Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4623/22.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
IDENTIDADE DE PEDIDO E CAUSA DE PEDIR
NÃO DEDUÇÃO DE RECONVENÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
CRÉDITO POR BENFEITORIAS
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 573.º, 580.º, N.ºS 1 E 2, E 581.º, N.ºS 2 E 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – Quando o caso julgado material formado por decisão anterior se impõe na sua vertente negativa, por via de excepção, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, a excepção que se verifica é a excepção de caso julgado e não uma qualquer “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado”.

II – A decisão que não aprecia o mérito da pretensão – designadamente a decisão que se limita a absolver o réu da instância – não adquire valor de caso julgado material e, como tal, não obsta à instauração de nova acção com o mesmo objecto e não constitui base ou fundamento legal para o funcionamento da excepção de caso julgado.

III – A reconvenção tem, por princípio, natureza facultativa, pelo que a sua falta não implica a preclusão de direitos que pudessem ter sido exercidos/reclamados por essa via e não impede que o réu venha instaurar posteriormente uma acção com vista a obter satisfação desses direitos; os direitos em questão apenas poderão ficar precludidos, por efeito do caso julgado, se e na medida em que correspondam a um meio de defesa em relação à pretensão do autor (ou seja, direitos que pudessem obstar ou condicionar a procedência dessa pretensão) que, como tal e por efeito do disposto no art.º 573.º do CPC, o réu tivesse o ónus de invocar na contestação.

IV – A identidade de pedido e causa de pedir exigida para efeitos de funcionamento da excepção de caso julgado não deve ser vista como uma identidade absoluta, devendo ter-se como verificada sempre que a pretensão exercida na segunda acção (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) já está regulada e definida (directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente) na decisão anterior de tal forma que a decisão a proferir na segunda acção seria uma mera repetição da decisão proferida na primeira ou, caso tivesse conteúdo diverso, seria concretamente incompatível com ela ou inutilizaria o que nela se havia determinado.

V – A decisão, proferida no âmbito de uma acção de reivindicação, que condenou os réus a entregar (de imediato) os imóveis reivindicados ao respectivo proprietário obsta, por efeito do caso julgado que sobre ela se formou e por força da excepção de caso julgado, ao conhecimento do mérito de pretensão que os réus venham a formular em acção posterior por via da qual pretendam ver reconhecido o seu direito de retenção sobre esses imóveis.

VI – Tal decisão – que reconhece o direito de propriedade dos autores sobre aqueles imóveis e que condenou os réus à sua restituição – não obsta, no entanto, a que os réus venham instaurar nova acção onde peticionem um crédito por benfeitorias realizadas nesses imóveis; não existe, nesse caso, qualquer identidade de pedidos e causa de pedir entre ambas as acções que permita concluir pela verificação da excepção de caso julgado.

VII – O direito de crédito em questão não fica precludido pelo facto de não ter sido exercido – podendo tê-lo sido – mediante reconvenção na primeira acção, na medida em que não correspondia a meio de defesa em relação à pretensão dos autores que os réus tivessem o ónus de invocar na contestação dessa acção (citado art.º 573.º) e que, como tal, se considere abrangido pelo caso julgado formado pela decisão aí proferida.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 4623/22.9T8LRA.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Leiria - Leiria - JC Cível - Juiz 1

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2.º Adjunto: Emídio Santos

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA e marido BB, residentes na Rua ..., nº ..., em ..., ... ..., ..., instauraram acção contra CC e mulher, DD, residentes na Rua ..., ..., ... ..., formulando os seguintes pedidos:

1- Que os RR. sejam condenados a restituir-lhes, ao abrigo do art.º 473.º e seguintes do Código Civil as seguintes quantias:

a. A quantia de 32.307,84€ de benfeitorias que estão incorporadas nos prédios adquiridos pelos RR. (na ADCC) acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como supra calculados, neste momento no valor de 6.531,38€, que somados ao capital perfaz o valor de 38.839,22€;

b. A quantia de 6.153,85€ correspondente aos 2/13 dos AA. no terreno de implantação dos urbanos adquiridos pelos RR. e neles fisicamente incorporado, acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como calculados desde 21/06/2021 (trânsito da Sentença indicada no art.º 127 desta P.I.), neste momento no valor de 394,84€, que somados ao capital perfaz o valor de 6.548,69€;

c. O que tudo perfaz neste momento um total de (38.839,22€+6.548,69€) 45.387,91€ (quarenta e cinco mil trezentos e oitenta e sete mil euros e noventa e um cêntimo);

2- Que, ao abrigo dos artigos 754.º, 757.º e 759.º do C. Civil, seja reconhecido e decretado o direito de retenção a favor dos AA., sobre os prédios urbanos adquiridos pelos RR. e supra identificados, até que estes restituam efectiva e integralmente aos AA. os valores atrás referidos com que se mostram enriquecidos à custa dos mesmos AA., ou, subsidiariamente,

3- Que, caso assim se não entenda, e não venha a ser decretado o direito de retenção pelo Tribunal, sejam os RR. condenados pagar aos AA. uma compensação a título do benefício e fruição das benfeitorias e do solo (dos seus 2/13 do prédio ...91º), num valor mensal nunca inferior a 600,00€ (seiscentos euros) a pagar pelo menos desde a data da citação para a presente acção, até efectivo e integral pagamento dos valores agora peticionados.

Alegaram, em resumo, para fundamentar a sua pretensão:

- Que, por força de partilha judicial efectuada por óbito da sua mãe e avô, a Autora é dona e possuidora de 2/13 do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...63, sendo que, nessa partilha, o imóvel foi adjudicado nos seguintes termos:

a. EE e esposa FF, na proporção de 6/13;

b. GG, na proporção de 1/13;

c. HH, a A., na proporção de 2/13;

d. CC, o R., na proporção de 2/13;

e. II, na proporção de 2/13.

- Que nesse prédio rústico foram implantados dois prédios urbanos que constituem a casa de habitação dos Autores e família e um barracão e arrumos, prédios estes que vieram a ser adjudicados aos Réus na acção de divisão de coisa comum que correu termos sob o nº 2414/17....;

- Que, ao longo dos anos, os referidos prédios urbanos sofreram obras de conservação e melhoramento (que são descritas na p.i.) que foram exclusivamente suportadas pelos Autores e que se configuram como benfeitorias necessárias e úteis sem as quais os prédios seriam inabitáveis;

- Que essas benfeitorias têm valor não inferior a 32.307,84€;

- Que a adjudicação aos Réus dos referidos prédios implica o seu enriquecimento à custa dos Autores sem causa justificativa de valor equivalente ao custo das benfeitorias e ao valor do solo em que estão implantadas e do qual os Autores são comproprietários;

- Que os Autores não podem ser obrigados a entregar os prédios urbanos aos RR. enquanto os referidos créditos não lhes forem pagos, sendo certo que gozam de direito de retenção nos termos do art.º 754.º do CC;

- Que, no caso de se entender que não gozam de direito de retenção, devem os Réus ser obrigados a pagar uma compensação, nos termos do art.º 829.º-A do CC, de valor não inferior a 600,00€ mensais.

Os Réus contestaram, invocando, além do mais e na parte que agora releva, a excepção de caso julgado por força das decisões proferidas no âmbito das acções com os n.ºs 1097/19.... e 755/21.... que correram termos entre as mesmas partes.

Após resposta dos Autores – que sustentaram a improcedência da referida excepção – foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu julgar procedente a excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado com a consequente absolvição dos Réus da instância.

Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

Os Réus responderam ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se está (ou não) verificada a excepção de caso julgado (ou, como lhe chamou a decisão recorrida, uma “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado”) em face das decisões proferidas nas acções que correram termos em momento anterior sob os n.ºs 1097/19.... e 755/21.....


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III.

Na 1.ª instância, consideraram-se assentes os seguintes factos:

1- Em 02 de Abril de 2019 os aqui RR e aí AA intentaram acção declarativa de condenação que correu termos pelo J... do Juízo Central Cível ..., sob o nº 1097/19...., e cuja petição inicial se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.

