Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/2000.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE FERROVIÁRIO
CULPA
PRIORIDADE
Data do Acordão: 06/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 487, 503 CC, DL Nº 39780 DE 21/8/1954, LEI Nº 156/81 DE 9/1.
Sumário: 1. É de viação o acidente entre um comboio e uma máquina carregadora, que manobrava junto à estação, a carrilar vagões.

2. O Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro (REP), aprovado pelo Decreto – Lei nº 39780, de 21.08.54, e que o Decreto – Lei nº 156/81, de 9 de Janeiro manteve em vigor, veio, com algumas condicionantes, autonomizar o espaço físico ferroviário em relação ao restante espaço terrestre, conferindo o seu artigo 3º a prioridade absoluta dos veículos ferroviários.

3. Esta prioridade apenas significa que o veículo ferroviário não é obrigado a ceder passagem, mas não desonera o respectivo condutor (maquinista) do dever de diligência, de modo a evitar acidentes, nem pode ser interpretada em termos de desresponsabilização automática do mesmo por qualquer acidente ocorrido em espaço ferroviário.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.RELATÓRIO

1. “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.”, com sede na Calçada do Duque, n° 20, Lisboa, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra:

- “Companhia de Seguros (…) S.A”, com sede na Rua (…), Lisboa;

- “Fundo de Garantia Automóvel”, com sede na Avenida de Berna, n° 19, Lisboa;

- “A (…), Ldª”, com sede em (…), Leiria; e

- M (…) residente no Rua do (…), Monte Real. Leiria,

pedindo que os Réus sejam condenados a pagarem-lhe a quantia de Esc. 4.229.068$00, acrescida de juros à taxa legal, a contar da citação.

Alega, para tanto, a Autora ter ocorrido um acidente consubstanciado num embate entre uma sua locomotiva, que atrelava um comboio de mercadorias, e uma máquina carregadora com pá pertencente à ré A (…) e manobrada pelo réu M (…)

Segunda a Autora, o embate verificou-se por culpa da referida ré ou do manobrador, pois encontrava-se a efectuar manobras junto da linha por onde passaria o aludido comboio sem que para tal tivesse obtido a necessária autorização dos serviços daquela, e sem lhe dar conhecimento.

Regularmente citados os réus, veio em contestação o Fundo de Garantia Automóvel, impugnando os factos alegados, sustentar que o acidente ocorrido não pode ser qualificado como acidente de viação, estando por isso afastada desde logo a eventual responsabilidade do FGA.

A Ré A (…)” também apresentou contestação, na qual, além de deduzir excepção de prescrição do direito da autora, sustenta que o seu manobrador se encontrava a efectuar um carrilamento de um vagão em linha paralela àquela por onde circularia o comboio da autora, tendo sido a pedido dos funcionários desta que o serviço estava a ser efectuado, como aliás já era habitual acontecer. Ademais, o acidente ocorreu numa recta extensa de 300 metros, podendo e devendo o maquinista da locomotiva ter visto a máquina, tal como a guarda de uma passagem de nível e os serviços da estação.

Acresce que o réu M (…) não interveio naquele serviço no interesse da ré, mas sim da autora, que para o efeito não remunerava a “A (…)

Na sua contestação, a ré (…) agora denominada “(…)”, sustentou, tal como o FGA, não se tratar de um acidente de viação, razão pela qual o seguro existente não cobre o risco do acidente ocorrido, tanto mais que máquina estava em laboração, circunstância que é causa de exclusão da cobertura da apólice.

No mais, impugnou os factos alegados, e solicitou a suspensão da instância por estar então pendente acção proposta pela 3ª ré contra a autora.

A Autora apresentou réplica relativamente às contestações deduzidas, mantendo o alegado na petição inicial, e sustentando a responsabilidade das seguradoras e a não admissibilidade da referida suspensão da instância.

Por despacho proferido a fls. 166/167 foi ordenada a suspensão da instância, tendo a autora interposto recurso do mesmo, e na sequência do qual a decisão foi confirmada.

