Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/13.4TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: PENA DE PRISÃO
ALTERAÇÃO
DIREITO DE DEFESA
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 61.º, N.º 1, B), E 488.º, DO CPP; ART.º 125.º DO CEPMPL E ART. 32.º DA CRP
Sumário: I - A decisão judicial que aprecia as faltas de entrada no estabelecimento prisional por poder legalmente determinar, em caso de falta injustificada, a alteração do regime de cumprimento da pena de prisão aplicada contende com o núcleo essencial dos direitos fundamentais dos cidadãos, no caso com a liberdade do arguido, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e audiência.

II - Constituindo a decisão que revoga o regime de cumprimento em dias livres da pena de prisão aplicada e determina o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão um acto decisório que contende com a liberdade do arguido, ter-se-á de processar de acordo com os princípios gerais de processo penal, designadamente os que se encontram consagrados em sede constitucional, com destaque para o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.

III - No que respeita ao modo de efectivar o contraditório e, especificamente, o direito de audiência, a jurisprudência dos tribunais superiores vem entendendo que a audição prevista no artigo 125.º, n.º 4 do CEPMPL deve ser presencial.

IV - No caso em apreço, procedeu-se a prévia audição presencial do condenado com assistência de defensor, através do sistema de videoconferência para evitar os inconvenientes de uma deslocação ao tribunal a quo, assim como foi dada ao condenado a possibilidade de exercer o contraditório relativamente à posição assumida pelo Ministério Público no sentido de se considerarem injustificadas as faltas e se determinar o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão.

V - Assim, e ao contrário do que vem alegado, não foi omitida a audição do condenado, nem foram violados os seus direitos de defesa, designadamente o direito ao contraditório.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. Nos Autos de Processo Supletivo registados sob o n.º 57/13.4TACBR-A, a correr termos no Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, em que é arguido A..., foi proferida decisão em 9 de Maio de 2014, constante de fls. 232 a 236 dos presentes autos, que julgou injustificadas as faltas cometidas pelo arguido e, em consequência, determinou o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de um ano de prisão em que foi condenado no Processo Sumário n.º 407/11.8GBABT, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes.

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª - Por sentença proferida no âmbito do Processo Sumário n.º407/11.8GBABT – 3.º Juízo de Abrantes, foi o ora recorrente condenado na pena de um (1) ano de prisão, a cumprir em 72 períodos de prisão por dias livres, pela prática de crime de condenação de veículos sem habilitação legal.

2.ª - Até à presente data, o recorrente cumpriu 5 períodos, dos 72 períodos.

3.ª - Foi instaurado um Processo supletivo, nos termos do artigo 234.º do CEPMPL, em virtude do incumprimento, o qual se encontra a correr termos no Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, sob o Processo n.º 57/13.4TXCBR-A.

4.ª - Nessa senda, e de acordo com o preceituado nos artigos 234.º, 174.º e 176.º do CEPMPL, procedeu-se à audição do arguido que decorreu naquele tribunal via videoconferência, em 29 de Novembro de 2013, pelas 10h.

5.ª - Sucede que, apesar da justificação das faltas, o recorrente nunca foi notificado de uma decisão, conforme depreendeu da sua ultima audição.

6.ª - Pelo que, o arguido não se apresentou no Estabelecimento Prisional em virtude de estar a aguardar a decisão do tribunal a quo a fim de saber se manteria o cumprimento da pena em regime por dias livres ou cumprindo a pena principal, em regime contínuo.

7.ª - O cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão torna-se demasiadamente gravoso, porquanto, o ora recorrente encontra-se a trabalhar desde o dia 1 de Novembro de 2013, com contrato Emprego-inserção.

8.ª - Caso este Douto tribunal entenda manter a decisão proferida pelo Tribunal de Execução de Penas, o ora recorrente ficará sem o seu trabalho.

9.ª - Toda esta situação, ou seja, a eventual não alteração da decisão, de que ora se recorre, colocará o recorrente e a sua família numa situação de carência económica, pessoal e familiar, com os consequentes riscos de degradação pessoal e desagregação familiar.

10.ª - Isto porque, apesar da renumeração mensal auferida pelo recorrente ser apenas de € 485,00, é o único sustento do seu agregado familiar.

