Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
101/14.8TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
EFEITOS
Data do Acordão: 09/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – MANGUALDE – SEC. COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 580° E 581º DO NCPC.
Sumário: I – Sendo o objecto do processo anterior parcialmente idêntico ou conexo com o do subsequente, mesmo não ocorrendo completa identidade do âmbito objectivo, os efeitos do caso julgado material projectam-se, entre as mesmas partes, no segundo, como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior, de modo a evitar que a relação jurídica material já definida possa vir a ser apreciada diferentemente, com ofensa da segurança jurídica.

II - A eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com a que ficou definida na decisão transitada e incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos ou as questões preliminares, enquanto pressupostos, premissas ou antecedentes lógicos daquela decisão.

III - Para tanto, importa fixar o sentido e o alcance da decisão proferida na anterior ação, interpretando-a, e, por essa via, também excluir da eficácia do caso julgado os julgamentos sobre questões de facto e de direito que não estejam nela compreendidos, ainda que integrem os fundamentos de tal decisão.

IV - O princípio da segurança jurídica, que tem o caso julgado como seu postulado destacado, assume-se como basilar do Estado de Direito Democrático, pelo que o exposto entendimento não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1.1) «G..., Lda» intentou a presente acção contra «M..., Lda», pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 6.109,13, acrescida de juros de mora, a remover o material que se encontra depositado no seu parque e, ainda, a pagar-lhe a quantia de € 5 por cada dia de atraso na efectivação de tal remoção. Para fundamentar essa sua pretensão, a A alegou, em síntese: no âmbito das respectivas actividades, ambas as sociedades celebraram entre si um negócio mediante o qual se obrigaram a fornecer reciprocamente, a A blocos em granito, e a R esses mesmos blocos já transformados; no dia 29/5/2012 a A forneceu tais blocos em granito à R, tendo esta entregue os materiais com medidas, acabamentos e preços diferentes dos contratados; por carta remetida em 18/6/2012 a A deu conhecimento à R de tais incorrecções e propôs a correcção da facturação do material fornecido e das anomalias detectadas, interpelando-a para que diligenciasse nesse sentido ou apresentasse outra solução, sem que a R tenha respondido; tendo decorrido o prazo que concedera à R sem que esta tenha diligenciado em conformidade, em face do seu incumprimento, considerou resolvido o contrato e contratou a uma outra empresa o fornecimento dos materiais que havia acordado com a R. A A referiu também que: é de € 1.718,65 o valor dos blocos de granito que forneceu à R, suportou o montante de € 1.000 no transporte de tais materiais e o material fornecido pela R, com anomalias, ficou depositado nas suas instalações, devendo a R pagar-lhe o montante de € 5 por cada dia de ocupação até à sua remoção.

1.2) A R contestou invocando, nomeadamente, a excepção de caso julgado, dizendo que o efeito pretendido pela A nesta acção não pode ser atendido na medida em que na AECOP (acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias) nº ... foram já apreciados e decididos os factos e argumentos que agora baseiam a petição inicial.

1.3) A A sustentou que não existe entre ambas as acções identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido porque na anterior acção não foi admitido o pedido reconvencional que aí formulou.

2.1) A aqui R. propusera a referida acção, que veio a ser tramitada como AECOP nº ..., contra a ora A M..., em que pediu a condenação desta a pagar-lhe o montante global de € 4.865,31 (€ 4.301, a título de capital, € 513,31 de juros e € 51, respeitantes à taxa de justiça). Para fundamentar essa sua pretensão, a aí A alegou que fornecera à aí R, a pedido desta, granitos com o valor de €4.301, com vencimento acordado para 15/06/2012.

2.2) A aí R (e ora A M...) deduziu oposição e também reconvenção, pedindo que a reconvinda fosse condenada a pagar-lhe o montante global de € 5.824,88, acrescido de juros, alegando, para tanto: nada deve à aí A; esta forneceu-lhe os blocos com medidas, acabamentos e preços diferentes dos contratados; por carta remetida em 18/6/2012, deu-lhe conhecimento de tais incorrecções e propôs a correcção da facturação do material fornecido e das anomalias detectadas, interpelando-a para que diligenciasse nesse sentido ou apresentasse outra solução, sem que a mesma tenha respondido; tendo decorrido o prazo que concedera à aí A sem que esta tenha diligenciado em conformidade, em face do seu incumprimento, considerou resolvido o contrato e contratou a uma outra empresa o fornecimento dos materiais que havia acordado com a aí A; é de € 1.718,65 o valor dos blocos de granito que fornecera à demandada; suportou o montante de € 1.000 no transporte de tais materiais e o fornecido pela R, com anomalias, ficou depositado nas suas instalações, devendo a R pagar-lhe o montante de € 5 por cada dia de ocupação até à sua remoção.