2- Em 11 de Outubro de 2019 os aqui AA e na acção referida em 1 RR, apresentaram contestação e reconvenção, cujo seu integral conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos e no qual peticionaram:

1- Serem os RR. absolvidos do pedido feito pelos AA. ou, se assim não se entender, da instância;

2- Serem os AA. condenados no pedido reconvencional apresentado pelos RR., nomeadamente a:

a)- Reconhecer que a R. é comproprietária, na proporção de 2/13 do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia ... sob o artº ...91º e descrito na CRP ... com o nº ...63;

b)- Reconhecer que o prédio rústico referido na alínea anterior constitui o solo ou chão onde se encontram implantados os prédios urbanos reivindicados (artº 2241º e 3706º) da mesma freguesia;

c)- Reconhecer as benfeitorias necessárias, sobretudo, mas também úteis, incorporadas pelos RR. naqueles urbanos, supra descriminadas, bem como a pagar aos RR. a esse título o valor de 32.307,84;

d)- Pagar aos RR. juros vencidos e vincendos sobre esse valor, à taxa legal desde 31/10/2012 até ao efectivo e integral pagamento, cifrando-se nesta data os primeiros7 em 8.977,89€;

e)- Reconhecer que os RR. gozam do Direito de Retenção sobre os prédios cuja entrega reivindicam, até que liquidem o crédito dos RR. por benfeitorias, o que requerem seja declarado pelo tribunal – cfr. artºs 754º, 757º e 759º, do C. Civil”.

3- Após, foi apresentada pelos AA. nessa acção, e aqui RR, resposta, cujo seu integral conteúdo se dá aqui por reproduzido.

4- Seguidamente os nessa acção RR, e aqui AA., apresentaram peça processual com a epígrafe “réplica”, cujo seu integral conteúdo se dá aqui por reproduzido.

5- Em 16 de Junho de 2020 no processo a que se tem vindo a fazer referência, o Mmo. Juiz titular dos mesmos exarou despacho no qual considerou extemporânea a contestação/reconvenção, determinando o seu desentranhamento, julgando confessados os factos articulados pelos AA. dessa acção.

6- A decisão supra aludida foi alvo de recurso sendo confirmada por acórdão de 03 de Novembro de 2020.

7- Em 12 de Maio de 2021, é proferida sentença no processo acima indicado a qual aqui se reproduz, sendo que no dispositivo se decidiu:

a) Declara-se que os prédios referidos no ponto 2 da factualidade provada, estiveram em compropriedade entre os A. marido, R. mulher, JJ e II, até 04-02-2019;

b) Declara-se que os AA., a partir da referida data, são donos e únicos legítimos proprietários dos aludidos imóveis;

b) Condena-se os RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre os imóveis;

c) Condena-se os RR. a entregar aos Autores os referidos imóveis, identificados em 2. da factualidade provada, livres e devolutos de pessoas e nas condições em que se encontravam antes da ocupação;

d) Condena-se os RR, a pagar aos AA, em sede de danos patrimoniais, a quantia de €300,00 mensais, desde a data da citação, até à efectiva entrega dos referidos imóveis, quantia acrescida de juros, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde esse momento, até efectivo e integral pagamento.

e) Julgo improcedente o demais peticionado, absolvendo os RR. do pedido, nessa parte;

8- A decisão supra não foi alvo de recurso e transitou em julgado a 21 de Junho de 2021.

9- Em 14 de Julho de 2021, os aqui AA. e RR. no processo acima mencionado, apresentaram a petição inicial que deu origem ao processo nº 755/21...., contra os aqui RR. e AA. no processo nº 1097/19.... a qual aqui se reproduz, fazendo os seguintes pedidos:

1- Reconhecer que a A. é comproprietária, na proporção de 2/13 do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia ... sob o artº ...91º e descrito na CRP ... com o nº ...63;

2- Reconhecer que o prédio rústico referido no número anterior constitui o solo ou chão onde se encontram implantados os prédios urbanos adjudicados aos RR. (artº 2241º e 3706º) e descritos na CRP ..., respectivamente, com o nº ...69 e ...70, da mesma freguesia;

3- Reconhecer todas as benfeitorias incorporadas pelos AA. naqueles prédios urbanos, e supra descriminadas, bem como a pagar aos AA. a esse título o valor de 32.307,84;

4- Pagar aos AA. juros vencidos e vincendos sobre o valor indicado no número anterior, à taxa legal desde 31/10/2012 (cfr. doc. 46) até efectivo e integral pagamento, cifrando-se nesta data os primeiros em 11.250,97€;

5- Reconhecer que os AA. gozam do Direito de Retenção sobre os prédios que lhe foram adjudicados, que requerem seja declarado pelo Tribunal – cfr. artºs 754º, 757º e 759º, do C. Civil – e a respeitá-lo até que:

a)- Liquidem o valor total do crédito dos AA. por benfeitorias, IVA e juros acima encontrado;

b)- Paguem o valor de 4.000,00€, pelos 2/13 do prédio rústico, artº 7891º propriedade da A., que suporta os urbanos.

Subsidiáriamente,

6- Caso, por alguma eventualidade que não vislumbram, não venha a ser decretado o Direito de Retenção pelo Tribunal – o que só por mera hipótese admitem – sejam condenados pagar aos AA. uma compensação a título do benefício e fruição das benfeitorias e do solo (dos seus 2/13 do prédio ...91º), num valor mensal nunca inferior a 400,00€ (quatrocentos euros) a pagar desde a data da eventual decisão de entrega dos urbanos aos RR., até efectivo e integral pagamento do crédito dos AA. de benfeitorias, IVA, juros, e do direito de propriedade que possuem sobre os 2/13 do artº 7891º.

10- Em sede de resposta à invocada excepção os aqui AA. e AA no processo nº 755/21.... disseram:

1- Salvo o devido respeito, não assiste razão aos RR., ou seja, não estamos perante excepção dilactória de caso julgado.

2- “As exceções (…) do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa” – artº 580º/1 do CPC.

3- Nos termos do artº 581º do CPC: “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.” - nº 1.

4- “Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.” – artº 581º, nº 2.

5- Volvendo ao nosso caso, e confrontando os presentes autos com a Acção de reivindicação nº 1097/19.... invocada para a excepção, verifica-se que, embora as partes sejam as mesmas, não têm a mesma qualidade jurídica, ou seja:

a. Na Acção nº 1097/19 os Autores foram CC e mulher DD;

b. Nos presentes autos (Acção nº 755/21....), os Autores são AA e marido BB, RR. na anterior e vice-versa.

6- “Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.” – artº 581º, nº 3.

7- No nosso caso, confrontando os pedidos das duas Acções em causa, muito resumidamente, verifica-se que:

a. Na Acção nº 1097/19, o pedido e o efeito jurídico pretendido por CC e mulher DD, é que:

i. Os prédios estiveram em compropriedade de AA.RR. e outros;

ii. São os únicos proprietários e que os RR. o reconheçam;

iii. Os RR. procedam à sua entrega livres e devolutos;

iv. Lhes sejam pagos danos patrimoniais e sanção pecuniária compulsória;

b. Na Acção nº 755/21, (a presente), sem pôr em causa a propriedade dos RR. sobre os prédios urbanos, o pedido e o efeito jurídico pretendido por AA e marido BB, é que:

i. Lhes seja reconhecida a propriedade de 2/13 do solo onde estão implantados os urbanos reivindicados naquela Acção;

ii. Sejam reconhecidas e pagas as benfeitorias, úteis, por si incorporadas nos urbanos reivindicados, bem como a sua quota-parte dos 2/13 do terreno;

iii. Lhes seja reconhecido o Direito de Retenção e,

iv. Subsidiáriamente, caso esse direito não decretado, sejam os RR condenados em compensação pelo benefício de fruição das benfeitorias e daquela quota-parte desse solo.

8- Pelo que, no entender dos AA. e salvo melhor opinião, não se verificam os pressupostos de existência da excepção dilactória alegada pelos RR. devendo ser declarada a sua inverificação.