11.ª - O Recorrente tem consciência do seu incumprimento, uma vez que não faltou para, deliberada, gratuita e reiteradamente manifestar incumprimento da pena que lhe foi imposta, antes o fez em circunstâncias que, mesmo não constituindo motivo impeditivo, são sérias e relevantes, a ponto de o levar até à errónea convicção de que pudesse estar a proceder justificadamente.

12.ª - In casu, não obstante a notificação do Defensor para prova ou justificação das faltas, o recorrente nunca foi notificado para que exercesse o seu direito ao contraditório, como impõe o disposto nos artigos 32.º/5 da Constituição, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

13.ª - Foram, por conseguinte, violados os direitos de defesa do arguido, face a uma decisão que o afecta pessoalmente.

14.ª - Não obstante o artigo 125.º, n.º4 do CEPMPL não definir, em concreto, qual o procedimento a adoptar pelo Tribunal para efectivo e adequado contraditório, assegurando os meios de defesa suficientes e adequados à sua defesa.

15.ª - Entende-se que uma decisão no âmbito daquele artigo contende directamente com o núcleo essencial dos direitos fundamentais dos cidadãos, no caso o direito à liberdade e segurança.

16.ª - Por isso, e na senda do entendimento jurisprudencial, o Tribunal de execução de penas deverá garantir um contraditório presencial, com audiência prévia do condenado perante o juiz de execução.

17.ª - Este entendimento é suportado pelas próprias normas do CEPMPL, porquanto, o artigo 176.º relativo à audição prévia do recluso no processo de concessão de liberdade condicional, cujos trâmites aplicam-se supletivamente ao regime da prisão por dias livres, por força do artigo 234.º do CEPMPL.

18.ª - Foi preterida uma formalidade legal essencial que impede que se considere cumprido o princípio do contraditório e garantir os meios de defesa e uma decisão justa, equitativa e eficaz.

19.ª - Tal omissão consubstancia, a nosso ver, uma nulidade insanável nos termos do artigo 119.º, al. c) do CPP.

20.ª - Termos em que, concluímos que a douta sentença padece de vício de nulidade, nos termos do artigo 119.º, al. c) do CPP, por violação de uma formalidade essencial, instituído no artigo 125.º, n.º 4 do CEPMPL.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, DETERMINANDO-SE A SUBSTITUIÇÃO DA DOUTO DECISÃO RECORRIDA POR OUTRA QUE DETERMINE A AUDIÇÃO DO ARGUIDO PARA, PESSOALMENTE, VIR EXERCER O CONTRADITÓRIO E, A FINAL, seja revogada a decisão que determina o cumprimento do remanescente da pena de prisão em regime contínuo, por outra que determine o cumprimento do período em falta em regime de prisão por dias livres, como já havia sido decidido anteriormente.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido da sua improcedência e concluindo do seguinte modo (transcrição):

«1 - Não há qualquer vício - seja de nulidade, seja de mera irregularidade - a inquinar a eficácia da decisão recorrida. Bem pelo contrário, os autos demonstram que não foi omitida a audição do condenado, na presença do seu Defensor, e que foram respeitados os direitos de defesa e, designadamente, o direito ao contraditório.

2 - As faltas ao cumprimento de pena de prisão por dias livres, que manifestamente ocorreram desde 21 de Fevereiro de 2013, foram cuidadosamente ponderadas na suas circunstâncias e o juízo de injustificação que relativamente a elas foi formulado mostra-se sustentado na prova atendível, livre e responsavelmente apreciada, e nas regras da experiência.

3 - Essas faltas reiteradas e injustificadas traduzem a falta de adesão ao cumprimento da pena de prisão por dias livres e demonstram que as finalidades que, com a aplicação dessa pena, não puderam ser atingidas.

4 - Os inconvenientes, certamente muito gravosos e advenientes para o agregado familiar do condenado, único responsável pela decisão recorrida tomada, não poderão servir de argumento a este para peticionar um benefício que não merece e que seria de todo injustificada e incompreensível aos olhos da comunidade.

5 - Julgadas injustificadas as faltas, como o foram, a consequência inevitável e única apenas poderia ser, como o foi, nos termos do disposto no artigo 125º, n.º 4, do CEPMPL, o cumprimento, em contínuo, do remanescente da pena de prisão não cumprida – neste sentido, o douto Acórdão desse Superior Tribunal da Relação, de 22 de Janeiro de 2014, proferido no Processo de Recurso n.º 868/12.8TCXCBR-B.C1 [disponível em www.dgsi.pt].

