Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/20.1T9TBU.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: FOTOGRAFIA ILÍCITA
FACEBOOK
DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE AGRAVADA
LIBERDADE DE IMPRENSA
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 79º DO CÓDIGO CIVIL; 199º, 197º, 180º, N.ºS 1 E 2, 182º, 183º E 31º DO CÓDIGO PENAL; 30º E 31º DA LEI N.º 2/99, DE 13.01; 26º, N.º 1, E 37º, N.º 3, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Sumário: I. É lícita a utilização de fotografia colocada pelo próprio na sua página (de acesso público) da rede social Facebook como forma de se promover politicamente.
II. A publicação de um juízo crítico sobre a atuação de um político. considerado incorreto pelo autor do artigo, insere-se nos direitos de crítica e liberdade de imprensa.

III. O preenchimento do elemento subjetivo do crime de difamação com publicidade agravado basta-se com a verificação da susceptibilidade das expressões para ofender, não exigindo o dano nem um dolo específico (um animus injuriandi vel diffamandi).

Decisão Texto Integral: *

*


Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo de Instrução nº 69/20.... do Juízo de Instrução Criminal de Coimbra, foi proferida decisão de não pronúncia dos arguidos

1.         AA                                         , divorciado, jornalista, filho de BB e de CC, nascido em .../.../1956, natural da ... de são ..., município ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., ...;

2. DD, casado, filho de EE e FF, nascido em .../.../1986, natural de ..., residente na Estrada ..., ..., ... ... ...; e

3. GG, casado, empresário, filho de HH e II, nascido em .../.../1973, natural da freguesia ..., município ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., ...,

pela prática dos factos que lhes eram imputados na acusação, susceptíveis de, alegadamente, os constituírem:

A – Arguido AA, como autor material, de:

a) Dois crimes de difamação com publicidade agravada, previstos e punidos pelos art.ºs 27.º, 180.º, n.ºs 1 e 4, 183.º, n.º 2, e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01); e de

b) Um crime de gravações e fotografias ilícitas agravado, previsto e punido pelos art.ºs 199.º, n.º 2, al. b), e 197.º, do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01);

B – Arguido DD, como cúmplice, de:

a) Dois crimes de difamação com publicidade agravada, previstos e punidos pelos art.ºs 27.º, 180.º, n.ºs 1 e 4, 183.º, n.º 2, e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01); e de

b) Um crime de gravações e fotografias ilícitas agravado, previsto e punido pelos art.ºs 199.º, n.º 2, al. b), e 197.º, do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01);

C – Arguido GG, como autor material, de um crime de difamação com publicidade agravada, previsto e punido pelos art.ºs 27.º, 180.º, n.ºs 1 e 4, 183.º, n.º 2, e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.

1.2.Os recursos

1.2.1. Das conclusões da assistente JJ

 Inconformada com a decisão, a assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

(…)

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Assim, examinadas as conclusões dos recursos, a questão a conhecer consiste em averiguar a existência de indícios dos crimes de difamação com publicidade agravada, previsto e punido pelos art.ºs 27.º, 180.º, n.ºs 1 e 4, 183.º, n.º 2, e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01); e de gravações e fotografias ilícitas agravado, previsto e punido pelos art.ºs 199.º, n.º 2, al. b), e 197.º, do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13/01).

III. FUNDAMENTAÇÃO
(…)

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A questão a decidir no presente recurso consiste em saber se os arguidos devem ser pronunciados,

- AA como autor material de 2 crimes de difamação com publicidade agravada e 1 crime de gravações e fotografias ilícitas agravado;

- DD como cúmplice de 2 crimes de difamação com publicidade agravada e 1 crime de gravações e fotografias ilícitas agravado;

- GG como autor material de 1 crime de difamação com publicidade agravado.

A instrução é uma fase processual de carácter facultativo destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (artigo 286º, nº 1 do C.P.P.). Pode ser requerida pelo arguido, em caso de acusação, ou pelo assistente, em caso de arquivamento.

Conforme refere Maia Costa, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2022- 4ª edição revista, p. 970, «A instrução não é um julgamento «antecipado», com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova. A instrução, insiste-se, visa apenas a comprovação da acusação, isto é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo».

Ou, nas palavras de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 1994, volume III, p. 126, «No CPP a fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do MP de acusar ou de arquivar o inquérito, nos termos do art. 277º, nº 1 e 2, por outra».

De acordo com o artigo 308º do C.P.P. :

1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos nºs 2,3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.

3 - No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.

Assim, o juízo a efectuar no final da instrução – bem como neste recurso – é acerca da suficiência de indícios recolhidos nos autos, para o que há que formular um prognóstico, uma previsão sobre o que acontecerá em julgamento.

Refere Germano Marques da Silva, in op. cit, p. 182-183, que «Nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais, de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.

Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.».

Ou seja, o grau de convicção exigido para que seja proferido um despacho de pronúncia equivalerá ao grau de convicção exigido para que seja proferida uma acusação – neste sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, volume II, 5ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 232.

