Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1681/20.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
DEVERES DE INFORMAÇÃO DA MEDIADORA
EXISTÊNCIA DE ÓNUS OU ENCARGOS SOBRE O IMÓVEL A VENDER
DEVER DE INDEMNIZAR
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 60.º DA CRP
ARTIGO 483.º, 1 DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 18.º, 1, A) DA LEI 77/99, DE 16/3
ARTIGO 8.º DA LEI 24/96, DE 31/7
ARTIGOS 7.º, 1, 4 E 5 E 17.º, 1, B) E C) DA LEI 15/2013, DE 8/2
Sumário: I-Embora na actual redacção do artº 17, nº1 al. b) e c), se não faça já constar, à semelhança do disposto no artº 18, nº1, al. b) do D.L. 77/99 de 16/03/99 que as empresas mediadoras são obrigadas a certificar-se antes da celebração do contrato de mediação, “se sobre o mesmo recaem quaisquer ónus ou encargos”, deve entender-se que se mantém intocada esta obrigação nas alíneas b) e c) deste preceito, porque integrados nas características relevantes do imóvel essenciais ao negócio visado e que podem obstar à sua realização.

II-A publicidade atribuída aos actos de registo destes ónus e encargos, não dispensa a mediadora imobiliária do cumprimento deste dever, por constituírem estas normas de protecção de terceiros, destinatários do negócio.

III-A violação destes deveres de informação constitui o responsável no dever de indemnizar os terceiros lesados, no âmbito da responsabilidade civil aquiliana, cabendo aos lesados, o ónus de prova da violação deste dever de informação, da culpa, do dano e do nexo de causalidade entre a violação de uma norma de protecção e o dano (artº 483 e 487 do C.C.).

IV-Demonstrando-se que sobre o imóvel recaíam ónus que excediam o valor da venda, omitidos culposamente pela mediadora e que os promitentes vendedores não teriam celebrado o contrato promessa de compra e venda se deles tivessem conhecimento, verifica-se o nexo de causalidade entre esta violação e o dano, consistente no valor do sinal entregue.

V-A violação dos deveres de informação da empresa de mediação imobiliária para com terceiros, destinatários do negócio, integra-se nas coberturas do seguro de responsabilidade civil profissional, previsto no artigo 7º da Lei 15/2013.
Decisão Texto Integral:

Proc. Nº  1681/20.4T8CBR-C1 - Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Central Cível de Coimbra-J...

Recorrentes: AA

    BB.

Recorridos: A..., Unipessoal, Ldª

 B..., SA.

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Henrique Antunes

                                         Teresa Albuquerque

                                                            *


Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

AA e mulher BB, intentaram contra CC e A..., Unipessoal, Ldª e B..., SA, pedindo que seja proferida decisão a:

 1) Declarar-se resolvido o contrato promessa identificado no artigo 1º da petição, celebrado entre os Autores e o Réu CC.

2) Condenar-se o Réu a pagar aos Autores, a título de restituição do sinal em dobro, a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros) acrescida de juros legais desde a sua citação até efetivo pagamento.

3) Condenarem-se solidariamente as 2ª e 3ªs Rés a pagar aos Autores a quantia de 50.000,00€ correspondente ao valor do sinal prestado, equivalente ao dano efetivamente sofrido pelos Autores, quantia esta acrescida de juros legais desde a citação.

Para justificar o seu pedido, os AA. alegam, em síntese, que celebraram com o 1º R. contrato promessa de compra e venda, com mediação da 2ª R., contrato que veio a ser incumprido pelo 1º R., ocasião em que os AA. verificaram que sobre o imóvel se encontravam registados vários ónus que excediam o seu valor e dos quais nunca foram informados pela mediadora imobiliária, em violação dos deveres que a esta competiam, sendo que, caso tivessem sido informados da existência destes ónus, não teriam celebrado o contrato promessa em causa. Nesta medida, o dano corresponde ao valor do sinal entregue e do qual se viram desapossados.

Alegam ainda que esta mediadora celebrou contrato de seguro com a 3ª R., pelo qual transferiu a sua responsabilidade civil pelos danos causados no exercício da sua profissão, assentando assim a responsabilidade que imputam a esta R. nas clausulas deste seguro.


*

O 1º R. foi citado editalmente, sendo representado nestes autos pelo Digno Magistrado do M.P.

Citadas as 2ª e 3ª RR. vieram estas contestar, impugnando a 2ª R. os factos alegados e a 3ª R. a inclusão nas coberturas da apólice destes factos.  


*

Foi proferido despacho saneador, tendo sido determinado o objeto do litígio e elencados os temas de prova sem quaisquer reclamações das partes.

*

Após, foi proferida decisão que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte teor:

1) Declaro resolvido o contrato promessa identificado no artigo 1º da petição, celebrado entre os Autores e o Réu CC.

2) Condeno o Réu CC a pagar aos Autores, a título de restituição do sinal em dobro, a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros) acrescida de juros legais desde a sua citação até efetivo pagamento.

3) Absolvo as 2ª e 3ªs Rés do pedido.”


*

Não conformada com esta decisão, na parte em que decairam, impetraram os AA. recurso da mesma, formulando afinal, as seguintes conclusões:

“1ª- O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida no que diz respeito aos seguintes “Factos Não Provados”:

Da petição inicial:

8º. sem nunca os alertar de que recaíam sobre o imóvel duas hipotecas.

15º Os Autores, nesta data, foram surpreendidos...

16º Tal factualismo nunca lhes tinha sido anteriormente comunicado, nomeadamente aquando do momento da assinatura do contrato promessa.

24º Entretanto, os Autores tomaram conhecimento...

Da resposta dos autores:

14º Se os Autores tivessem sido esclarecidos e informados previamente da existência das hipotecas, não teriam assinado o contrato promessa e entregue o valor de 50.000€, correspondente ao montante do sinal.

2ª - Com efeito, os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF e as declarações de parte do A. AA, cujos extractos foram transcritos e devidamente identificados nestas alegações e que aqui se dão por reproduzidos, foram claros e inequívocos a afirmar que não houve informação prévia da existência das hipotecas em momento anterior à ida ao Notário para outorga da escritura.

3ª - O depoimento da testemunha DD - ouvido na sessão de 8 de Fevereiro de 2022, entre as 10. 46.13 e as 10.54.38 - gravado e identificado no Ficheiro nº 20220208103712 é cristalino, não merece quaisquer dúvidas no sentido de os Autores não terem sido informados das hipotecas existentes sobre o imóvel.

4ª- Esta testemunha, referiu, no seu depoimento entre (os 6.00 e os 6.44) que:

“os Autores estavam preocupados porque tinham entregue um sinal de 50.000€, não conseguiam encontrar o vendedor e que tinham sabido no Notário que havia hipotecas sobre a casa.”

5ª- Do depoimento de EE, ouvida na sessão de 8 de Fevereiro de 2022, entre as 10h 55:28 e as 11h29:08, cujo depoimento ficou gravado e identificado no ficheiro nº 20220208105527, extrai-se com interesse especial a passagem entre (os 11.50 e os 14.40) quando refere não se recordar da existência da segunda hipoteca registada a favor do Banco 1....

6ª- O depoimento da testemunha EE, consultora da Ré Imobiliária, não merece quaisquer dúvidas no sentido de não ter informado previamente os Autores da existência das duas hipotecas.

7ª - O Contrato de Mediação Imobiliária celebrado com o Réu CC foi realizado a 10 de Abril de 2018 (ponto 7º dos Factos Provados) e o registo da segunda hipoteca (a favor do Banco 1..., SA) foi efectuado em 28/06/2018.

8ª- O depoimento de FF ouvido na sessão de 8 de Fevereiro de 2022, entre as 12h17:51 e as 12h 29:57, gravado e identificado no Ficheiro nº 20220208121750 foi claro e inequívoco ao afirmar que não houve informação prévia da existência das hipotecas em momento anterior à ida ao Notário.

