número de telemóvel do Arguido segundo instrução deste, julgando estar a agir de modo a receber o preço, o qual, porém, percebeu rapidamente que não iria receber, e de facto não recebeu. Referiu, ainda, que, ao invés, lhe foram retirados quatro “tranches” da sua conta, a última no valor de 60 euros, tendo tentado entrar em contacto com o Arguido, que jamais lhe atendeu, nunca mais tendo recuperado a quantia total em causa de 1.160 euros».
A conclusão foi esta, juntando todas estas partes (documentos e estas declarações do ofendido):
«A observação dos ditos elementos documentais, conjugada com o depoimento do Ofendido, à luz das regras da experiência comum, permite, de forma sustentada e legítima, concluir que foi o Arguido quem atuou da forma descrita, contactando e enganando o Ofendido, acedendo à sua conta e daí logrando retirar as quantias em causa, que entraram diretamente na sua conta bancária, não se vislumbrando outra explicação possível e razoável no quadro probatório acima explicitado e de acordo com aquilo que é normal acontecer».
E esta conclusão foi avisada e prudente, não podendo este tribunal de recurso senão aplaudir a sagacidade demonstrada por esta competente Magistrada, não se deixando enganar pela poeira dos dias e por subterfúgios formais que só impedem a descoberta da verdadeira verdade material.
A Exmª Magistrada do MP de 1ª instância foi eloquente na defesa do sentenciado, raciocinando assim, e nós com ela:
«Assim, resulta dos documentos bancários juntos aos autos, nomeadamente, de fls. 32 a 33, 55 a 96, que o montante indevidamente apropriado foi transferido, através da aplicação «Mbway», para a conta exclusivamente titulada pelo arguido e ao contrário de outros casos que poderiam suscitar a dúvida, se tal conta poderia pertencer a pessoa diferente do autor da prática criminosa que lhe antecedeu, tal questão não se coloca nos presentes autos, pois, nem sequer existe, na sequência de tais transferências, transferência dos montantes ilicitamente apropriados para outras contas, antes pelo contrário, tais montantes foram de seguida levantados em numerário, com recurso a cartão multibanco, na Avenida dos aliados no ..., precisamente, e como bem invoca o arguido, cidade onde era residente, antes da reclusão.
O facto de o ofendido atribuir ao arguido sotaque “alentejano”, em nada contraria a conclusão a que o Tribunal “a quo” chegou, uma vez que, como o próprio refere, o arguido é de etnia cigana, sendo que é consabido, resultando das regras de experiência comum, que o sotaque dos indivíduos desta etnia, em tudo se assemelha ao sotaque característico das pessoas residentes no ..., pelo que, a dúvida legítima ao Tribunal só se poderia colocar se o arguido, prestando declarações, tivesse eventualmente arguido o extravio do seu cartão bancário com os códigos de acesso ao mesmo, pois só assim se poderia aventar a hipótese de não ter sido o único titular do cartão a efectuar os levantamentos que se seguiram às transferências, via «Mbway» para a sua conta bancária ou eventualmente que tivesse actuado junto da instituição bancária, onde tem domiciliada a conta, reclamando o recebimento de tais quantias por desconhecer a sua proveniência, que como se poderá observar do extracto bancário não foram as únicas.
Por outro lado a percepção do ofendido quanto à idade do arguido pela sua voz não é factor determinante para afastar o raciocínio acima tecido.
Tal como não o é a ausência de elementos por parte das operadoras móveis, uma vez que, esse é o normal procedimento adoptado neste tipo de criminalidade, precisamente o uso de cartões descartáveis sem carregamentos associados».
Fazemos nossas tais palavras e argumentos, suficientemente sagazes para nos convencer (a Mª Juíza foi mais telegráfica, criando a convicção da culpabilidade do arguido apenas com base no cotejo das declarações do ofendido com os elementos documentais de fls 10, 25, 26, 32, 33 e 55 a 96, usando, não obstante, o advérbio «nomeadamente»).
Nesta situação, ocorre um facto desconhecido - a autoria do telefonema que levou o ofendido a praticar actos que lhe causaram prejuízo.
E temos os factos conhecidos e indubitáveis que permitem apurar, segundo as regras de experiência comum e do normal acontecer, essa autoria, à partida, desconhecida.
A saber:
· a exclusividade da titularidade da conta pelo arguido,
· a existência de um único cartão bancário, associado à conta titulada pelo arguido, exclusivamente titulado por este,
· a transferência dos montantes descritos na acusação para a sua conta,
· os levantamentos em numerário efectuados logo após as transferências bancárias para a conta do arguido, através de cartão, na cidade onde residia o arguido, sendo certo que a sua etnia não funciona a seu favor, atento o sotaque identificado pelo ofendido, mas contra si, atentas as máximas de experiência comum acima aludidas.
Ora, aqui chegados, só é possível a conclusão de que dos factos conhecidos e elencados supra é possível extrair o facto desconhecido (a autoria dos factos), com absoluta segurança, «uma vez que, concomitantemente não se verificam circunstâncias de facto ou nem é de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim alcançado, sendo certo que, a presunção não colide com o princípio in dubio pro reo, tal como acima foi explicitado, ficando afastada, atento o sobredito, a inconstitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova».
Na realidade, ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo (desenvolveremos melhor este ponto mais à frente).
Aqui chegados, só há que constatar que o tribunal recorrido, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas, utilizando, de boa feição e pelo melhor método, as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência, não se vislumbrando qualquer vício no seu modo de decidir.
Conclui-se, assim, que, não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse um mecanismo recorrente na formação da convicção («basta pensar na prova da intenção criminosa; a intenção, enquanto elemento volitivo do dolo - enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime -, na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado»).
Em conclusão, analisada a decisão em recurso e o recurso da mesma, verificamos, pois, que não encontramos erro notório na apreciação da prova, nem uma apreciação arbitrária da mesma, que, contudo, e repete-se, não se confunde com o erro de julgamento.
A circunstância do recorrente discordar da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido pertence, antes, ao domínio da impugnação da convicção do tribunal a quo, questão a ser analisada de acordo com o disposto nos termos do artigo 412º, nº 3 e nº 4, do CPP que como já vimos fica prejudicada pelas razões invocadas de não terem sido especificados: a) os pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) as provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas, e de navegarmos apenas pelas águas do artigo 410º, nº 2 do CPP.
Também não se vislumbra qualquer erro de julgamento, bastando ouvir o depoimento do ofendido – o que se fez - e ler a prova documental inserta nos autos.
De facto, e em suma:
Da prova indicada pelo arguido para motivar a sua discordância com o decidido, não resultam elementos seguros de uma clara e objectivada errada convicção sobre os factos impugnados, de forma a que este Tribunal possa alterar a decisão.
De facto, o Tribunal motivou a decisão da matéria de facto, esclarecendo o percurso lógico que trilhou para a formação da sua convicção, indicando a prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância, sendo certo que, tal motivação não contraria as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.