6 - A douta decisão recorrida não atenta contra qualquer preceito legal, antes constituindo a afirmação justificada e adequada do disposto nos artigos 40º, n.º 1, do Código Penal, e 125º, n.º 4, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, decidindo pela improcedência do recurso e, em consequência, confirmando a decisão recorrida, será feita Justiça.»

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, manifestando a sua concordância com a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada decisão recorrida.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida.

«1 – RELATÓRIO:

Foi instaurado o presente processo supletivo em virtude de não apresentação do condenado A..., já identificado nos autos, no EP no qual cumpria pena de prisão por dias livres.

*

O condenado foi ouvido, nos termos do art. 125.º/4 do CEPMPL.

*

Finda a instrução, o MP pronunciou-se, promovendo que se considerem injustificadas as faltas.

Foi dado o contraditório ao arguido, que pugnou pela justificação das faltas.

*

O Tribunal é competente.

O processo é o próprio.

Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

II – Fundamentação:

2.1. De facto:

a) Factos provados:

1) A... foi condenado no Processo Sumário n.º 407/11.8GBABT – 3º Juízo de Abrantes, na pena de um (1) ano de prisão, a cumprir em 72 períodos de prisão por dias livres o pela prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal

2) O arguido iniciou o cumprimento da pena em 21/12/2012 e cumpriu 5 períodos.

3) A requerimento do condenado, e por despacho de 13/2/2013, transitado em julgado, os períodos a cumprir foram alterados, passando a situar-se entre as 20 h. de terça feira e as 20 horas de quinta feira.

4) O arguido não compareceu no EP nos seguintes períodos:

- de 4/1/2013;

- de 25/1/2013;

- todos os períodos após esta data

5) O condenado deixou de cumprir a pena porque passou a consumir estupefacientes e o cumprimento da pena de prisão implicava abstinência durante o tempo de reclusão.

5) O condenado ingressou na Associação Envolve em Maio de 2013, após uma desintoxicação e para cumprir um programa de integração social e reintegração e ali permanece entre as 8h30 e as 21h.

6) O condenado trabalha, desde 1/10/2013 como artesão na referida associação e recebe €:485,00 por mês e op contrato de trabalho que celebrou tem termo a 30/9/2014.

7) O condenado colabora também em regime de voluntariado com associações locais como a ADACA, o que sucede desde julho de 2013.

8) O condenado vive com a avó, octogenária, que necessita de cuidados.

b) Motivação:

Para dar como provados os factos que nessa qualidade se descreveram, o Tribunal valorou o teor dos documentos juntos aos autos e as declarações prestadas pelo arguido.

3. Fundamentação de Direito:

Considerado o trânsito em julgado da sentença que impôs o cumprimento de 1 ano e prisão a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 72 períodos de fim-de-semana e emitida a correspondente guia de apresentação, encontra-se o condenado privado da sua liberdade e vinculado à reclusão nos períodos indicados.

De acordo com o art.º 125.º nº 4 do CEPMPL, as faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao TEP. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.

A não apresentação apenas será justificável, segundo julgamos, perante hipóteses de impossibilidade absoluta.

Trata-se, julga-se, de hipóteses sobreponíveis ao conceito de justo impedimento.

De acordo com a definição fornecida pelo art.146º do CPC, por justo impedimento entende-se todo o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.

Na sua anterior redacção, a norma referida em último lugar definia o justo impedimento como "o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário".

Tal definição levava a doutrina a circunscrever o âmbito da previsão legal àquelas hipóteses em que a pessoa onerada com a prática do acto tivesse sido colocada na absoluta impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que o cuidado e diligências normais não fariam prever (cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 1º, pg.321).

Como bem nota Abílio Neto (Código de Processo Civil Anotado, 14º ed., pg.211), a esta quase responsabilidade pelo risco contrapôs a reforma de 95 uma definição conceitual mais flexível, fazendo derradeiro apelo ao "meio termo" de que falava Vaz Serra (RLJ, 109º, pg.267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não lhes é exigível que entrem em linha de conta com circunstâncias excecionais.