9ª - De facto, a testemunha FF, que acompanhou os AA no processo negocial com a Ré Imobiliária, na passagem (aos 05.29.1) refere que não houve informação prévia da existência das hipotecas em momento anterior à ida ao Notário para outorga da escritura.

10ª- As Declarações de parte do Autor AA, ouvido na sessão de 4 de Março de 2022, entre as 15.27.38 e as 16.22.21, gravado e identificado no Ficheiro nº 20220304152737 confirmaram o que anteriormente tinha sido afirmado pelas testemunhas DD, EE e FF, no sentido de não lhe terem comunicado a existência de hipotecas em momento anterior à ida ao Notário em 19 de Outubro de 2018.

11ª- Atente-se em especial ao depoimento do Autor entre (os 7.42.7 e os 11.11.7) quando refere ter sido aquando da ida ao Notário a 19 de Outubro, que tomou conhecimento da existência de hipotecas sobre o imóvel.

12ª- Da conjugação da prova documental, junta aos autos, nomeadamente o Contrato de Mediação Imobiliária celebrado em 10 de Abril de 2018 (Facto Provado 7º) e a existência de uma segunda hipoteca registada a favor Banco 1..., SA em 28/06/2018, dois meses e meio depois (Facto Provado 17º), resulta claro que esta segunda hipoteca foi ignorada pela consultora imobiliária EE e nunca foi transmitida a sua existência aos AA, ora recorrentes.

13ª- Deverão, assim, os “Factos Não Provados” enunciados supra na 1ª Conclusão, ser dados como Provados.

14ª- A Ré mediadora imobiliária foi negligente ao não informar a existência das hipotecas sobre o imóvel antes da celebração do contrato promessa e ao permitir que os compradores o assinassem.

15ª- Por sua causa, os compradores, ora recorrentes, entregaram o sinal, no montante de 50.000€ ao vendedor, razão pela qual se tornou responsável pela reparação desse dano.

16ª- Existe também responsabilidade da Ré Seguradora, na medida em que está em causa uma situação de responsabilidade civil profissional da mediadora.

17ª- Por esta via, devem as 2ª e 3ªas Rés (respectivamente A..., Unipessoal, Ldª e B..., SA) ser condenadas a pagar aos AA o valor de 50.000€ correspondente ao valor do sinal prestado, equivalente ao dano efectivamente sofrido pelos Autores.

18ª- A douta sentença recorrida violou, por erro de apreciação da prova, entre outros preceitos, o disposto nos Arts 413, 414, 607, nºs 4 e 5 do CPC, bem como o Art. 17 da Lei 15/2013, de 8 de Fevereiro (Regime Jurídico da Actividade de Mediação Imobiliária) e o Artº 8º da Lei nº 24/96, de 31/07 (Lei do Consumidor), devendo ser revogada.


***

Termos em que V. Exas concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações,

Farão inteira JUSTIÇA.”


*

A 3ª R. seguradora veio interpor contra-alegações, delas resultando as seguintes conclusões:

“1. A acção julgada parcialmente procedente e, em consequência, foi o Réu CC condenado a pagar aos Autores a quantia de € 100.000,00 e as Rés A... (mediadora imobiliária) e B... (seguradora) absolvidas do pedido de € 50.000,00.

2. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelos Recorrentes que pretendem, assim, uma alteração da decisão quanto à matéria de facto dada como não provada, a qual nunca poderia proceder, relativamente à matéria constante do número 14 dos Factos não provados, uma vez que é conclusiva.

3. A decisão quanto à matéria de facto está clara e exaustivamente fundamentada na douta sentença recorrida e não foram indicados os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida.

4. No caso em apreço, coloca-se a questão de saber se os Autores tinham (ou não), na altura da assinatura do contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa, conhecimento da existência de duas hipotecas e se a existência dessas hipotecas era condição impeditiva para a celebração da escritura pública de compra e venda do mesmo imóvel.

5. Da documentação junta aos autos resulta que, na data da celebração do contrato promessa da compra e venda do imóvel em causa (2018.10.02) estavam registadas hipotecas e que, só após esta data, foram registadas penhoras para garantia das quantias exequendas de € 167.266,05, de € 2.850,40 e de € 356.979,98.

6. A alegação de que a mediadora nunca alertou os Recorrentes para a existência de hipotecas consubstancia uma incongruência uma vez que estas estavam registadas e o registo predial, ao qual qualquer interessado pode ter acesso, destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.

7. Pelo facto de serem estrangeiros e alegadamente não conhecerem a língua nem as leis nacionais, os Recorrentes deveriam ter adoptado todos os cuidados que a situação concreta lhes impunha, que consistia em reunir todas as informações relevantes sobre o imóvel que pretendiam adquirir bem como em recorrer aos serviços de um profissional com experiência e qualificações (Advogado ou Solicitador), tal como faria uma pessoa responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater famílias.

8. Apesar de tudo, os Autores recorreram aos serviços de uma empresa especializada no acompanhamento global de investimentos de Franceses em Portugal que conhecia ou, no mínimo, estava obrigada a conhecer a situação registral do prédio.

9. A ser verdade o alegado pelos Recorrentes, esta empresa é a primeira responsável pelo alegado desconhecimento da existência de duas hipotecas sobre o imóvel em causa e pelo facto de estes terem assinado o contrato promessa de compra e venda e procedido à entrega de um sinal no valor de € 50.000,00, pelo é, no mínimo, estranho que a presente acção não tenha sido (também) intentada contra a empresa em causa.

10, Não obstante, a ser verdade o alegado - mas não provado – desconhecimento da existência de hipotecas sobre o imóvel em causa, coloca-se a questão de saber se a existência tais hipotecas era condição impeditiva para a celebração da escritura pública de compra e venda do mesmo imóvel.

11. É facto público e notório que todos os dias em Portugal são assinados contratos promessa de compra e venda de imóveis hipotecados bem como escrituras públicas de compra e venda de imóveis relativamente aos quais existem hipotecas registadas que são expurgadas/ canceladas na altura.

12. Não resultou provado que, aquando da assinatura do contrato promessa de compra e venda, o promitente vendedor estivesse em situação de incumprimento perante os credores hipotecários tanto mais que não estava registada, na altura, qualquer penhora para garantia de quantias exequendas.

13. Um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual consiste precisamente na existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

14. No caso em apreço, o facto consiste precisamente no desconhecimento da existência das duas hipotecas sobre o imóvel, decorrente da violação do dever de informação imputável à mediadora imobiliária, e o dano na perda do sinal em consequência do incumprimento do contrato promessa de compra e venda por parte do promitente vendedor.

15. Mesmo admitindo que os Recorrentes desconheciam a existência de duas hipotecas – tese pouco verosímil que não ficou provada – em consequência da alegada violação do dever de informação por parte da mediadora imobiliária, parece evidente, com base nos documentos junto aos autos e nas regras da experiência comum, que não existe nexo de causalidade entre a conduta daquela e a perda do sinal dado que o incumprimento do contrato promessa de compra e venda resultou da existência de penhoras de valor muito elevado que foram registadas em consequência da situação de mora em que se encontrava o promitente vendedor.

16. Conclui-se, assim, que não se verificou qualquer incumprimento do dever de informação por parte da mediadora imobiliária, segurada da Recorrida B..., mas, mesmo que assim não fosse, não se verificou no caso em apreço qualquer nexo de causalidade entre essa violação e a perda do sinal em consequência do incumprimento do contrato promessa de compra e venda.

