Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
186/14.7GCLSA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CASO JULGADO
MEDIDA DA PENA ACESSÓRIA
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS ACESSÓRIAS
Data do Acordão: 12/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JC GENÉRICA DA LOUSÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 4.º; 84.º E 467.º DO CPP; ARTS. 619.º, 620.º, 621.º E 628.º DO CPC; ART. 69.º DO CP
Sumário: I - O CPP vigente não regula especificamente os efeitos do caso julgado, apesar de o referir, entre outros, nos arts. 84.º e 467.º, n.º 1. É, no entanto, sabido que são aplicáveis as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal (entendimento uniforme (ex vi art. 4º, do CPP).

II - O caso julgado pretende evitar a contradição prática de julgados portanto, a existência de decisões incompatíveis.

III - Por outro lado, a força do caso julgado cobre apenas a resposta dada pelo tribunal à pretensão que lhe foi submetida e não também, os fundamentos que suportaram essa resposta portanto, o raciocínio lógico percorrido pelo juiz até atingir a concreta resposta dada isto sem prejuízo de, como é evidente, os fundamentos utilizados poderem ser usados para definir e precisar o sentido e alcance da decisão coberta pelo caso julgado.

IV - São penas acessórias as que só podem ser decretadas na sentença conjuntamente com uma pena principal.

V - É condição necessária da sua aplicação, a condenação do agente numa pena principal mas já não, sua condição suficiente, pois que, como ensina Figueiredo Dias, torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197).

VI - São-lhes aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais o que vale dizer significa que, em princípio, deve ser observada uma certa proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e a medida concreta da pena acessória, sem todavia esquecer que a finalidade a atingir com esta última é mais restrita, pois visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente.

VII - O adormecimento do recorrente ao volante com a consequente saída da sua hemi-faixa rodagem e invasão da hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário ao seu, onde foi embater, frontalmente, na viatura onde seguiam as duas vítimas mortais, significa que o recorrente actuou com negligência inconsciente, mas a intensidade da negligência é elevada.

VIII - As exigências de prevenção geral, a gravidade das consequências da conduta e a intensidade da negligência do recorrente justificam plenamente a medida concreta fixada pelo que, não merece censura a decisão recorrida.

IX - A aplicação de pena acessória pode significar, e não raras vezes significa, a compressão de direitos fundamentais, com influência na capacidade de ganho e perturbação da vida familiar, mas tal não significa a existência de inconstitucionalidade.

X - O C. Penal prevê as penas acessórias no Livro I, Título III, Capítulo III, mas não estabelece um regime específico para a sua determinação, sendo-lhe por isso aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais. E de entre estes critérios, conta-se o da punição do concurso.

XI - Sendo a pena acessória uma verdadeira pena criminal, se há crimes puníveis com pena principal e pena acessória, e se quando um agente comete uma pluralidade de crimes, puníveis com estas duas penas e é necessário efectuar o concurso, não vemos como não sujeitar as penas acessórias ao cúmulo jurídico, tanto mais que o n.º 1 do art. 77.º do CP refere a condenação numa única pena sem distinguir.

XII - No que concerne às penas acessórias, cumpre desde logo notar que a possibilidade do seu cúmulo só se coloca relativamente às que têm a mesma natureza.

Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Lousã – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, por sentença de 11 de Março de 2016, depositada a 14 do mesmo mês [fls. 739] e corrigida por despacho de 16 de Junho de 2016 [fls. 880] foi o arguido A... , com os demais sinais nos autos, condenado pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 1 e 69º, nº 1, a) do C. Penal, na pena de vinte e oito meses de prisão por cada um e, em cúmulo, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de vinte e quatro meses, e pela prática da imputada contra-ordenação muito grave na coima de € 100.

  Inconformado com o teor de um despacho proferido em 1 de Fevereiro de 2016 e com o decidido na sentença, de ambos recorreu o arguido para esta Relação que, por acórdão de 9 de Janeiro de 2017, assim determinou, na parte em que agora releva:

  “ (…).

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Negar provimento ao recurso intercalar do arguido.


*

  B) Conceder parcial provimento ao recurso do arguido interposto da sentença e, em consequência, decidem:

  1. Declarar a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, relativamente à determinação e fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, determinando, nesta parte, a sua substituição por outra, que supra a apontada nulidade, nos termos sobreditos.

2. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido A... nas penas parcelares de vinte e oito meses de prisão e de vinte e oito meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, e condenar o arguido nas penas parcelares de um ano e seis meses de prisão e de um ano e seis meses de prisão e em cúmulo, na pena única de pena única de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, a contar do trânsito do presente acórdão. 


*

C) Negar provimento ao recurso da demandada Companhia de Seguros B..., SA.

(…)”.


*

  Baixados os autos à 1ª instância, com data de 7 de Abril de 2017, a Mma. Juíza a quo proferiu o que designou por «segmento decisório», que considerou «complemento» da sentença de 11 de Março de 2016, suprindo a nulidade de omissão de pronúncia apontada no acórdão da Relação 9 de Janeiro de 2017, aí decidindo condenar o recorrente – pela prática de dois crimes de homicídio por negligência – em duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor de doze meses cada uma e, em cúmulo material, na pena acessória única de vinte e quatro meses de proibição de conduzir veículos com motor.

A decisão foi notificada ao Ministério Público em 10 de Maio de 2017 e ao recorrente e demais sujeitos processuais, por via postal registada, datada de 10 de Maio de 2017.      


*

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões

  1. Vem o presente recurso interposto do segmento da sentença na parte em que decidiu condenar “o arguido no cumprimento do período total de 24 (vinte e quatro) meses de proibição de conduzir veículos motorizados, correspondendo à acumulação material das duas penas acessórias de 12 meses de proibição de conduzir veículos a motor, aplicadas para cada um dos crimes de homicídio negligente em que se condenou o arguido, nos termos das normas conjugadas artigos 137º e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal”.

2. Na determinação da medida das penas acessórias o Tribunal a quo não respeitou o já decidido, no âmbito dos presentes autos, por este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão já transitado em julgado.

3. As penas acessórias só podem ser decretadas conjuntamente com um pena principal ou com uma pena de substituição, e tendo as mesma natureza criminal e não prevendo o C. Penal regras específicas para a determinação da medida da pena, são-lhe aplicáveis os critérios gerais de determinação da medida da penas previsto no C. Penal.

4. Para a determinação da concreta medida das penas acessórias aplicáveis ao arguido, teria o Tribunal a quo – salvo o devido respeito – de se socorrer do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito dos presentes autos e já transitado em julgado, no que se refere ao grau da ilicitude, à intensidade da negligência, e às exigências de prevenção especial.

5. Porém, a Mma. Juíza a quo fez “tábua rasa” do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra…

6. Consta do segmento da sentença ora em crise, (cfr. 4º parágrafo da pág. 6) que o grau de ilicitude da conduta do arguido é significativamente elevado, quando resulta do Acórdão proferido nos presentes autos por este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que o grau da ilicitude do facto é elevado.

7. Por outro lado, considerou a Mma. Juíza a quo que a conduta do arguido revela um grau de negligência particularmente intenso, quando resulta do Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos por este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, já transitado em julgado, que a intensidade da negligência é elevada.

8. Sendo certo que, não se compreende em que factos se apoiou o Tribunal a quo para concluir que o Arguido sabia que dormiu pouco, esteve em convívio, numa noite de veraneio, na Figueira da Foz ou tenha tido preocupação com a ingestão bebidas alcoólicas durante a mesma.

9. Na verdade, dos factos dados como provados não resulta o motivo que levou ao fatídico adormecimento do arguido, não resulta que o Arguido tenha ingerido qualquer bebida alcoólica, que tenha tido preocupação com a ingestão de qualquer bebida alcoólica ou que se tenha recusado a efetuar qualquer teste de alcoolémia designadamente no local do sinistro.

10. Por outro lado ainda, refere a Mma Juíza a quo que da factualidade dada como provada não resulta que o arguido reúna as características essenciais para se poder afirmar que o período de repetição de condutas criminosas é inexistente ou diminuto, referindo que não se poderá dizer que o perigo de reiteração criminosa do arguido seja inexistente ou sequer diminuto!