Transitada em julgado a decisão do STJ proferida nos autos que determinaram a suspensão da instância (que julgou improcedente a acção intentada pela ré “A (…)”), foi proferido despacho saneador, no qual foi relegado para final o conhecimento da questão da caracterização ou descaracterização do acidente de viação e foi julgada improcedente a excepção da prescrição alegada pela ré “A (…)”.

Foi afirmada a validade e regularidade da instância e foi efectuada a selecção da matéria de facto, que foi objecto de reclamação por parte da autora, tendo esta sido desatendida.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com as formalidades assinaladas na respectiva acta, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto, que não sofreu reclamação.

No final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido contra eles formulado pela Autora, condenando a mesma nas respectivas custas.

2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1ª- Tanto o maquinista do comboio como o operador da máquina, conduziam a título profissional veículos que lhes não pertenciam, sendo portanto a ambos (e não apenas ao maquinista do comboio) imputável culpa presumida;

2ª-A culpa presumida só terá que funcionar no caso de não haver verdadeira culpa, a título de negligência ou dolo por parte do outro interveniente;

3ª- O Réu M (…), encontrava-se junto de uma Estação sobre Linhas de Caminho de Ferro, sem para tal estar autorizado o que viola frontalmente o Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro;

4ª- O condutor do comboio, não poderia aperceber-se de estar a ser ocupada uma parte do gabarite da via férrea e, não estando avisado de nenhum obstáculo na via, nunca poderia parar um comboio da tonelagem do que tripulava no espaço de que dispunha;

5ª- Ao ver a máquina tripulada pelo Réu M (…) resguardar-se atrás dos vagões da linha ao lado daquela por que seguia, não podia prever que uma ponta desta máquina viesse a provocar a colisão;

6ª- Todos os factos apontam no sentido de o Réu M (…) ter sido o único culpado na produção do acidente.

Termina, invocando a violação, por errada interpretação, do disposto no artigo 503º do Código Civil, pedindo a revogação da sentença recorrida e a condenação solidária dos Réus.

“Fundo de Garantia Automóvel”, “A (…)”, “Companhia de Seguros (…), S.A.” contra – alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


*

II. OBJECTO DO RECURSO

1.Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, que o balizam e delimitam, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- atribuição da culpa na produção do acidente em discussão nos autos.

III. FUNDAMENTOS DE FACTO

São os seguintes os factos julgados provados na 1ª instância:

1. Por contrato de seguro titulado pela apólice n° 90.959280, a ré A (…) – Aluguer de Máquinas Ldª transferiu para a ré Companhia de Seguros (…) SA, a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação em que fosse interveniente o tractor industrial Benati 212107. (Alínea a) dos factos assentes)

2. A apólice referida em a) não cobre os danos sofridos e/ou causados ‘pelo veículo seguro quando sejam resultantes da sua laboração. (Alínea b) dos factos assentes)

3. Cerca das 14h e 20m do dia nove de Setembro de mil novecentos e noventa e sete, ao Km 172,600 da Linha do Oeste, Freguesia de Souto Carpalhosa, ocorreu uma colisão entre o comboio 63613 rebocado pela locomotiva 1973 e a máquina carregadora com pá Benati 12 SB 212 107 (Resposta ao facto lº da base instrutória)

4. A colisão referida em 3) deu-se quando o comboio se encontrava a 70 metros da estação, e antes desta, atento o sentido do mesmo (Resp. ao facto 2º da b.i.)

5. O operador da máquina referida em 1) e esta, à hora da passagem do comboio, encontravam-se atrás de dois vagões estacionados na linha do cais. (Resp. ao facto 3° da b.i.)

6. (…) na tentativa de resguardar a máquina para a passagem do comboio (Resp. ao facto 4° da b.i.)

7. Devido ao comprimento da máquina não foi possível resguardá-la totalmente (Resp. aos factos 5° e 6° da b.i.)

8. Na manhã do dia referido em 3), a ré A (…) procedeu ao descarregamento, de pedra que se encontrava em vagões, na estação que a autora possui no local mencionado em 3) (Resp. ao facto 7° da b.i.)

9. O facto referido em 8) ocorreu às 11 horas e 30 minutos (Resp. ao facto 8° da b.i.)

10. (…) e terminado o mesmo, procedeu-se à deslocação de sete vagões descarregados (Resp. ao facto 9° da b.i.)