17. A douta sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura pelo que deve ser confirmada na íntegra.

Nestes termos e nos mais de direito, deve o recurso ser julgado improcedente, com todas as consequências legais daí decorrentes, assim se fazendo JUSTIÇA”


***


QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apreciar:
a) se a matéria de facto apreciada pelo tribunal recorrido, deve ser alterada;
a) se existe responsabilidade da mediadora imobiliária pelo incumprimento do dever de informação dos ónus e encargos incidentes sobre o imóvel, causal dos danos ocorridos na esfera jurídica dos AA.;
b) se a violação deste dever de informação se insere nas coberturas do seguro celebrado com a 3ª R.


*


Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.

*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“1º Os Autores, ambos de nacionalidade francesa, em 2 de outubro de 2018, celebraram com o primeiro Réu um contrato promessa de compra e venda através do qual este lhes prometeu vender, livre de ónus ou encargos, o seguinte imóvel:

Moradia unifamiliar de cave, rés do chão, 1º andar e logradouro, sita na Rua ..., ..., ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº ...03 da freguesia ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...02 da referida freguesia ....

2º O preço estipulado foi de 250.000,00€.

3º Os Autores entregaram ao Réu, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 50.000,00€.

4º Ficando de entregar a restante parte do preço, no montante de 200.000,00€ (duzentos mil euros) no dia da escritura de compra e venda.

5º Neste negócio houve intervenção da mediadora imobiliária, segunda Ré, “A..., Ld.ª” detentora da licença AMI nº ...24.

6º Esta Ré, é franchisado da marca ..., com sede na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., em ..., com a Licença AMI ...24, emitida em 26/12/2014 pelo IMPIC.

7.º Em 10 de Abril de 2018 o 1.º R celebrou com a 2.ª R. o Contrato de Mediação Imobiliária N.º ...04, cfr. doc. 2 que junta, obrigando-se a 2.ª pelo referido vinculo contratual, a procurar um interessado para a compra do imóvel propriedade do 1.º R., pelo preço de 225 000.00€ (Duzentos e vinte e cinco mil euros), mediante a remuneração de 5% sob o preço, acrescida de IVA à taxa legal em vigor.

8.º Declarou o 1.º R. neste contrato incidir sobre o imóvel um ónus no montante de 120 000,00€ (Cento e vinte mil euros).

9º A mediadora imobiliária, segunda Ré, nos inícios de Setembro de 2018, mostrou aos Autores o imóvel em causa.

10º Negociou com eles as condições para a sua aquisição e os termos do contrato promessa.

11º Tendo o contrato promessa sido assinado pelos Autores nas instalações da mediadora.

12º Aquando do momento da assinatura do contrato, o promitente vendedor, ora Réu, não esteve presente, estando presentes apenas os Autores e uma agente ou consultora da segunda Ré, de nome GG.

13º Foi esta consultora da Ré, que, nos inícios de Setembro de 2018, fez a visita do imóvel com os Autores.

14º A escritura de compra e venda deveria ser celebrada até ao dia 19 de Outubro de 2018, prazo máximo estabelecido pelas partes.

15º No dia 19 de Outubro, no Cartório Notarial a cargo da Drª HH, pelas 10h, estava marcada a referida escritura.

16º Sucede que, à hora marcada e na meia hora subsequente, não compareceu o mencionado vendedor, ora R., nem um seu representante.

17º Constam do registo duas hipotecas voluntárias sobre o imóvel:

Uma registada a favor da Banco 2..., SA, registada pela Ap. ...98 de de 25/06/2009 e outra registada a favor do Banco 1..., SA, registada pela Ap. ...37 de 28/06/2018.

18º O imóvel era vendido “livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades”.

19º Os Autores em colaboração com a segunda Ré, remarcaram a escritura para dia 31/10/2018, pelas 11h 30m, no Cartório Notarial supra referido.

20º Na data supra mencionada, uma vez mais, o Réu não compareceu à escritura nem se fez representar, ficando reagendada a data de 12/11/2018, pelas 12h, para a concretização da mesma.

21º Na referida data, uma vez mais, o Réu não compareceu à escritura, nem se fez representar.

22º Os Autores obtiveram a informação que o Réu, promitente vendedor, se teria ausentado para o estrangeiro tendo havido várias tentativas no sentido de ele passar procuração a alguém que o representasse na referida escritura.

23º Ele chegou a mostrar esse propósito por email de 21/12/2018 dirigido ao mandatário dos Autores.

24º De novo, os Autores marcaram escritura para o dia 15 de março de 2019 no Cartório Notarial a cargo da Drª II, não tendo, uma vez mais, o Réu CC comparecido.

25º Tinham sido registadas duas penhoras sobre o imóvel a favor do Banco 1..., uma em 12/04/2019 para garantia da quantia exequenda de 167.266,05€ e outra em 16/07/2019 para garantia da quantia exequenda de 2.850,00€, respetivamente.

26º Bem como uma hipoteca legal registada a 01/08/2019 a favor da Segurança Social para garantia da quantia exequenda de 356.664,75€, juros no valor de 39.373,04€ e custas, referente ao processo de execução fiscal nº ...94.

27º Dado o tempo decorrido e em face deste circunstancialismo, os Autores, por cartas registadas de 27/09/2019, comunicaram aos Réus CC e mediadora imobiliária, a perda do interesse no negócio.

28.º Em todas as angariações de imóveis realizadas pela 2.ª R., é prática comum e obrigatória solicitar aos proprietários todos os documentos referentes aos mesmos e que permitam aferir da sua aptidão para a venda, procedimento que in casu não foi exceção.

29.º A 2.ª R. foi contactada na pessoa da consultora GG pela empresa “C...”, empresa sediada em Lisboa com escritório em França, especializada no acompanhamento global de investimentos de Franceses em Portugal.

30º A Ré mediadora imobiliária, para garantia da responsabilidade emergente da sua atividade, era titular de um seguro de responsabilidade civil até ao valor de 150.000,00€, com uma franquia de 10% do valor da indemnização, outorgado com a 3ª Ré B..., titulado pela apólice nº ...27, cujo teor e conteúdo se dá aqui por reproduzido.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram os seguintes factos:

Da petição inicial:

8º… sem nunca os alertar de que recaíam sobre o imóvel duas hipotecas

15º Os Autores, nesta data, foram surpreendidos…

16º Tal factualismo nunca lhes tinha sido anteriormente comunicado, nomeadamente aquando do momento da assinatura do contrato promessa.

24º Entretanto, os Autores tomaram conhecimento…

Da contestação da imobiliária:

6.º Tendo a venda do imóvel sido publicitada pelo valor constante no contrato, de acordo com as declarações prestadas.

12.º Tendo esta empresa acompanhado os AA. neste processo [conclusivo: acompanhar como? Em que termos? Em que atos?] na pessoa de FF e da consultora JJ, a quem foi prestada toda a informação solicitada, tendo-lhe inclusivamente sido entregues os documentos referentes ao imóvel.

15.º Foi em virtude do contacto estabelecido pela “C...” em representação dos AA., que a consultora da 2.ª R. solicitou ao 1.º R. um documento bancário que atestasse o real valor do encargo que impendia sobre o imóvel;

16.º Tendo a consultora GG acompanhado o R. CC à Banco 2... e ao Banco 1..., tendo percebido nessa data que a venda só seria possível pelo montante de 250 000,00 (Duzentos e cinquenta mil euros) e não pelo valor constante do Contrato de Angariação;

17.º Ora, em virtude desta informação, a consultora GG contactou a citada empresa, tendo dado conta que o imóvel só poderia ser vendido pelo valor de 250 000,00€ e não pelo preço de 225 000,00€ inicialmente indicado.

18.º Informação que naturalmente causou desagrado aos AA., não os tendo porém demovido do intento de adquirir aquele imóvel.

19.º Sendo sabedores em absoluto do motivo da subida de preço e dos ónus reais que recaiam sobre o imóvel.