Assim, se a probabilidade de absolvição for superior ou igual à de condenação, o processo não deve prosseguir, sendo proferido despacho de não pronúncia

Noutro entendimento, mais exigente, em consonância com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, os indícios são suficientes quando os vários elementos de prova disponíveis provocam no juiz a convicção de que é altamente provável a condenação em julgamento.

Na verdade, enquanto princípio estruturante do processo penal, o princípio da presunção de inocência, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 5 da CRP, vigora em todo o processo penal, pelo que também actua no momento da acusação e da pronúncia. Assim, não pode ficar alheado do juízo indiciário que é formulado nestes actos processuais.

Deste modo, não se deve submeter uma pessoa a julgamento por factos em relação aos quais existam dúvidas razoáveis, pelo que a suficiência dos indícios apenas se verifica quando não subsistam aquelas dúvidas, quando é atingida uma convicção de probabilidade de condenação.

Ou seja, seguindo a lição de Castanheira Neves, deve defender-se para a acusação «a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final» - in Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, página 39.

Aquela primeira posição, denominada teoria da probabilidade dominante, é a que encontra mais apoio na letra da lei, pois o nº 2 do artigo 283º do C.P.P. (aplicável à decisão instrutória por força do disposto no artigo 308º, nº 2) diz-nos que os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Veja-se, a propósito, o Acórdão do STJ de 8/10/2008, processo 07P031, relatado pelo Conselheiro Soreto de Barros, in www.dgsi.pt, onde se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, «uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha».

A segunda posição mencionada exige que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento. Fala-se, a este propósito, em «possibilidade particularmente qualificada» ou de «probabilidade elevada» de condenação.

Veja-se, neste sentido, o Acórdão do STJ de 16/6/2005, processo 05P1938, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que «aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».

Tendo em consideração que a sujeição de alguém a julgamento não deve ser encarada de forma pouco reflectida, dadas as consequências psicológicas ou emocionais que acarreta, mesmo em caso de absolvição, há que ponderar que, se nas fases processuais que  antecedem o julgamento não se puder prever a probabilidade de uma futura condenação, esta não vai ocorrer, pelo que há que concluir que os indícios existentes não são «suficientes» para a pronúncia.

Depois, entendemos que o princípio da presunção de inocência, que está constitucionalmente consagrado e é uma garantia do direito de defesa, não pode ser afastado na fase da instrução.

Isto mesmo já foi afirmado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 439/2002, processo 56/2002, em 23/10/2002, publicado no Diário da República, 2ª série de 29/11/2002 : «(…) a interpretação normativa dos artigos citados [286.º n.º 1, 298.º e 308.º n.º 1, do CPP] que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32.º n.º 2, da Constituição … se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efetiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento.»

Deste modo, propendemos para a posição que entende que no juízo de prognose a efectuar pelo juiz de instrução, no sentido de avaliar da suficiência de indícios necessários à prolação de um despacho de pronúncia, devem ser avaliados os elementos probatórios existentes nos autos, de forma a conduzir à conclusão de que é elevada a probabilidade de condenação do arguido uma vez em julgamento.

Na feliz síntese do Acórdão da Relação de Guimarães de 12/10/2020, processo 421/18.2gcvrl.G1, relatado por Jorge Bispo, in www.dgsi.pt, «Só este critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o princípio in dubio pro reo.

Sintetizando, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia, deve considerar-se existirem indícios suficientes, quando os elementos de prova disponíveis, relacionados e conjugados entre si, fizerem antever a culpabilidade do agente, de modo a gerarem a convicção pessoal de uma condenação futura e se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento ou se anteveja que da ampla discussão em audiência, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação.»  

Comecemos por analisar o recurso do recorrente KK, por se reportar ao acto que primeiramente ocorreu : a publicação datada de 15/6/2020.

Sustenta o recorrente que a actuação dos arguidos AA e DD integra o crime de difamação com publicidade agravada e o crime de gravações e fotografias ilícitas agravado.

O crime de gravações e fotografias ilícitas está previsto no artigo 199º do C.P. que, na parte que aqui interessa dispõe :

(…)

«2 - Na mesma pena [prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias] incorre quem, contra vontade:

a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou

b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».

A agravação, no caso, resulta do que dispõe o nº 2 do artigo 197º (para o qual remete expressamente o nº 3 do artigo 199º) : facto praticado através de meio de comunicação social.

Como elemento típico objectivo temos :

- fotografar outra pessoa contra a sua vontade, ou

- utilizar a fotografia de outra pessoa, contra a sua vontade.

Quanto ao elemento subjectivo, o ilícito admite qualquer modalidade do dolo.

Nitidamente, o bem protegido é o direito à imagem das pessoas, com assento constitucional, no artigo 26º, nº 1 da CRP – ver, a este propósito, Manuel da Costa Andrade, Sobre a Reforma do Código Penal Português, Dos crimes contra as pessoas, em geral, e das gravações e fotografias ilícitas, em particular, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, p. 492-493.

De notar que a tipicidade é afastada havendo acordo da pessoa fotografada, sendo que esse acordo pode ser expresso ou tácito .   