11. No decurso do facto referido em 8) caíram sobre as linhas pedras (Resp. ao facto 10º da b.i.)

12. Em consequência do facto referido em 11) descarrilou um dos vagões, pelo que foram removidos 5 e ficaram 2 na linha do cais, um dos quais foi o que havia descarrilado. (Resp. ao facto 11° da b.i.)

13. Um funcionário da autora solicitou ao réu (…)  que carrilasse os vagões (Resp. ao facto 12° da b.i.)

14. Naquela altura o réu M (…) recusou-se a proceder ao carrilamento, alegando que tinha que ir almoçar. (Resp. aos factos 13°, 14°, 15º el6ºda b.i.)

15. Por volta das 14 horas o réu M (…) dirigiu-se às linhas férreas com a máquina referida em 1) com intenção de carrilar os vagões referidos em 12). (Resp. ao facto 17° da b.i.)

16. (…) sem dar conhecimento desse facto a qualquer funcionário da autora (Resp. ao facto 18° da b.i.)

17. O réu M (…) trabalhava por conta e no interesse da ré A (…) (Resp. ao facto 19° da b.i.)

18. Os funcionários da ré A (…) por diversas vezes, têm procedido ao carrilamento de vagões. (Resp. ao facto 20° da b.i.)

19. O carrilamento de vagões e a remoção de pedras dos carris costumam ser acompanhados por funcionários da autora para evitar a ocorrência de qualquer acidente. (Resp. aos factos 21° e 22° da b.i.)

20. A passagem do comboio referido em 3), foi precedida da respectiva autorização, e só se verificou após a concessão da mesma. (Resp. ao facto 23° da b.i.)

21. (…) tendo a guarda da P.N. ai existente procedido ao encerramento das respectivas barreiras e, permanecido junto das mesmas até à passagem do comboio, abrindo-as de seguida.(Resp. ao facto 24º da b.i.)

22. Era a ré A (…) que procedia sempre ao carrilamento dos vagões quando se verificava o seu descarrilamento. (Resp. ao facto 25º da b.i.)

23. (…) sempre a pedido da autora. (Resp. ao facto 26° da b.i.)

24. O carrilamento referido em 25 era feito por qualquer funcionário ou colaborador da ré A (…)Resp. ao facto 27° da b.i.)

25. O réu M (…) é um manobrador com longa experiência. (Resp. ao facto 28° da b.i.)

26. O carrilamento não requer conhecimentos especiais que um manobrador experiente não fosse capaz de executar. (Resp. ao facto 29° da b.i.)

27. Os factos referidos em 22) e 23) resultavam das boas relações entre a ré A (…) e os serviços da autora na estação. (Resp. ao facto 30º da b.i)

28. (…) e eram prestados gratuitamente. (Resp. ao facto 31º da b.i.)

29. (…) poupando à autora custos de deslocação de meios porque a estação não dispunha dos meios. (Resp. ao facto 32° da b.i.)

30. Os descarrilamentos tinham que ser justificados pelos serviços da autora. (Resp. ao facto 33° da b.i.)

31. (…) e poderiam desencadear processos disciplinares. (Resp. ao facto 34º da b.i.)

32. O acidente referido em 3) ocorreu numa recta de cerca de 1000 metros. (Resp. ao facto 35º da b.i.)

33. Em consequência do facto referido em 32), o maquinista do comboio mencionado em 3) poderia ver os vagões descarrilados. (Resp. ao b.i.)

34. (…) a tempo de parar. (Resp. ao facto 37° da b.i.)

35. A cerca de 70 metros do local da colisão ficava o edifício da estação, onde tinham que estar funcionários da autora, entre os quais o chefe da estação. (Resp. ao facto 38° da b.i.)

36. A colisão referida em 3) ocorreu quando o réu M (…), ao ver a aproximação do comboio procurou resguardar a máquina atrás dos vagões. (Resp. ao facto 39º da b.i.)

37. (…) efectuando uma manobra de recuo. (Resp. ao facto 40° da b.i.)

38. Em consequência da colisão referida em 3) a autora despendeu para o conserto da locomotiva a quantia de 762.500$00. (Resp. ao facto 43º da b.i.)