9- Por outro lado, diga-se, em abono da verdade, que não está em causa a legítima aquisição e titularidade dos referidos imóveis pelos RR., apenas entendem os AA. que a sua entrega não deverá ser feita sem a satisfação pelos RR. do seu contracrédito pelas benfeitorias e pela quota-parte no terreno.

10- Até porque, a sua entrega, livres e devolutos de pessoas e nas condições em que se encontravam antes da ocupação, constitui uma impossibilidade física, e até jurídica.

11- Física porque implicaria que os AA. retirassem préviamente: aros, portas e janelas, exteriores e interiores, estores, soalhos, móveis de cozinha, azulejos, sanitários, soleiras, peitoris e lareira entre outros.

12- E também destruir o grande anexo e a wc, novos, e outras benfeitorias por si pagas e incorporadas nesses prédios, quando eram comproprietários e sem que qualquer dos outros, nomeadamente os RR., tivesse para elas contribuído com que valor fosse.

13- Uma vez que constituem sobretudo benfeitorias necessárias, incorporadas em prédio então comum, e dele não podem ser retiradas sem o danificar ou inutilizar – cfr. artºs 216º, 1273º e 1411º, do Código Civil.

14- Por outro lado, e por fim, caso não fosse reconhecido e compensado esse direito dos AA., ficariam os RR. enriquecidos à custa do património alheio, dos AA., e estes nessa medida prejudicados, sem causa justificativa – cfr. artº 473º do Código Civil.

15- O que configuraria uma situação de enriquecimento sem causa, que os AA. desse já invocam para todos os efeitos legais, e implicaria, consequentemente, uma nova Acção Judicial para o efeito.

16- Pelo exposto, mantendo e renovando o seu pedido inicial, requerem a Vª Exª que:

a. Declare não verificada a excepção dilactória de caso julgado alegada pelos RR., com todas as consequências legais;

b. Prossigam os autos os seus tramites normais até final, com prolacção de Sentença que reconheça os pedidos dos A.A. e condene os RR. em conformidade.

Subsidiáriamente,

c. Caso assim se não entenda - o que só por mera cautela se admite – seja ponderada, nomeadamente a aplicação do princípio da adequação formal (artº 547º do CPC), com vista a prosseguirem os autos com base no enriquecimento sem causa dos RR.

11- Por decisão proferida em 06 de Maio de 2022 e que não foi alvo de recurso e referente ao processo nº 755/21.... aí se decidiu:

Ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 277º nº1 alínea e), 577º, 578º, 595º nº1 alínea a) todos do CPC, e por se verificar a existência de excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado, absolvo os RR. CC e DD, da instância na qual são AA. AA e BB”.

12- Em 22 de Novembro de 2022 os aqui AA. apresentaram a petição inicial que deu origem a este processo contra os aqui RR. (estes últimos igualmente RR. no processo nº 755/21.... e AA. no processo nº 1097/19....) a qual aqui se reproduz e onde formulam os seguintes pedidos:

Nestes termos e nos demais de Direito, e com vista a suprimir ou eliminar o enriquecimento dos RR. à custa dos AA., deve a presente Acção ser julgada procedente por provada e, em consequência:

1- Os RR. condenados a Restituir aos AA., ao abrigo do artº 473º e seguintes do Código Civil:

a. A quantia de 32.307,84€ de benfeitorias que estão incorporadas nos prédios adquiridos pelos RR. (na ADCC) acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como supra calculados, neste moimento no valor de 6.531,38€, que somados ao capital perfaz o valor de 38.839,22€;

b. A quantia de 6.153,85€ correspondente aos 2/13 dos AA. no terreno de implantação dos urbanos adquiridos pelos RR. e neles fisicamente incorporado, acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como calculados desde 21/06/2021 (trânsito da Sentença indicada no artº 127 desta P.I.), neste momento no valor de 394,84€, que somados ao capital perfaz o valor de 6.548,69€;

c. O que tudo perfaz neste momento um total de (38.839,22€+6.548,69€) 45.387,91€ (quarenta e cinco mil trezentos e oitenta e sete mil euros e noventa e um cêntimos).

2- Ao abrigo dos artºs 754º, 757º e 759º, do C. Civil, ser reconhecido e decretado o Direito de Retenção a favor dos AA., sobre os prédios urbanos adquiridos pelos RR. e supra identificados, até que estes restituam efectiva e integralmente aos AA. os valores atrás referidos com que se mostram enriquecidos à custa dos mesmos AA., ou, subsidiariamente,

3- Caso assim se não entenda, e não venha a ser decretado o Direito de Retenção pelo Tribunal – o que só por mera hipótese admitem – sejam os RR. condenados pagar aos AA. uma compensação a título do benefício e fruição das benfeitorias e do solo (dos seus 2/13 do prédio ...91º), num valor mensal nunca inferior a 600,00€ (seiscentos euros) a pagar pelo menos desde a data da citação para a presente acção, até efectivo e integral pagamento dos valores agora peticionados”.


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

A decisão recorrida absolveu os Réus da instância com fundamento na excepção que apelidou de “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado” com fundamento no caso julgado que se havia formado com as decisões proferidas nas acções n.ºs 1097/19.... e 755/21.....

Com efeito, apesar de ter considerado (expressamente) que não se poderia falar neste processo em caso julgado enquanto excepção – pelo facto de o pedido não ser exactamente igual – concluiu a decisão recorrida pela existência de uma excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado, uma vez que o direito dos Autores à propositura da presente acção se encontrava precludido pelo facto de os pedidos aqui deduzidos deverem ter sido formulados em reconvenção no âmbito da acção n.º 1097/19 (reconvenção que os Autores até deduziram, mas que, por facto a eles imputável, não foi admitida).

Em desacordo com essa decisão, sustentam os Apelantes, no essencial, que não está configurada a aludida excepção, sendo certo que, face ao insucesso de anteriores acções (por motivos formais e não de mérito), a presente acção – fundada no enriquecimento sem causa – é a via subsidiária e o único meio de obterem a satisfação do seu direito e impedirem locupletamento dos Recorridos à sua custa, sendo certo que nenhuma das decisões anteriores conheceu ainda de mérito sobre as benfeitorias e sobre a parte de terreno que os Recorrentes reivindicam na presente acção.

Antes de mais – e no sentido de precisar e clarificar os termos em causa – importa dizer que, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não existe nenhuma excepção dilatória (nominada ou inominada) de autoridade do caso julgado; o que existe é a excepção dilatória de caso julgado.

Ou seja, a autoridade do caso julgado – que pode ser definida e caracterizada pela força obrigatória de uma decisão judicial de mérito (transitada em julgado) que opera dentro dos limites objectivos e subjectivos definidos na lei (cfr. artigos 619.º, 580.º e 581.º do CPC) e que obsta a que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade – pode impor-se na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado, no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se na sua vertente positiva, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

Utilizando as palavras constantes do acórdão desta Relação de 11/06/2019[1] (também relatado pela aqui relatora), podemos dizer, em suma, que “...quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão); o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão)”.

Significa isso, portanto, que, quando o caso julgado obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por anterior sentença transitada em julgado (o que acontece quando existe identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir), ele opera por via de excepção (dilatória) e determina a absolvição do réu da instância; é a excepção de caso julgado (cfr. artigos 576.º, n.º 2; 577.º, alínea i); 580.º e 581.º do CPC). Nas restantes situações, o caso julgado não opera por via de excepção (nominada ou inominada) e, como tal, não obsta á apreciação de mérito da pretensão formulada (e não determina, por isso, a absolvição do réu da instância), sucedendo apenas que a autoridade dele emergente tem que ser (obrigatoriamente) considerada e respeitada na decisão a proferir na segunda acção, influenciando e condicionando, nessa medida, a decisão que aqui venha a ser proferida.

O caso julgado formado pelas anteriores decisões obstará, portanto, à apreciação do mérito da presente acção – com a consequente absolvição dos Réus da instância – se estiver configurada a excepção de caso julgado, uma vez que, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não existe qualquer excepção dilatória (seja ela nominada ou inominada) de autoridade do caso julgado[2]. Dizendo de outro modo: sempre que o caso julgado formado por decisão anterior (ou a sua autoridade) se imponha na sua vertente negativa, por via da excepção, no sentido de obstar à apreciação de mérito, a excepção que se verifica é a excepção de caso julgado e não uma qualquer excepção dilatória inominada de dilatória de autoridade do caso julgado.