«Quer no direito à palavra, quer no direito à imagem, encontramo-nos perante um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria palavra e a sua imagem. «Em consonância, dispõe o art.º 79.º n.º 1 do CC (Direito à imagem): o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento» - cfr. Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 823.

O recorrente começa por impugnar a decisão recorrida na parte em que esta afirma como não indiciado que o arguido AA quis usar a imagem dele assistente, sabendo que o fazia contra a sua vontade e sabendo que não o podia fazer sem o consentimento do mesmo.

Para tanto, afirma que, ao contrário do que foi afirmado na decisão instrutória, a sua página de Facebook não era pública, pelo que o arguido obteve a fotografia de forma ilícita.

Não sendo imprescindível à qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, o apurar-se se a página do Facebook do assistente é uma página pública ou privada, pois o que se pune na alínea b), acima transcrita, não é a obtenção, lícita ou ilícita, da fotografia, mas a sua utilização - repare-se que a norma termina com a expressão «…mesmo que licitamente obtidos» -; temos de reconhecer que, se a página não for pública, pode afirmar-se a existência de uma vontade presumida contra a respectiva utilização.

Na verdade, uma das diferenças evidentes entre a incriminação das fotografias ilícitas e das gravações ilícitas é que aquela exige que sejam feitas «contra a vontade» do visado, enquanto estas se bastam com a exigência de «sem consentimento» dele.

Nesta linha, afirmou-se na decisão recorrida, «Assim a leitura que fazemos do normativo incriminatório em face da actual redacção, por estar em causa por um lado uma intromissão não consentida (fotografar) e por outro uma divulgação (utilizar) contra a vontade, em face da autonomia de cada uma delas é a de que como tal se apenas a fotografia tirada contra a vontade da outra pessoa fotografada é ilícito penal (e não por isso a tirada pelo próprio a si mesmo) já a divulgação feita por terceiro contra a vontade do fotografado de uma fotografia sua (mesmo que tirada pelo próprio) constitui facto típico ilícito, única maneira, cremos de considerar actualmente que a divulgação, por terceiro de uma fotografia licitamente obtida (como pondera a norma legal) é crime, feita contra a vontade do fotografado (constituindo crime quer essa fotografia divulgada seja licita ou ilicitamente obtida pelo divulgador), pois só assim se pode dar a autonomia que a lei exige entre o acto de fotografar e o de divulgar fotografias (ambos a exigir que ocorra contra a vontade do visado para cada um dos actos), …».

Vejamos então o que se retira dos elementos probatórios recolhidos nos autos, dado que o recorrente invoca que nas declarações que prestou em inquérito afirmou que a sua página era privada .

A fls. 31 verso, declara de forma conclusiva que a foto foi obtida pelo órgão de comunicação social de forma ilícita, pois subtraiu-a da sua página pessoal de Facebook, sem permissão para tal conduta e posterior publicação.

Nenhuma das testemunhas ouvidas a este propósito refere o carácter público ou privado da página de Facebook do assistente.

Quando ouvido em 23/2/2022, o recorrente declara que utilizava o perfil de Facebook pessoal também como local para publicar situações relacionadas com a sua actividade como vice-presidente do Município; que as suas publicações apenas podiam ser visualizadas por quem tivesse aceite como «amigo» do Facebook; que «...» não constava da sua lista de amigos, e desconhece se algum dos seus «amigos» da altura teria algum relacionamento com o jornal ou se era colaborador do mesmo.

Já em fase de instrução, o arguido AA não se pronunciou acerca da forma como obteve a fotografia em causa, nem sobre o acesso à página de Facebook do assistente !

Portanto, afirmar, como faz o recorrente, que o mesmo não negou o carácter privada da foto é extrapolar da prova produzida .

Nenhuma das três testemunhas ouvidas em sede de instrução falou acerca da página de Facebook do assistente KK .

Neste quadro, os indícios reunidos nos autos não apontam para que a página de Facebook do recorrente fosse, à época, privada; antes pelo contrário.

Na verdade, de acordo com as regras da experiência, é mais plausível que o assistente fizesse publicações relativas à sua actividade pública numa página não privada. Por outro lado, não tinha a exacta noção de quem é que teria acesso à sua página, pois não sabia se teria algum amigo de Facebook colaborado do jornal «...» !

Ou seja, não acompanhamos o recorrente na parte em que considera indiciado que  o arguido AA sabia que usava a sua imagem contra a sua vontade, por ter obtido a fotografia de forma ilícita da sua página do facebook.

Adiante…

O recorrente entende ser inaplicável o disposto no artigo 79º, nº 2 do C.C..

O artigo em questão, sob a epígrafe «Direito à imagem», dispõe o seguinte :

1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.

2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.

3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.

Ora, em primeiro lugar, há que chamar à colação o artigo 31º do C.P. (causas de exclusão da ilicitude), segundo o qual o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (nº 1), onde se inclui o transcrito artigo 79º do C.C..