2.3) Na referida AECOP, por despacho de 13/2/2014 não foi admitida a mencionada reconvenção e por sentença transitada em julgado em 9/5/2014, o Sr. Juiz, julgando improcedente a oposição invocada pela aí R e procedente a acção, condenou aquela a pagar à aí A a quantia de € 4.301, acrescida de juros de mora.

2.3.1) No âmbito dessa sentença, foram considerados como provados os seguintes factos:

«a) a autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica, com carácter lucrativo, às actividades de comercialização e transformação de granitos;

b) a ré dedica-se, com carácter lucrativo, à comercialização de materiais de construção;

c) no exercício daquelas actividades a autora foi contactada pelo sócio-gerente da requerida, que lhe solicitou o fornecimento de lancil em granito serrado, com 20 cm de altura por 20 cm de espessura;

d) Posteriormente, o sócio-gerente da ré contactou a autora solicitando o acabamento em jacto de areia;

e) Na sequência daquela solicitação, em 15/06/2012, a autora forneceu e entregou ao funcionário que a ré fez deslocar às instalações da autora 234,250 metros lineares de lancil de granito amarelo, com comprimentos que variam entre os 97cm e 1,10m, com 20cm de altura e 20 cm de espessura, com acabamento em jacto de areia;

f) Com a entrega do material mencionado no artigo anterior, a autora emitiu e entregou ao funcionário da ré que recebeu aquela mercadoria a factura n.º..., datada de 15-06-2012, no valor de €11,00 o metro linear de lancil, €920,00 “pico fino”, acrescido de IVA, no valor global de €4.301,00, na qual consta como data de vencimento o dia 15-06-2012, factura essa que a ré não devolveu;

g) Autora e ré acordaram que o pagamento daquele material seria efectuado na data da emissão da factura;

h) Autora e ré acordaram que o preço do lancil de 20x20cm era de €11,00 o metro linear, acrescido de IVA;

i) O preço de mercado do acabamento em jacto de tinta é de €5,00 o metro linear;

j) O empregado da ré aceitou e recebeu o referido lancil;

k) Até à presente data a ré não procedeu ao pagamento do valor constante daquela factura;

l) No âmbito do mencionado acordo, autora e ré acordaram ainda que esta fornecia àquela blocos em granito pelo valor de €120,00m3, granito esse que era para ser utilizado na execução daqueles lancis;

m) Cerca de 12 lancis entregues pela autora não foram serrados na respectiva base, o que implica que, na aplicação, seja efectuada a compensação com a aplicação da massa utilizada para o efeito;

n) Datada de 18 de Junho de 2011, o ilustre advogado da ré remeteu à autora, que a recebeu, a carta cuja cópia se encontra junta a fls.15 e 16, da qual consta, além do mais, o seguinte: “informa-me a minha cliente que o contrato celebrado não foi cumprido. O material que V.ªs Ex.ªs enviaram à minha cliente não foi aquele que contrataram (…) 1. V.ªs Ex.ªs enviaram material com medidas e preço diferentes do contratado; 2. Alguns lancis não se encontram serrados em todas as faces; 3. Foi facturado o preço (pico fino), que não foi, de forma alguma contratado, nem sequer utilizado por V.ªs Ex.ªs, tendo sido utilizado apenas jacto de areia, que era o que haviam acordado. Antes de me determinar pelo recurso à via judicial, muito gostaria que o assunto apresentado tivesse resolução por via amigável. Pelo exposto, propõe-se o seguinte: a) seja facturado correctamente o material, nomeadamente com os valores acordados no e-mail de 28.05.2012, b) seja rectificado o material desconforme. Assim, no prazo de cinco dias, tendo em consideração que a obra que a minha cliente executa se encontra parada por esse motivo, queiram V.ªs Ex.ªs diligenciar pelo proposto ou, em alternativa, apresentar solução que a todos interesse. Findo este prazo e caso V.ªs Ex.ªs nada digam, imediatamente interporei a competente acção judicial”;

o) A autora não respondeu àquela carta;

p) A ré encomendou o lancil em causa nos autos por pretender vendê-lo à sociedade “D..., Lda”, que, por sua vez, o pretendia aplicar numa obra que estava a executar em Castelo Branco».