Vejamos então a situação dos autos com vista a saber se está ou não configurada a excepção de caso julgado, analisando separadamente cada uma das duas acções instauradas anteriormente.

O caso julgado em relação à decisão proferida no processo n.º 755/21....

Em relação a tal decisão, pensamos – como, aliás, também sustentam os Apelantes – não poder falar-se em caso julgado que possa obstar à apreciação do mérito da presente causa, uma vez que tal decisão não apreciou o mérito da pretensão que aí era formulada, limitando-se a absolver os Réus da instância com fundamento em excepção que – também aí – se designou como “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado”.

Essa decisão – que apenas recaiu sobre a relação processual sem apreciar o mérito da pretensão – apenas tem força de caso julgado formal, assumindo força obrigatória dentro do processo, nos termos previstos no art.º 620.º, n.º 1, do CPC e não adquirindo, portanto, o valor de caso julgado material que está subjacente à excepção de caso julgado e não obstando, por isso, à propositura de nova acção com o mesmo objecto.

Não ignoramos que essa afirmação/conclusão não é inteiramente pacífica, sendo certo que o STJ já decidiu – no Acórdão de 30/11/2017 (processo n.º 3074/16....)[3] – que uma decisão desse tipo pode e deve fundamentar num segundo processo a excepção dilatória de caso julgado, ali se dizendo – e passamos a citar – que “ocorrendo identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, é de admitir a eficácia extraprocessual do caso julgado formal se o fundamento que ditou a decisão de absolvição da instância vier a repetir-se no novo processo, sendo lícito opor neste segundo processo a exceção dilatória de caso julgado”.

Não concordamos, porém, com esse entendimento que, aliás, também não foi aceite pelos Acórdãos do STJ de 14/10/2021 e de 16/12/2021 (processos n.ºs 1040/19.... e 4413/19....)[4], onde se considerou que o caso julgado formal formado por essas decisões (que se limitam a verificar e declarar a inexistência de um pressuposto processual) tem eficácia meramente intraprocessual, nada obstando a que, numa nova acção com as mesmas partes e o mesmo objecto de acção anterior que tenha terminado com a absolvição da instância do réu possa ser proferida decisão divergente da proferida na primeira acção.

Com efeito, ainda que, em teoria, pudessem ser admitidos alguns efeitos extraprocessuais do caso julgado formal – como admite Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Acórdão do STJ de 14/10/2021 (acima referido)[5] – pensamos ser seguro afirmar que ele não obsta à propositura de nova acção com o mesmo objecto e com os mesmos sujeitos, não constitui base bastante para o funcionamento da excepção de caso julgado (como, aliás, também reconhece Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao Acórdão do STJ de 16/12/2021[6] e CPC online[7] em anotação ao art.º 279.º) e não obsta a que no novo processo venha a ser proferida decisão diferente daquela que foi proferida no primeiro.

Em primeiro lugar, porque o art.º 279.º, n.º 1, do CPC dispõe expressamente que a absolvição da instância não obsta a que se proponha outra acção sobre o mesmo objeto.

Em segundo lugar, porque o caso julgado material – ou seja, o caso julgado cuja autoridade se impõe fora do processo onde formou, seja por via positiva, seja por via da excepção de caso julgado – pressupõe, conforme resulta do disposto no citado art.º 619.º, a existência de uma decisão que decida o mérito da causa e que, como tal, defina e regule a relação material controvertida.

Em terceiro lugar, porque resulta do disposto no art.º 580º, nº 1, do CPC que a excepção de caso julgado pressupõe a existência de uma causa anterior que já tenha sido decidida e a expressão “causa decidida” pressupõe, naturalmente, a existência de decisão de mérito.

Significa isso, portanto, que o caso julgado não se forma directamente sobre a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e pela causa de pedir); o caso julgado forma-se e incide apenas sobre o teor da decisão de mérito que seja proferida relativamente a tal pretensão e dentro dos termos e limites definidos pela decisão. É apenas o conteúdo da decisão (de mérito) que fica abrangido pelo caso julgado material, excluindo, portanto, quaisquer pretensões que, apesar de terem sido formuladas, não obtiveram qualquer decisão de mérito, designadamente porque a resposta dada pelo tribunal a essa pretensão se reconduziu a uma decisão formal e não de mérito. Consequentemente, ainda que, nessa situação, venha a ser instaurada uma nova acção que seja idêntica à anterior – porque os sujeitos são idênticos e porque o pedido formulado na nova acção já havia sido deduzido na anterior acção com invocação da mesma causa pedir –, não poderá afirmar-se – como seria necessário para que se configurasse a excepção de caso julgado (cfr. art. 580º, nº 1, do CPC) – que a nova causa seja a repetição de uma outra que já tenha sido decidida, uma vez que a pretensão deduzida na acção anterior não foi apreciada e sobre ela não foi proferida qualquer decisão de mérito em relação à qual se pudesse ter formado qualquer caso julgado material[8].

Poderá efectivamente parecer estranho – como diz Miguel Teixeira de Sousa na anotação, acima mencionada, ao Acórdão de 14/10/2021 – que o autor possa intentar quantas acções quiser no mesmo tribunal ou contra a mesma parte, argumentando que o caso formal anterior formado por decisão que absolveu o réu da instância por falta de um pressuposto processual (no caso dos presentes autos, com fundamento em caso julgado) não produz nenhum efeito em cada um dos novos processos e que, como tal, possa propor sucessivas e inúmeras acções totalmente idênticas e com os mesmos vícios que haviam conduzido ao insucesso das anteriores, tentando obter, em algum momento, uma decisão em sentido contrário que lhe seja favorável. Mas a verdade é que, ao que nos é dado ver e sem prejuízo de situações expressamente previstas, a lei não contém qualquer disposição que possa obstar a tal e o mais que se pode retirar do caso julgado formal formado pelas decisões anteriores é um fundamento legítimo de condenação por litigância de má fé por uso manifestamente reprovável do processo e por dedução de pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar em face das decisões anteriormente proferidas.

Concluimos, portanto, em face de tudo o exposto, que a decisão proferida na acção n.º 755/21.... – que absolveu os Réus da instância com fundamento em caso julgado – não formou caso julgado material cuja autoridade possa ser imposta nesta acção, seja por via positiva, seja por via de excepção, e que, como tal, possa obstar ao conhecimento do mérito das pretensões aqui formuladas ou possa vincular o juiz do segundo processo a proferir decisão idêntica à que foi proferida no primeiro.

Assim, ainda que as pretensões formuladas nos presentes autos sejam, na sua maior parte, idênticas às que haviam sido formuladas na referida acção 755/21.... – existindo, portanto e nessa parte, uma identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – não se configura a excepção de caso julgado, uma vez que tais pretensões não foram apreciadas no âmbito da referida acção e não foram, portanto, objecto de qualquer decisão de mérito em relação à qual se tivesse formado caso julgado material que obstasse à instauração de nova acção com os mesmos sujeitos e o mesmo objecto.

O caso julgado emergente da acção que correu termos sob o n.º 1097/19....