11. Porém, do Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos por este Venerando Tribunal, resulta que, ainda que o Arguido não tenha assumido uma qualquer conduta reveladora de ter interiorizado a sua culpa, o recorrente mostra-se afetado e penalizado com o sucedido, não se indiciando a existência de uma personalidade com traços problemáticos, que não se está perante o início de uma carreira criminosa e que não se fazem sentir exigências prevenção especial.

12. Face ao exposto, como supra se referiu, na determinação da medida de cada uma das penas acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69º do C. Penal, a Mma. Juíza a quo não teve em consideração o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito dos presentes autos, por acórdão já transitado em julgado.

13. Ora, o princípio da imodificabilidade da decisão ou da sua irrevogabilidade, consagrado nos nºs 1 e 3 do art.º 613.º, do CPC, implica o esgotamento do poder jurisdicional sobre as questões apreciadas, obstando a que, fora das condições expressamente previstas na lei (n.º 2 do artº 613.º), a Mma. Juíza a quo a altere.

14. Sendo certo que, havendo caso julgado formal o seu cumprimento é obrigatório no processo onde foi proferido, nos termos do disposto no nº 1 do art. 620º do CPC, obstando a que a Mma. Juíza a quo possa no mesmo processo alterar a decisão proferida acerca do grau da ilicitude, da intensidade da negligência, e das exigências de prevenção especial.

15. Assim, a Mma. Juíza a quo, ao decidir em sentido diferente daquele decidido por este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, já transitado em julgado, infringiu a autoridade do caso julgado, tendo desrespeitado os seus efeitos processuais, ocorrendo a situação de julgados contraditórios, com a consequência de, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 625º do C.P.C., valer a decisão que primeiramente tenha transitado em julgado, ou seja, a decisão deste Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, o que se requer seja declarado.

16. Acresce que, face ao que supra se deixou exposto, à factualidade dada como provada em juízo e ao direito aplicável, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados ao arguido revelam-se, salvo o devido respetivo, pouco criteriosas e desequilibradamente doseadas.

17. Na verdade, como supra já se deixou dito, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º do Código Penal, configura uma verdadeira pena, com moldura penal própria, dentro da qual terá o julgador que determinar a medida da pena a aplicar ao arguido, com obediência ao disposto no artigo 71º do Código Penal.

18. Assim sendo, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, deve ser graduada dentro dos limites legais, ou seja, entre 3 meses e 3 anos, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo por base “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

19. Tendo em consideração o supra exposto, o grau de ilicitude do facto foi elevado, a intensidade da negligência inconsciente foi elevada e não se fazem sentir exigências de prevenção especial.

20. Por outro lado, de acordo com a matéria de facto dada como provada nos presentes autos, presentemente o arguido dá apoio dois dias por semana à empresa “ K... ” e trabalha com stands seus conhecidos, ajudando no transporte de carros e/ou vendas e ganha comissões do que vende (cfr. ponto 119 do factos provados).

21. Pelo que, necessita de se deslocar de automóvel, diariamente. Sendo, obviamente, impensável, pela sua onerosidade e tendo em conta os rendimentos do Arguido, a contratação de um motorista.

22. Por outro lado, tendo em conta a idade do Arguido, as sua habilitações literárias, a sua experiência de trabalho – sempre dedicada ao ramo automóvel – e o atual mercado de trabalho, em especial na Lousã, onde o Arguido reside, é de todo impensável que o Arguido encontre outro trabalho fora do ramo automóvel e/ou que não lhe exija a condução diária de veículos automóveis.

23. Acresce que, como resulta do ponto 121 dos factos provados o Arguido tem três filhos, a quem tem de prestar alimentos no montante global de 3.600,00 € anuais (1.200,00 €/ano a cada um dos três filhos).

24. Ora, a proibição de conduzir veículos com motor, pelo período determinado pela Mma. Juíza a quo determinará que o arguido não possa continuar a prover ao seu sustento e da sua família, uma vez que deixará de poder exercer a sua atividade durante um longo período de tempo, o que, infelizmente, ditará a impossibilidade de continuar a proceder ao pagamento da pensão de alimentos dos seus filhos menores…

25. Tal facto, não deixará de determinar a violação dos princípios de dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha/acesso à profissão, bem como do dever de contribuir para o sustento da sua família, nos termos do disposto nos art.s 2º, 26º, 36º, nº 5, 47º e 67º, nº 1 da C.R.P.

26. Pelo que, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor aplicadas ao recorrente, merecem censura no que respeita ao seu quantum, por excederam a medida da culpa, não se mostrando adequadas, proporcionais e equilibradas.

27. Na verdade, estamos em crer que se mostra mais ajustado, adequado e satisfazendo as adequadas finalidades da pena, ser o arguido condenado em 8 meses para cada uma das penas acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º do Código Penal.

28. Acresce que, salvo o devido respeito, entende o recorrente que não poderá deixar de ser efetuado o cúmulo jurídico quanto às duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, necessariamente segundo as regras definidas pelo artigo 77º do Código Penal, ao invés do que decidiu a sentença recorrida, que as cumulou materialmente.

29. Na verdade, tendo as penas acessórias natureza de penas criminais e não prevendo a nossa lei adjetiva regras específicas para a determinação da sua medida, são-lhe aplicáveis os critérios gerais de determinação da medida das penas previstas no Código Penal, sendo-lhe aplicável, em consequência, e com as necessárias adaptações o disposto nos arts. 77º e 78º do C. Penal.

30. Neste sentido, veja-se o decidido refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.06.2006, publicado na CJ (STJ), XIV, II, 223, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.12.2015 e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.10.2012, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

31. Em consequência, deverá proceder-se ao cúmulo jurídico das penas acessórias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 77º do C. Penal, sendo que deverá ser encontrada uma pena única nunca superior a 12 meses de proibição de conduzir veículos com motor.

32. Face a tudo o supra exposto, ao ter decidido como decidiu, violou a Mma. Juíza a quo a Lei, designadamente, o disposto nos art.ºs 40º, 69º, 70º e 71º do Código Penal, o disposto nos artºs 613º, nºs 1 e 3, 620º, nº 1 e 625º, nºs 1 e 2 do C.P.C. e o disposto nos art.s 2º, 26º, 36º, nº 5, 47º e 67º, nº 1 da C.R.P., devendo, por isso, ser revogada, com as legais consequências, assim se fazendo, Venerandos Desembargadores, sempre com mui suprimento de V.s Exªs., JUSTIÇA!


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  Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que a medida concreta das penas acessórias é de manter por adequada às exigências de prevenção geral e especial requeridas, e que não deve ser efectuado o cúmulo jurídico de tais penas mas o seu cúmulo material, apesar de não existir opinião unânime sobre a matéria, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, dando nota da divergência doutrinal e jurisprudencial que tem por objecto a questão também suscitada pelo recorrente sobre se a pena acessória prevista no art. 69º do C. Penal, e referindo que o parecer emitido pelo Ministério Público em processo que corre termos no nosso mais Alto Tribunal a fim de nele ser proferido acórdão uniformizador de jurisprudência vai no sentido da aplicação das regras do cúmulo jurídico, concluiu dizendo não rejeitar a tese do recorrente.

 

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A violação do caso julgado;

- A excessiva medida das penas acessórias parcelares;

- A indevida realização do cúmulo material e a necessária realização do cúmulo jurídico das penas acessórias parcelares.


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Para a resolução destas questões importa ter presente o teor da decisão recorrida, que é o seguinte:

  “ (…).

  Na decorrência do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que antecede [Cfr. alínea B), ponto 1 – fls. 965], passamos a suprir a apontada nulidade da sentença no que concerne à al. b) de fls. 706, ou seja, omissão de pronúncia quanto à determinação e fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, substituindo-a, nessa parte, pelo presente segmento decisório, enquanto complemento da mesma.

Consta na sentença a fls. 706, o seguinte:

b) Da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor:

Dispõe o nº 1, do art. 69º do Código Penal que" É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º.”.