39. (…) tendo sido utilizados materiais no valor de 1.243.445$00 (Resp. ao facto 44° da b.i.)

40. No conserto do vagão a autora despendeu 187.500$00 em 60 horas de mão de obra necessárias à sua reparação. (Resp. ao facto 45° da b.i.)

41. (…) e 24.150$00 em materiais. (Resp. ao facto 46° da b.i.)

42. A autora despendeu mais combustível e energia em virtude da paragem de emergência, bem como para manter o comboio ao ralenti durante o tempo de paragem e ainda para recuperar a velocidade. (Resp. ao facto 47º da b.i.)

43. Em consequência da paragem consequente à colisão referida em 3), a autora teve que pagar mais horas de serviços aos seus funcionários. (Resp. ao facto 48° da b.i.)

44. (…) e implicou uma maior utilização do material circulante. (Resp. ao facto 49° da b.i.)

45. O comboio referido em 3), em consequência da colisão ficou parado 3 horas e 44 minutos. (Resp. ao facto 50° da b.i.)

46. A autora teve que utilizar um comboio de socorro para transportar o comboio referido em 3) desde o local do acidente até ao local onde foi consertado. (Resp. ao facto 51° da b.i.)

47. (…) no que despendeu 29.028$00. (Resp. ao facto 52° da b.i.)

48. Em consequência da colisão referida em l, a automotora interveniente no acidente esteve imobilizada desde 10.09.97 até às 12 horas de 27.09.97.

IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

À falta de impugnação da matéria de facto fixada pela primeira instância, e não ocorrendo qualquer circunstância que justifique a sua alteração por esta Relação, nos termos do artigo 712º do Código de Processo Civil, é no âmbito do quadro factual descrito que importa discutir a responsabilidade reclamada pela Autora.

Para o efeito, justifica-se que, antes de tudo, se proceda à caracterização do evento de que emergiram os danos cuja reparação é peticionada.

Para essa tarefa fornece especial contributo os esclarecimentos acolhidos no Acórdão do STJ, de 16.11.2006[3], citado na sentença recorrida.

Assim, o acidente em análise ocorreu num espaço físico reservado ao tráfego ferroviário e, normalmente, subtraído à restante circulação terrestre.

Trata-se, contudo, de uma área espacial que, por vezes, demanda a entrada e intervenção de outros veículos, nomeadamente máquinas carregadoras como a que também interveio no acidente, para efectuarem determinados serviços para a Recorrente, designadamente carrilamentos.

O Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro (REP), aprovado pelo Decreto – Lei nº 39780, de 21.08.54, e que o Decreto – Lei nº 156/81, de 9 de Janeiro manteve em vigor, veio, com algumas condicionantes, autonomizar o espaço físico ferroviário em relação ao restante espaço terrestre, conferindo o seu artigo 3º a prioridade absoluta dos veículos ferroviários.

Tal prioridade apenas significa que o veículo ferroviário não é obrigado a ceder passagem, mas a mesma não desonera o respectivo condutor (maquinista) do dever de diligência, de modo a evitar acidentes, nem pode ser interpretada em termos de desresponsabilização automática do mesmo por qualquer acidente ocorrido em espaço ferroviário[4].

Como se retira do citado Acórdão do STJ, de 16.11.2006, “os acidentes com comboios, designadamente em passagens de nível, foram reconduzidos à sua condição de acidentes de viação, sem que, todavia, a especificidade da circulação ferroviária tenha deixado de ser considerada e desejada, procurando a lei os comandos conducentes a que,
respeitando embora as regras da circulação terrestre, seja assegurada a rapidez e segurança daqueloutra circulação”.

Assim, a questão da responsabilidade por um acidente em que tenha intervindo um veículo ferroviário e um outro veículo, ou mesmo um peão, deve ser avaliada à luz das normas do Código Civil aplicáveis aos acidentes de viação, designadamente as reguladores da responsabilidade extracontratual ou pelo risco[5].

Nada obsta a esse entendimento o facto de um dos veículos interveniente no acidente ter a natureza de veículo ferroviário[6].