20.º Daí terem celebrado o Contrato Promessa de Compra e Venda, nas condições em que o fizeram e perfeitamente cientes dos encargos do prédio urbano.

40.º a consultora da 2.ª R., GG … tendo informado os AA. e seus representantes de forma clara e inequívoca, designadamente dos encargos que recaiam sob o imóvel;

Da resposta dos autores:

14º Se os Autores tivessem sido esclarecidos e informados previamente da existência das hipotecas, não teriam assinado o contrato promessa e entregue o valor de 50.000€, correspondente ao montante do sinal.

Inexistem outros factos articulados pelas partes suscetíveis de inclusão entre os factos provados e não provados, quer por encerrarem matéria conclusiva e/ou de direito quer por traduzirem mera impugnação da matéria alegada na petição inicial ou instrumental para a apreciação da causa.”



*

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Insurge-se a recorrente contra a decisão que decretou a absolvição das 2º e 3º RR. do pedido, impetrando a alteração da matéria de facto que o tribunal a quo considerou como não provada elencada nos pontos 8, 15, 16 e 24 da p.i. e 14 da resposta dos AA., indicando como fundamento da sua discordância, as declarações das testemunhas DD, EE, FF e as declarações de parte do A. AA, das quais considera resultar que os AA. não sabiam da existência de duas hipotecas legais incidentes sobre o imóvel e que só delas tomaram conhecimento aquando da primeira ida ao notário para realização da escritura pública. Alegam, ainda, que no contrato de mediação imobiliária consta um ónus declarado à mediadora no valor de € 120.000,00, tendo após a outorga deste contrato de mediação imobiliária sido constituída uma segunda hipoteca junto do Banco 1..., totalmente ignorada pela mediadora que nunca prestou esta informação aos AA.

Alegam que estes factos são relevantes para a aferição da violação do dever de informação da mediadora e do nexo de causalidade entre esta violação e o dano causado na sua esfera jurídica.

A este respeito vem a seguradora 3ª R. alegar que por um lado, o ponto 14 da resposta é conclusivo pelo que nunca poderia ter sido considerado assente, em segundo lugar que os ónus e encargos incidentes sobre o imóvel são de acesso público, incumbindo aos AA., ou à empresa que contactou a R. mediadora, o dever de se informarem sobre a situação do prédio, nomeadamente se sobre este incidiam hipotecas e respectivo valor.

Decidindo:

a) Da apreciação do recurso quanto à matéria de facto;

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [3]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.[4]

Passando à sua apreciação concreta, nas suas alegações e conclusões cumpre a recorrente este ónus, pelo que nada obsta à admissibilidade do recurso nesta parte.

Assim sendo, resulta do disposto no artº 607, nº4, do C.P.C. que na formação da sua convicção o juiz deve analisar criticamente as provas, indicando as ilações retiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que forem decisivos para a sua convicção. Deve ainda tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito. Se o tribunal violar este comando, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, alterar a matéria de facto, nos termos previsto no artº 662 nº1 do C.P.C., introduzindo estes factos no elenco de factos provados.

No que se reporta aos demais factos não integrados no elenco acima referido e não susceptíveis apenas de prova documental ou confessória, o tribunal é livre de os valorar livremente de acordo com a prova produzida. Se produzida prova testemunhal, há que referir que o tribunal é plenamente livre de apreciar os depoimentos e valorar a credibilidade das testemunhas, com apoio em múltiplos factores “atinentes às características do evento, da testemunha, do comportamento desta e do teor das suas declarações.”[5], devendo o julgador verificar a razão de ciência da testemunha, a parcialidade ou imparcialidade desta mesma testemunha (devido a relações de amizade, trabalho, parentesco ou outras que possam afectar o seu depoimento) e a coerência do seu depoimento, inclusive por contraponto a outros meios de prova (nomeadamente documentos) ou a factos que estejam já assentes.

O mesmo princípio se aplica à prova por declarações de parte, sujeitas estas à livre apreciação do tribunal, conforme dispõe o artº 466 nº3 do C.P.C. Recorde-se que no âmbito do anterior C.P.C a parte estava impedida de depor como testemunha e só era admitido o seu depoimento, nos termos previstos no artº 552 do C.P.C., quando se visasse obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente. No entanto, volvendo a Pires de Sousa, “a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia – com frequência – a assimetrias no exercício do direito à prova dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. Constitui exemplo paradigmático o julgamento de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Por outro lado, existem factos integrantes do thema probandum que são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta», factos respeitantes a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes». No que tange a este tipo de factos demonstráveis por prova tendencialmente única, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar «uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas subjetivas.»[6]

Assim se introduziu no novo CPC as declarações de parte, constando da respectiva exposição de motivos que “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.”

Sendo admitida a prestação de declarações das partes sobre factos pessoais de que tenham conhecimento, a credibilidade destas declarações, sujeita à livre apreciação do tribunal, deve ser aferida casuisticamente, em conjunto com outros meios de prova juntas aos autos e efectuando uma análise crítica deste depoimento, sem que o julgador possa desconsiderar estes depoimentos à partida, por provindos de quem tem interesse na causa, sob pena, como nos dá nota Pires de Sousa[7]de esvaziarmos a utilidade e a potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal”.[8]

Ou seja, as declarações das partes não devem ser desvalorizadas apenas por provirem de quem tem interesse na causa, mas devem ser valoradas pelo tribunal nos mesmos moldes em que são valorados outros meios de prova, igualmente sujeitos à livre apreciação do tribunal, não podendo ser considerados factos com base nas declarações de parte, contrários aos já admitidos por acordo, contrários à prova produzida, ou sem qualquer base de sustentação no conjunto da prova produzida.

Volvendo à impugnação da matéria de facto, pontos essenciais a aferir para procedência da pretensão formulada pelos AA. contra a mediadora imobiliária, 2ª R., consistem, por um lado, na prova do não cumprimento do dever de informação por parte da 2ª R. mediadora imobiliária, mais concretamente do dever de informar os promitentes compradores, em data prévia à celebração do contrato promessa em causa, de que sobre o imóvel incidiam ónus e encargos. Efectivamente, decorre do disposto no artº 17, nº1, alíneas b) e c), o dever de informação da mediadora, nele se incluindo os ónus e encargos incidentes sobre o imóvel e todas as informações que possam colocar em risco a realização do contrato prometido. Constituem normas de protecção dos destinatários, cuja violação pela mediadora imobiliária, caso venha a causar danos na esfera jurídica dos destinatários (promitentes-compradores) a pode fazer incorrer em responsabilidade civil perante estes.

É também certo que a violação destes deveres de informação se integra no elenco da responsabilidade civil extra-contratual e que, assim, cabe aos lesados o ónus de prova da violação deste dever, da culpa, do dano e do nexo de causalidade entre esta violação de uma norma de protecção e o dano (artº 483 e 487 do C.C.).

Importa assim a este tribunal, verificar se este ónus foi cumprido pelos recorrentes e se na apreciação da prova perante si produzida o tribunal de primeira instância cumpriu com o disposto nos artºs 607, nº4 e 5 do C.P.C., ou se, pelo contrário, incorreu em erro de julgamento.

Em primeiro lugar, porque relevante, para o conhecimento da impugnação da matéria de facto, há que referir que o tribunal recorrido fez uma incorrecta leitura da certidão de registo predial que foi junta aos autos e incumpriu assim o seu dever de consignar os factos provados por documento, como sejam a totalidade dos ónus e encargos que incidiam sobre este imóvel. Com efeito, não é correcto consignar no artº 17 da matéria de facto provada que “Constam do registo duas hipotecas voluntárias sobre o imóvel: Uma registada a favor da Banco 2..., SA, registada pela Ap. ...98 de de 25/06/2009 e outra registada a favor do Banco 1..., SA, registada pela Ap. ...37 de 28/06/2018.”, quando o que resulta da certidão junta aos autos é que constam do registo deste imóvel, as seguintes hipotecas, sendo o valor máximo assegurado, de € 302.741,2, assim descriminadas:

-hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 29/08/08, pelo valor de capital de € 160.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 225.180,80;

-hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 29/08/2008 pelo valor de capital de € 40.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 56.295,20;

- hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 25/06/2009 pelo valor de capital de € 15.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 21.110,70;

- hipoteca a favor do Banco 1..., constituída em 28/06/2018 pelo valor de capital de € 120.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 154.500,00.