Esta pena acessória encontra o seu fundamento na perigosidade do agente e destina-se a actuar psicologicamente sobre o imprudente condutor visando, pela privação do uso do veículo ou da sua condução, influir preventivamente na conduta futura do infractor.

  E, atendendo aos efeitos que, em matéria de sinistralidade rodoviária, não pode deixar de considerar-se a condução do arguido violadora das mais elementares regras de trânsito que pretendem assegurar que a actividade de conduzir se processe dentro das margens do chamado "risco permitido".

Quanto ao número de meses da proibição, considera-se que a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 24 (vinte e quatro) meses é suficientemente elevado, sopesando o facto de ter sido interveniente em acidente de viação, em consequência do qual vieram a falecer duas vítimas, e a necessidade deste interiorizar a censurabilidade da sua conduta e de prevenir a incursão futura do mesmo na prática do mesmo crime, em conjugação com o facto de não ter antecedentes criminais, nem contra-ordenacionais, desta ou de outra natureza e se encontrar bem integrado."

Entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que o tribunal a quo ao considerar que "a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 24 (vinte e quatro) meses [Desde já, se esclarece que o período de 24 (vinte e quatro) meses de proibição de conduzir considerado na sentença, engloba em si, ainda que de forma implícita, a acumulação material de 12 meses de proibição de conduzir veículos a motor por cada um dos crimes de homicídio negligente praticados ou seja, o cumprimento pelo período total de 24 meses das duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados em acumulação material – posição esta que se extrai também da leitura conjugada da al. b) de fls. 706 [fls. 54 da sentença] com o primeiro parágrafo de fls. 701 [fls. 49 da sentença] é suficientemente elevado" não determinou a pena acessória a aplicar a cada crime de homicídio negligente, pelo que deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, padecendo de omissão de pronúncia, nesta vertente, geradora do vício previsto no art. 379°, nº 1, al. c) do C. Processo Penal, o que prejudicou o conhecimento da questão suscitada pelo recorrente – excessiva medida acessória [Por violadora dos princípios constitucionais ela dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha e acesso à profissão e o dever de contribuir para o sustento da família, pugnando pela sua redução para 12 meses de proibição de conduzir veículos com motor  – e deveria ser suprida pela 1ª instância.

Cumpre então, em estrita obediência ao decidido, substituir o apontado segmento, por outro, que melhor exponha a posição jurisprudencial seguida e melhor fundamente a medida da pena única de proibição de conduzir veículos com motor aplicada pelo tribunal a quo.

Historicamente, as chamadas penas acessórias (…) não foram senão puras providências de conteúdo preventivo estranho à ideia de culpa (…). Um tal conteúdo, porém, é de todo insuficiente e inadequado para caracterizar o instrumento politico-criminal a que pertença como urna pena, ainda que acessória. Para tanto torna-se – até jurídico-constitucionalmente – indispensável que aquele instrumento ganhe um específico conteúdo de censura do facto, por aqui se estabelecendo a sua necessária ligação à culpa (…) – pag. 96, § 83, Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime, Jorge de Figueiredo Dias, 1993.

A cada um dos dois crimes cometidos pelo arguido, de homicídio por negligência, p. p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, é também aplicável a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor por um período de três meses a três anos, nos termos do disposto no artigo 69.º, nº 1, al. a), igualmente do Código Penal.

A pena de proibição de conduzir veículos motorizados é urna verdadeira pena acessória, sendo que atento o princípio consagrado no artigo 30º nº 4 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 65º nº 1 do Código Penal, embora esta pena acessória não seja de aplicação automática, ou seja decorrente apenas da prévia condenação do agente numa pena principal pela prática dos dois crimes de homicídio negligente [pressuposto formal], praticados com violação de regras de trânsito rodoviário, certo é que também o pressuposto material, consubstanciado "na circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável." [Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 165 § 205] se encontra verificado.

Acompanhamos, ainda, o Insigne Professor Figueiredo Dias [obra citada, pág. 165 § 205] no sentido em que "uma tal pena – possuidora de uma moldura penal especifica – só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cassação da licença de condução ou de interdição da sua condução".

À proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua em medida si ara a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano [ob. citada, pag. 165, § 205 sublinhado e negrito nosso].

As penas acessórias têm a natureza de penas criminais, pelo que não prevendo a nossa lei adjectiva regras específicas para a determinação da sua medida, são-lhe aplicáveis os critérios gerais de determinação da medida das penas previstas no Código Penal.

No caso em apreço, tendo o arguido praticado dois crimes de homicídio por negligência, a sua responsabilização penal, impõe a determinação de duas concretas penas acessórias e, após, a fixação de uma pena acessória única.

A concretização desta pena acessória obedece aos mesmos critérios da concretização da pena principal, definidos nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º do Código Penal.

Em conformidade com o estatuído no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, a aplicação das penas " ... visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade", ou seja, visa fundamentalmente atingir fins de prevenção geral (proteção dos bens jurídicos) e fins de prevenção especial (reintegração do agente). Não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa.

A quantificação da culpa e o grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da "ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele", tal como decorre do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.

O limite máximo da pena fixar-se-ri em função da medida da culpa, que a delimitará por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize, eficazmente, essa protecção dos bens jurídicos penalmente protegidos.

Dentro desses dois limites, encontrar-se-á o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social do agente.

Portanto, um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.

Como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.

Tende a ser praticamente consensual na jurisprudência o acolhimento da doutrina [Cujo expoente máximo é, sabidamente, o Professor Figueiredo Dias na sua obra "Direito Penal – Parte Geral" Tomo I, 2004, 75 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto] de que a pena visa finalidades, exclusivamente, preventivas (de prevenção geral e de prevenção especial), cabendo à culpa a função de impedir excessos, sendo pressuposto (não pode haver pena sem culpa) e limite inultrapassável da pena (em caso algum a medida desta pode ultrapassar a medida da culpa).

O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.

A finalidade primeira da aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos [Com uma perspectiva diversa, defendendo que «encontrar a "justa retribuição" a pena "merecida" para o delinquente constitui a finalidade primeira da sanção, embora logo seguida das necessidades preventivas, especial e geral», A. Lourenço Martins, "Medida da Pena – Finalidades – Escolha – r Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência", Coimbra Editora, 501].

Prevenção geral positiva ou de integração, tendo-se em vista uma concepção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.

É esta ideia de prevenção geral positiva, enquanto finalidade primordial visada pela pena, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa.

São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a chamada "moldura da prevenção" (em que o quantum máximo da pena corresponderá à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior é aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar), dentro da qual cabe à prevenção especial (por regra, positiva ou de (res)socialização) determinar a medida concreta.

A determinação da medida da pena em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto e as chamadas consequências extra – típicas) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado, etc.

É bem sabido que na estrutura da criminalidade em Portugal os crimes cometidos por negligência, por desrespeito de regras básicas, sobretudo os cometidos a conduzir veículos a motor, têm uma expressão significativa e por isso são muito sentidas exigências de prevenção geral.

Aliás, a elevada sinistralidade rodoviária foi a razão adiantada pelo legislador de 1995 para o agravamento da pena do homicídio negligente (vd. preâmbulo do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março).

A esse propósito, o Professor Figueiredo Dias ("Temas Básicos da Doutrina Penal", Coimbra Editora, 2001, p. 351) referia a existência de "requisitório em favor de um tratamento jurídico-penal cada mais severo de certos factos negligentes; ao ponto de não faltar mesmo quem preconiza para eles molduras penais cujo máximo exceda o limite mínimo do correspondente facto doloso".

Sobre a justificação político-criminal da punição da negligência no crime de homicídio, o mesmo autor refere que esse se tornou «fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida imanentes à "sociedade do risco" contemporânea», com destaque para a circulação rodoviária.

São fortes as exigências de prevenção geral, já que, apesar de todas as campanhas, não obstante o forte agravamento das reacções penais (como aconteceu com a Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, que aumentou para 3 meses a três anos a moldura da pena acessória da proibição de conduzir) é muito frequente a prática destes ilícitos.