Como efeito, “no Código Civil de 1966 os acidentes com comboios, designadamente em passagens de nível, foram incluídos no conceito de acidentes de viação, como resulta dos termos genéricos do seu artigo 503, e do seu artigo 508, n. 3, pelo que foi intenção do legislador sujeitar o transportador ferroviário à responsabilidade pelo risco de acidentes dos seus veículos de circulação terrestre”[7].
Dispõe o artigo 483º, nº 1 do Código Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, antes de mais, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, pois a responsabilidade objectiva ou pelo risco tem carácter excepcional, como se depreende da disposição contida no nº 2 do citado preceito legal.
Com efeito, a responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto. Aqui operam as fundamentais modalidades de culpa: a mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e o dolo, traduzindo-se aquela no simples desleixo, imprudência ou inaptidão, e esta na intenção malévola de produzir um determinado resultado danoso (dolo directo), ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito (dolo necessário), ou ainda correndo-se o risco de que se produza (dolo eventual).

Em termos de responsabilidade civil consagra-se a apreciação da culpa em abstracto, ou seja, desde que a lei não estabeleça outro critério, a culpa será apreciada pela diligência de um bom pai de família (in abstracto), e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto)[8]. Como sustenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2008[9], “a lei ficciona um padrão ideal de comportamento que seria o que um homem medianamente sensato e prudente adoptaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto – critério do “bonus pater familias”; irreleva a diligência normalmente usada pelo agente”.
            A culpa define-se, para este efeito, na circunstância de uma determinada conduta poder merecer reprovação ou censura do direito, ou seja, importará sempre avaliar se o lesante, face à sua capacidade e às circunstâncias concretas do caso em que actuou, podia e devia ter agido de outro modo[10].
Causa de um acidente é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-lo. Tem tais características, a acção ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o evento danoso[11].
Via de regra, e segundo o disposto no artigo 487º do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão[12], mas casos há em que a lei estabelece presunções de culpa do responsável.
Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples). Em princípio procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros.
Segundo o nº1 do artigo 503º do Código Civil, “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Por seu turno, o nº3 do mesmo normativo determina que “aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se se provar que não houve culpa da sua parte…”.
De acordo com o citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 12.03.98, “ a presunção de culpa do comissário funciona em todos os acidentes de viação, mesmo nos ferroviários”.
No caso em apreço, existe uma relação de comissão, a dois níveis distintos: entre o maquinista da composição interveniente no acidente e a recorrente C.P., sua entidade patronal e proprietária do comboio; e o manobrador da máquina, o recorrido M (…), que “trabalhava por conta e no interesse da ré A (…)”.
Dessa relação deriva uma situação de presunção de culpa, a qual, todavia, em qualquer dos casos, pode ser ilidida pela prova de que a imputação do facto deve fazer-se ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Na acção ordinária nº 436/99, proposta por “A (…)” contra a aqui recorrente, e tendo por suporte fáctico o mesmo acidente nestes autos discutido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido a 19 de Outubro de 2004, que não existia culpa por parte da Ré (C.P.), antes atribuindo essa culpa ao próprio lesado, com fundamento no facto de que o manobrador da máquina, ao serviço da Autora nessa acção, actuando dentro da linha ferroviária, não podia iniciar a tarefa de recarrilar os vagões sem previamente se certificar que o podia fazer sem perigo para a circulação ferroviária.
Tal decisão não produz, porém, caso julgado em relação a estes autos, por falta de preenchimento dos necessários requisitos (identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir em ambas as acções), nem a sua fundamentação tem força vinculativa para a resolução do conflito aqui debatido, designadamente para a definição da culpa, sendo que, além do mais, a factualidade apurada nas duas acções não é inteiramente coincidente. Note-se que “o caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre a respectiva motivação, sobre as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar aquela conclusão final. E, assim, só não será, quando se tenha de recorrer à parte motivatória da sentença para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo (…), quando a fundamentação daquela constitui um pressuposto lógico e necessário da decisão (…)”[13].
Analise-se, então, a conduta de ambos os operadores dos veículos envolvidos no acidente:
Ao recorrido M (…), no dia do acidente, antes de almoço, foi solicitado, por um funcionário da recorrente que procedesse ao carrilamento de um dos vagões que havia descarrilado. Sempre que se verificava descarrilamento de vagões, era a recorrida “A (…)”, através de seus funcionários, que procedia ao seu carrilamento, gratuitamente, a pedido da recorrente, sendo que, nessa tarefa e na de remoção de pedras, eram habitualmente acompanhados por funcionários desta, para evitar qualquer acidente.
Quando ao recorrido M (…), manobrador com larga experiência, foi solicitado o carrilamento do vagão, este recusou fazê-lo, com a alegação de que tinha de ir almoçar. Mas, pelas 14 horas, ou seja, logo após o período de almoço, dirigiu-se com a máquina às linhas férreas, para efectuar o trabalho que antes lhe havia sido solicitado, não dando disso conhecimento a qualquer funcionário da recorrente.