Manuel da Costa Andrade, op. cit., p. 833, «na determinação da área de tutela típica do direito à imagem deve ter-se presente o disposto no n.º 2 do art.º 79.º do CC. Que, pelo menos em algumas das constelações previstas, se projeta logo em sede de tipicidade e não apenas de ilicitude/justificação».

Assim, nas páginas 833 e 834, este autor reporta-se a dois grupos de casos:

a)         Em primeiro lugar, quando «a imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente»;

b)         Em segundo lugar, quando seja relevante «a notoriedade ou o cargo desempenhado».

Também Miguez Garcia e Castela Rio, in Código Penal Parte geral e especial, com notas e comentários, 2015, 2ª edição, Almedina, p. 857-858 afirmam que «São subtraídas da proteção absoluta estabelecida no art. 79º/1 do CC as pessoas revestidas de notoriedade, aquelas a cujo interesse individual na não exposição ou reprodução do seu retrato se sobreponham interesses coletivos de realização da justiça, de satisfação de necessidades de polícia, científicos, didáticos ou culturais. E ainda aquelas cuja reprodução da imagem esteja ligada a factos, acontecimentos ou cerimónias de interesse público ou realizadas em público» .

No caso em apreço, a fotografia em causa retrata o assistente KK, vice-presidente da Câmara Municipal ... – constante de uma publicação do próprio, recorde-se, em que fazia menção a «desconfinamento» e a «associativismo» – e foi publicada num jornal de âmbito local/regional, exactamente da área do município por ele representado .

Mais, o comentário colocado pelo assistente liga-se directamente à sua actividade concelhia, razão pela qual concordamos com a decisão recorrida quando afirma que não era necessário o seu consentimento para a publicação que foi efectuada naquele periódico.   

Em conclusão, não havendo indícios de a fotografia ter sido obtida de forma ilícita da página de Facebook do assistente, a sua publicação, tendo em atenção as funções exercidas pelo recorrente, não integra o crime previsto, além do mais, no artigo 199º, nº 2, al. b) do C.P..

Avancemos agora para a análise do crime de difamação com publicidade agravada.

O artigo 180º, nº 1, do C.P., sob a epígrafe «difamação», sanciona criminalmente a conduta de «quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo».

O artigo 183º do mesmo código estabelece molduras penais agravadas em função da publicidade ou da calúnia:

«1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:

a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,

b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;

as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias».

No que se refere a publicações na imprensa que ofendam bens jurídicos penalmente protegidos, o artigo 30º da Lei de Imprensa (Lei nº 2/99, de 13/1, com as alterações introduzidas pelas Leis 18/2003, de 11/6, 19/2012, de 8/5, e 78/2015, de 29/7), sob a epígrafe «crimes cometidos através da imprensa», dispõe:

«1 - A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.

2 - Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo».

Acresce, no âmbito da participação criminosa, também são estabelecidas, no artigo 31º da Lei de Imprensa, requisitos específicos:

«1 – Sem prejuízo do disposto na lei penal, a autoria dos crimes cometidos através da imprensa cabe a quem tiver criado o texto ou a imagem cuja publicação constitua ofensa   dos      bens     jurídicos protegidos  pelas disposições incriminadoras.

2 - Nos casos de publicação não consentida, é autor do crime quem a tiver promovido.

3 - O director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor, no caso de publicações não periódicas, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido com as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.

4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, a menos que o seu teor constitua instigação à prática de um crime.

5 - O regime previsto no número anterior aplica-se igualmente em relação aos artigos de opinião, desde que o seu autor esteja devidamente identificado.

6 - São isentos de responsabilidade criminal todos aqueles que, no exercício da sua profissão,            tiveram intervenção    meramente      técnica, subordinada ou rotineira no processo de elaboração ou difusão da publicação contendo o escrito ou imagem controvertidos».

São elementos objectivos do crime de difamação a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, ofensivos da honra e consideração de outrem ou a reprodução daquela imputação ou juízo.

Quanto ao elemento subjectivo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei - cfr o Acórdão do S.T.J. de 21/10/2009, processo 1/08.0trlsb.S1, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura, in www.dgsi.pt.

Também aqui tem assento constitucional, no artigo 26º da C.R.P., o bem protegido com esta incriminação : o direito ao bom nome e reputação, que «consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra e consideração social mediante imputação feita por outrem» - cfr.  Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, p.180.

Por sua vez, a honra consistirá na «projeção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esfoço pessoal. O crédito da honra é devido naturalmente, sendo que a honorabilidade só pode ser descartada quando os atos do indivíduo demonstrem o contrário. A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social que o indivíduo merece» - Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, p. 301 .

É por isso que a «relevância constitucional da tutela do bom nome e da reputação legitima a criminalização de comportamentos como a injúria, a difamação, a calúnia e o abuso de liberdade de imprensa ou a admissibilidade, no âmbito da responsabilidade civil, da compensação dos danos não patrimoniais advenientes de actuações ilícitas por ofensa ao bom nome e à reputação das pessoas» -  Jorge Miranda e Rui Medeiros, in  Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra 2005, p.289.