Cremos poder afirmar que é ideia generalizada que em matéria de observância de elementares regras de segurança e diligência, prevalecia o rigor, senão mesmo a intolerância face ao laxismo e ao facilitismo.

Este caso, e outros de que se vai tendo notícia, contraria essa ideia.

Em suma, quer pela sua frequência, quer pelas graves consequências que, geralmente, andam associadas a este tipo de crimes, são prementes as exigências de prevenção geral, a justificarem que a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena acessória se deve propor não seja "simbólico".

A finalidade preventivo-especial da pena é evitar que o agente cometa, no futuro, novos crimes. Evitar a reincidência, portanto.

Sendo primordial a função de socialização, a tarefa que se impõe ao juiz é averiguar se o agente está carecido de socialização.

Quando o agente não revela carências de socialização, como nos diz o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime", 1993, p. 244), "tudo será questão, em termos de prevenção especial, de conferir à pena uma função de suficiente advertência do agente, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico, ou mesmo que com ele coincida. Se é certo que esta função de advertência joga o principal papel em tema de penas de substituição, ela pode relevar igualmente, e de forma decisiva, no âmbito de medida da pena".

Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.

Aproveitando, mais uma vez, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (ob. cit, 245), porque a culpa jurídico-penal é "censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito", há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto].

A medida concreta da pena (principal e/ou acessória) tem pois de ser encontrada pelo juiz através de um processo lógico e racional, norteado pelos princípios a esse propósito legalmente definidos.

Revertendo estes ensinamentos ao caso em apreço, importa, desde logo, ponderar que com a tipificação do crime cometido pelo arguido tutela-se um bem eminentemente pessoal: a vida.

O grau de ilicitude da conduta do arguido é significativamente elevado, não só pela natureza do bem jurídico lesado, mas também porque causou um prejuízo humano elevadíssimo e irreparável - ceifou a vida de DOIS SERES HUMANOS, para mais, marido e mulher [casados em primeiras núpcias de ambos, desde 1977 – cfr. facto provado nº 53 – e com dois filhos, que não obstante maiores, ainda continuavam solteiros e a residir com os seus pais – cfr. factos nº 54 e 55] e revelou um sentimento de desrespeito firme pelas regras de segurança rodoviária a que estava adstrito, que podia e devia respeitar.

A negligência revela-se intensa, já que a conduta do arguido ultrapassa a mera falta de destreza ou a imperícia, podendo falar-se de uma atitude de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez" [Figueiredo Dias, Op. Cit., 669].E isto é assim, não obstante, tenha ficado provado que o arguido atuou com negligência inconsciente. Com efeito, o facto de o arguido ter actuado "com mera negligência inconsciente" não torna menos censurável a sua conduta, porquanto, como é sabido, a negligência inconsciente pode ser uma forma mais grave de realização do facto e, no caso concreto, encontra-se "muito próxima" ["paredes-meias"] da grosseira. A conduta do arguido revela, assim, um "alto teor de imprevisão" e, portanto, um grau de negligência particularmente intenso [A este propósito, o Professor José de Faria Costa ("Direito Penal Especial – Contributo a uma sistematização dos problemas "especiais" da Parte Geral" Coimbra Editora, 2004, 95) é bem claro: "Nesta tentativa de captura do âmago da negligência grosseira vai já expresso, todo ele, também, o nosso pensamento sobre o modo como ela se deve articular com a negligência consciente e com a negligência inconsciente. Com efeito, poder-se-ia pensar o comportamento negligente – a nosso ver erradamente – à luz de uma escala de desvalor ascendente: a negligência inconsciente encontrar-se-ia no extremo da menor gravidade, no centro estaria a consciente c, no limite do desvalor máximo, desvendar-se-ia a negligência grosseira. Uma tal compreensão em crescendo da negligência levar-nos-ia à conclusão de que a negligência grosseira, por força da sua localização naquela escala, teria de possuir as notas caracterizadoras da negligência consciente e algo mais que justificasse a exasperação do desvalor. Não seria, assim, pensável a qualificação como grosseira de uma negligência – a inconsciente – vista como um minus à luz daquela gradação. Não se nos afigura, porém, adequada, por desconforme com a realidade, uma arrumação de tal modo espartilhada desta categoria dogmática que é a negligência. É, de resto, do mais elementar senso comum a ideia de que a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode ser, em si mesma, muito mais desvaliosa; será, com efeito, assim, sempre que a probabilidade de ocorrência daquele resultado se apresenta de tal modo evidente que o cidadão comum, medianamente consciente e cumpridor dos comandos normativos, teria, dc forma clara, evitado a conduta violadora do dever de cuidado. Caberão, assim, inequivocamente, na categoria da negligência grosseira, à luz do esboço de definição que há muito propusemos (e a repetição tem no caso um mero valor de reafirmação), também os casos em que, por força de um alto e inqualificável teor dc imprevisão, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o Outro". Cabe aqui referir que o autor citado entende que é no domínio da ilicitude que a negligência grosseira tem o seu particular recorte, verificando-se " … sempre que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, ou por força de uma profunda ausência de cuidado elementar, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o «outros" (Op. Cit, 94). Diverge, assim, do pensamento do Professor Figueiredo Dias, segundo o qual a negligência grosseira releva não só ao nível do ilícito como da culpa, pois reconhece razão a Roxin quando este defende que " … o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito. A nível do tipo de ilícito toma-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada" ("Direito Penal – Parte Geral", Tomo I, Coimbra Editora, 2004, 668-669)], porque da conjugação de toda a factualidade apurada, não se tratou de um mero adormecimento ao fim do dia, causado, quiçá, por excesso de trabalho, ou várias horas de condução, nem sequer de um efeito secundário desconhecido de um medicamento, mas de uma atitude leviana e irreflectida, de quem, conscientemente, sabia que dormiu muito pouco, após o convívio de uma noite de veraneio na Figueira da Foz, e, se lançou a percorrer uma estrada com boas condições de circulação e visibilidade [no momento do embate o dia estava claro, o tempo estava ameno e seco, era domingo, o trânsito era reduzido e não existia qualquer obstáculo no local – cfr. factos provados nº 21 e 22] e que conhecia bem [cfr. facto portado nº 129], em zona de ligeira curvatura à esquerda [tornando por referência o sentido Lamas-Miranda do Corvo, sendo que a curva que antecede o local do embate tem um amplo campo de visibilidade – cfr. facto 20], transpôs a linha longitudinal contínua do eixo da via [qual se encontrava bem visível e em bom estado de conservação – cfr. facto nº 18] e invadiu a via destinada ao trânsito em sentido contrário [cfr. facto provado nº 26], colidindo frontalmente com o veículo conduzido pela vítima mortal C... , que seguia na sua faixa de rodagem, tendo este tido morte imediata, e a vítima D... sido transportada em estado muito grave ao Centro Hospitalar de Coimbra, onde depois de muito sofrimento, e antevendo até que a sua morte se avizinhava [cfr. factos nº 68 e 69], veio a falecer três dias depois (em 27-08-2014). Sendo que o respetivo tipo de homicídio negligente engloba inúmeras outras condutas cuja gravidade e potencialidade danosa é objetivamente menos intensa.

Não obstante, o sinistro se ter verificado pelas 08h30 da manhã daquele domingo, 24-08-2014, apenas duas horas e vinte minutos após a colisão letal, ou seja, pelas 10h50 é que o arguido foi submetido a exame toxicológico nos CHUC, porque primeiramente se recusou a ser transportado às urgências dessa unidade hospitalar (cfr. factos 14 e 15), o que indício alguma preocupação com a ingestão de bebidas alcoólicas durante a noite de veraneio.