Por outro lado, a passagem do comboio foi precedida da respectiva autorização e só se verificou depois de concedida, tendo a guarda da P.N. aí existente procedido ao encerramento das respectivas barreiras e permanecido junto das mesmas até à passagem do referido comboio, abrindo-as seguidamente.
A colisão entre o comboio e a máquina deu-se quando o recorrido M (…) ao aperceber-se da aproximação da composição, procurou resguardar a máquina atrás de vagões, efectuando uma manobra de recuo.
O acidente deu-se a cerca de 70 metros do edifício da estação, onde deviam estar funcionários da recorrente, designadamente, o chefe da estação, e numa recta com cerca de 1000 metros, podendo o maquinista ver os vagões descarrilados (e, consequentemente, a máquina em manobras para proceder ao seu carrilamento) a tempo de parar.
É certo que o recorrido M (…) utilizou a máquina com que operava para, na via férrea, proceder ao carrilamento do vagão sem dar conhecimento desse facto a qualquer funcionário da recorrente, sendo que normalmente esses trabalhos eram acompanhados por funcionários da C.P. para evitar qualquer acidente.
Note-se, todavia, que o referido M (…) efectuou esses trabalhos a solicitação de um funcionário da recorrente, como era comum sempre que ocorriam descarrilamentos. Não o fez, porém, logo no momento em que tal pedido lhe foi dirigido, com o argumento de que ia almoçar, mas logo após o almoço, pelas 14 horas, aprestou-se a efectuar o carrilamento. E sendo essa tarefa empreendida a escassos 70 metros da estação, onde necessariamente se deveriam encontrar funcionários da recorrente, incluindo o seu chefe de estação, na sequência de um pedido para o efeito, que apenas não foi logo concretizado pelo facto de ter ido almoçar, é natural que, naquelas circunstâncias, o recorrido M (…) partisse do pressuposto de que, pelo menos, o chefe da estação tinha conhecimento ou podia aperceber-se que estava a realizar os trabalhos que lhe tinham sido pedidos, podendo garantir a segurança do tráfego ferroviário, não autorizando a circulação na via de qualquer composição sem antes lhe comunicar que devia suspender os trabalhos e retirar ou afastar a máquina, de modo a evitar qualquer colisão. Neste contexto, é expectável e aceitável que o recorrido actuasse nesse convencimento, e, como tal, e apesar de não ter efectuado expressamente qualquer comunicação prévia de que ia iniciar os trabalhos, não é censurável a sua conduta.
Já, porém, sobre as várias actuações dos funcionários da recorrente não podem deixar de recair vários juízos de reprovação: sobre o chefe da estação, que autorizou a circulação do comboio, sem previamente se certificar se a mesma se podia efectuar em segurança (de outro modo, teria constatado a presença da máquina na via, nas proximidades da estação, e só teria concedido autorização para a circulação do comboio depois de mandar retirar a máquina e suspender aqueles trabalhos); sobre a guarda da passagem de nível, que não assinalou, através das bandeiras que, para o efeito, lhe são atribuídas, o perigo de acidente decorrente do facto de se encontrar um veículo na via ferroviária, sendo certo que, tendo encerrado as barreiras, antes da passagem do comboio, e permanecido junto às mesmas, para, após essa passagem, as abrir, não poderia deixar, atenta a extensão da recta, de se aperceber, caso estivesse atenta, como se impunha, da presença da máquina em manobras no espaço reservado à circulação ferroviária e, finalmente, do próprio maquinista do comboio que, circulando numa recta com cerca de 1.000 metros, poderia ver os vagões descarrilados (e, logicamente, a máquina que procedia ao seu carrilamento) a tempo de parar.
O recorrido M (…), ao aperceber-se da aproximação do comboio, ainda efectuou uma manobra de recuo, procurando resguardar a máquina atrás dos vagões, sem porém, evitar ser colhido pelo comboio, que não se deteve antes do embate, apesar do seu maquinista, circulando numa recta com uma extensão de cerca de 1.000 metros, dispor de tempo e de espaço para imobilizar a composição antes do local onde a máquina se encontrava, ainda que não vislumbrasse a mesma logo no início da recta, evitando assim o embate.
Tal evento naturalístico só ocorreu, por conseguinte, pelo comportamento do maquinista do comboio, que omitiu as cautelas exigidas pelo dever normal de diligência, tendo ainda contribuído para o mesmo as condutas omissivas, e também violadoras do dever de diligência, dos referidos funcionários da recorrente, designadamente, guarda da passagem de nível e chefe da estação, que, podendo fazê-lo, não tomaram as medidas adequadas a evitar o acidente, nomeadamente sinalizando a presença de um obstáculo na via, passível de provocar um acidente.
Importa, a propósito, reter que sendo o nexo causal um dos pressupostos da responsabilidade civil, o legislador civil acolheu nos artigos 483º e 563º do Código Civil a teoria da causalidade adequada.
Esta reporta-se a todo o processo causal, a todo o encadeamento de factos que, em concreto, deram origem ao dano, e não à causa/efeito, isoladamente considerados[14].
Como esclarece Almeida Costa[15], a teoria da causalidade adequada “não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha por si só determinado o dano”.
No mesmo sentido, esclarece Antunes Varela[16]: “do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”.
Deste modo, se é possível, no contexto descrito, aceitar a ilisão da culpa presumida do manobrador da máquina, tal juízo não é defensável em relação aos funcionários da recorrente – maquinista, chefe de estação, e guarda de passagem de nível -, de quem são, até funcionalmente, exigidas cautelas e atenção, e mesmo procedimentos específicos, de modo a evitar acidentes no espaço reservado à circulação ferroviária, os quais omitiram  o dever de diligência que sobre cada um deles recaía, tendo essa omissão sido causal do acidente.
Não merece, como tal, censura a decisão recorrida, que assim se mantém.