No âmbito da acção referida – instaurada pelos Réus na presente acção contra os aqui Autores e onde se pretendia, no essencial, ver reconhecido o direito de propriedade dos Autores (aqui Réus) sobre os imóveis inscritos na matriz predial sob os n.ºs ...41 e ...06 e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs ...69 e ...70, bem como a condenação dos Réus (aqui Autores) a reconhecer esse direito e a entregar os referidos imóveis aos Autores, livres e devolutos – os Réus (aqui Autores) deduziram reconvenção (cfr. ponto 2. da matéria de facto), onde pediam que os Autores (aqui Réus) fossem condenados a:

a)- Reconhecer que a R. é comproprietária, na proporção de 2/13 do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia ... sob o artº ...91º e descrito na CRP ... com o nº ...63;

b)- Reconhecer que o prédio rústico referido na alínea anterior constitui o solo ou chão onde se encontram implantados os prédios urbanos reivindicados (artº 2241º e 3706º) da mesma freguesia;

c)- Reconhecer as benfeitorias necessárias, sobretudo, mas também úteis, incorporadas pelos RR. naqueles urbanos, supra descriminadas, bem como a pagar aos RR. a esse título o valor de 32.307,84;

d)- Pagar aos RR. juros vencidos e vincendos sobre esse valor, à taxa legal desde 31/10/2012 até ao efectivo e integral pagamento, cifrando-se nesta data os primeiros7 em 8.977,89€;

e)- Reconhecer que os RR. gozam do Direito de Retenção sobre os prédios cuja entrega reivindicam, até que liquidem o crédito dos RR. por benfeitorias, o que requerem seja declarado pelo tribunal – cfr. artºs 754º, 757º e 759º, do C. Civil”.

Ora, ainda que uma parte da pretensão formulada nos presentes autos seja idêntica à que havia sido formulada na referida acção por via de reconvenção e ainda que exista, portanto, identidade de sujeitos e identidade (ainda que parcial) de pedido e causa de pedir, a verdade é que aquelas pretensões não foram apreciadas e decididas no âmbito daquela acção, uma vez que, como também se fez constar da matéria de facto (cfr. pontos 5 e 6), tal reconvenção não foi admitida (foi considerada extemporânea) e, como tal, não foi objecto de apreciação e decisão.

Nessas circunstâncias, valem aqui integralmente as considerações já feitas a propósito da acção n.º 755/21..... Tais pretensões não foram objecto de qualquer decisão de mérito em relação à qual se tivesse formado caso julgado material que obstasse à instauração de nova acção com os mesmos sujeitos e o mesmo objecto, não se configurando, portanto, qualquer excepção de caso julgado.

E não se diga – como parece dizer-se na decisão recorrida – que teria existido “preclusão do direito a propor nova acção” por parte dos aqui AA. (RR. no processo nº 1097/19....) tendo como objecto os pedidos que fazem nestes autos, na medida em que tais pedidos deveriam ter sido formulados na reconvenção a deduzir na acção anterior o que não aconteceu (já que, por razões que lhes são imputáveis, a reconvenção que deduziram não foi admitida).

Na verdade, essa afirmação não se poderá ter como inteiramente correcta – pelo menos com a amplitude que dela parece resultar – e carece de alguma clarificação.

Nada na lei aponta para a existência de qualquer ónus a cargo do réu no que respeita à dedução de reconvenção e por via do qual se possa concluir pela preclusão dos direitos/pretensões que o réu pudesse ter exercido – sem que o tivesse feito – por via da reconvenção. A reconvenção tem, por princípio, natureza facultativa, ou seja, o réu tem o direito de a deduzir nos casos em que ela é admissível, mas não está obrigado a fazê-lo, nada obstando, em princípio, a que instaure posteriormente uma acção com vista a obter satisfação do direito ou pretensão que poderia ter exercido ou reclamado por via reconvencional. O que acontece – e é por isso que se afirma que, nesses casos, a dedução de reconvenção constitui um ónus do réu – é que a discussão e apreciação desse direito ou pretensão pode ficar vedada por efeito do caso julgado formado pela decisão proferida em relação à pretensão formulada pelo autor na acção em questão, por se considerar, em face do disposto no art.º 573.º do CPC, que, em relação à pretensão formulada pelo autor e eventualmente considerada procedente na sentença aí proferida, ficam precludidos, quer na acção, quer fora dela, todos os meios de defesa que o réu tenha invocado ou pudesse ter invocado contra ela[9] e tendo em conta que esse efeito preclusivo de alegação dos meios de defesa que podiam e deviam ter sido deduzidos na contestação tem sido integrado, pela doutrina, no caso julgado, entendendo-se que o caso julgado abrange não só aquilo que foi objecto de controvérsia na acção, mas também os assuntos ou factos que o réu tinha o ónus de trazer à colação[10] (nesse sentido, pode ver-se Manuel de Andrade[11] quando afirma: “se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu…Neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível»…” e ainda os Acórdãos do STJ de 04/03/2008 e 06/07/2006, referentes aos processos 07A4620 e 06B1461, respectivamente[12]). De todo o modo, a preclusão daí decorrente não resultará propriamente e em bom rigor, da circunstância de os direitos/pretensões não terem sido exercidos/formulados por via da reconvenção quando esta fosse admissível, mas sim da circunstância de a apreciação desses direitos ou pretensões poder ficar vedada por efeito do caso julgado formado pela decisão que, nessa acção, veio a ser proferida em relação à pretensão do autor, na medida em que correspondam a meios de defesa em relação a esta pretensão que tinham que ser invocados na contestação e que, não o tendo sido, ficam abrangidos pelo caso julgado formado pela decisão aí proferida. Exemplificando: se o autor, em determinada acção, pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado bem e se essa pretensão vier a ser julgada procedente por decisão transitada em julgado, é evidente que o réu nessa acção não pode propor nova acção onde peça o reconhecimento da sua propriedade em relação ao mesmo bem. E não o pode fazer porque, estando definido por sentença transitada em julgado, que o direito pertence ao autor, o caso julgado formado impede que a titularidade desse direito possa ser objecto de nova apreciação; era na primeira acção que o réu tinha que invocar esse direito e, não o tendo feito ou não tendo conseguido demonstrá-lo, a titularidade do direito não pode ser objecto de nova discussão/decisão entre as mesmas partes.

Significa isso, portanto, que, ao contrário do que parece ter sido considerado pela decisão recorrida, a circunstância de os Autores terem tido a possibilidade de formular as pretensões aqui em causa por via de reconvenção na acção anterior, não permite concluir, só por si, pela preclusão do direito de propor nova acção em que formulem tais pretensões.

Nessas circunstâncias, o que importa saber é se o caso julgado formado pela decisão proferida na acção nº 1097/19.... em relação à pretensão aí deduzida pelos Autores obsta (ou não) à apreciação do mérito da presente acção, o que equivale a saber se, com referência a essa decisão, estão (ou não) verificados os pressupostos de funcionamento da excepção de caso julgado: a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir que é exigida pelo art.º 581º do CPC.

Passamos, portanto, a analisar essa questão.

Na primeira acção (n.º 1097/19) – instaurada pelos aqui Réus contra os aqui Autores – os Autores formularam os seguintes pedidos:

a) A declaração de que os prédios ali referidos (os imóveis inscritos na matriz predial sob os n.ºs ...41 e ...06 e descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs ...69 e ...70) estiveram em compropriedade entre o Autor marido, a Ré mulher, JJ e II, até 04-02 2019;

b) A declaração de que, a partir da referida data, os Autres são donos e únicos legítimos proprietários dos aludidos imóveis;

c) A condenação dos RR a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre os imóveis em causa;

d) A condenação dos RR a entregar aos Autores os referidos imóveis identificados, livres e devolutos de pessoas e nas condições em que se encontravam antes da ocupação;

e) A condenação dos RR, a pagar aos AA, em sede de danos patrimoniais, a quantia de €2300,00 (dois mil e trezentos euros), acrescido do valor de €300,00 mensais desde a data de sete de Abril de 2019, até à efectiva entrega dos referidos imóveis;

f) A condenação dos RR, a pagar aos AA, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia que decorra, a contar da data do trânsito em julgado da presente acção, sem que se mostre cumprido o decidido na alínea d) em valor não inferior a € 25,00/dia, até efectivo cumprimento;

g) A condenação da Ré no pagamento de juros à taxa legal, sob a quantia peticionada em d) desde o momento da data da citação até integral pagamento.

A sentença proferida na referida acção (transitada em julgado), julgou procedentes as pretensões constantes das referidas alíneas a) a d) – reconhecendo, portanto, o direito de propriedade dos Autores sobre os referidos imóveis e condenando os Réus a entregar esses imóveis aos Autores livres e devolutos de pessoas e nas condições em que se encontravam antes da ocupação –; julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização constante da alínea e) e julgou improcedente o demais peticionado.