Também a ilicitude é de grau superior à média em ambos os crimes, porque praticados no exercício da condução de veículo automóvel ligeiro, denotando o arguido uma condução temerária, até porque não adequou a velocidade da sua viatura às características específicas do local, não denotou rapidez de reacção, reflexos e presença de espirito suficientes para, sequer, travar a sua viatura e desviá-la ao aproximar-se do veículo das duas vítimas mortais, sendo que o embate frontal denotou forte violência, já que em consequência daquele a viatura foi projectada, rodopiou, vindo a imobilizar-se na faixa de rodagem contrária ao da sua marcha, mas ficando em suspensão com a parte traseira presa em cima do separador de betão situado na berma da estrada, tendo a parte frontal e lateral esquerda e o habitáculo lateral esquerdo ficado totalmente destruídos [cfr. factos provados nº 35, 36, 37, 38 e 50].

É certo que o arguido não tem antecedentes criminais nem contraordenacionais estradais, e se encontra familiar e profissionalmente bem inserido. No entanto, uma boa inserção social requer, também, uma boa capacidade de auto-censura e de auto-crítica, uma predisposição para interiorizar o desvalor da conduta punível, essenciais para se poder afirmar que o período de repetição de condutas criminosas é inexistente ou diminuto.

Ora, da factualidade provada não resulta, por si só, que o arguido reúna essas características. De facto, nada nessa factualidade, revela que teve manifestações de genuíno

arrependimento [note-se que do comportamento posterior aos factos não se retira que o mesmo tivesse verbalizado arrependimento, sendo que o facto de lamentar as consequências do sucedido – cfr. facto nº 123 – não é necessariamente o mesmo de demonstrar contrição e até angústia pelo sucedido].

Nestes termos, não se poderá, por si só, dizer que o perigo de reiteração criminosa seja inexistente ou sequer muito diminuto.

Nestes termos, ponderada a ilicitude global do facto, a culpa do arguido, o mínimo reclamado pelas necessidades de prevenção geral (ou seja, a reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada exige que esse quantum de pena), seja de 12 (doze) meses para cada um dos crimes de homicídio negligente praticados, quantum este, que de modo algum, excede a medida da culpa (grave) do arguido.

Como é sabido é controvertida na doutrina e na jurisprudência, em que se afirmam duas posições antagónicas, a questão de efectuar o cúmulo jurídico das duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos automóveis.

Assim, propugnam uns a possibilidade de realização de cúmulo jurídico das penas acessórias, e sustentando outros apenas a possibilidade da sua acumulação material.

Os defensores da admissibilidade do cúmulo jurídico das penas acessórias argumentam que não havendo norma expressa que resolva diretamente a questão e sendo também as penas acessórias verdadeiras sanções penais, não existem fundamentos para as excluir das razões que subjazem à opção legislativa inerente à obrigação de realização de cúmulo jurídico de penas principais [em abono desta tese cfr., entre outros, Faria Costa, in RLJ, Ano 136.º, n.º 3945, Julho – Agosto de 2007. Coimbra Editora, p. 322-328; o acórdão do TRL de 25.06.2003, in CJ, Tomo III – 2003, p. 144-145; o acórdão do STJ de 21.06.2006, in CJ-AC-STJ, Tomo II, p. 223-224; e o acórdão do TRP de 02.05.2012, proferido no processo n.º 319/10.2P1PRT.P1. disponível em www.dgsi/jtrp.pt].

Já na nossa posição, é seguir a tese dos defensores da acumulação material [Em abono desta tese cfr., entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2008, Universidade Católica Editora, p. 226; o acórdão do TRP de 11.10.2006, CJ. Tomo IV. 2006, p. 202-204; o acórdão do TRC de 29.06.2011, proferido no proc. n.º 190/10.4GAVFR.C1, disponível em www.dgsi/jtrc.pt; o acórdão do TRP de 07.12.2011, proferido no proc. n.º 626/1O.4GAPFR.P1, disponível em www.dgsi/jtrp.pt; o acórdão do TRC de 28.03.2012, proferido no proc. n.º 79/10.7GCSEI.C1, disponível em www.dgsi/jtrc.pt e o acórdão do TRP de 13.03.2013, proferido no proc. Nº 1316/10.3PTPRT.P2, e de 25-11-2015, proferido no proc. nº 1/13.9PJMTS.P1, disponível em www.dgsi/jtrp.pt], por se nos afigurar a única defensável de iure constituto.

Com efeito, não obstante a fixação das penas acessórias funcionar dentro dos limites da culpa e visar, tal como a pena principal, exigências de prevenção, é hoje ponto assente a diferente natureza dos fins prosseguidos e dos objetivos de política criminal de cada um desses tipos de penas. Ninguém duvida, aliás, no que à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados respeita e que ora nos ocupa, do seu implícito escopo de recuperação do comportamento estradal do autor do crime. Nomeadamente que nela, para além das exigências de prevenção gerais e especiais que contendem com a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, comuns à pena principal, está também presente o efeito de contribuição para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano e, mesmo, um efeito de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa [cfr. o supra exposto)

Por outro lado, o legislador penal disciplinou expressamente o regime da aplicação das penas acessórias em caso de concurso de infrações, seja ele originário ou superveniente, como decorre dos artigos 77.º, n.º 4 e 78.º, n.º 3, do Código Penal. Estatuindo, no primeiro, a obrigatoriedade de imposição ao agente da pena acessória, ainda que prevista por uma só das leis aplicáveis. Consagrando, por sua vez, no caso de ocorrência superveniente do concurso, como regra, a manutenção das penas acessórias aplicadas na sentença anterior, admitindo, a título excecional, a sua revogação por desnecessidade face ao teor da nova decisão; sendo que, se apenas aplicáveis ao crime que falta apreciar só serão decretadas se ainda foram necessárias em face da decisão anterior.

Ademais, não obstante esta regulação pormenorizada, em momento algum a lei prevê a imposição de pena acessória única, contrariamente ao que acontece com as penas principais o que, em face das suas diferentes naturezas, só poderá significar que o legislador quis excluir a possibilidade de realização de cúmulo jurídico para as penas acessórias.

Sufragando a tese dos defensores da acumulação material, condeno o arguido no cumprimento do período total de 24 vinte e motorizados, correspondendo à acumulação material das duas penas acessórias de 12 meses de proibição de conduzir veículos a motor, aplicadas para cada um dos crimes de homicídio negligente em que se condenou o arguido, nos termos das normas conjugadas artigos 137º e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

(…)”.


*

Ponto prévio

O acórdão da Relação de 9 de Janeiro de 2017, além do mais, declarou a nulidade da sentença 11 de Março de 2016, por omissão de pronúncia, no que respeitava à determinação e fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, determinando, quanto a esta parte, a sua substituição por outra sentença, que substituísse aquela nulidade.

  Não foi, no entanto, exactamente isso o que a Mma. Juíza a quo fez pois, como a própria reconhece, a decisão de 7 de Abril de 2017, ora recorrida, é um segmento decisório complemento da sentença de 11 de Março de 2016. Acresce que este complemento da sentença não foi tornado público em audiência julgamento, apenas tendo sido notificado aos sujeitos processuais, o que constitui uma irregularidade.

Não obstante, o arguido recorreu da decisão e resulta dos termos da motivação que teve plena compreensão do que foi decidido e por que razão assim foi decidido, o mesmo sucedendo com o Ministério Público, atentos os termos da resposta apresentada.

Assim, e para evitar mais delongas, conhecer-se-á do recurso interposto, tendo-se por admitido que a decisão em crise é uma ‘sentença complementar’ da primeiramente proferida e parcialmente anulada, comungando portanto, com esta, a matéria de facto provada relevante – a que preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de homicídio por negligência e a relativa às condições pessoais do arguido – e que nela, decisão recorrida, se tem por, implicitamente, escrita, a saber:

“ (…).

[Da acusação:]

1. No dia 24/8/2014, cerca das 8 horas e 30 minutos, na Estrada Nacional 342, próximo da localidade de Miranda do Corvo, o arguido A... conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, marca Ford, modelo Mondeo, matrícula (...) , na direcção Condeixa – Miranda do Corvo.