2.3.2) E foram considerados como não provados os seguintes factos:

«- não foi apresentada qualquer reclamação;

- o preço do jacto de areia foi contratado entre a autora e a ré;

- o material que foi recepcionado pela ré encontrava-se com medidas diferentes do contratado;

- motivada pela resolução contratual, a ré, no dia 25-06-2013, celebrou novo negócio com a empresa I..., Lda, entregando tal material à D... apenas no dia 27-06-2012».

3) No despacho saneador, o Sr. Juiz, considerando que todos os factos ora alegados pela A foram já conhecidos naquela AECOP e que se impõe evitar o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão de tal acção, julgou verificada a excepção da autoridade do caso julgado e, consequentemente, absolveu a R da instância.

4) Inconformada, a A apelou, suscitando a questão de saber se inexiste a excepção do caso julgado, mediante a dedução das seguintes conclusões:

- não existindo a tríplice identidade, não existe excepção de caso julgado;

- a apreciação de que, apesar de não existir identidade da causa de pedir, existe violação da autoridade do caso julgado, constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.


«

Importa apreciar a questão enunciada e decidir, para o que releva o antecedentemente relatado.

Dispõem os artigos 580° e 581º do CPC:

«As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.

Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (…).

Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico…».

A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis ([1]).

Com efeito, a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.

Diferentemente do caso julgado formal – que tem uma eficácia estritamente intraprocessual ([2]) – o caso julgado material é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão ou em processos distintos (cf. arts. 619º e 620º do CPC).

A eficácia do caso julgado material – único que releva para a apreciação da questão cuja apreciação ora se suscita – varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC]. Verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão, destinando-se a excepção a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.

Na presente situação, estamos em ambas as mencionadas acções perante a mesma relação jurídica, verificando-se, independentemente da diversidade da posição processual, a identidade de sujeitos. O mesmo não se passa, inteiramente, quanto ao pedido e à causa de pedir, apesar de ser evidente a conexão entre os objectos de ambas as acções.

Ainda assim, constituindo a sentença caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (art. 621º do CPC), importa não confundir a “excepção do caso julgado” com a “força e autoridade do caso julgado”, esclarecendo que, como tem vindo a ser sustentado, se a primeira pressupõe a aludida tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a segunda dispensa-a, ou seja, a autoridade do caso julgado pressupõe uma decisão (transitada) de determinadas questões que já não podem voltar a ser discutidas e, diversamente daquela excepção, pode funcionar independentemente da verificação de tal tríplice identidade ([3]).

Por conseguinte, tal como foi entendido na decisão recorrida, mesmo não ocorrendo completa identidade do âmbito objectivo na relação entre a acção em que foi proferida a decisão transitada e a acção subsequente, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o mesmo objecto vale entre as mesmas partes de ambas as acções como autoridade de caso julgado e, quando tal suceda, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir. O que significa que, mesmo sem essa completa identidade, o tribunal está vinculado na acção subsequente a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior. A força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica ([4]).

Como se sabe, sobre a questão da exacta delimitação dos limites objectivos do caso julgado manifestam-se posições não inteiramente convergentes que vão do pólo extremo de uma tese totalmente restritiva, que só confere foros de indiscutibilidade à parte decisória da sentença, e o oposto, de uma tese ampla pura, que entende que o caso julgado integra todos os fundamentos da decisão.

Todavia, os próprios defensores da tese restritiva vêm admitindo que «os fundamentos da sentença pedem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado» ([5]).

E o certo é que, em prol da economia processual, do prestígio dos tribunais e da estabilidade e certeza das relações jurídicas, vem sendo entendido sistematicamente pela jurisprudência que, uma vez assente a identidade subjectiva e sendo o objecto do processo anterior parcialmente idêntico ou conexo com o do posterior, a força obrigatória do caso julgado naquele formado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, ou seja, «à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada. Efectivamente, a decisão não é mais nem menos do que a conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem – precisamente os fundamentos – e aos quais se refere» ([6]).