Na presente acção, os Autores (Réus na acção anterior) pedem:

- Que os Réus sejam condenados, com fundamento no enriquecimento sem causa, a restituir-lhes as seguintes quantias:

a. A quantia de 32.307,84€ de benfeitorias que estão incorporadas nos prédios adquiridos pelos RR. (na ADCC) acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como supra calculados, neste momento no valor de 6.531,38€, que somados ao capital perfaz o valor de 38.839,22€;

b. A quantia de 6.153,85€ correspondente aos 2/13 dos AA. no terreno de implantação dos urbanos adquiridos pelos RR. e neles fisicamente incorporado, acrescido de juros vencidos e vincendos, os primeiros como calculados desde 21/06/2021 (trânsito da Sentença indicada no art.º 127 desta P.I.), neste momento no valor de 394,84€, que somados ao capital perfaz o valor de 6.548,69€;

- Que, ao abrigo dos artigos 754.º, 757.º e 759.º do C. Civil, lhes seja reconhecido e decretado o direito de retenção sobre os referidos prédios urbanos (adquiridos pelos RR.) até que estes restituam efectiva e integralmente aos AA. os valores atrás referidos com que se mostram enriquecidos à custa dos mesmos AA.

Subsidiariamente e para o caso de não ser reconhecido o direito de retenção, pediram:

Que os RR. sejam condenados pagar aos AA. uma compensação a título do benefício e fruição das benfeitorias e do solo (dos seus 2/13 do prédio ...91º), num valor mensal nunca inferior a 600,00€ (seiscentos euros) a pagar pelo menos desde a data da citação para a presente acção, até efectivo e integral pagamento dos valores agora peticionados.

Tendo em conta esse circunstancialismo e sendo indiscutível a identidade de sujeitos nas duas acções (as partes são as mesmas), importa saber se também está (ou não) verificada a identidade de pedido e de causa de pedir que é pressuposto de funcionamento da excepção de caso julgado.

É certo que os pedidos formulados nesta acção não correspondem, em termos literais e formais, aos pedidos que haviam sido formulados na acção anterior pelos Autores (aqui Réus) e sobre os quais incidiu a decisão aí proferida.

Isso não significa, porém, que se deva ter por excluída a identidade (de pedido e causa de pedir) que é exigida para efeitos de funcionamento da excepção de caso julgado.

Na verdade, aquela identidade (de pedido e de causa de pedir) – definida pelo art.º 581.º, n.ºs 2 e 3 como identidade do efeito jurídico que se pretende obter e identidade do facto jurídico de onde procedem as pretensões – não pode ser vista em termos literais e exclusivamente formais, sob pena de não se conseguir alcançar o objectivo visado com tal excepção e que, segundo o disposto no art.º 580º, nº 2, consiste em evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Com efeito, e conforme tem sido entendido, não se exige, para efeitos de funcionamento da referida excepção, uma identidade absoluta, bastando uma identidade relativa que, atendendo, como dizem José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[13] “...ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir delas se estabelecem”, abrange “...não só o efeito preciso obtido no primeiro processo, como qualquer que nesse processo houvesse estado implicitamente em causa...[14], impondo-se apelar – como diz José Lebre de Freitas[15] – a um conceito alargado de identidade da causa que se tem como verificada quando o pedido na segunda acção é deduzido sem respeito pelas várias preclusões que ali enuncia e que resultam, designadamente:

Da circunstância de a decisão proferida “...excluir as situações contraditórias com a que por ela é definida, não sendo admissível ação que pudesse levar a solução incompatível com a decisão, nomeadamente por com ela constituir alternativa, ou que quantitativa ou qualitativamente nela se inclua”;

Da circunstância de o caso julgado formado pela decisão precludir, em caso de condenação no pedido, as “...exceções, invocadas ou invocáveis, contra o pedido deduzido, bem como, quando proceda uma exceção perentória, as contraexceções contra ele invocadas ou invocáveis”;

Da circunstância de o caso julgado ter de se “...estender à decisão das questões prejudiciais quando, caso contrário, se possa gerar contradição entre os fundamentos de duas decisões que seja suscetível de inutilizar praticamente o direito que a primeira decisão haja salvaguardado”.

Na verdade, a questão de saber se existe ou não identidade da pretensão formulada em ambas as acções não poderá deixar de ser analisada em função da finalidade e do objectivo do caso julgado que, segundo o disposto no art.º 580º, nº 2, consiste em evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Nesse sentido, já dizia Alberto dos Reis[16] que “...quando surgirem dúvidas sobre se determinada acção é idêntica a outra anterior, o tribunal deve socorrer-se deste princípio de orientação: as acções considerar-se-ão idênticas se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira”.

Aquela identidade não pode ser vista, portanto, numa perspectiva literal, como uma identidade absoluta, mas sim com um sentido mais alargado de modo a que, atendendo aos fins visados pela excepção de caso julgado, se deva ter-se como verificada sempre que a pretensão exercida na segunda acção (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir), já está regulada e definida (directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente) na decisão anterior e na definição e regulação aí efectuada sobre a concreta pretensão que aí havia sido exercida (delimitada pelo pedido e causa de pedir) de tal forma que a decisão a proferir na segunda acção seria uma mera repetição da decisão proferida na primeira ou, caso tivesse conteúdo diverso, seria concretamente incompatível com ela ou inutilizaria o que nela se havia determinado.

Ora, entendendo a identidade de pedido e causa de pedir com o sentido assinalado, adiantamos, desde já, que a resposta à questão de saber se ela está (ou não) configurada no caso dos autos não é idêntica em relação à pretensão de reconhecimento do direito de retenção, por um lado, e em relação às demais pretensões, por outro.

Comecemos pela primeira.

Os Autores pedem nos presentes autos o reconhecimento de um direito de retenção sobre os prédios dos Réus até que estes restituam aos Autores os valores/quantias que também reclamam (relacionados, designadamente, com benfeitorias que alegam ter efectuado nos prédios em causa).

É certo que não existe e não foi proferida qualquer decisão de mérito que incidisse expressamente sobre essa concreta pretensão; apesar de essa pretensão ter sido formulada no âmbito da acção que correu termos sob o n.º 755/21.... e em reconvenção apresentada no âmbito da acção que correu termos sob o n.º 1097/19...., em nenhum desses processos foi proferida decisão de mérito sobre essa pretensão (no primeiro processo, os Réus foram absolvidos da instância e, no segundo, a reconvenção não foi admitida) e, portanto, não se formou, com essas decisões – conforme já dissemos – qualquer caso julgado material.

A verdade é que, em resposta à pretensão dos Autores formulada na acção n.º 1097/19.... (pretensão que se traduzia na reivindicação dos prédios ali identificados), foi aí proferida decisão (de mérito e já transitada em julgado) que, reconhecendo o direito de propriedade dos ali Autores sobre os prédios em causa, condenou os Réus (Autores nos presentes autos) a “...entregar aos Autores os referidos imóveis (...), livres e devolutos de pessoas e nas condições em que se encontravam antes da ocupação”, mais condenando os Réus “...a pagar aos AA, em sede de danos patrimoniais, a quantia de €300,00 mensais, desde a data da citação, até à efectiva entrega dos referidos imóveis...”.

É certo que a pretensão sobre a qual se pronunciou essa decisão não se reportava ao direito de retenção e, portanto, não existiria uma identidade literal e absoluta de pretensões (terá sido por isso que a decisão recorrida considerou não estar configurada a excepção de caso julgado – precisamente por faltar aquela identidade – concluindo pela verificação de uma pretensa “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado”). Já vimos, contudo, que a identidade de pedido e de causa de pedir não pode ser vista e interpretada como esse sentido literal e restritivo.

O certo é que aqueles imóveis – que os Réus foram condenados a restituir de imediato (tendo sido, inclusivamente, condenados a pagar, a título de indemnização pela privação do uso, um valor mensal de 300,00€ até à sua efectiva entrega) – correspondem aos imóveis sobre os quais os Autores pretendem agora ver reconhecido o seu direito de retenção, ou seja, o direito de reter (e não entregar) os imóveis até que seja efectuado o pagamento das quantias que aqui vêm reclamar.