Não constando do registo qualquer facto extintivo destas hipotecas, impõe-se a alteração oficiosa deste ponto 17, nos termos acima consignados (artº 662, nº1 do C.P.C.)

O segundo ponto a apurar prende-se com a efectiva prestação desta informação aos AA. A este respeito, alegam os AA. que a matéria de facto referida na sua impugnação deve ser considerada provada, com fundamento no depoimento das testemunhas que indicam, das declarações de parte do A. marido e do próprio teor do contrato de mediação imobiliária.

Refira-se desde já que o teor do contrato de mediação imobiliária é relativamente inócuo para o efeito, na medida em que o que dele consta releva apenas nas relações entre o vendedor e a imobiliária, cabendo àquele vendedor informar correctamente a imobiliária das características do imóvel e dos ónus e encargos que sobre este incidem, mas não desobriga a imobiliária do dever, perante terceiros, de verificar se estas informações são verdadeiras e se existem ónus e encargos que incidam sobre o imóvel, ainda que não declarados pelo vendedor, nomeadamente pela consulta das respectivas certidões prediais. Ou seja, o facto de terem sido declarados ónus eventualmente inferiores aos existentes, não desonera a imobiliária do dever de averiguação da real situação do imóvel e não constitui prova de que a imobiliária apenas declarou, ou podia declarar, os ónus referidos neste contrato de mediação imobiliária.

Em qualquer caso, a imobiliária estava obrigada a certificar-se que o imóvel poderia ser vendido livre de ónus e encargos e, no caso, como o presente, em que os ónus registados excediam o valor de venda, exigia-se mesmo que solicitasse ao seu cliente, proponente vendedor, uma certidão de dívida, de forma a certificar-se de que nada obstava à concretização do negócio visado (artº 17 nº1, al. c) da Lei nº 15/2013 de 8 de Fevereiro) que consistia na venda do imóvel livre de ónus e encargos.

Expostos estes considerandos, sobre as efectivas informações transmitidas pela mediadora imobiliária, em cumprimento deste dever de informação, depuseram as testemunhas DD, pessoa que indicou ter conhecido os AA. (detendo o irmão a firma C...) e que a pedido destes os acompanhou ao notário, como tradutor. Deste depoimento apenas resultou que os AA. se mostraram preocupados, uma vez que tinham obtido informação, não sabe como, por quem, ou quando, lhes foi prestada, de que o imóvel estava onerado com hipotecas. O depoimento desta testemunha é inócuo para a pretensão dos AA. de verem provados estes factos, porque a testemunha a este respeito nada sabia de concreto.

Mais relevante se afigurou o depoimento da testemunha EE, funcionária da agência imobiliária que mediou este imóvel e que acompanhou os AA. na visita e na data de celebração do contrato promessa de compra e venda. Depôs a aludida testemunha no sentido de que foi contactada pelo vendedor para intermediar a venda deste imóvel, tendo os compradores sido apresentados pelo “C...”, cuja relação concreta com os AA. (os acordos estabelecidos entre estes AA. e a referida firma) desconhece. A referida testemunha a respeito das hipotecas incidentes sobre o imóvel, declarou que só tinha conhecimento da existência de uma hipoteca contraída para aquisição do imóvel e que consta referida pelo vendedor no contrato de mediação imobiliária junto como doc. 4 à contestação da 2ª R. Referiu, ainda, não fazer ideia de que existia outra hipoteca contraída junto do Banco 1... e que só soube da existência desta hipoteca pelo vendedor quando foi necessário tratar do seu distrate. Deste depoimento retira-se, conforme referem os AA., que em data anterior à celebração do contrato promessa a referida mediadora não tinha conhecimento destes hipotecas e consequentemente não poderia prestar esta informação aos AA., como efectivamente a não prestou. Mais referiu esta testemunha que não fala francês e que para comunicar com os AA. se socorreu de colegas da agência que falavam francês, que, no entanto, não poderiam prestar mais informações dos que as transmitidas pela referida testemunha.

A este depoimento acresce ainda que em nenhum momento é alegado em que data e porque meio (verbal, carta ou email) foi comunicado aos AA. a existência de ónus e encargos sobre o imóvel que, recorde-se, excediam o valor do próprio imóvel. Não consta, igualmente, dos autos um único email, sms ou qualquer outra comunicação, dos quais resulte que tenha sido comunicado aos AA., ou a qualquer representante por estes indicado, qualquer ónus e encargos incidentes sobre o imóvel, como seria natural e razoável que acontecesse, tendo em conta as hipotecas existentes e o valor máximo por estas garantido.

É certo que a testemunha KK, funcionária da R. imobiliária, referiu ter visto os documentos do imóvel e que destes documentos resultava a oneração do imóvel, com hipotecas de valor considerável e que terá sido a existência destas hipotecas que determinou um aumento do valor do imóvel, proposto numa reunião em que afirmou ter estado presente (em data não concretizada), em conjunto com a testemunha EE e a testemunha FF (alegado representante da C...), não sabendo se nessa reunião estavam também os compradores, mas tendo conhecimento de que não falam português. Este depoimento é desmentido pelo depoimento da testemunha FF, sendo certo que não foi junto qualquer email, sms ou outro, para marcação de uma reunião, muito menos contendo qualquer informação sobre a existência de ónus e encargos e propostas para aumento do valor do imóvel, como seria natural que acontecesse, caso tais propostas e reuniões existissem, em especial envolvendo clientes que desconheciam a língua nacional e não se tendo sequer demonstrado que a firma “C...” fosse mandatária dos AA. ou por qualquer modo os representasse.

A alegação da 2ª R. de que teria sido negociado o aumento do valor para cobrir as hipotecas existentes é incongruente, tendo em conta que o valor acordado com os AA. não cobria o valor das hipotecas existentes, como resulta dos emails juntos pela própria R., na sua contestação. Estes emails referem-se precisamente às tentativas de distrate destes ónus, trocados entre a imobiliária, o vendedor e os representantes dos bancos detentores destas hipotecas e o que deles resulta é que o valor das hipotecas era superior ao valor da venda, discutindo-se nestes emails um contrato de restruturação de dívida para pagamento do remanescente ao Banco 1..., no valor de cerca de € 70.000,00.

Acresce que o contrato promessa assinado pelos promitentes-compradores é omisso sobre qualquer ónus e encargos incidentes sobre o imóvel

Também não resultou do depoimento da testemunha EE que na data das escrituras estivessem presentes quaisquer funcionários quer da Banco 2..., quer do Banco 1.... Dos certificados apresentados resulta que não só não compareceu o comprador como não “foram por ele apresentados os documentos bancários de autorização de cancelamento das hipotecas bancárias incidentes sobre o indicado imóvel que lhe competia apresentar, já que o imóvel é vendido livre de ónus e encargos.”

Por último, o declarante de parte prestou depoimento, do qual resultou que só tomou conhecimento da existência de ónus e encargos na data da escritura, a qual se não poderia realizar, não só por ausência do vendedor, mas porque não foram apresentados os documentos de distrate das hipotecas, conforme resulta da certidão emitida.

Estas declarações são confirmadas pela demais prova produzida e desta resulta assim que efectivamente a 2ª R. não informou, em data prévia à assinatura do contrato promessa, que sobre o imóvel em causa incidiam hipotecas, nem comunicou os valores por estas, assegurados.