3.2.6. Invoca ainda o arguido a violação do princípio da livre apreciação da prova.
O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº3 do citado artigo 412º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).
Ora, no nosso caso, o tribunal recorrido, usando métodos lícitos de valoração da prova produzida, criou uma convicção.
E explicou-a devidamente em aresto, não se vislumbrando qualquer inconstitucionalidade na interpretação conferida pelo tribunal a esse artigo 127º do CPP; na medida em que, usando métodos lícitos de apreciação da prova, não ficou o tribunal com qualquer dúvida sobre a forma como ocorreram os factos (para si, tais elementos – não é o número de provas que relevam para este efeito mas a qualidade dos mesmos - dão-lhe certezas e não só probabilidades).

3.2.7. E nem sequer foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da sua inocência – colado ao da livre apreciação da prova – na medida em que o tribunal não acreditou na outra versão alternativa – o arguido nada teve a ver com este «golpe».
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal dos meios de prova dos autos.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o artº 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal ... em estado de dúvida, recorrendo legitimamente à prova indiciária e indirecta, explicada na sua motivação.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Em suma:
Não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”: tem de ser uma dúvida razoável, objectiva, que impeça a convicção do tribunal. E tal como acontece com os vícios da sentença, a que alude o nº 2 do artº 410º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há-de resultar do texto da decisão recorrida, constatando-se que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de, na motivação da convicção, reconhecer que não tem suporte probatório bastante.
Ora, o mesmo princípio não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, sendo antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa – contudo, daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
Portanto, e em conclusão, se ESTE tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida decidiu contra o arguido, pelo que não tem qualquer base de sustentação a imputação de violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, não violados in casu, o mesmo acontecendo relativamente ao artigo 32º/2 da CRP.