Parece certo, portanto, que o eventual reconhecimento do pretenso direito de retenção dos Autores sobre os referidos imóveis contrariaria a decisão proferida na acção anterior que correu termos entre as mesmas partes e o caso julgado que sobre ela se formou. Com efeito, por efeito dessa decisão e do caso julgado que sobre ela se formou, ficou definido – com força vinculativa para ambas as partes – que os Réus (Autores nestes autos) estavam obrigados a entregar (de imediato) os imóveis aos Autores (Réus nestes autos), situação que não seria respeitada caso se viesse agora a reconhecer que, ao contrário do que havia sido decidido, os Réus não estavam obrigados a entregar os imóveis de imediato porque eram titulares de um direito de retenção. Com efeito, ao julgar procedente a acção de reivindicação referente aos citados imóveis – condenando os Réus a proceder à sua entrega aos Autores – a sentença proferida na primeira acção pressupõe, em conformidade com o disposto no art.º 1311.º, n.º 2, do CC, que não havia motivo para recusar a entrega dos imóveis aos seus proprietários e, portanto, ela também definiu, ainda que indirecta ou implicitamente, que não existia qualquer direito, designadamente um direito de retenção, que pudesse obstar àquela restituição (porque nenhum direito havia sido invocado e provado). Nessas circunstâncias, a pretensão agora formulada pelos Autores (reconhecimento de direito de retenção com fundamento em benfeitorias/despesas feitas nos referidos imóveis)  já se encontra definida e regulada naquela decisão e nos termos em que aí se regulou e definiu a pretensão que havia sido formulada pelos Autores, de tal forma que qualquer decisão que agora viesse a reconhecer aquele direito de retenção seria incompatível com a decisão anterior que pressupõe, como se disse, a inexistência desse direito ou de qualquer outro que obstasse à restituição dos imóveis que ali foi determinada.

A existência de um direito de retenção sobre os imóveis cuja reivindicação se pedia correspondia a um meio de defesa em relação àquela pretensão (de reivindicação), na medida em que poderia obstar à sua integral procedência (se esse direito fosse reconhecido, os Réus não seriam condenados – como foram – a entregar de imediato os imóveis) e, nessa medida, tinha que ser invocado na contestação dessa acção em conformidade com o disposto no art.º 573.º do CPC. Não o tendo sido – uma vez que, apesar de ter sido deduzida contestação/reconvenção onde se pedia o reconhecimento de tal direito, tal articulado não foi admitido por ser extemporâneo – e tendo os Réus sido condenados a restituir os imóveis (de imediato), essa questão ficou precludida e abrangida, nos termos acima mencionados, pelo caso julgado formado pela decisão – cujos termos pressupõem, conforme se disse, a inexistência desse direito (ou de qualquer outro que pudesse obstar à procedência daquela pretensão) – e não mais poderá ser discutida entre as partes, uma vez que o reconhecimento posterior desse direito – como os Autores pretendem agora por via da presente acção – não se compatibilizaria com a definição e regulação da relação jurídica que havia sido feita pela decisão proferida na anterior acção e desrespeitaria o que ali se havia determinado.

Nessas circunstâncias e à luz das considerações acima efectuadas, não poderemos deixar de ter como verificada a identidade de pedido e de causa de pedir para efeitos de funcionamento da excepção de caso julgado; a pretensão formulada nesta acção referente ao reconhecimento do direito de retenção está já definida e regulada – ainda que indirecta ou implicitamente – na decisão anteriormente proferida cujos termos excluem a existência de qualquer direito (como seria o caso do direito de retenção) que pudesse obstar à imediata restituição dos imóveis que aí foi determinada.

Concluimos, portanto, pela verificação da excepção de caso julgado em relação à pretensão – agora formulada – de reconhecimento do direito de retenção.

O mesmo não acontece, porém, em relação às demais pretensões formuladas nestes autos referentes à condenação dos Réus ao pagamento das diversas quantias constantes do pedido.

O que resulta da decisão proferida na acção anterior e do caso julgado que sobre ela se formou é apenas a definição, em termos definitivos e entre as partes, que o direito de propriedade sobre os imóveis em causa pertencia aos ali Autores (aqui Réus) e que os Réus (aqui Autores) ficavam obrigados a entregá-los aos Autores.

Ora, a pretensão que agora está a ser reclamada pelos Autores (referente ao pagamento das quantias acima mencionadas) não corresponde a qualquer pretensão que tivesse sido formulada naquela acção e que tenha sido apreciada e regulada na decisão que aí foi proferida e tão pouco contradiz ou interfere minimamente com tal decisão e com o direito de propriedade que aí foi reconhecido aos Autores (Réus nesta acção). Os Autores não pretendem obter nesta acção o reconhecimento do direito de propriedade sobre os referidos imóveis (que na anterior acção havia sido reconhecido pertencer aos Réus, ali Autores) e também não pretendem obter o reconhecimento ou satisfação de qualquer direito ou pretensão que seja incompatível com o direito já reconhecido à contraparte na anterior acção; o que está agora em causa são apenas pretensos direitos de crédito/compensação que não colidem nem interferem com o direito de propriedade dos Réus reconhecido na acção anterior (antes pressupõem a sua existência). Não se configura, portanto, em relação a tais pretensões, o risco – que o caso julgado pretende evitar (cfr. art.º 580.º, n.º 2) – de o tribunal ser colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior; a decisão que venha a ser proferida nestes autos em relação a tais pretensões não corre o risco de reproduzir a decisão anterior porque esta não apreciou e não decidiu essa matéria (que, aliás, não fazia parte do objecto do processo) e também não corre o risco de contradizer essa decisão porque a eventual procedência dessas pretensões é compatível com a decisão anterior, não interfere com os direitos aí definidos e não belisca minimamente o que aí foi decidido.

É certo que os Autores poderiam ter formulado essas pretensões (pelo menos a que se reporta ao direito a benfeitorias) por via de reconvenção na acção anterior (cfr. art.º 266.º, n.º 1, alínea b), do CPC). Mas a verdade é que não o fizeram (ou melhor, fizeram-no de forma intempestiva e, por isso, a reconvenção não foi admitida) e, portanto, tal pretensão não foi aí apreciada e não foi objecto de decisão.

Todavia, ao contrário do que parece sustentar a decisão recorrida, a circunstância de os Autores (Réus na anterior acção) não terem deduzido reconvenção não fez precludir o direito de propor nova acção com esse objecto.

Retomando a questão a que já fizemos referência, é certo que, em face do disposto no art.º 573.º do CPC, ficam precludidos, quer na acção, quer fora dela, todos os meios de defesa que o réu pudesse ter invocado contra a pretensão formulada pelo autor e também é certo – como já se referiu – que esse efeito preclusivo de alegação dos meios de defesa que podiam e deviam ter sido deduzidos na contestação tem sido integrado, pela doutrina, no caso julgado, entendendo-se que o caso julgado abrange não só aquilo que foi objecto de controvérsia na acção, mas também os assuntos ou factos que o réu tinha o ónus de trazer à colação que, nessa medida, não poderão voltar a ser objecto de discussão entre as mesmas partes.

Importa notar, no entanto, que o ónus em causa apenas abrange a defesa do réu em relação à pretensão contra ele formulada, ou seja, os factos e/ou direitos que, de algum modo, pudessem obstar à procedência daquela pretensão ou condicionar os seus efeitos, o que implicará também o ónus de deduzir a necessária reconvenção quando essa defesa se fundamente em direito que exija uma pronúncia judicial para que possa ser oposto à outra parte e obstar à procedência da pretensão por esta deduzida. Não existe, no entanto, qualquer ónus de deduzir reconvenção quando ela – apesar de admissível – não traduz uma defesa contra a pretensão formulada pelo autor porque não é susceptível de impedir ou condicionar a sua procedência ou os seus efeitos. É o que acontece, designadamente, com o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega é pedida ao réu no âmbito de acção de reivindicação; aquele direito a benfeitorias não interfere com a procedência formulada pelo autor (reconhecimento do direito de propriedade e condenação do réu a entregar a coisa), não correspondendo, portanto, a um meio de defesa em relação a essa pretensão que o réu tivesse o ónus de invocar na contestação (com dedução de reconvenção) sob pena de ver precludida a possibilidade de reclamar esse direito em posterior acção.