Contudo, na análise do carácter ofensivo de determinada actuação, não nos podemos ater a um conceito puramente subjectivo. Ou seja, não basta que o visado se sinta difamado ou injuriado para que estejamos perante uma ofensa ao seu bom nome ou reputação. A determinação do carácter injurioso de uma expressão tem de considerar o contexto em que foi proferida, o meio social a que pertencem ofendido e arguido, a relação existente entre eles, os valores do meio social em que ambos se inserem, etc...

Depois, a nossa Constituição dá igual guarida, no artigo 37º, nº [1], à liberdade de expressão e informação : «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.»

A liberdade de expressão implica o direito de não ser impedido de exprimir e divulgar opiniões, ideias, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição e juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto.

Isto mesmo é proclamado pelo artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - «Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão» -; pelo artigo 10º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras..» -; e pelo artigo 11º, nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.».

Contudo, o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto ou ilimitado.

É certo que, como consta da parte final do nº 1 do artigo 37º da C.R.P., este direito não pode ser sujeito a impedimentos, mas tal não significa que não tenha limites – caso contrário, o nº 3 do preceito constitucional não faria alusão a «infracções cometidas no exercício» dos direitos de expressão e informação !

Mais, o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, acima mencionado, no seu nº 2, reporta-se especificamente a esses limites : 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».

Um desses limites é exactamente constituído pelo direito ao bom nome e reputação.

Estando perante dois direitos fundamentais, em princípio de igual valor, a colisão entre eles deve resolver-se através de um juízo que pondere as circunstâncias do caso concreto, de forma a apurar se determinada conduta, alegadamente atentatória do bom nome e reputação de outrem, está justificada por encontrar abrigo no exercício da liberdade de expressão. Veja-se, a este propósito, o Acórdão do S.T.J. de 13/7/2017, processo 3017/11.6tbstr.E1.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, in www.dgsi.pt.

Intimamente ligado à liberdade de expressão, temos a liberdade de imprensa, isto é, através de meios de comunicação em massa.

Para Manuel da Costa Andrade, Sobre a Reforma do Código Penal Português, Dos crimes contra as pessoas, em geral, e das gravações e fotografias ilícitas, em particular, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, p. 486, «A liberdade de imprensa está, desde logo, indissociavelmente ligada a dois interesses de proeminente relevo comunitário… o direito de informar que assiste aos jornalistas, seus agentes activos privilegiados; e o direito da própria comunidade à informação … a liberdade de imprensa vale hoje como uma instituição basilar da sociedade democraticamente organizada. Perfila-se, por isso, como um valor que transcende os interesses e a vontade dos seus agentes ou destinatários históricos».

Na p. 450 este autor esclarece que «…a actualização do direito fundamental correspondente à liberdade de imprensa estar, por via de regra, associada à salvaguarda de outros valores ou prossecução de outros interesses de irrecusável dignidade comunitária. Como a transparência da administração pública, a descoberta e prevenção de actos de corrupção, a protecção de minorias discriminadas, etc. Tudo interesses a levar à balança da ponderação, nomeadamente para efeitos de determinação de manifestações concretas de ilicitude».

Nesta linha, é hoje maioritariamente aceite que os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela sujeição à censura das ideias que defendem, quer pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes à apreciação crítica, do que os meros particulares. Nas palavras de Ireneu Cabral Barreto, citado por Miguez Garcia e Castela Rio, op. cit., p. 799, «quanto aos limites da crítica admissível, eles são mais amplos relativamente a um homem político, agindo como personagem pública, do que a um particular. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, tanto por parte dos jornalistas como pela massa dos cidadãos, e deve mostrar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio produz declarações públicas que se prestam à crítica».

Voltando a nossa atenção para a publicação do dia 20/6/2020, verificamos que, a acompanhar a fotografia de 7/6/2020 com o comentário do próprio «Desconfinamento social, que promove o associativismo», o arguido AA publicou-a no jornal «...» com o seguinte comentário :

“Desconfinar com caracóis e umas cervejinhas- “faz o que eu digo, não faças o que faço, lá diz o velho ditado. Que cai que nem uma luva para comentar esta foto onde se vêem o vice-presidente da Câmara, KK, e o presidente da Junta de freguesia ..., LL, a desconfinarem no meio de umas cervejinhas e de um dos caracóis, sem manterem a distância social que a própria edilidade apregoa nos seus conselhos sanitários de prevenção contra o vírus na sua pagina do facebook”.

Em primeiro lugar, há que não esquecer as funções públicas desempenhadas pelo assistente, ora recorrente – vice-presidente da Câmara Municipal ....

Depois, a publicação foi levada a cabo num órgão de comunicação social regional, com sede em ....

Acresce que a publicação em causa não formula um juízo ofensivo sobre a própria pessoa visada, sobre a dignidade do assistente; limita-se a formular um juízo crítico sobre a actuação ou conduta do mesmo .