3.2.8. Improcedem, deste modo, as arguições de vícios da matéria de facto [nenhum dos vícios do artigo 410º/2 se consumaram, nem sequer havendo qualquer indício de um erro de julgamento, ouvido que foi por nós o depoimento do ofendido que foi claro e objectivo na descrição dos factos, nada podendo adiantar ele sobre a identidade do seu «golpista» (volto à expressão usada pela defesa) pois apenas ouviu a sua voz e nada mais], devendo manter-se a matéria factual tal como foi redigida na sentença recorrida.

3.3. SOBRE O DIREITO

3.3.1. Foi o arguido condenado, com base nesta factualidade, pelos seguintes delitos criminais:
· um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15.09, na pena de duzentos dias de multa à razão diária de cinco euros;
· um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1, do Código Penal, o qual consome o crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, nºs 1 e 5, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15.09., na redação introduzida pela Lei n.º 79/2021, de 24.11, (correspondente ao artigo 6.º, nºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15.09., na redação em vigor à data dos factos), na pena de cento e cinquenta dias de multa à razão diária de cinco euros.
Desta forma, em termos de cúmulo jurídico de penas, foi o arguido condenado pela prática, em concurso efectivo, do crime de falsidade informática e do crime de burla informática e nas comunicações, na pena única de duzentos e oitenta dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo a pena única de multa global de mil e quatrocentos euros.
Pergunta-se: há concurso aparente entre o crime de burla informática e o crime de falsificação informática?
A defesa entende que sim (para si, existe apenas uma conduta única que esgota a ilicitude típica de ambos os crimes, que só formalmente se mostram preenchidos).
E nós dizemos que não, bastando ler o que o tribunal recorrido dissertou sobre o assunto, tese que tem o nosso pleno assentimento.
É-nos quase bastante citar o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 10/2013, de 5/6/2013, nos seus pressupostos maiêuticos, que ditou o seguinte:
«A alteração introduzida pela Lei nº 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256º do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes».
E esta doutrina é aplicável, com naturalidade, ao concurso efectivo entre o crime de burla informática e o de falsidade informática (o dos autos).
Tais delitos tutelam bens jurídicos diversos, a justificar uma punição autónoma.
Ou seja:
No da burla informática, visa-se, essencialmente, proteger o património.
No da falsidade informática, visa-se a protecção, não do património, mas da integridade dos sistemas de informação, através do qual se pretende impedir os actos praticados contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta desses sistemas de redes e dados.
É certo que a falsificação pode constituir o meio, o artifício fraudulento, que está no cerne da burla.
Mas também o é que, na comparação dos dois tipos, existe uma bipolaridade de bens jurídicos protegidos, o que aliás se revela na sua diferente natureza (pública no caso da falsidade informática e semi-pública no caso da burla informática simples p. e p. pelo artº 221º, nºs 1, 2, 3 e 4, do CP), reflectindo tal diversidade.
Desta forma, à pluralidade de tipos legais integrados deve corresponder uma pluralidade de crimes» (vide ainda Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/5/2021, Pº 82/20.9PACTX-A.E1, o qual decidiu que: «Se a burla informática que se realizou mediante a introdução de dados falsos na aplicação MB WAY corresponde igualmente ao cometimento pelo agente mediato do crime de falsidade informática, existe concurso efetivo entre aquela burla e esta falsidade informática»).
Assim, e seguindo a argumentação técnico-jurídica avançada pela sentença recorrida – a  que aderimos com entusiasmo -, o crime de falsidade informática está consumado com a validação da aplicação – através do método usado –, encontrando-se em concurso efectivo com o crime de burla informática, o qual consome o crime de acesso ilegítimo, havendo, nesta parte, um concurso aparente.
Improcede, assim, esta linha de argumentação do recurso.