2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, mas em sentido contrário (Miranda do Corvo-Condeixa), seguia C... , ao volante do automóvel ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo Passat, matrícula (...) , transportando no lugar de passageiro frontal, a sua mulher D... ,

3. Sensivelmente ao quilómetro 53,5, em zona de ligeira curvatura à esquerda, tomando por referência o sentido de Lamas – Miranda do Corvo, o arguido após descrever a referida curva, em virtude do seu adormecimento, transpôs a linha longitudinal contínua do eixo da via e invadiu a via destinada ao trânsito em sentido contrário.

4. Indo colidir frontalmente com o veículo automóvel conduzido por C... , que seguia na sua faixa de rodagem.

5. Como consequência do embate, o automóvel conduzido pela vítima foi projectado, embatendo com a parte traseira no separador de betão, situado na berma da via.

6. Por sua vez, o automóvel do arguido rodopiou, vindo a imobilizar-se na sua faixa de rodagem, virado para o sentido oposto ao de rodagem.

7. Como consequência da colisão, a vítima C... teve morte imediata, tendo a vítima D... sido transportada em estado muito grave aos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde veio a falecer no dia 27 /8/2014.

8. Resulta da autópsia médico-legal efectuada a C... , que a sua morte foi devida às lesões traumáticas torácicas e abdominais, as quais constituem causa adequada de morte.

9. Mais se concluindo que, tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente, podendo ter sido devidas a acidente de viação como consta da informação.

10. Os resultados toxicológicos não revelaram a presença de álcool ou medicamento no organismo da vítima no momento do embate.

11. No que concerne à vítima D... foi internada de urgência nos CHUC, em momento imediatamente a seguir ao embate, com diagnóstico de traumatismo torácico (hemotórax à direita, fractura do esterno e da clavícula direita), traumatismo abdominal (hematoma retroperitoneal, contusão/laceração hepática e esplénica), e dos membros superiores, vindo a falecer no dia 27/8/2015, pelas 15 horas e 15 minutos.

12. De acordo com relatório de autópsia do IML, conjugando a informação clínica com o exame necroscópico a morte de D... foi devida às lesões traumáticas torácico-abdominais descritas complicadas de infecção aguda.

13. Mais se concluindo que tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte e denotam haver sido produzidas por instrumentos de natureza contundente podendo ter sido devidas a acidente de viação como consta da informação.

14. Por sua vez, o arguido sofreu ferimentos ligeiros, tendo primeiramente recusado o transporte às urgências dos CHUC, onde acabou por ser transportado, pelas 9 horas e 30 minutos, tendo tido alta médica nesse mesmo dia.

15. Tendo sido submetido a exame toxicológico cerca das 10 horas e 50 minutos, com resultado negativo a todas as substâncias testadas, mormente álcool.

16. O embate verificou-se em troço interurbano da Estrada Nacional 342, ao quilómetro 53,S, próximo da localidade de Miranda do Corvo.

17. Sendo a estrada constituída por pavimento betuminoso, em estado de conservação razoável e com boas condições de circulação.

18. Naquele local, existe uma via de trânsito para cada sentido de marcha, com uma largura global de cerca de 7,55 metros, e largura nas bermas de cerca de 1, 35 metros.

19. A separação das vias decorre de uma linha longitudinal mista de cor branca, visível e em bom estado de conservação.

20. A curva que antecede o local do embate tem um amplo campo de visibilidade e uma ligeira inclinação.

21. No momento do embate, o dia estava claro, o tempo estava ameno e seco.

22. Era Domingo, o trânsito na estrada era reduzido e não existia qualquer obstáculo no local.

23. O automóvel conduzido pelo arguido estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica susceptível de influenciar a condução.

24. Por sua vez, o automóvel conduzido pela vítima estava em perfeitas condições de circulação, não existindo qualquer anomalia mecânica susceptível de influenciar a condução.

25. O limite de velocidade no local é 90 quilómetros por hora para quem circula no sentido Condeixa – Miranda do Corvo e 50 quilómetros por hora para quem circula no sentido Miranda do Corvo – Condeixa.

26. O arguido, em virtude der ter adormecido, transpôs a linha longitudinal do eixo da via, e invadiu a faixa contrária.

27. Ao agir da forma descrita, sem cuidar de respeitar as regras rodoviárias, agiu sem o cuidado que lhe era exigível, de forma desatenta e descuidada, agindo sem observar a prudência e diligência a que estava obrigado e de que era capaz, e omitindo a prudência que o exercício da condução rodoviária exige, com desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que conhecia, tinha obrigação de observar e podia e devia ter adoptado de modo a evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, e que teve por consequência colisão com o veículo das vítimas e a resultar na morte dos seus ocupantes.

28. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…).

[Condições pessoais:]

105. O arguido é o mais velho de dois filhos de uma família convencional, com pai motorista e mãe doméstica.

106. Desde há cerca de quatro anos, o pai ficou desempregado e tornou-se taxista.

107. O arguido fez os seus estudos em Miranda do Corvo, com repetição do 7º e 8º ano por não gostar de estudar.

108. Com 17 anos veio para Coimbra trabalhar para a fábrica M... , propriedade de uns tios, na qual trabalhou até aos 20 anos, altura em que saiu para cumprir o serviço militar obrigatório.

109. Cumpriu 18 meses na Marinha, e quando saiu voltou a trabalhar cerca de um ano para a M... .

110. Com cerca de 24/25 anos tornou-se empresário em nome individual: comprava e vendia carros.

111. Em 1986 casou com uma técnica de serviço social e desse casamento nasceram 3 filhos: a mais velha tem agora 17 anos e frequenta o 12º ano, a filha do meio tem 14 anos e frequenta o 9º ano, e o filho mais novo tem 8 anos e frequenta o 4º ano do ensino básico.

112. O casal separou-se em 2006 mas o divórcio apenas se concretizou em janeiro de 2008.

113. Desde a separação em 2006 vive sozinho num apartamento de renda na Lousã.

114. Após o divórcio o arguido ficou com a empresa que tinha criado e a mulher com os restantes bens.

115. Os filhos vivem com a mãe e passam fins de semana de quinze em quinze dias com o pai na sua nova morada na Lousã, onde o arguido vive só.

116. Em 1997 criou a empresa W... , Lda, que chegou a ter oito funcionários, mas que a partir de 2010 diminuiu significativamente a sua actividade, face à diminuição do volume de negócios de compra de carros e à insolvência de alguns dos seus clientes com débitos que não lhe foram pagos

117. Em Outubro de 2013 o arguido vendeu o stock da " W... " à " K... ", empresa de reparação, compra e venda de carros, a qual não lhe pertencerá, apenas ocupando as instalações anteriormente ocupadas pela 1ª.

118. A sua empresa " W... " ficou praticamente inactiva, com uma sede provisória, numas instalações emprestadas por um amigo, em que o único funcionário é o arguido, também gerente e titular.

119. Presentemente o arguido dá apoio dois dias por semana à " K... " e trabalha com stands seus conhecidos, ajudando-os no transporte de carros e/ou vendas e ganha comissões do que vende.

120. O arguido declarou em 2014 em sede de IRS, um rendimento colectável resultante de trabalho dependente de 2.417,53 € e de rendimentos profissionais e comerciais, declarados em sede de IRS 2.196,89 €.

121. Paga 1.200,00 € de prestação de alimentos a cada um dos 3 filhos; a renda da casa em que habita é suportada pelo pai, ficando apenas as despesas de electricidade, água e gás, cerca de 60 € mês e alimentação.

122. Em termos pessoais não tem dívidas, mas a empresa tem dívidas à Segurança Social e às Finanças. No que respeita à primeira fez um acordo no sentido de pagar toda a dívida em ano e meio e está a tentar vender um terreno da firma para pagar às finanças. Também tem algumas dívidas à Banca e tem estado a pagar dívida a fornecedores.

123. Os factos que deram origem ao presente processo, abalaram o arguido e tiveram um enorme impacto na sua vida, já que as vítimas do acidente eram seus amigos, o que tornou a situação ainda mais penosa, lamentando as consequências do mesmo.