Sob a égide do revisto conceito, agora indubitavelmente estruturado sob uma ideia de culpa, entende-se que as situações invocadas pelo recluso, de consumo de estupefacientes, de tratamento de desintoxicação, de ingresso numa associação de reintegração, de trabalho, de necessidade de acompanhar a avó e de voluntariado, não são susceptíveis de justificar as faltas do arguido.

A não ser assim, qualquer condenado que tivesse compromissos profissionais ou laborais durante a semana e que aos fins-de-semana fizesse voluntariado ou que tivesse a seu cargo dependentes poderia incumprir a sua pena, a qual perderia, assim, a sua eficácia.

Aliás, a pena de prisão por dias livres destina-se precisamente a permitir ao condenado compatibilize a sua atividade formativa e profissional com o cumprimento da pena de prisão.

Daí que se tenham de considerar injustificadas todas as faltas do condenado, com as legais consequências.

3 – Decisão:

Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se:

- julgar injustificadas as faltas do condenado e, consequentemente, determinar o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de um ano de prisão em que foi condenado.

Custas pelo condenado com taxa de justiça fixada em 2 UC.

*

Notifique, sendo o condenado pessoalmente.

Informe o EP que doravante não deverão ser autorizadas novas comparências do arguido e solicite informação atualizada sobre os períodos de apresentação cumpridos .

Após trânsito:

- Remeta boletins ao registo criminal.

- Comunique ao processo da condenação, com nota de trânsito em julgado e remeta cópia do mapa de apresentação, solicitando a indicação por este da pena de prisão a cumprir, efetuada a ponderação dos períodos cumpridos e descontados eventuais períodos de privação da liberdade que o recluso tenha sofrido.

- junta tal informação, abra vista ao M.º P.º com vista à promoção da execução da pena – arts 17º al. a), 125º, n.º 4 e 138º n.º 4 al. l) e t) do CEPMPL.»

                                          *

2. Apreciando.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([i]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([ii]).

Assim, atento o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, a questão essencial a apreciar e decidir consiste em saber se a decisão recorrida padece de nulidade, nos termos do artigo 119.º, c) do Código de Processo Penal, por falta de audição presencial do recorrente, nos termos do artigo 125.º, n.º 4 do CEPMPL.

Para uma melhor compreensão importa fazer um historial do processo.

Por despacho constante de fls. 76, proferido em 11.3.2013, foi ordenada a notificação do condenado, pessoalmente e na pessoa do seu ilustre defensor, para, no prazo de 10 dias, esclarecer o motivo porque não se apresentou no Estabelecimento Prisional nos períodos em que faltou, bem como para apresentar as provas que tivesse por relevantes e fossem justificativas da sua ausência, sob pena de poder ser determinado o cumprimento da pena de prisão em regime contínuo pelo tempo que faltar cumprir.

O ilustre defensor foi notificado por via postal registada expedida em 3.4.2013, enquanto o condenado foi notificado por contacto pessoal no dia 10.4.2013.

Na sequência dessa notificação, o ilustre defensor veio aos autos dizer que, apesar de «ter tentado o seu contacto por todos os meios de que dispunha», não obteve qualquer resposta do arguido.

Por seu turno, o condenado veio aos autos dizer que se encontrava desde Março (2013) na Comunidade Terapêutica Projecto Homem, acrescentando que tinha solicitado a revisão da sentença pedindo a suspensão de cumprir os períodos pois estava inocente e não foi assistido convenientemente na defesa.

Procedeu-se à designação de data para audição do condenado, a agendar por videoconferência com o Tribunal Judicial de Abrantes, assim como foi ordenada a notificação do condenado para, no prazo de dez dias, oferecer prova da alegada situação pessoal, familiar e económica.

O condenado foi notificado pessoalmente em 26.6.2013 e nada disse.

Em 12.8.2013, através da sua ilustre defensora nomeada, o condenado veio aos autos comunicar a alteração da sua morada e, em 5.9.2013, veio requerer a junção aos autos de um relatório da Associação “Envolve”.

Em 29.11.2013 teve lugar a audição do condenado, por videoconferência, a partir do Tribunal Judicial de Abrantes, com a presença da ilustre defensora nomeada.