Na verdade, na publicação atrás transcrita não é feito qualquer juízo dirigido directamente contra a honra e bom nome do assistente. Pelo contrário, aquelas afirmações têm o intuito de denunciar um comportamento que o arguido considerou incorrecto por parte do recorrente enquanto responsável autárquico, chamando a atenção para a diferença ao nível da manutenção da distância social, entre o que era apregoado pela edilidade e a realidade .

Compulsando a página de facebook da Câmara Municipal ..., verificamos que em Junho de 2020, eram ali publicados, diariamente, relatórios da situação epidemiológica a propósito do Covid, onde se aconselhava a população a seguir as recomendações da Direcção Geral de Saúde.

Ora, à época, estava em vigor a Resolução do Conselho de Ministros nº 40-A/2020 de 29/5, que reafirmou a situação de calamidade que se vivia e determinou, no seu artigo 6º que «1- Em todos os locais abertos ao público, devem ser observadas as seguintes regras de ocupação, permanência e distanciamento físico:

(…)

b) A adoção de medidas que assegurem uma distância mínima de dois metros entre as pessoas, salvo disposição especial ou orientação da DGS em sentido distinto;».

Nitidamente, esta regra de distanciamento físico não foi cumprida pelo recorrente, como ilustrado na fotografia em questão, e o comentário efectuado em «...», ao chamar a atenção para tal facto, não ofende o visado no seu bom nome e reputação. 

Tal como explicitado no recente Acórdão da Relação do Porto de 22/2/2023, processo 1493/20.5t9vfr.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, «Traçar a fronteira entre [a prática do crime de difamação e uma situação coberta pela liberdade de expressão] passa por distinguir entre a formulação de juízos ofensivos sobre a própria pessoa visada e a formulação de juízos críticos sobre a atuação ou conduta de uma pessoa… Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos do artigo 31º, nº 2, c) do Código Penal, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica)».

Em suma, a publicação em questão não extravasa o direito à crítica e à liberdade de expressão do arguido e a realização de interesses legítimos.  

Passemos agora à análise do recurso da recorrente JJ, por referência à publicação datada de 1/10/2021.

Sustenta esta recorrente que a actuação dos arguidos AA, DD e GG integra o crime de difamação com publicidade agravada.

A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida na parte em que esta afirma como não indiciado que o arguido AA procedeu à publicação em causa sem cuidar de averiguar se a informação era fidedigna e ciente do seu carácter difamatório, pois a mesma era falsa e afectava a honra da assistente, pelo que quis, bem como o arguido GG, ofendê-la; e que o arguido DD sabia que as informações prestadas pelo arguido GG eram falsas e ofensivas da honra da assistente e publicou-as no jornal de que era director .

Para tanto, apoia-se no depoimento das testemunhas MM e NN e nas declarações do arguido GG, prestadas em sede de instrução.

Relembremos a publicação, com o título «Coligação “Coragem para Mudar” apresentou queixa alegando irregularidades graves nas eleições», relativa às eleições autárquicas do dia 26/9/2021, sendo que a coligação “Coragem para Mudar” era do PSD/CDS-PP, que ia procurar impugnar tais eleições .

No texto, assinado pelo arguido AA, consta o seguinte :

(3º parágrafo) «... apurou que algumas das irregularidades detetadas respeitam a situações ocorridas junto às mesas de voto, nomeadamente a presença de candidatos e membros das Juntas de Freguesia ainda em exercício».

(7º parágrafo) «Um outro caso apontado terá ocorrido em ..., em que a escrutinadora, JJ deixava a mesa de voto com alguma frequência para ir telefonar para o exterior, contactando cidadãos que ainda não tinham votado e que ela tinha conhecimento por ser escrutinadora para que os mesmos viessem votar, fazendo referência a um determinado candidato. GG afirma ter testemunhas disso».

Também resultou indiciado que estas afirmações foram proferidas pelo arguido AA e pelo arguido GG por causa do exercício, por parte da assistente, como membro de órgão autárquico e sabiam que tais expressões iriam ser difundidas em meio de comunicação distribuído a nível regional.

  Ouvidos os depoimentos apontados, na íntegra, não acompanhamos a recorrente quando afirma que os autos demonstram que as afirmações eram falsas :

Isto, na medida em que ambas as testemunhas ouvidas – MM e NN -, delegados na mesa de voto de ..., afirmaram de forma peremptória que a assistente, variadas vezes, deslocou-se ao exterior  para telefonar .

É certo que a testemunha NN não ouviu o conteúdo dos ditos telefonemas .

Já a testemunha MM afirmou, em determinada altura do seu telefonema, ter ouvido a assistente a dizer «não te esqueças … do voto».

Porém, esta afirmação não implica que a assistente, nesse telefonemas, contactasse «cidadãos que ainda não tinham votado e que ela tinha conhecimento por ser escrutinadora para que os mesmos viessem votar, fazendo referência a um determinado candidato», como se fez constar da publicação que agora analisamos !

Trata-se de uma extrapolação sem apoio naquilo que afirmaram as testemunhas quando ouvidas .