Também na doutrina, na esteira do entendimento expresso por Vaz Serra (RLJ 110º-232), Manuel Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pp. 111 e 320 e ss ([7])) ou Castro Mendes ([8]), defende Miguel Teixeira de Sousa:

«(…) como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.». «(…) o caso julgado também possui um valor enunciativo: essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada» ([9]).

Cumpre, ainda, registar que não colhe a observação da apelante no sentido de que o exposto entendimento constituiria um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, com ela sugerindo, apenas implicitamente, uma pretensa inconstitucionalidade (art. 20º da CRP) dos citados dispositivos legais, se assim interpretados.

É o que o STJ já lembrou, no seu citado Ac. de 17/6/2014:

«(…) No caso concreto, a limitação dos poderes cognitivos do Tribunal, impedido de conhecer do mérito relativamente a questões decididas por sentença transitada em julgado, respeita o juízo de proporcionalidade na ponderação de bens ou valores em conflito e não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça.

Com efeito, a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material repousa na necessidade de assegurar estabilidade às relações jurídicas, não permitindo que litígios, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, se repitam indefinidamente, em prejuízo da paz jurídica, que ao Estado, como defensor do interesse público, compete assegurar. Sendo, precisamente, pela imposição, aos litigantes, desse comando jurídico indiscutível – a decisão transitada sobre o mérito da causa – que o Estado prossegue essa finalidade, assegurando o prestígio dos tribunais e garantindo a certeza e segurança jurídicas nas relações interpessoais.».

Identicamente, expendeu o já invocado Ac. do mesmo Tribunal de 29/5/2014: «A figura do caso julgado tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição, conforme reiterado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/2013, de 17.6, com texto disponível no sítio do próprio Tribunal».

Entendemos, pelo exposto, que os considerandos decisórios conducentes ao dispositivo da sentença proferida na anterior acção poderão estar, ou não, abrangidos pelo caso julgado material, consoante o sentido e o alcance que a interpretação de tal decisão lhes fixe, a qual aferirá da eficácia do caso julgado, dela excluindo os julgamentos sobre questões de facto e de direito por ela não abarcados, ainda que integrem os fundamentos de tal decisão. Por isso, diferentemente do que parece defender a recorrente, uma vez verificada a hipótese afirmativa, até teríamos de reputar de inconstitucional a interpretação dos supra mencionados normativos adjectivos subjacente ao não acatamento do já decidido no anterior processo, por atentar contra os falados princípios consagrados nos arts. 282º nº 3 e 2º da CRP. É que o princípio da segurança jurídica, que tem o caso julgado como seu postulado destacado, assume-se como basilar do Estado de Direito Democrático.

Assim, importa interpretar a resposta contida na decisão final proferida na anterior acção, para lhe fixar os respectivos sentido e alcance. Vejamos.

Resulta, claramente, do acima relatado:

Na anterior acção, a ora A, então demandada pela ora R para cumprir a prestação (preço) a que se encontrava adstrita no âmbito de um contrato de fornecimento de granito transformado, deduziu oposição, invocando o seu direito a recusar tal prestação e a resolver o contrato, com fundamento nos prejuízos alegadamente sofridos em consequência do cumprimento defeituoso pela R desse contrato ([10]). Também formulou pedido reconvencional com o mesmo fundamento, mas a reconvenção não foi admitida. Por sentença transitada, foi julgada improcedente a oposição aí invocada pela ora A e esta, como consequência da procedência da acção, foi condenada a pagar à ora R a quantia por esta pedida.

Na presente acção, a A pede a condenação da R a pagar-lhe a quantia a cujo direito já se arrogara na anterior acção ([11]), actualizada apenas com a variável decorrente do decurso do tempo. E invocou, como causa de pedir, precisamente, os prejuízos que disse ter sofrido em consequência do mesmo alegado cumprimento defeituoso pela R de um contrato de fornecimento.