124. O arguido é normalmente um condutor prudente, tendo sido este o seu primeiro acidente.

125. Não consta averbado no Registo Individual de Condutor (RIC) qualquer averbamento por infracções rodoviárias.

126. Não consta averbado no CRC quaisquer antecedentes criminais.

127. Encontra-se bem inserido no meio em que reside, não contando informações negativas a seu respeito.

128. Não foram lavrados autos de contraordenação sobre a infracção cometida da transposição da linha longitudinal (cfr. fls. 266 do relatório).

129. O arguido conhecia bem e era frequentador habitual da via em causa.

(…)”.


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Da violação do caso julgado

1. Alega o recorrente – conclusões 2, 5 a 7 e 10 a 15 – que a decisão recorrida violou o que o acórdão da Relação de 9 de Janeiro de 2017 já havia decidido, com trânsito, quanto ao grau de ilicitude, quanto á intensidade da negligência e quanto às exigências de prevenção especial, na medida em que, na decisão recorrida se considerou o grau de ilicitude como significativamente elevado quando o acórdão da Relação o considerou elevado, na decisão recorrida se considerou o grau de negligência particularmente intenso quando o acórdão da Relação considerou elevada a intensidade da negligência, e na decisão recorrida se considerou não demonstrado o inexistente ou diminuto perigo de reiteração criminosa quando o acórdão da Relação considerou que não se fazem sentir as exigências de prevenção especial.

Com ressalva do respeito devido, não assiste razão ao recorrente. Vejamos.

Contrariamente ao que sucedia no C. Processo Penal de 1929 (cfr. arts. 148º a 154º), o C. Processo Penal vigente não regula especificamente os efeitos do caso julgado, apesar de o referir, entre outros, nos arts. 84º e 467º, nº 1. É, no entanto, sabido que são aplicáveis as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal (entendimento uniforme (ex vi art. 4º, do C. Processo Penal). Pois bem.

O art. 628º do C. Processo Civil define a noção de trânsito em julgado do seguinte modo:            A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação

  A partir do trânsito, a decisão é irrevogável [com as excepções que constituem o art. 371º-A, do C. Processo Penal, e o recurso extraordinário de revisão] dizendo-se então que tem força de caso julgado.

  O caso julgado pode ser formal e pode ser material. O primeiro traduz a força obrigatória da decisão dentro do próprio processo onde foi proferida (art. 620, nº 1º do C. Processo Civil). O segundo consiste na força obrigatória da decisão, dentro do processo onde foi proferida e fora dele (art. 619º, nº 1 do C. Processo Civil).

  Já o art. 621º do C. Processo Civil, que define o alcance do caso julgado, estabelece que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga

  Brevitatis causa, diremos que o caso julgado pretende evitar a contradição prática de julgados portanto, a existência de decisões incompatíveis. Por outro lado, a força do caso julgado cobre apenas a resposta dada pelo tribunal à pretensão que lhe foi submetida e não também, os fundamentos que suportaram essa resposta portanto, o raciocínio lógico percorrido pelo juiz até atingir a concreta resposta dada isto sem prejuízo de, como é evidente, os fundamentos utilizados poderem ser usados para definir e precisar o sentido e alcance da decisão coberta pelo caso julgado. 

  Revertendo para a questão sub judice, e tendo em conta o objecto do recurso, diremos que a pretensão a que a Mma. Juíza a quo deu concreta resposta foi a da condenação do recorrente em duas concretas penas acessórias, e numa pena única, resultante do cúmulo material daquelas.

  Sobre esta concreta resposta a Relação nada decidiu no acórdão de 9 de Janeiro de 2017, uma vez que se limitou a declarar nula a sentença de 11 de Março de 2016 precisamente por ter entendido que a 1ª instância não se tinha pronunciado sobre a medida concreta de cada uma das penas acessórias.

  Já a argumentação que no dito acórdão teve por objecto o grau de ilicitude do facto, a intensidade da culpa e a relevância das exigências de prevenção especial integra os fundamentos que suportaram a decisão proferida mas, obviamente, em relação à apreciação feita das penas principais decretadas, e não, pela razão sobredita, em relação às penas acessórias [independentemente de poderem ser a estas estendidas].

 

Em qualquer caso, o que o recorrente discute, são meros conceitos relativos que apenas suscitam problemas de interpretação, sem grande relevo, aliás pois, na verdade, não vemos que entre o grau de ilicitude significativamente elevado e o grau de ilicitude elevado, entre o grau de negligência particularmente intenso e a elevada intensidade da negligência e, entre a não demonstração de inexistente ou diminuto perigo de reiteração criminosa [o que, note-se, não significa que esteja provado o circunstancialismo contrário] e a conclusão de que de não se fazem sentir as exigências de prevenção especial, exista qualquer incompatibilidade prática.

Em suma, a decisão recorrida não viola o caso julgado formal.


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Da excessiva medida das penas acessórias parcelares

2. Alega o recorrente – conclusões 16 e 18 a 27 – que considerando o grau de ilicitude da conduta a intensidade da negligência e a medida das exigências de prevenção especial, por um lado, e a sua situação laboral, económica e familiar, por outro, a medida concreta das penas parcelares viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha e de acesso à profissão e o dever de contribuir para o sustento da família, impondo-se a sua diminuição para oito meses de proibição de conduzir veículos com motor, por cada uma.

Com ressalva do respeito devido, não assiste razão ao recorrente. Vejamos.

São penas acessórias as que só podem ser decretadas na sentença conjuntamente com uma pena principal. É condição necessária da sua aplicação, a condenação do agente numa pena principal mas já não, sua condição suficiente, pois que, como ensina Figueiredo Dias, torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197). Na verdade, como decorre do princípio geral estabelecido no art. 65º, nº 1 do C. Penal, nenhuma pena envolve, como efeito necessário a perda de direitos, civis, profissionais ou políticos.

O C. Penal prevê as penas acessórias no Livro I, Título III, Capítulo III, mas não estabelece um regime específico para a sua determinação. Elas pressupõem, como vimos, a condenação do arguido numa pena principal [prisão ou multa], são verdadeiras penas criminais e por isso, também elas estão ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 34).

Nesta medida, são-lhes aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais o que vale dizer significa que, em princípio, deve ser observada uma certa proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e a medida concreta da pena acessória, sem todavia esquecer que a finalidade a atingir com esta última é mais restrita, pois visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente. Por isso, a conveniência na observação desta relação de proporcionalidade não significa que a medida concreta da pena acessória tenha que ser fixada, quase que por cálculo aritmético, na exacta proporção da medida concreta da pena principal.

Dito isto.

 

3. São efectivamente elevadas as exigências de prevenção geral, dada a frequência com que o crime é praticado, mas a apurada conduta do recorrente não se inclui nas que mais contribuem para a elevação de tais exigências. Na verdade, tendo sido submetido a exame toxicológico, cerca de 2h20 após o acidente, o resultado foi negativo a todas as substâncias pesquisadas, designadamente, o álcool [ponto 15 dos factos provados] e não faz grande sentido referir uma condução temerária e a inadequação da velocidade quando o acidente se ficou a dever ao adormecimento do recorrente [pontos 3 e 26 dos factos provados].

Foram muito graves as consequências da conduta do recorrente, já que deu causa à morte de dois seres humanos.

Naturalmente que não é suposto que os condutores adormeçam no exercício da condução automóvel e quando tal acontece, ressalvada a existência de qualquer patologia, que nos autos não foi invocada, porque o condutor teve, necessariamente, que se aperceber do grau de cansaço extremo em que se encontrava e da eminência do adormecimento, o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz impõe-lhe que, de imediato, encoste e imobilize o veículo, só retomando a condução depois de descansar [note-se, a propósito, que não consta dos factos provados que o recorrente tenha iniciado a condução após o convívio de uma noite de veraneio na Figueira da Foz, consciente de que sabia ter dormido pouco]. 

Em todo o caso, o adormecimento do recorrente ao volante com a consequente saída da sua hemi-faixa rodagem e invasão da hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário ao seu, onde foi embater, frontalmente, na viatura onde seguiam as duas vítimas mortais, o que significa, como consta do ponto 27 dos factos provados, que o recorrente actuou com negligência inconsciente, a intensidade da negligência é elevada.