Assim, quando se alude à preclusão dos meios de defesa e quando se diz que o caso julgado abrange não só aquilo que foi objecto de controvérsia na acção, mas também os assuntos ou factos que o réu tinha o ónus de trazer à colação (ou, segundo a máxima a que alude Manuel de Andrade, que o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível»), o que se tem em mente são os meios de defesa que poderiam impedir ou condicionar a procedência da pretensão, em termos de se poder concluir que a invocação posterior dessa defesa ou direitos não se compatibilizaria com a definição e regulação da relação jurídica que havia sido feita pela decisão ali proferida e que, como tal, violava/desrespeitava o que ali se havia determinado e o caso julgado que se havia formado.

Ora, salvo o devido respeito, não é esse o caso do direito a benfeitorias ou do direito às demais quantias peticionadas que aqui são peticionadas. Nos mesmos termos em que a invocação desses direitos por via de reconvenção não obstava e não interferia com a pretensão ali formulada (reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa e respectiva reivindicação), o exercício posterior desses direitos também não colide e não interfere com a decisão ali proferida que, julgando procedente a pretensão formulada, reconheceu o direito de propriedade dos Autores sobre os imóveis e condenou os Réus a proceder à respectiva entrega.

Argumentam os Apelados – pelo menos é isso que se retira da conclusão ii) das suas contra-alegações – que essa questão estaria regulada (ainda que implicitamente) na decisão proferida na acção anterior, uma vez que, ao ter reconhecido o seu direito de propriedade plena (sem qualquer ónus) sobre os prédios causa e a condenação dos aqui recorrentes na entrega dos mesmos, “nas condições em que se encontravam antes da ocupação”, teria determinado (implicitamente) que eles fossem restituídos sem quaisquer eventuais obras de beneficiação. Ou seja, a decisão implicaria uma desconsideração das benfeitorias agora invocadas e uma “condenação implícita” dos Réus (Autores nesta acção) a proceder à sua destruição, o que, sob pena de contradizer essa decisão, implicaria a inexistência de qualquer direito referente a tais benfeitorias. 

Pensamos, contudo, que a decisão proferida e o caso julgado por ela formado não pode valer com esse sentido e com essa amplitude, porque a decisão não oferece o mínimo de certeza e segurança em relação a essa matéria.

Na verdade, se é certo que aquela decisão condenou os RR. a entregar aos Autores os referidos imóveis “nas condições em que se encontravam antes da ocupação”, a verdade é que está em causa uma “disposição ou determinação” vaga e incerta que se limita a reproduzir os termos do pedido, em relação à qual nada se diz na respectiva fundamentação e que não é feita com referência a quaisquer obras concretas que, alegada ou comprovadamente, ali tivessem sido executadas pelos Réus. Com efeito, se os ali Autores não alegaram a existência de quaisquer obras que os Réus (aqui Autores) ali tivessem efectuado e se nada se provou a esse respeito, qual o significado a atribuir à expressão – utilizada no pedido e reproduzida na decisão – “nas condições em que se encontravam antes da ocupação”? Não é claro e, sobretudo, não é seguro afirmar e concluir – designadamente para o efeito (relevantíssimo) de formação de caso julgado – que tal expressão possa ter o sentido de a entrega dos imóveis dever ser efectuada com prévia destruição de toda e qualquer obra que ali tivesse sido efectuada pelos Réus quando é certo – reafirma-se – que nenhuma obra concreta foi alegada ou provada que desse sentido útil àquela expressão.

Além do mais, a decisão em questão nem sequer determina – com a necessária clareza e certeza – qual é a “ocupação” a cuja data se reportam as condições em que os imóveis devem ser restituídos, nem tal é esclarecido na sua fundamentação. É a “ocupação” ocorrida em 1998 quando a Ré, conjuntamente com o Réu marido e os seus dois filhos, regressou aos referidos imóveis, passando aí a residir com o seu pai, JJ e o seu irmão, II? É a “ocupação” ocorrida a partir de 2002 quando os Réus passaram a residir ali exclusivamente (após a saída do pai da Ré e do irmão da Ré) impondo restrições de gozo aos demais comproprietários? Ou é a “ocupação” ocorrida a partir da data em que os imóveis foram adjudicados aos Réus (2019)?

Essas questões – que teriam evidente relevância para apurar se as benfeitorias agora reclamadas pelos Autores foram efectuadas antes ou depois da referida “ocupação” – não obtêm resposta clara na decisão e na respectiva fundamentação.

Pensamos, portanto, em face do exposto, não poder afirmar-se – como seria necessário para concluir pela identidade de pedido e causa de pedir que é relevante para efeitos de funcionamento da excepção de caso julgado – que as pretensões agora formuladas (referentes ao pagamento das referidas quantias e relacionadas, designadamente, com alegadas benfeitorias realizadas nos imóveis em causa) já foram reguladas e definidas na decisão proferida na anterior acção (ainda que indirecta ou implicitamente).

Não existe, portanto, em relação às referidas pretensões, qualquer identidade de pedido ou causa de pedir em ambas as acções que permita concluir pela verificação da excepção de caso julgado e que, como tal, possa obstar à apreciação do mérito dessas pretensões. Tais pretensões não foram formuladas, não foram apreciadas e não foram decididas na acção anterior e também não correspondem a qualquer meio de defesa em relação à pretensão que aí havia sido formulada que pudesse obstar à sua procedência nos termos definidos pela sentença e que, nessa medida, pudessem ter ficado abrangidas pelo caso julgado que se formou com tal decisão.

Não se verifica, portanto, em relação a tais pretensões, qualquer excepção de caso julgado que possa obstar à apreciação do respectivo mérito.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Em face do exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
Ø Confirmar a decisão recorrida no segmento em que determinou a absolvição dos Réus da instância em relação ao pedido de reconhecimento do direito de retenção (ponto 2 do pedido constante da p.i.), com o esclarecimento de que tal decisão se fundamenta na excepção de caso julgado (e não em “excepção dilatória inominada de autoridade do caso julgado”, conforme se considerou na decisão recorrida);
Ø Revogar, no mais, a decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção de caso julgado em relação às demais pretensões formuladas pelos Autores e determinando-se, nessa parte, o prosseguimento dos autos.

Custas a cargo de ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                (José Avelino Gonçalves)   

                                                     (Emídio Santos)



[1] Proferido no processo n.º 355/16.5T8PMS.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Veja-se, a propósito, Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, em comentário de 02/03/2023 ao Acórdão da Relação de Coimbra de 24/5/2022 (processo n.º 3077/19.1T8LRA.C2) – Jurisprudência 2022 (133) - https://blogippc.blogspot.com/2023/03/jurisprudencia-2022-133.html.
[3] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Também disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Blog do IPPC, Jurisprudência 2021 (207) - https://blogippc.blogspot.com/2022/05/jurisprudencia-2021-207.html.
[6] Blog do IPPC, Jurisprudência 2021 (231) - https://blogippc.blogspot.com/2022/07/jurisprudencia-2021-231.html
[7] No mesmo Blog.
[8] Cfr. Acórdão desta Relação e 22/06/2020, proferido no processo n.º 531/18.6T8FND-C.C1 – também relatado pela aqui Relatora – disponível em http://www.dgsi.pt, podendo ainda ver-se sobre essa matéria e nesse sentido Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Revista e Actualizada, pág. 714; Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 254 e 255; Manuel Domingues de Andrade,  Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 325; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, pág. 174 e José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, pág. 718.
[9] Cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 713, nota 2.
[10] Cfr. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, págs. 178 a 186.
[11] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 324
[12] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[13] Ob. cit., págs. 349.
[14] Cfr. também Castro Mendes, ob. cit., pág. 350.
[15] “Um Polvo chamado Autoridade do Caso Julgado”, na Revista da Ordem dos Advogados Ano 79, III-IV,  2019.
[16] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3.ª edição, pág. 95.