3.3.2. E que dizer sobre o último fundamento deste recurso?
Há uma indevida dupla condenação do arguido, tendo havido uma condenação no pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante cível e uma decisão a «declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 1.160, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática dos ilícitos criminais, condenando o arguido a pagar tal quantia ao Estado»?
Claro que não.
A perda de vantagens patrimoniais deverá ser sempre declarada como consequência da condenação pela prática de um crime (por prevenção geral).
Tal medida visa repor a situação patrimonial do arguido anterior à data da prática do crime e não apenas salvaguardar o direito da vítima em ser ressarcida (neste sentido, decidiu o Acórdão da Relação do Porto, de 22/2/2017, afirmando que: "I - A perda de vantagem patrimonial prevista no art. 110° CP, reveste caracter sancionatório com intuitos exclusivamente preventivos e não carácter indemnizatório. II - A renúncia ao direito de indemnização, a fixar judicialmente, devida pelo facto ilícito, por parte do credor/ofendido, não constitui obstáculo à decisão sobre a perda de vantagens. III - Prescindindo a A.T. da formulação do pedido de indemnização civil por crime de abuso de confiança fiscal, nada obsta ao decretamento da perda de vantagens obtidas com a prática do crime, traduzido no valor do imposto apropriado").
Esse aresto continua:
«Na verdade a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium, anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação da pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito (v.g. "o crime não compensa", nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza). (...)».
O direito a indemnização, mesmo quando já se encontra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável, o mesmo não acontecendo com as medidas de caracter sancionatório.
Outra questão é o ressarcimento do lesado, situação em que o que for declarado a favor do Estado poderá reverter a favor da vítima, sendo o seu direito sempre salvaguardado.
Seguindo de perto a anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2016, de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, publicado in Julgar Online, Janeiro de 2017, podemos afirmar que a letra do artigo 111°, n° 2, do CP e, sobretudo, a sua conjugação com a letra e o espírito do artigo 130°, n° 2, do mesmo diploma legal (e, até, com o artigo 127°, n° 3, do CPP), não deixam espaço para qualquer dúvida: a obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade individual, mas acautela, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas, quando afirma "(...) o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objetos declarados perdidos ou o produto da venda, ou o preço ou o valor correspondente às vantagens provenientes do crime ( ... )"
Desde logo porque a lei não distingue: o artigo 130°, n°2 do CP é muito claro, não excepcionando, a lei, nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos que lhe foram retirados. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir.
O legislador português deu preferência ao confisco enquanto manifestação do poder Estadual.
Essas formas de reparação têm de sujeitar-se ao confisco e não o contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori.
Por outro lado, também não poderemos considerar que a execução fiscal ou mesmo a dedução do pedido de indemnização civil constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco.
Desde logo, na medida em que a efectivação da responsabilidade tributária depende não só do cumprimento das formalidades previstas pelo legislador tributário para a enunciação da exigibilidade do tributo devido, como do respeito pelo cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade (v.g. 45.° da Lei Geral Tributária).
Estas exigências, sendo adequadas a garantir a efectividade da cobrança do tributo na generalidade dos casos, não se compadecem com as exigências que se verificam na detecção dos esquemas de evasão fiscal mais complexos, designadamente aqueles concretizados mediante a interposição de entidades não residentes em território nacional ou comunitário.
Nas situações em que a Administração Fiscal não pode cobrar o imposto porque este deixou de ser exigível no âmbito da responsabilidade tributária, não é sequer pacífico que possa obter tais montantes mediante recurso à dedução do respectivo pedido de indemnização civil, nestes casos, restando ao Estado recorrer ao mecanismo do confisco das vantagens, previsto no artigo 111°, n°s 2 e 4, do CP, para, deste modo, demonstrando que o crime não compensa, assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito.
E como bem se explicita na decisão recorrida:
«Temos, portanto, que a perda das vantagens tem como primeiro objectivo fazer com que o agente do crime não retire qualquer vantagem com a sua prática, fazendo ver a todos (prevenção geral) que para além da punição criminal propriamente dita, não é possível obter qualquer tipo de benefício com a mesma. E tal objectivo faz sentido mesmo que ocorra condenação no pedido de indemnização formulado pelo ofendido/lesado. É que mesmo havendo condenação no pedido de indemnização pode sempre o beneficiário desta vir a prescindir da mesma ou permanecer inactivo com vista à sua cobrança. Se tal viesse a ocorrer, e inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, sempre ficaria frustrado o acima referido objectivo e nesse caso ficaria nas mãos do ofendido o crime “compensar”, ou não (…)».
Ao contrário do que se sustenta no recurso, há lastro jurisprudencial suficientemente expressivo a defender esta tese da possibilidade das «duas condenações»[7].
Bastará anotar o recente Acórdão da Relação do Porto de 26/1/2022 (Pº 2769/16.1T9PRT.P1):
«I. O instituto da perda de vantagens decorrentes da prática do crime em finalidades próprias como mecanismo eficaz de dissuasão da criminalidade que visa o lucro (evitando que a prática do crime se traduza nalgum benefício económico).
II - A aplicação desse mecanismo não é eventual, facultativa ou sujeita a critérios de oportunidade.
III. Tendo ficado demonstrado que o arguido obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, não pode o tribunal deixar de condená-lo no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem (cfr. o art. 110.º, n.º 4, do Código Penal), mostrando-se irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado Instituto da Segurança Social e que tal pedido haja sido julgado procedente.
IV - Só em situações comprovadas e concretas de inutilidade (considerando que o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia), se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entre esses dois institutos (a perda de vantagens decorrente da prática do crime e a indemnização também decorrente dessa prática)».
Ou o aresto do Tribunal da Relação de Évora (Pº 95/18.0T9LLE.E1, datado de 7/9/2021):
«A existência de condenação no pagamento da quantia solicitada no pedido cível pelo ofendido/lesado a título de ressarcimento dos danos causados pela prática do crime, não impede que seja decretado o perdimento de igual quantia a favor do Estado e a condenação do arguido no seu pagamento, nos termos do artº 110º, nºs 1, al. b) e 4 do C.P., por ter sido essa quantia a vantagem obtida pelo agente do crime com essa prática».
Por tal motivo, nenhuma censura há a fazer ao sentenciado neste ponto.

3.3.3. A defesa, nem sequer de forma subsidiária, requer qualquer diminuição da pena aplicada.
Por tal motivo, e afigurando-se-nos que foi bem encontrada a dosimetria da pena concreta aplicada, quer em termos de penas parcelares, quer a título de pena de cúmulo jurídico, só a podemos validar.

3.4. Face ao exposto, só resta fazer improceder na sua globalidade o recurso intentado pelo arguido.

3.5. Em sumário, diremos:
1. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse (o da prova indirecta) um mecanismo cada vez mais recorrente na formação da convicção judiciária.
2. Se a burla informática que se realizou mediante a introdução de dados falsos na aplicação MB WAY corresponde igualmente ao cometimento pelo agente mediato do crime de falsidade informática, existe concurso efectivo entre o crime de burla e o crime de falsidade informática (cada um deles defendendo bens jurídicos de diversa natureza), na linha aliás da argumentação expendida pelos acórdãos de fixação de jurisprudência emanados pelo STJ,  a propósito do concurso entre os crimes de burla e de falsificação de documento, não se podendo defender que, nesta situação, existe apenas uma conduta única que esgota a ilicitude típica de ambos os crimes e que só formalmente se mostram eles preenchidos.
3. Tendo ficado demonstrado que o arguido obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de falsidade informática e de um crime de burla informática, não pode o tribunal deixar de condená-lo no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem (cfr. artigo 110º, nº 4, do CP), mostrando-se irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado e que tal pedido haja sido julgado procedente.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
· Negar provimento ao recurso intentado pelo arguido AA, mantendo a condenação recorrida nos seus exactos termos, em termos de FACTO e DIREITO.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que possa gozar.

Coimbra, 24 de Maio de 2023
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Cristina Pêgo Branco




[1] Seguimos aqui muito de perto as sábias considerações de Manuel Aguiar Pereira no já aqui citado «Manual sobre Fundamentação dos actos judiciais», CEJ.
[2] “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
(..)”
[3] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[4] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[5] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[6] Analisaremos na parte do DIREITO a questão do uso do verbo «apoderar».
[7] Figueiredo Dias opina que a declaração judicial de perdimento da vantagem pode vir a revelar-se inútil, inconsequente, mas isso não significa que, pelas razões já referidas, não deva ser decretada. Só assim não será se no decurso do processo se comprovar que o agente do crime ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do crime. Aí sim: aquando da condenação já se sabe que a declaração de perda é completamente inútil.
Se é feito um pedido de perda de vantagens pelo MP, o tribunal tem de o apreciar porque efectuado por quem tem legitimidade, por estar legalmente previsto, tendo de o decidir para cumprir na totalidade a decisão que abarca todos os efeitos da prática do facto ilícito típico.
Só se houver prova de que o aqui ofendido já foi ressarcido, é que tal perda não pode ser decretada por que se tornou inútil (originariamente se ainda não tinha sido efetuado o pedido, supervenientemente se já tinha sido formulado).
No nosso caso, ainda não há qualquer ressarcimento.