Nitidamente, a afirmação em causa é atentatória da honra da assistente, pois a actuação descrita na publicação sempre configuraria a prática de um crime :

Na verdade, a Lei Orgânica nº 1/2001 de 14/8, que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, prevê : 

Artigo 172.º
Violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade

Quem, no exercício das suas funções, infringir os deveres de neutralidade ou imparcialidade a que esteja legalmente obrigado é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
Artigo 177.º
Propaganda na véspera e no dia da eleição

1 - Quem no dia da votação ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio é punido com pena de multa não inferior a 100 dias.
2 - Quem no dia da votação fizer propaganda em assembleia de voto ou nas suas imediações até 50 m é punido com pena de prisão até 6 meses ou pena de multa não inferior a 60 dias.

No que toca aos arguidos AA e DD, respectivamente editor e director do jornal «...», é aplicável o que o artigo 31º, nº 3 da Lei de Imprensa estipula, ou seja :

«O director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor, no caso de publicações não periódicas, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido com as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.».

Mais, o artigo 19º, nº 1 do mesmo diploma legal estipula que as «publicações periódicas devem ter um director», definindo o seu artigo 20º que ao « director compete:

a) Orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação;

b) Elaborar o estatuto editorial, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º;

c) Designar os jornalistas com funções de chefia e coordenação;

d) Presidir ao conselho de redacção;

e) Representar o periódico perante quaisquer autoridades em tudo quanto diga respeito a matérias da sua competência e às funções inerentes ao seu cargo».

Com a redacção e publicação da notícia do dia 1/10/2021 mostram-se preenchidos os elementos objectivos do crime de difamação -«quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo»-, porque, como atrás se explicitou, da mesma consta a imputação de factos que objectivamente são ofensivos da honra e consideração pessoal da assistente.

Cumpre, no entanto, indagar da verificação de alguma causa que exclua a responsabilidade criminal, pois o nº 2 do artigo 180º do C.P. prevê dois requisitos cumulativos que excluem a tipicidade das condutas descritas no nº 1.

Assim, a conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

Por último, o nº 4 do artigo 180º estabelece que a «boa fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação».

Compreensivelmente, a norma do nº 2 do artigo 180º do C.P. é apenas aplicável à imputação de factos, que não à imputação de juízos – cfr. Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a sua tutela Penal, p. 62.

No que se refere ao primeiro requisito constante do nº 2 do artigo 180º, importa precisar que não é defensável que a imprensa, ao informar, está automaticamente a realizar um interesse legítimo, não há que confundir «a legitimidade da informação mediada pela imprensa e a realização de interesses legítimos enquanto pressuposto ou critério de justificação da conduta tipicamente lesiva de um bem jurídico penal, no caso a honra e a consideração» – Faria e Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, p. 616.

E continua, citando Figueiredo Dias, in «Direito de informação e tutela da honra no Direito Penal da Imprensa Português», RLJ 115º, p. 136, os meios de comunicação social só desempenham uma função com interesse público quando os factos ou juízos divulgados respeitem a uma “actividade relativa à formação democrática e pluralista da opinião pública em matéria social, política, económica, cultural” .

Entendemos que é inequívoca a existência do requisito da realização de interesses legítimos na divulgação da notícia, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 180º do C.P., que se verificava um interesse público na divulgação da notícia, considerando que se tratava da verificação de irregularidades que afectavam as eleições autárquicas ocorridas cinco dias antes, no concelho onde o jornal «...» tem a sua sede .

Quanto ao segundo requisito, previsto no artigo 180º, nº 2, alínea b), do C.P., temos que há necessidade da actividade informativa ser exercida mediante procedimentos e por modo correctos e, consequentemente o cuidado, por parte de quem informa, de agir o mais objectivamente possível (cfr. Oliveira Mendes, op. cit, p. 72 e 73).

De acordo com o disposto no artigo 14º, nº 1, alíneas a) e f) e nº 2, alínea c) do Estatuto do Jornalista (Lei nº 1/99 de 1/1), são deveres fundamentais dos jornalistas informar com rigor, identificar as fontes de informação, atribuindo-lhes as opiniões próprias, abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência.

Ora, a publicação refere expressamente qual a fonte da informação quanto à assistente JJ : o co-arguido GG !

Sobre este segundo requisito, Manuel da Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p. 354 e ss, diz que se a imprensa só pudesse divulgar informações que contendem com a honra das pessoas quando, no momento da publicação, não subsistem quaisquer dúvidas fundadas sobre a sua fiabilidade, então ela não poderia cumprir as tarefas que lhe são cometidas e por isso, não podem elevar-se as exigências de verdade e informação a níveis tão elevados que acabem por paralisar a imprensa.

Deste modo, terá de procurar-se um equilíbrio entre o princípio do risco permitido e o princípio da ponderação de interesses, o que se fará com recurso às “leges artis”.

No caso, entendemos que havia fundamento sério para que o editor e o director do jornal reputassem a informação prestada pelo co-arguido de verdadeira, dada a qualidade deste – mandatário da coligação que pretendia impugnar as eleições -, a circunstância de ter mencionado ter várias testemunhas do ocorrido e dado que aquando da publicação da notícia a Assembleia de Apuramento Geral das eleições já havia reunido (no dia 28/9/2021) e nela o arguido GG havia feito um protesto relatando os factos que relatou ao jornalista .