Dá-se assim provimento à impugnação dos AA., considerando-se como provado o teor dos pontos 8, 15, 16 e 24, com a numeração 17-A e a seguinte redacção:

A 2ª R. não informou os AA., promitentes-compradores, em data anterior à celebração do contrato-promessa de compra e venda, da existência das hipotecas referidas no ponto 17.”  

Que essa informação era essencial resulta do próprio contrato promessa: o imóvel era vendido livre de ónus e encargos, pelo que a existência destes ónus e encargos e o seu valor real, teria de ter sido apercebido e acautelado em data anterior à celebração da promessa de compra e venda, tendo em conta que excedia o valor da propriedade e era real o risco de perda do sinal e do negócio, como veio a acontecer. As declarações de parte do A. marido vão neste sentido, sendo perfeitamente credível que assim fosse, ou seja, que os AA. não teriam subscrito este contrato nestes termos e entregue este montante de sinal, se soubessem dos ónus e encargos que incidiam sobre o imóvel, segundo os padrões de diligência, atribuíveis a um homem médio.

Dá-se assim provimento á impugnação dos AA., considerando assente igualmente o ponto 14 do articulado de resposta, sob a numeração 31, ou seja, que:

Se os Autores tivessem sido esclarecidos e informados previamente da existência das hipotecas referidas no ponto 17, não teriam assinado o contrato promessa e entregue o valor de 50.000€, correspondente ao montante do sinal.”


*

Fixa-se assim, a matéria de facto definitiva da seguinte forma:

“1º Os Autores, ambos de nacionalidade francesa, em 2 de outubro de 2018, celebraram com o primeiro Réu um contrato promessa de compra e venda através do qual este lhes prometeu vender, livre de ónus ou encargos, o seguinte imóvel:

Moradia unifamiliar de cave, rés do chão, 1º andar e logradouro, sita na Rua ..., ..., ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº ...03 da freguesia ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...02 da referida freguesia ....

2º O preço estipulado foi de 250.000,00€.

3º Os Autores entregaram ao Réu, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 50.000,00€.

4º Ficando de entregar a restante parte do preço, no montante de 200.000,00€ (duzentos mil euros) no dia da escritura de compra e venda.

5º Neste negócio houve intervenção da mediadora imobiliária, segunda Ré, “A..., Ldª ” detentora da licença AMI nº ...24.

6º Esta Ré, é franchisado da marca ..., com sede na Avenida ..., ..., freguesia ... e ..., em ..., com a Licença AMI ...24, emitida em 26/12/2014 pelo IMPIC.

7.º Em 10 de Abril de 2018 o 1.º R celebrou com a 2.ª R. o Contrato de Mediação Imobiliária N.º ...04, cfr. doc. 2 que junta, obrigando-se a 2.ª pelo referido vinculo contratual, a procurar um interessado para a compra do imóvel propriedade do 1.º R., pelo preço de 225 000.00€ (Duzentos e vinte e cinco mil euros), mediante a remuneração de 5% sob o preço, acrescida de IVA à taxa legal em vigor.

8.º Declarou o 1.º R. neste contrato incidir sobre o imóvel um ónus no montante de 120 000,00€ (Cento e vinte mil euros).

9º A mediadora imobiliária, segunda Ré, nos inícios de Setembro de 2018, mostrou aos Autores o imóvel em causa.

10º Negociou com eles as condições para a sua aquisição e os termos do contrato promessa.

11º Tendo o contrato promessa sido assinado pelos Autores nas instalações da mediadora.

12º Aquando do momento da assinatura do contrato, o promitente vendedor, ora Réu, não esteve presente, estando presentes apenas os Autores e uma agente ou consultora da segunda Ré, de nome GG.

13º Foi esta consultora da Ré, que, nos inícios de Setembro de 2018, fez a visita do imóvel com os Autores.

14º A escritura de compra e venda deveria ser celebrada até ao dia 19 de Outubro de 2018, prazo máximo estabelecido pelas partes.

15º No dia 19 de Outubro, no Cartório Notarial a cargo da Drª HH, pelas 10h, estava marcada a referida escritura.

16º Sucede que, à hora marcada e na meia hora subsequente, não compareceu o mencionado vendedor, ora R., nem um seu representante.

17º Constam do registo deste imóvel, as seguintes hipotecas, sendo o valor máximo assegurado, de € 302.741,2, assim descriminadas:

-hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 29/08/08, pelo valor de capital de € 160.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 225.180,80;

-hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 29/08/2008 pelo valor de capital de € 40.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 56.295,20;

- hipoteca a favor da Banco 2..., constituída em 25/06/2009 pelo valor de capital de € 15.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 21.110,70;

- hipoteca a favor do Banco 1..., constituída em 28/06/2018 pelo valor de capital de € 120.000,00, sendo o montante máximo assegurado de € 154.500,00.

17º-A A 2ª R. não informou os AA., promitentes-compradores, em data anterior à celebração do contrato-promessa de compra e venda, da existência das hipotecas referidas no ponto 17.

18º O imóvel era vendido “livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades”.

19º Os Autores em colaboração com a segunda Ré, remarcaram a escritura para dia 31/10/2018, pelas 11h 30m, no Cartório Notarial supra referido.

20º Na data supra mencionada, uma vez mais, o Réu não compareceu à escritura nem se fez representar, ficando reagendada a data de 12/11/2018, pelas 12h, para a concretização da mesma.

21º Na referida data, uma vez mais, o Réu não compareceu à escritura, nem se fez representar.

22º Os Autores obtiveram a informação que o Réu, promitente vendedor, se teria ausentado para o estrangeiro tendo havido várias tentativas no sentido de ele passar procuração a alguém que o representasse na referida escritura.

23º Ele chegou a mostrar esse propósito por email de 21/12/2018 dirigido ao mandatário dos Autores.

24º De novo, os Autores marcaram escritura para o dia 15 de março de 2019 no Cartório Notarial a cargo da Drª II, não tendo, uma vez mais, o Réu CC comparecido.

25º Tinham sido registadas duas penhoras sobre o imóvel a favor do Banco 1..., uma em 12/04/2019 para garantia da quantia exequenda de 167.266,05€ e outra em 16/07/2019 para garantia da quantia exequenda de 2.850,00€, respetivamente.

26º Bem como uma hipoteca legal registada a 01/08/2019 a favor da Segurança Social para garantia da quantia exequenda de 356.664,75€, juros no valor de 39.373,04€ e custas, referente ao processo de execução fiscal nº ...94.

27º Dado o tempo decorrido e em face deste circunstancialismo, os Autores, por cartas registadas de 27/09/2019, comunicaram aos Réus CC e mediadora imobiliária, a perda do interesse no negócio.

28.º Em todas as angariações de imóveis realizadas pela 2.ª R., é prática comum e obrigatória solicitar aos proprietários todos os documentos referentes aos mesmos e que permitam aferir da sua aptidão para a venda, procedimento que in casu não foi exceção.

29.º A 2.ª R. foi contactada na pessoa da consultora GG pela empresa “C...”, empresa sediada em Lisboa com escritório em França, especializada no acompanhamento global de investimentos de Franceses em Portugal.

30º A Ré mediadora imobiliária, para garantia da responsabilidade emergente da sua atividade, era titular de um seguro de responsabilidade civil até ao valor de 150.000,00€, com uma franquia de 10% do valor da indemnização, outorgado com a 3ª Ré B..., titulado pela apólice nº ...27, cujo teor e conteúdo se dá aqui por reproduzido.

31-“Se os Autores tivessem sido esclarecidos e informados previamente da existência das hipotecas referidas no ponto 17, não teriam assinado o contrato promessa e entregue o valor de 50.000€, correspondente ao montante do sinal.”