Na sequência das declarações prestadas pelo condenado, foi solicitado ao Tribunal Judicial de Abrantes que informasse se ele requerera, após a sua audição, a alteração do horário do cumprimento da pena de prisão por dias livres.

Em resposta aquele Tribunal informou que não havia sido recebida qualquer solicitação do arguido nesse sentido.

Foi solicitado ao Estabelecimento Prisional de Torres Novas que informasse se, após 29.11.2013, o condenado ali voltara a apresentar-se para cumprir a pena de prisão por dias livres, tendo aquele informado que, desde 21 de Fevereiro de 2013, o condenado não mais se apresentou para cumprimento de pena.

Em 7.4.2014 foi exarada promoção pelo Ministério Público para efeitos de decisão, a qual foi notificada ao condenado para, querendo, se pronunciar, em dez dias, o que este fez nos termos constantes de fls. 222 a 231.

Em 9.5.2014 foi proferida a decisão recorrida que julgou injustificadas as faltas cometidas pelo condenado e, em consequência, determinou o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de um ano de prisão aplicada no Processo Sumário n.º 407/11.8GBABT, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes.

Sendo este o desenrolar processual é manifesto que não assiste qualquer razão ao recorrente.

O artigo 125.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12/10, na redação da Lei nº 40/2010, de 3/9, doravante designado apenas por CEPMPL, estabelece o seguinte:

“1 - A execução da prisão por dias livres e da prisão em regime de semidetenção obedece ao disposto no presente Código e no Regulamento Geral, com as especificações fixadas neste capítulo.

2 - As entradas e saídas no estabelecimento prisional são anotadas no processo individual do condenado.

3 - Não são passados mandados de condução nem de libertação.

4 - As faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao tribunal de execução das penas. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.

(…)”

O n.º 4 deste preceito (que reproduz o revogado n.º 3 do artigo 488.º do Código de Processo Penal) visa claramente efectivar os princípios constitucionais do «contraditório» e da «audiência».

A decisão judicial que aprecia as faltas de entrada no estabelecimento prisional por poder legalmente determinar, em caso de falta injustificada, a alteração do regime de cumprimento da pena de prisão aplicada contende com o núcleo essencial dos direitos fundamentais dos cidadãos, no caso com a liberdade do arguido, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e audiência.

Assim, constituindo a decisão que revoga o regime de cumprimento em dias livres da pena de prisão aplicada e determina o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão um acto decisório que contende com a liberdade do arguido, ter-se-á de processar de acordo com os princípios gerais de processo penal, designadamente os que se encontram consagrados em sede constitucional, com destaque para o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.

Todas as garantias de defesa são todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz, sendo que os direitos a uma ampla e efectiva defesa não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direito ou possam condicionar a solução definitiva do caso, devendo o contraditório abranger actos em que uma apreciação contradita seja importante para a descoberta da verdade e concretização dos direitos de defesa([iii]) .

Um dos direitos de defesa, decorrente do próprio Estado de direito democrático, traduz-se na observância do princípio ou direito de audiência, que implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma([iv]).

O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado de Direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como «com-participação» de todos os interessados na criação da decisão pelo que há-de assegurar-se ao titular do direito uma eficaz e efectiva possibilidade de expor as suas próprias razões e de, por este modo, influir na declaração do direito do seu caso([v]).

Este direito encontra-se expressamente atribuído ao arguido na lei adjectiva penal, concretamente no artigo 61.º, n.º 1, b) do Código de Processo Penal, que estabelece que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.

Outro dos direitos de defesa traduz-se na observância do princípio do contraditório – consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da CRP – consubstanciando-se no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica([vi]).

Um desses actos é justamente o que revoga o regime de cumprimento em dias livres da pena de prisão aplicada, por considerar injustificadas as faltas de apresentação do arguido no estabelecimento prisional, e determina o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão.

Acresce que toda a filosofia do CEPMPL está vocacionada para assegurar o respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos demais princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, nos instrumentos de direito internacional e nas leis (artigo 3.º, n.º 1), sendo um dos princípios orientadores da execução das penas o da individualização do tratamento prisional (artigos 3.º, n.º 4 e 5.º, n.º 1).

No que respeita ao modo de efectivar o contraditório e, especificamente, o direito de audiência, a jurisprudência dos tribunais superiores vem entendendo que a audição prevista no artigo 125.º, n.º 4 do CEPMPL deve ser presencial([vii]).