Ora, do que se trata é saber se a primeira decisão transitada em julgado é ou não susceptível de ser ofendida pela decisão que viesse a ser proferida nesta acção ([12]), se nesta fosse reconhecida como preenchida a causa de pedir invocada. E, realmente, mesmo não omitindo que, na sequência da rejeição (processual) da reconvenção, a causa de pedir e o pedido formulados nesta acção, enquanto tais, não foram considerados na anterior acção, também não pode olvidar-se que a condenação, aí, da agora A na quantia pedida teve como seu antecedente lógico, ou como premissa da conclusão firmada, o julgamento emitido quanto à improcedência da oposição deduzida pela mesma, sendo que tal oposição consubstanciou, exactamente, o fundamento da pretensão agora aduzida na presente acção.

Com efeito, todos os fundamentos da presente acção foram já apreciados e decididos na anterior, em cujo âmbito o Tribunal julgou como não verificado, em todas as alegadas vertentes, o cumprimento defeituoso (as alegadas anomalias nos trabalhos executados) pela R do contrato, afinal, também a causa de pedir destes autos.

A R, por opção sua, obteve já um julgamento sobre os factos e as razões de direito em que estriba a pretensão que ora formula, em acção que, apesar da sua tramitação simplificada, cumpre os requisitos mínimos do processo equitativo exigido pelo art. 20º nº 4 da CRP, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de alegar todas as razões justificativas do crédito que ora peticiona e de provar os factos donde o mesmo resultaria ([13]).

Por isso, como dissemos, a decisão (transitada) de tais questões, com a inerente autoridade do caso julgado, veda-lhe agora, em nome da segurança jurídica, perante o insucesso daquela oposição, a possibili­dade de ter acesso a uma segunda oportunidade. Mais precisamente: aquela autoridade imporia que as mesmas questões já não fossem de novo discutidas e apreciadas diferentemente, com ofensa da segurança jurídica, pelo que o sentido do respectivo julgamento teria de ser acatado nestes autos, com todas as consequências ([14]).

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

Síntese conclusiva:

1ª - Sendo o objecto do processo anterior parcialmente idêntico ou conexo com o do subsequente, mesmo não ocorrendo completa identidade do âmbito objectivo, os efeitos do caso julgado material projectam-se, entre as mesmas partes, no segundo, como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior, de modo a evitar que a relação jurídica material já definida possa vir a ser apreciada diferentemente, com ofensa da segurança jurídica.

2ª - A eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com a que ficou definida na decisão transitada e incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos ou as questões preliminares, enquanto pressupostos, premissas ou antecedentes lógicos daquela decisão.

3ª - Para tanto, importa fixar o sentido e o alcance da decisão proferida na anterior acção, interpretando-a, e, por essa via, também excluir da eficácia do caso julgado os julgamentos sobre questões de facto e de direito que não estejam nela compreendidos, ainda que integrem os fundamentos de tal decisão.

4ª - O princípio da segurança jurídica, que tem o caso julgado como seu postulado destacado, assume-se como basilar do Estado de Direito Democrático, pelo que o exposto entendimento não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Decisão.

Nos termos expostos, julgando improcedente a apelação, decide-se confirmar a decisão recorrida.

         Custas pela apelante.

Coimbra, 22/09/2015

Alexandre Reis (Relator)

Manuel Capelo

Falcão de Magalhães


***

[1] O caso julgado visa, essencialmente, obstar a que «o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 391 e s).

[2] Só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida.

[3] Cf., entre muitos outros, os Acs. do STJ de 4/6/2015 (177/04.6TBRMZ.E1.S1 - João Bernardo), de 19.5.2010 (3749/05.8TTLSB.L1.S1 – Sousa Grandão) e de 12/9/2013 (239/09.3TBVRS.E1.S1 – Fernando Bento). E, na doutrina, neste sentido, M. Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 319 e s), bem como, entre outros:

- Miguel Teixeira de Sousa («Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente»  – cfr. “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, in BMJ 325º-179).

- Mariana França Gouveia, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, p. 394” («A excepção de caso julgado implica uma não decisão sobre a nova acção e pressupõe uma total identidade entre as duas. A autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial» (…) «os efeitos do caso julgado material projectam-se em processo subsequente necessariamente como autoridade do caso julgado material em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior ou como excepção de caso julgado em que a existência de decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objecto posterior»).

[4] Cf. Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, III, pp 60 e 61.

[5] A. Varela e outros in “Manual de Processo Civil”, p. 694.