***


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Invocam os recorrentes, como fundamento do seu recurso a violação por parte da 2ª R. dos deveres que lhe são impostos pelo artº 17, nº1, da Lei nº 15/2013 de 8 de Fevereiro (conformando-o com a disciplina constante do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006 e o artº 8º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho (Lei do Consumidor), ao não informar os promitentes compradores de que sobre o imóvel que pretendiam adquirir, incidiam ónus e encargos, de valor superior ao valor de alienação deste imóvel, não distratados pelo promitente vendedor, que essa informação era essencial para o negócio a realizar, resultando da violação desse dever um dano para os AA. correspondente ao valor de sinal entregue.

Contrapõe a R. seguradora que se trata de informação pública, facilmente acessível a qualquer cidadão e que os AA. deveriam “ter adoptado todos os cuidados que a situação concreta lhes impunha, que consistia em reunir todas as informações relevantes sobre o imóvel que pretendiam adquirir bem como em recorrer aos serviços de um profissional com experiência e qualificações (Advogado ou Solicitador), tal como faria uma pessoa responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater famílias.” e que, ao terem recorrido aos serviços de “uma empresa especializada no acompanhamento global de investimentos de Franceses em Portugal que conhecia ou, no mínimo, estava obrigada a conhecer a situação registral do prédio”, deverá ser esta a responsável pelo eventual desconhecimento dos AA. e pelos danos sofridos.

Por último, contrapõe que não existe nexo causal entre a eventual violação dos deveres de informação da 2ª R. e o dano, pois que os ónus não eram impeditivos da realização do contrato prometido.

A Lei nº 15/2013, no seu artº 17 nº1, impõe às empresas de mediação imobiliária, obrigações para com os clientes e os destinatários da sua actividade de intermediação imobiliária, entendidos como “todos os terceiros interessados no contrato que o cliente da empresa de mediação visa realizar, angariados pela empresa de mediação ou que com ela tenham entrado em contacto com vista à realização do contrato prometido.

Constituem normas de protecção que visam proteger interesses alheios ao agente, ou seja à empresa de mediação imobiliária e que se violados e verificados os requisitos previstos no artº 483 nº1 do C.C., pode dar lugar a responsabilidade civil da empresa em causa perante o terceiro lesado.

Embora na actual redacção do artº 17, nº1 al. b) e c) se não faça já constar, á semelhança do artº 18, nº1, al. b) do D.L. 77/99 de 16/03/99 que as empresas mediadoras são obrigadas a certificar-se antes da celebração do contrato de mediação, “por todos os meios ao seu alcance, se as características do imóvel objecto do contrato de mediação correspondem às fornecidas pelos interessados contratantes e se sobre o mesmo recaem quaisquer ónus ou encargos”, deve entender-se que se mantém intocada esta obrigação nas alíneas b) e c) deste preceito, porque integrados nas características relevantes do imóvel essenciais ao negócio visado, por forma a evitar induzir em erro os destinatários desse negócio ou por em causa a concretização do negócio visado.[9]

Este dever de informação da mediadora imobiliária não é afastado nos casos em que a informação é de acesso público, como esta pretende. À mediadora imobiliária, no cumprimento das obrigações que resultam do nº1, cabe o dever de solicitar os documentos que comprovem a capacidade e legitimidade dos promitentes vendedores e características do imóvel, nomeadamente a existência de ónus ou encargos que sobre ele incidam e que possam influir no negócio (certidão da C.R.P. e declaração de dívida em caso de existência de ónus e encargos) e prestar essa informação aos que se mostrem interessados na aquisição deste imóvel, sem se puder escudar com o facto de estes também poderem ter acesso a esta informação, porque de consulta pública. Não resulta da norma em apreço, nem da ratio deste preceito, que este dever apenas existe para informação sigilosa ou não acessível por outros meios ao público em geral.

Este dever existe ainda que os promitentes vendedores se mostrem representados, inclusive por profissional forense, cabendo então à imobiliária prestar a informação ao indicado como representante ou mandatário do interessado no negócio.

Assim sendo, se a constituição de mandatário pelos destinatários da informação não desonera a mediadora dos seus deveres, a constituição de uma relação de mandato ou representação é facultativa, não sendo imposto por nenhum normativo legal a obrigatoriedade de os proponentes compradores se fazerem representar por profissional forense. No caso em apreço, não resultou sequer demonstrada nos autos que entre os AA. e a aludida firma (“C...”) tivesse sido estabelecida qualquer relação de representação.

Como refere Fernando Oliveira[10] os deveres de informação previstos no artº 17 da RJMI, “são deveres acessórios da prestação” e, no caso dos deveres de informação aos interessados no negócio, visam a sua protecção, não podendo a mediadora exonerar-se de responsabilidade, imputando o cumprimento deste dever ao próprio interessado ou a um seu representante.

Nesta medida, cabe às empresas prestadoras de bens ou serviços o dever de informar de forma completa e cabal os consumidores (quer os seus clientes quer os destinatários dos serviços por si prestados), não sendo exigível como salienta Fernando Oliveira[11] impor “que seja esta a tomar as medidas necessárias ao seu cabal esclarecimento”. De igual forma, porque no âmbito de uma relação de consumo, as exigências de cumprimento deste dever de informação, devem ser particularmente exigentes, não só pela desproporcionalidade de conhecimentos e meios do consumidor normal perante profissionais, como devem ser adequadas ao perfil do concreto destinatário deste dever de informação. Há que não olvidar que os AA. são de nacionalidade francesa, sem conhecimento da língua e das leis deste país, sendo pois mais premente a informação completa e esclarecida, por parte da mediadora, sobre todos os aspectos deste negócio que lhes propôs (cfr. artº 8 da Lei nº 24/96 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), assegurando que lhes era fornecida toda a informação necessária para a decisão de contratar e para aquilatarem dos riscos do negócio. A existência de ónus e encargos de elevado montante incidentes sobre o imóvel e que vieram a dar origem à sua penhora, era essencial a esta tomada de decisão e integra-se nos deveres de informação impostos à mediadora. A prestação de informação correcta e completa sobre qualquer bem ou serviço a um consumidor, constitui ainda um imperativo constitucional (cfr. artº 60 da nossa Constituição). Sobre o conteúdo deste direito à informação, esclarece ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira[12] que exige a prestação de informação “completa e leal capaz de possibilitar uma decisão consciente e responsável (sobre as características essenciais dos bens e serviços fornecidos, sobre a natureza, qualidade, composição, quantidade, durabilidade, origem, proveniência, modo de fabrico e ingredientes utilizados no fabrico, sobre o preço dos produtos, etc.).”

A modelação do dever imposto à mediadora por força do disposto no artº 17 do RJMI e 8 da LDC terá, assim, de ser conforme ao conteúdo deste direito constitucional, não podendo, nesta medida, a mediadora exonerar-se do cumprimento deste dever mediante a alegação de que os consumidores poderiam ter acesso a esta informação porque de natureza pública.

Concluindo pela existência deste dever de informação a cargo da mediadora, dos pontos 17 e 17-A dos factos provados resultou que a 2ª R. violou este dever, ao não informar os destinatários do negócio, das características do imóvel e de todas as circunstâncias que poderiam obstar ao negócio, ao omitir aos AA., promitentes-compradores, a existência de hipotecas registadas sobre o imóvel, cujo capital máximo assegurado perfazia quantia superior ao valor de aquisição do imóvel. Tendo em conta que o imóvel era vendido livre de ónus e encargos, estes ónus eram, ao contrário do que alega a seguradora, potencialmente impeditivos da realização do contrato definitivo e eram essenciais à tomada de uma “decisão consciente e responsável” sobre o negócio proposto.

Assente assim a violação deste por dever por parte da mediadora e a essencialidade da prestação desta informação, conforme resulta dos pontos 17, 17-A e 31 dos factos provados.