Esta solução imposta pela dimensão constitucional dos direitos de defesa baseia-se na interpretação conjugada das normas do CEPMPL posto que este prevê no seu artigo 176.º a audição prévia e presencial do recluso no processo de concessão de liberdade condicional cujos trâmites, por força do artigo 234.º, são aplicáveis, com as devidas adaptações, ao processo de justificação de faltas de entrada no estabelecimento prisional de condenado em regime de cumprimento de prisão por dias livres.

No caso em apreço procedeu-se a prévia audição presencial do condenado com assistência de defensor, através do sistema de videoconferência para evitar os inconvenientes de uma deslocação ao tribunal a quo, assim como foi dada ao condenado a possibilidade de exercer o contraditório relativamente à posição assumida pelo Ministério Público no sentido de se considerarem injustificadas as faltas e se determinar o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão.

Por conseguinte, ao contrário do que vem alegado, não foi omitida a audição do condenado, nem foram violados os seus direitos de defesa, designadamente o direito ao contraditório, sendo certo também que, em momento algum, foi invocada a preterição de qualquer formalidade legal.

Apesar de reconhecer o seu incumprimento, alega o recorrente que «não faltou para, deliberada, gratuita e reiteradamente manifestar incumprimento da pena que lhe foi imposta, antes o fez em circunstâncias que, mesmo não constituindo motivo impeditivo, são sérias e relevantes, a ponto de o levar até à errónea convicção de que pudesse estar a proceder justificadamente».

Como refere o Ministério Público na resposta, esta explicação ainda poderia colher até à data da audição do condenado, realizada no dia 29.11.2013, mas já não posteriormente a essa data, após ter sido esclarecido acerca do motivo da realização da diligência.

Aliás, certamente por estar convicto de que o condenado, após a sua audição, retomaria a execução da pena de prisão por dias livres, o tribunal a quo diligenciou junto do Tribunal Judicial de Abrantes a saber se o condenado solicitara a alteração do horário do cumprimento da pena de prisão por dias livres, assim como diligenciou junto do Estabelecimento Prisional de Torres Novas a saber se, após o dia 29.11.13, o condenado se apresentou para cumprir a pena de prisão por dias livres.

Em 17 de Março de 2014, o Estabelecimento Prisional de Torres Novas informou que o condenado persistia no seu incumprimento, posto que, desde 21.2.2013 e até aquela data, não mais voltou a apresentar-se naquele estabelecimento, assim como também não formulou junto do tribunal da condenação qualquer pretensão no sentido de ser alterado o horário de cumprimento da sua pena.

O que os autos evidenciam é, portanto, uma completa falta de adesão do condenado ao cumprimento da pena de prisão por dias livres e ao atingimento dos seus efeitos com evidente prejuízo para a realização das finalidades da punição.

Acerca dos alegados inconvenientes decorrentes do cumprimento em contínuo do remanescente da pena de prisão refira-se que tais consequências são resultantes apenas e tão só da conduta do recorrente que persistiu em não cumprir o determinado pelo tribunal da condenação, sendo certo que o contrato de trabalho referenciado nos autos tinha o seu termo em 30/9/2014.

Assim, julgadas injustificadas as faltas, como o foram, a consequência é o condenado passar a cumprir em regime contínuo o remanescente da pena de um ano de prisão, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 125.º do CEPMPL([viii]).

Improcede, portanto, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigos 153.º, n.º 1 do CEPMPL, 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III).

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Coimbra, 10 de Dezembro de 2014

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[i]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[ii] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[iii] - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, páginas 354 e 360.
[iv] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 157.
[v] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 158.
[vi] - Figueiredo Dias, obra citada na nota anterior, pág. 149 a 151; Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Volume I, 2007, pp. 522 a 523.
[vii] - Cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 13/7/2011, Processo n.º 3737/10.2TXPRT-A.P1 e de 19/12/2012, Processo n.º 561/11.9TXPRT-A.P1 e da Relação de Lisboa de 13/7/2011, Processo n.º 2914/10.0TXLSB-A.L1-3 e de 21/9/2011, Processo n.º 6874/10.0TXLSB-B.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt.  
[viii] - Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 22/1/2014, Processo n.º 868/12.8RXCBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt.