Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146183/14.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS
PREÇO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - M.-O-VELHO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 428, 1207, 1221 CC
Sumário: 1. Caso o preço não tenha de ser integralmente pago em momento anterior à entrega, o dono da obra pode suspender o pagamento de uma parte do preço, proporcional à desvalorização provocada pela existência do defeito, enquanto estes não tenham sido eliminados.

2. A procedência da invocação da exceção de incumprimento do contrato em tais circunstâncias por parte do réu, deverá importar a improcedência da ação na qual é pedido o montante do preço em falta.

Decisão Texto Integral:           




                                                                                     

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

J (…) intentou o presente procedimento de injunção, a prosseguir como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra S (…),

pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 10.569,60 €, acrescida de 209,03 €, de juros vencidos, e vincendos até integral pagamento, mais 500,00 € a título de honorários de advogado, alegando que, no âmbito da sua atividade de construção civil, foi contratado pela ré para proceder à reconstrução da sua vivenda, no âmbito do qual forneceu os bens e serviços a que respeitam as faturas nºs. 71 e 72, no valor global de 10.569, 60 €, encontrando-se em dívida, por conta do preço global acordado, a referida quantia.

A ré deduz oposição, alegando, em síntese, que, tendo sido ajustado o preço de 30.700,00 € pela totalidade da obra, o autor não só não executou a totalidade da obra, como o que executou padece de defeitos graves; a ré tem direito a recusar a prestação, bem como à reposição do bem com o contrato, sem encargos, mediante a reparação ou substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar a pagar ao autor a quantia de 2.700,00 € contra a simultânea eliminação dos defeitos descritos nos pontos 9, 10. 13 e 18 (relativamente ao aro e rodapé), 21, 22 e 23, dos factos dados como provados.


*

Não se conformando com tal decisão, a ré dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

(…)


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Se o tribunal decidiu para além do pedido – efeitos da invocação da exceção de incumprimento do contrato.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da matéria de facto.

(…)

*
A. Matéria de Facto
São os seguintes, os factos dados como provados, na sentença recorrida, com as alterações e aditamentos aqui introduzidos:
 1. O autor é empresário em nome individual, dedicando-se com intuito lucrativo à atividade de execução de serviços de construção civil.
2. Em 2013, autor e ré celebraram um negócio através do qual o autor se comprometeu a proceder à reconstrução de uma vivenda da ré, sita na Travessa (...) agora Rua (...) , Montemor-o-Velho, mediante o pagamento por esta do preço total, com material, de € 30.700,00, em conformidade com o orçamento junto por cópia a fls. 125 verso, datado de 10.06.2013.
3. Os trabalhos a executar pelo autor, nos termos acordados, consistiam na reconstrução da vivenda, no interior e exterior, rebocos novos de interior e exterior, mudança de telhado com vigamento em madeira, mudança de soalho e uma escada em madeira, aplicação de portas e janelas exteriores, substituição de toda a eletricidade e canalização, pintura exterior.
4. No referido orçamento sob a epígrafe “Observações”, consta:
Este orçamento inclui todo o material e mão-de-obra necessária para a sua realização.
Este orçamento não inclui portas interiores.
Este orçamento não inclui tectos forrados.
Este orçamento não inclui qualquer pintura interior (…)”.
5. Por conta do preço acordado, a ré pagou ao autor a quantia de € 28.000,00.
6. Por conta dos serviços que executou, o autor emitiu em nome da ré a fatura nº 71, datada de 04.04.2014, no montante de € 2.700,00, com Iva incluído, que enviou à ré, tendo-a esta rececionado, solicitando-lhe o seu pagamento.
7. Em resposta a esta interpelação para pagamento, a ré enviou ao autor a carta registada com AR junta por cópia a fls. 74, por este rececionada, datada de 17.06.2014, referente ao negócio entre ambos celebrado e supra referido, onde exarou “a dívida existente (2.700 €), será liquidada, após a eliminação e suprimento dos vícios e defeitos detetados e, já, denunciados a V. Exa., concretamente: paredes tortas; soalho com abertura e rachas (somente colado) e mal cortado; rodapé descolado; falta de soalho flutuante no rés do chão por baixo da escada; porta de casa de banho sem ângulo de abertura para ser funcional, e com medidas diferentes da solicitada; cobertura da chaminé muito próxima do fogão e do esquentador. Bem como, a entrega de todas as chaves e certificados de gás”.
8. A ré não pagou ao autor a fatura supra referida em 6.
9. O soalho do sótão aplicado pelo autor na vivenda da ré apresenta brechas/frestas.
9.1. No soalho do sótão a madeira apresenta-se lascada nas extremidades.
10. O autor não aplicou o rodapé na zona por baixo das escadas.
11. A parede do rés-do-chão, a poente, apresenta uma inflexão, não sendo totalmente reta.
12. A cobertura da referida casa da ré é constituída por uma estrutura de madeira de vigas em ripa, com telha assente diretamente, sem qualquer tipo de isolamento ou acabamento.
13. O autor procedeu à aplicação das telhas de forma irregular, não estando as mesmas alinhadas com o beirado, nem rematadas.
14. Tal origina infiltrações de água em alguns locais do interior da casa, designadamente em paredes e em vigas de madeira da estrutura da cobertura, e algumas alvenarias.
15. O primeiro lanço de escadas foi realizado pelo autor sobre barrotes velhos já existentes.
16. Os degraus das escadas aplicadas pelo autor têm cerca de 23 cm de largura.
17. As regras de construção apontam para uma largura mínima de degrau da escada de 25 cm.
18. No acesso ao sótão, as escadas ocupam parte da porta da varanda, em cerca de 10 cm, não permitindo a sua completa abertura, o aro não tem suporte, e os rodapés têm imperfeições.
19. (eliminado).
20. (eliminado).
21. Na zona da escadaria que dá acesso ao sótão, são visíveis pequenas fissuras nas paredes.
22. No rés-do-chão o piso flutuante e rodapé aplicados apresentam irregularidades.
23. Na instalação sanitária verifica-se a existência de uma fuga no autoclismo, na ligação entre a mochila do autoclismo e tubo.
24. Antes das obras realizadas pelo autor, paredes da casa encontrava-se tortas.
25. O autor não procedeu à substituição de louças sanitárias.
26. (eliminado).
27. Foi emitido por entidade credenciada, certificado de inspeção para as que partes visíveis de instalação de gás executadas pelo autor na vivenda da ré, certificando que as mesmas cumprem as normas técnicas e regulamentos aplicáveis e que foram sujeitas a ensaios e verificações regulamentares, com resultados satisfatórios.
27.1. Referindo as normas para a instalação dos aparelhos que a distância mínima entre o fogão e o esquentador seja de 40 cm, o autor instalou-os a distância inferior.
28. A ré acompanhou a execução da obra.
*

B. O Direito.

Na sentença recorrida, considerando que, do preço orçamentado para a obra, faltava pagar tão-somente a quantia de 2.700,00 € e que a Ré se recusa a pagar com base na exceção do não cumprimento do contrato, o juiz a quo reconheceu encontrarem-se preenchidos todos os pressupostos específicos da exceção de não cumprimento do contrato.

Contudo, o juiz a quo, aludindo à divisão na doutrina e na jurisprudência quanto aos efeitos da invocação com sucesso de tal exceção dilatória de direito material ou substantivo – absolvição do pedido ou condenação a prestar em simultâneo –, declarou aderir a esta última, por dispensar a instauração de uma nova ação, salvaguardando o equilíbrio contratual, condenando a Ré a “pagar ao autor a quantia de 2.700,00 €, contra a simultânea eliminação dos defeitos descritos nos pontos 9., 10., 13., 18 (relativamente ao aro e rodapé), 21., 22, e 23 dos factos provados por parte do autor.”

Insurge-se a Apelante contra tal decisão, quer por conter uma condenação para além do pedido, quer por não fixar prazo para a eliminação dos defeitos, sustentando que a ação deveria ter sido julgada totalmente improcedente.

Quanto ao primeiro argumento de discordância com o decidido – condenação para além do pedido – somos de opinião de que a condenação nos termos em que veio a ser decretada, embora divergindo do peticionado, representa um minus relativamente ao pedido do autor, de condenação, pura e simples, contendo-se dentro do peticionado.

Quanto ao segundo argumento, teremos de dar razão à apelante, porquanto, em nosso entender, reconhecido o direito da Ré a recusar-se a proceder ao pagamento do preço em falta até à eliminação dos defeitos dados como provados, a ação deveria, pura e simplesmente, ter sido julgada totalmente improcedente.

A Ré exceciona, e bem, o cumprimento defeituoso da empreitada com vista a, ao abrigo do disposto no artigo 428º do Código Civil, obter a suspensão do cumprimento da obrigação principal – o pagamento do preço.

Quando confrontada com as faturas cujo pagamento aqui é peticionado, a Ré respondeu que só pagaria “após a eliminação e suprimento dos vícios e defeitos detetados e já denunciados”.

Como refere João Cura Mariano[1], nos casos em que o preço não tenha que ser integralmente pago em momento anterior à entrega da obra, o dono desta pode suspender o pagamento de uma parte, proporcional à desvalorização provocada pela existência de defeitos, enquanto estes não tenham sido eliminados, ou não tenha sido realizada nova obra, ou o dono da obra não tenha sido indemnizado pelos prejuízos sofridos.

Dos 30,700 € acordados para a totalidade da obra, só faltaria pagar a quantia de 2.700,00 €, sendo que o valor em falta não surge como desproporcional (antes pelo contrário) ao desvalor dos defeitos dados como provados e aos trabalhos que não chegaram a ser executados pelo autor.

Até agora, o Autor não procedeu à eliminação dos defeitos nem sequer alega ter-se oferecido para tal.

A obrigação de pagamento do preço não é simultânea com a obrigação de eliminação dos defeitos. Só após a eliminação cabal dos defeitos da obra, se e quando vier a ocorrer, a Ré será obrigada ao pagamento do preço em falta.

Encontrando-se o autor obrigado a cumprir primeiro, podendo nunca vir a cumprir, a Ré pode nunca vir a ser obrigada a proceder a tal pagamento. Basta que a Ré logre transformar a mora do autor em incumprimento definitivo – seja mediante a concessão de um prazo admonitório para a eliminação dos defeitos, seja mediante a alegação de que já nele não confia – podendo a Ré vir a alterar a sua pretensão (de eliminação dos defeitos), solicitando a redução do preço acordado, ou, dado o tempo decorrido, a realização dos trabalhos por terceiro, a cumular com eventual indemnização pelos prejuízos sofridos. A redução do preço ou o direito à eliminação dos trabalhos por terceiro, poderá dispensá-lo, a título definitivo, do pagamento da parte do preço em falta, na parte correspondente ao desvalor da obra ou ao custo de tais trabalhos.

A exceção de incumprimento do contrato tem por função obstar temporariamente ao exercício da pretensão do contraente, consistindo numa recusa provisória de cumprir a sua obrigação por parte de quem alega, sem que acarre a extinção do direito de crédito de que é titular o outro contraente[2].

Oposta a exceção, o excipiens vê suspensa a exigibilidade da sua prestação, suspensão que se manterá enquanto se mantiver a posição de recusa do outro contraente que deu causa à invocação da exceptio Trata-se, assim, de uma recusa temporária do devedor, perante um credor que também ainda não cumpriu, que, por essa via, retarda legitimamente o cumprimento enquanto a outra parte no sinalagma contratual também não realizar a prestação a que está adstrita[3].

Contudo, a situação do dono da obra (e em consequência, os direitos que lhe assistem) não é estática. Sendo a exceção por si aposta em caso de cumprimento defeituoso e sendo a eliminação dos defeitos o direito preferencial do dono da obra face à realização desta com defeitos (artigo 1221º, nº1, CC), o não cumprimento definitivo por parte do empreiteiro da obrigação de eliminação dos defeitos, faz emergir na titularidade do dono da obra o direito às demais pretensões emergentes de tal incumprimento definitivo, como seja, o da redução do preço, de resolução do contrato e de eventual indemnização.

Segundo Miguel Mesquita[4], afastada do nosso sistema, como resulta do artigo 673º, a figura da condenação condicional, o tribunal não deve, uma vez provada a exceptio non adimpletis contractus, condenar o réu a cumprir a prestação se e quando o autor realizar a correspondente contraprestação[5].

Assim sendo, reconhecendo-se a legitimidade da recusa da Ré em proceder ao pagamento da parte do preço em falta, face aos factos dados como provados, a ação deveria, pura e simplesmente, ter sido julgada improcedente.

A apelação é de proceder, sendo de revogar, nesta parte, a decisão recorrida.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, e absolvendo-se a Ré do pedido.

Custas da ação e da apelação pelo autor.

            Coimbra, 06 de dezembro de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. Caso o preço não tenha de ser integralmente pago em momento anterior à entrega, o dono da obra pode suspender o pagamento de uma parte do preço, proporcional à desvalorização provocada pela existência do defeito, enquanto estes não tenham sido eliminados.

2. A procedência da invocação da exceção de incumprimento do contrato em tais circunstâncias por parte do réu, deverá importar a improcedência da ação na qual é pedido o montante do preço em falta.


 


[1] “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 2015, 6ª ed., Almedina, pág. 165.
[2] José João Abrantes, “A excepção de não cumprimento do contrato no Direito Civil Português, Conceito e Fundamento”, Almedina, Coimbra, págs. 128
[3] Neste sentido, Acórdão do STJ de 13-12-2007, relatado por Alves Velho, disponível in www.dgasi.pt.
[4] “Reconvenção e Exceção no Processo Civil”, Coleção Teses, Almedina, pág. 95, e Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 80 e ss.
[5] Em sentido contrário, cfr., Miguel Teixeira de Sousa, “As Partes, o objeto e a prova na ação declarativa”, LEX, pág. 165, Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra 1987, pág. 335, e Acórdão do TRC de 29.01.2013, relatado por Jorge Arcanjo, disponível in www.dgsi.pt. José João Abrantes propõe ainda uma outra solução para a procedência da exceção de incumprimento: qualificando-a como exceção dilatória de direito material, que não exclui definitivamente o direito do autor, defende que o tribunal não deve absolver o réu do pedido, mas da instância; contudo, em simultâneo, e sem que se perceba como concilia as duas vias, afirma que a ação deveria ter sido julgada parcialmente procedente e o réu condenado a efetuar o pagamento do preço ainda em dívida, sem juros de mora e condicionando esse pagamento à realização das obras de eliminação dos defeitos – “Contrato de Empreitada e exceção de não cumprimento do contrato”, Cadernos de Direito Privado, Nº 18, Abril/junho 2007, págs. 57 e 58.