A violação dos deveres de informação faz incorrer o responsável no dever de indemnização dos danos a que haja dado causa, verificados os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual.

Nestes termos, decorre do disposto no artº 483.º, n.º 1, do C.C., que “quem com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” (negrito nosso).

Deste preceito resulta que são pressupostos da obrigação de indemnizar por factos ilícitos: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A violação de deveres de protecção faz presumir prima facie a culpa do obrigado pelo dano causado aos destinatários destas normas, incumbindo assim, à mediadora R. o ónus de prova de que actuou sem culpa. Conforme refere Sinde Monteiro[13], “a orientação dominante vai aliás no sentido de que, provada a infracção da norma, deve presumir-se a existência de culpa.”

Ora, dos factos assentes resulta que a mediadora pediu efectivamente a documentação do imóvel em apreço, constando nessa documentação, os ónus e encargos que incidiam sobre este imóvel e o seu valor máximo assegurado. O valor destes ónus e o número de hipotecas constituídas sobre este imóvel obrigava a mediadora não só a comunicar a sua existência aos interessados, mas inclusive a solicitar ao vendedor um documento que atestasse o cumprimento dos contratos que a ela deram origem e o montante da dívida àquela data.

Alega, no entanto, a seguradora que ainda que se conclua que existe este dever de informação e que ocorreu a sua violação pela 2ª R. mediadora imobiliária, não existe nexo de causalidade entre esta violação e o dano, pois que a existência deste ónus não era impeditiva da realização do contrato definitivo. Sem razão, no entanto, tendo em conta a matéria que se apurou.

É certo que no nosso ordenamento civil, vigora o princípio da causalidade adequada, ou seja, “não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, sob o ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele: sendo ainda necessário que o evento danoso seja uma causa provável, adequada desse efeito. Não bastando, pois, a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano, sendo, ainda, preciso que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada do dano. Sendo antes necessário, para que um facto seja causa de um dano, que, por um lado, no plano naturalístico, ele seja condição (directa ou indirecta) sem a qual o dano se não teria verificado, e, por outro, que em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo.”[14]

Daqui decorre que, ainda que resultasse dos autos que existiu violação dos deveres de informação por parte da 2ª R., necessário seria que resultasse igualmente o nexo de causalidade entre a violação destes deveres e o dano causado ao lesado.[15]

 Ora, a este respeito resulta do ponto 31 que a violação do dever imposto à 2ª R., ou seja, a omissão da informação a que estava obrigada a mediadora, é causa adequada do dano sofrido, uma vez que se não existisse o comportamento ilícito do agente, o dano não se teria verificado. Denote-se que o dano aqui invocado corresponde ao valor de sinal entregue na outorga de um contrato-promessa que os AA. não teriam celebrado (nem entregue esta quantia) se soubessem da existência destes ónus, conforme resulta do ponto 31, quantia de que os AA. se viram desapossados pois que não concluído o contrato (tendo, entretanto, sido penhorado o imóvel em causa), nem restituído o sinal entregue pelo promitente-vendedor.

Nesta medida, se tem de concluir que existe nexo de causalidade entre a violação dos deveres de informação e o dano, provando-se que os AA. não teriam contratado caso lhes tivessem sido prestadas todas as informações sobre os ónus e encargos incidentes sobre o imóvel.

Assim sendo, é a 2ª R. responsável pelo prejuízo causado que corresponde aos € 50.000,00 entregues a título de sinal pelos AA.[16]

Tendo a 3ª R. assegurado a responsabilidade civil profissional da 2ª R. no âmbito da sua actividade de mediação imobiliária, responde solidariamente com esta, por este montante.

Com efeito, resulta do disposto no artigo 7º da Lei 15/2013, de cujo nº 1 a obrigatoriedade para as empresas de mediação imobiliária de celebração de um contrato de seguro que garanta a sua responsabilidade pelos danos causados no exercício da sua actividade profissional. Tal como decorre dos nºs 4 e 5 deste artigo:

“4 — O seguro de responsabilidade civil destina-se ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões das empresas, dos seus representantes e dos seus colaboradores.

5 — Para efeitos do presente artigo, consideram -se terceiros todos os que, em resultado de um ato de mediação imobiliária, venham a sofrer danos patrimoniais, ainda que não tenham sido parte no contrato de mediação imobiliária.”

Nesta medida, porque incluídos na cobertura deste contrato, integrando-se os AA. na categoria de terceiros referidos no ponto 5 deste preceito, responde solidariamente a seguradora, 3ª R., pelos danos causados pela 2ª R. aos AA.

***

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que absolveu as 2ª e 3ª RR. do pedido e, nessa sequência, condenam-se ambas as RR., solidariamente, no pagamento aos AA. da quantia de € 50.000,00, acrescida de juros à taxa aplicável aos juros civis, desde a citação até integral pagamento.

***
 
Custas, nesta parte, pelas RR. apeladas (artº 527 do C.P.C.).

               Coimbra 12 de Setembro de 2023

 


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[4] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[5] PIRES DE SOUSA, Luís Filipe, Prova Testemunhal, 2013, Almedina, pág. 282.
[6] PIRES DE SOUSA, Luís Filipe, AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE (WWW.TRL.MJ.PT) apud ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 22 e 27 e 37 e REMÉDIO MARQUES, João Paulo “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, págs. 167 e 168.
[7] Pires de Sousa, Luís Filipe, Prova Testemunhal, 2013, Almedina, págs. 364.
[8] Vide ainda os Acs. deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/17, proferido no proc. nº 18591/15.0T8SNT.L1-7; do TRC de 05/06/18, proferido no proc. nº 1817/08.3TBPBL.C1, no qual se considera que cumpre ao julgador algum cuidado na análise crítica e valoração dessas declarações, as quais, no seu final, - e como meio legítimo de prova que são e com a força probatória que é idêntica àquelas outras provas igualmente sujeitas à livre apreciação do tribunal –, tanto poderão merecer do julgador muita, como pouca ou nenhuma credibilidade. (Cfr. nesse sentido, e por todos, Ac. da RG de 02/05/2016, in “proc. 2745/15.1T8VNF-A.G1, disponível em dgsi.pt); por sua vez em Ac de 13/09/18, proferido no TRG, no proc. nº 159/17.8T8FAF.G1 é aceite que “em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
[9] Neste sentido vide OLIVEIRA, Fernando Baptista, Manual da Mediação Imobiliária, Almedina 2019, págs. 108.
[10] Ibidem, págs. 109.
[11] Ibidem, págs. 337, nota 533.
[12] GOMES CANOTILHO, Joaquim e VITAL MOREIRA, António, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 323.
[13] SINDE MONTEIRO, Jorge Ferreira, “Rudimentos de Responsabilidade Civil”, págs. 365, disponível online no endereço https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/23773/2/49738.pdf.
[14] Ac.do S.T.J. de 18/10/12, 5817/09.8TVLSB.L1.S1; Acs. do STJ de 13/09/8, proc. n°13809/16.4T8LSB.L1.S1; de 6/11/2018, proc. n° 2468/16.4T8LSB.11.S1; de 8/11/18, proc. n° 6164/09.TVLSB.L1.S1, de 30/04/19, proc. nº 2632/16.6/8LRA.LLS1, disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido, SINDE MONTEIRO, LL, Responsabilidade Por Conselhos e Recomendações ou Informações, Almedina, 1989, págs. 499.

[16] Não existe no actual RJMI norma idêntica à constante do artº 23, nºs 2 e 3 do D.L. 77/99 de 16 de Março, que impunha a solidariedade passiva da mediadora com o promitente vendedor, nos casos em que existisse responsabilidade civil da sua parte. Ora, conforme resulta do disposto no artº 513 do C.C., a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes, não sendo assim de considerar a responsabilidade solidária da mediadora e do promitente vendedor.