[6] Ac. do STJ de 9/5/1996, in CJSTJ, 2º-55, também citado no Ac. da RE de 20/12/2012 (374/2000.E1 - Alexandra  Moura Santos).

Cf. também, entre muitos outros, os Acs. do STJ de: 27/4/2004, p. 04A1060-Nuno Cameira; 20/5/2004, p.04B281-Noronha do Nascimento; 1/1/2007, p. 05S4319 - Sousa Grandão; 12/7/2011, p. 129/07.4TBPST.S1-Moreira Camilo; 23/11/2011, p. 644/08.2TBVFR.P1.S1-Pereira da Silva; de 26/4/2012, p. 289/10.7TBPTB.G1.S1- Prazeres Beleza; 10/10/2012, p. 1999/11.7TBGMR.G1.S1-Abrantes Geraldes; 6/12/2012, p. 469/11.8TJPRT.P1.S1-João Bernardo (v., ainda, o de 29/5/2014, p. 1722/12.9TBBCL.G1.S1, relatado pelo mesmo Conselheiro); 21/3/2013, p. 3210/07.6TCLRS.L1.S1-Álvaro Rodrigues; 17/6/2014, p. 233/2000.C2.S1 - Clara Sottomayor; 14/05/2014, p. 120/13.1TTGRD-A.C1.S1 - Mário Morgado [«Este Supremo Tribunal tem entendido que são abrangidas pelo caso julgado os fundamentos lógico-jurídicos que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão»], de 12/9/2013, p. 239/09.3TBVRS.E1.S1 - Fernando Bento [«Trata-se, portanto, de evitar que duas relações jurídicas, conexas entre si, sejam decididas de modo contraditório, seja quando uma delas integre os pressupostos fácticos da outra, seja quando para decidir sobre a segunda se tenha que decidir (de novo) sobre a primeira, não obstante esta já haver sido decidida em processo anterior (…) Se as questões que integram o objecto da segunda acção já tiverem sido decididas na primeira acção entre as mesmas partes, há uma coincidência (total ou parcial) entre o objecto de ambas as acções; logo, o objecto da nova acção já está, total ou parcialmente, definido por essa sentença, devendo, neste caso, o juiz acatar o já decidido»].

[7] Veja-se, ainda, a citação deste Autor, reproduzida pela recorrente nas suas alegações: [o caso julgado consiste em] «a definição dada à relação material controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social».

[8] Segundo a qual «o caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos», in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pp. 161 e s.

[9] In “Estudos Sobre o Novo P.C.”, 1997, págs. 578 e s.

[10] Dizem-se excepções materiais em sentido próprio as que se reportam a uma situação de existência efectiva, também, na esfera jurídica do réu, de um contra-direito que permite destruir ou paralisar o direito do autor: pode dizer-se que tais excepções se baseiam numa contra-norma que produz um efeito contrário ao da norma da qual a contraparte deduz a sua pretensão. Assim, também a excepção da resolução do contrato, invocada pela R, é uma excepção em sentido estrito.

[11] Tanto por via de excepção como da reconvenção que foi rejeitada.

[12] Cf. Ac. do STJ de 8/3/2007 (P. 07B595-Salvador da Costa).

[13] A eficácia preclusiva do caso julgado e indiscutibilidade da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada pela sentença transitada, i.e., o conteúdo dessa decisão, compreende não apenas as questões nela expressamente decididas – mas todas a que o demandado tinha o ónus de suscitar durante o processo, de modo a conformar constitutivamente a decisão final sobre o mérito da causa. Segundo o já referido Ac. do STJ de 29/5/2014, «Noutro prisma, cremos que se pode integrar a figura da preclusão no âmbito da autoridade do caso julgado, valendo, então, os contornos próprios desta …. (…) O seu conteúdo não se resume aos meios de defesa que o réu deduziu, mas “mesmo aos que ele não chegou a deduzir e até aos que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (…). Neste sentido, pelo menos vale a máxima, segundo a qual o caso julgado “cobre o deduzido e o dedutível” ou “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debet”.».

[14] Maxime, a da improcedência da acção. O Sr. Juiz, diversamente, encarou a autoridade do caso julgado como pressuposto processual negativo e, consequentemente, absolveu a R da instância. Porém, essa é uma questão que não nos ocupa porque não suscitada.