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Nestes termos, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas: pela recorrente.


[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] Art.º 664º do mesmo diploma
[3] processo nº 05B2392, www.dgsi.pt
[4] Cf. Acórdãos da Relação do Porto, 24.09.91, procº nº 0225737, e de 06.03.2007, procº nº 0625955, ambos em  www.dgsi.pt.
[5] Cf., entre outros, Acórdão da Relação do Porto, 08.01.91, procº nº 0409334, Acórdão da Relação do Porto, 02.02.93, procº nº 9250400, www.dgsi.pt.
[6] Cf. artigo 508º, nº3 do Código Civil.
[7] Acórdão da Relação de Lisboa, 12.03.98, www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do STJ, 18.05.2006, procº nº 06B1644, www.dgsi.pt.
[9] www.dgsi.pt.
[10] cf. Antunes Varela, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 102º, pág. 8 e ss.
[11] neste sentido, Acórdão Relação do Porto, 14/3/89, BMJ 385º, 603.
[12] O que, de resto, se coaduna com as regras gerais da repartição do ónus da prova, plasmadas no artigo 342º do Código Civil, já que a culpa, sendo um dos pressupostos que integra e fundamenta o dever de indemnizar, é um facto constitutivo do direito a que o lesado se arroga; cf. ainda, neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, 12.07.2005, 21.11.2006, 13.11.2008, Acórdão desta Relação, de 21.09.2004, todos em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão da Relação de Coimbra, 12.01.2010, procº nº 3272/04.8TBAVR.C2.S1, www.dgsi.pt.
[14] Cf. Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre Responsabilidade Civil”, 1955.
[15] “Direito das Obrigações”, págs. 632, 633.
[16] “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 865.