Por outro lado, o recorrente não tem antecedentes pela prática de crime de homicídio e de crime de ofensa à integridade física no exercício da condução, não tem antecedentes pela prática de crimes rodoviários, e também não tem antecedentes contra-ordenacionais [pontos 125 e 126 dos factos provados]. Trabalha com stands no transporte e venda de viatura, ganhando à comissão, paga prestação de alimentos aos três filhos e é ajudado pelo pai que lhe paga a renda da casa que habita [pontos 119 e 121 dos factos provados].

O art. 69º, nº 1 do C. Penal prevê um período de três meses a três anos para a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

Já referimos a conveniência em assegurar uma certa proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e da pena acessória.

O acórdão da Relação de 9 de Janeiro de 2017 fixou em um ano e seis meses de prisão a pena correspondente a cada um dos dois crimes de homicídio por negligência, pena concreta que se situa acima do ponto médio da moldura aplicável e significativamente abaixo dos ¾ da mesma moldura.

A decisão recorrida decretou duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de doze meses. A sua medida concreta situa-se muito pouco acima do primeiro quarto [proibição de conduzir por onze meses e sete dias] da moldura aplicável e significativamente abaixo do seu ponto médio [proibição de conduzir por um ano e sete meses e quinze dias]. 

Significa isto que as penas acessórias apresentam um justificado ‘abrandamento’ relativamente às penas principais com que foi sancionado o recorrente, em função da sua finalidade mais restrita, não deixando, no entanto, de existir uma relativa proporcionalidade entre umas e outras.    

Para além disso, as exigências de prevenção geral, a gravidade das consequências da conduta e a intensidade da negligência do recorrente justificam plenamente a medida concreta fixada pelo que, não merece censura a decisão recorrida.

4. Acresce que, com ressalva do respeito devido, se nos afigura carecida de fundamento, a invocação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade de escolha e de acesso à profissão e do dever de contribuir para o sustento da família, precisamente porque a Constituição da República Portuguesa prevê a aplicação de penas criminais, verificados que sejam os respectivos pressupostos.

Ora, o efeito de tal aplicação pode significar, e não raras vezes significa, a compressão de direitos fundamentais, com influência na capacidade de ganho e perturbação da vida familiar, mas tal não significa a existência de inconstitucionalidade.

Assim, considera-se não verificada a violação dos arts. 2º, 26º, 36º, nº 5, 47º e 67º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.


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Da indevida realização do cúmulo material e da necessária realização do cúmulo jurídico das penas acessórias parcelares

5. Alega o recorrente – conclusões 28 a 31 – que as penas acessórias parcelares devem ser cumuladas juridicamente, por aplicação das regras do art. 77º do C. Penal, e não materialmente, como o fez a decisão recorrida, não devendo a pena única ser superior a doze meses de proibição de conduzir veículos com motor.

Vejamos.

Como supra deixamos dito, o C. Penal prevê as penas acessórias no Livro I, Título III, Capítulo III, mas não estabelece um regime específico para a sua determinação, sendo-lhe por isso aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais. E de entre estes critérios, conta-se o da punição do concurso.

Não se ignora, como é evidente, que não existe unanimidade sobre a questão. Mas sendo conhecidos os argumentos avançados pelos defensores do cúmulo material, não vemos, com ressalva do respeito devido, que as normas do nº 4 do art. 77º e do nº 3 do art. 78º do C. Penal regulem, como pretendem, o regime das penas acessórias em caso de concurso de infracções.

Na verdade, o art. 77º do C. Penal regula a punição do concurso de crimes, mas o seu nº 4 apenas estabelece a imposição de manter no cúmulo a pena acessória ainda que só esteja prevista para um dos crimes em concurso, mas não regula a operação de cúmulo.

Por seu turno, ao nº 3 do art. 78º também não permite afastar a possibilidade de cúmulo jurídico na medida em que apenas prevê a possibilidade de, no concurso superveniente, não ser aplicada a pena acessória, por desnecessidade.

Mas se a pena acessória é uma verdadeira pena criminal, se há crimes puníveis com pena principal e pena acessória, e se quando um agente comete uma pluralidade de crimes, puníveis com estas duas penas e é necessário efectuar o concurso, não vemos como não sujeitar as penas acessórias ao cúmulo jurídico, tanto mais que o nº 1 do art. 77º do C. Penal, refere a condenação numa única pena sem distinguir. 

Em suma, entendemos que as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor devem ser cumuladas juridicamente, de acordo com as regras estabelecidas no art. 77º do C. Penal (cfr. neste sentido, Faria Costa, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136, Julho – Agosto de 2007, pág. 322 e ss., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 378 e ss., e acs. do STJ de 31 de Outubro de 2012, processo nº 15/08.0GAVRL.P1.S1, da R. de Coimbra de 29 de Março de 2017, processo nº 16/16.5PFCTB.C1, de 16 de Dezembro de 2015, processo nº 37/15.5PTVIS.C1 e de 3 de Dezembro de 2014, processo nº 358/13.1GAILH.C1, da R. de Lisboa de 18 de Fevereiro de 2016, processo nº 384/15.6PZLSB.L1-9 e da R. do Porto de 19 de Abril de 2017, processo nº 507/16.8PTPRT.P1 e de 9 de Novembro de 2016, processo nº 1440/15.6PTAVR-A.P1, todos in, www.dgsi.pt).    

6. Isto assente, atentemos agora no regime de punição do concurso, devidamente adaptado à problemática das penas acessórias.

Tendo sido praticados vários crimes pelo mesmo agente sem que tenha transitado em julgado a condenação por qualquer deles, é aquele condenado numa única, resultante da ponderação conjunta dos factos e a personalidade do agente (nº 1 do art. 77º do C. Penal), tendo em conta a moldura penal que tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, com o limite de vinte e cinco anos para a pena de prisão e de novecentos dias de multa para a pena de multa (nº 2 do mesmo artigo).

No que concerne às penas acessórias, cumpre desde logo notar que a possibilidade do seu cúmulo só se coloca relativamente às que têm a mesma natureza.

Depois, não estando previsto o limite máximo inultrapassável na determinação da pena única, deve entender-se a aplicação da regra do nº 1 referido, sem qualquer limitação o que vale dizer que a pena concreta deve ser extraída da moldura penal que tem como limite mínimo a pena acessória mais grave e como limite máximo o somatório de todas as penas acessórias aplicadas aos crimes em concurso.

O elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única, é a personalidade do agente. Para tanto há que relacionar todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de concluir, ou não, estarmos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura aplicável, ou se, pelo contrário, tal acumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, como refere Figueiredo Dias, (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, pág. 291 e ss.), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). 

A moldura penal a considerar tem como limite mínimo, a proibição de conduzir veículos com motor pelo período de doze meses e como limite máximo a proibição de conduzir veículos com motor pelo período de vinte e quatro meses.

Os crimes praticados têm a mesma natureza e são ‘resultado’ de uma mesma acção negligente.

O recorrente não revelou a interiorização da sua culpa, mas não se detecta a presença de uma personalidade problemática não sendo notórias as exigências de prevenção especial.

Assim, porque é de afastar a existência do início de uma carreira criminosa, radicada na personalidade do recorrente, a acumulação de infracções não deve funcionar como uma agravante dentro da moldura proposta, havendo, por outro lado, que não desconsiderar a finalidade específica desta pena acessória – a prevenção da perigosidade do condutor negligente – e o esforço que vem sendo feito, a nível de prevenção rodoviária, para diminuir a sinistralidade estradal, pelo que consideramos adequada, proporcionada e plenamente suportada pela medida da culpa, a pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de dezassete meses.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

A) Revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido A... na pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de vinte e quatro meses.

B) Condenar o arguido A... – em cúmulo jurídico de duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de doze meses, cada uma – na pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de dezassete meses.

C) Confirmar, quanto ao mais, a decisão recorrida.

D) Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).


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Coimbra, 19 de Dezembro de 2017


Heitor Vasques Osório  (relator)


Helena Bolieiro (adjunta)