Mais, conforme consta da publicação em questão, o arguido AA teve o cuidado de contactar outro partido concorrente às eleições, o Partido Socialista, fazendo menção a um comunicado deste a repudiar as posições assumidas pelo PSD/CDS, citando : «este partido teve vários delegados nas Assembleias de voto, onde não detectou, como o não fez a Assembleia geral de Apuramento, quaisquer irregularidades que possam colocar em dúvida os resultados eleitorais, pelo que aguardaremos, serena e tranquilamente, a pronúncia do Tribunal Constitucional…».

Deste modo, dado estarmos numa fase de «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar», nos termos do artigo 286º, nº 1 do C.P.P., sendo expectável a absolvição dos arguidos AA e DD, por não existirem indícios suficientes de se ter verificado crime, naturalmente que se impõe a confirmação do despacho de não pronúncia nesta parte.

Já no que se refere ao arguido GG, dado o que se expôs acerca do carácter ofensivo da afirmação que foi publicada, resta verificar se se mostram indiciados os factos que integram o elemento subjectivo do crime de difamação.

«O dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência» - cfr., entre vários neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 27/5/2015, processo 11/10.8GASJP.C1, relatado por Fernando Chaves, in www.dgsi.pt

Ou, nas palavras de Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, Volume II, 1981, p. 292, «(…) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica».

O arguido GG enquanto mandatário político, obviamente que não desconhecia o caracter altamente difamatório da informação que veiculou.

Por outro lado, imputando factos ilegais à assistente com base em testemunhos que não afirmaram o que comunicou à comunicação social, é manifesta a existência de dolo da sua parte.

 É que é preciso não esquecer que este tipo legal de crime se basta com a verificação da susceptibilidade das expressões para ofender, não exige o dano, e também não exige um dolo específico (um animus injuriandi vel diffamandi).

Pelo exposto, concluímos que estão presentes os vários elementos do dolo, pelo que este arguido deve ser pronunciado, procedendo o recurso da assistente JJ nesta parte.

Sintetizando, está suficientemente indiciado que :

1.A assistente JJ era presidente da Assembleia de Freguesia ... e ....

2. No dia 26 de Setembro de 2021, a assistente JJ compunha a mesa da assembleia de voto na sede da respectiva Junta de Freguesia, na qualidade de escrutinadora;

3. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre o dia 26 e o dia 30 de Setembro de 2021, o arguido GG informou AA, editor do jornal quinzenal «...», da existência de irregularidades no acto eleitoral, solicitando a sua publicação no aludido jornal;

4. AA procedeu à publicação, no dia 1 de Outubro de 2021, no jornal "...", de um texto, com o título "COLIGAÇÃO "CORAGEM PARA MUDAR" APRESENTOU QUEIXA ALEGANDO IRREGULARIDADES GRAVES NAS ELEIÇÕES", no qual noticiava que a coligação "Coragem para Mudar" do PSD/CDS-PP" iria impugnar os resultados eleitorais do dia 26 de Setembro de 2021, com fundamento, "na forma como decorreu o processo eleitoral";

5. No 3.º parágrafo do aludido texto, escreveu "... apurou que algumas das irregularidades detetadas respeitam a situações ocorridas junto às mesas de voto, nomeadamente a presença de candidatos e membros das Juntas de Freguesia ainda em exercício";

6. E, no 7.º parágrafo: "Um outro caso apontado terá ocorrido em ..., em que a escrutinadora, JJ deixava a mesa de voto com alguma frequência para ir telefonar para o exterior, contactando cidadãos que ainda não tinham votado e que ela tinha conhecimento por ser escrutinadora para que os mesmos viessem votar, fazendo referência a um determinado candidato. GG afirma ter testemunhas disso";

7. Estas afirmações foram proferidas pelo arguido GG por causa do exercício, por parte da assistente, como membro de um órgão autárquico;

8. E sabia que tais expressões iriam ser difundidas em meio de comunicação distribuído a nível regional;

9. O arguido sabia que essas afirmações afectavam a honra, a consideração pessoal e profissional no exercício da função de membro de órgão autárquico, e o bom nome da assistente e quis que fossem publicadas;

10. A assistente sentiu-se ofendida ao ler o artigo em causa, sentindo-se humilhada e envergonhada;

11. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo assistente KK.

Custas pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UCs – cfr. o artigo 515º, nº 1, al. b) do C.P.P..

Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente JJ, em consequência do que revogam o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que:

- pronuncie o arguido GG pelo crime de difamação com publicidade agravada, previsto e punido pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 2, 184º e 132º, nº 1, al. l) do C.P., pelos factos acima referidos.

Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça em 2 UCs – cfr. o artigo 515º, nº 1, al. b) do C.P.P..                                                

Coimbra, 7 de Fevereiro de 2024

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(Helena Lamas - relatora)

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(Jorge Jacob)

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(Rosa Pinto)