Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
129/07.4TBPST.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
LIMITES DO CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
DECISÃO JUDICIAL
FUNDAMENTOS
SENTENÇA
TRÂNSITO EM JULGADO
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACÇÃO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA - MULTAS E IMDEMNIZAÇÃO - EXCEPÇÕES - SENTENÇA
Doutrina: - MANUEL ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, I, págs. 28, 324.
- M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579.
- RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, 3ª edição, págs. 199, 200 e 201.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS CUSTAS JUDICIAIS (CCJ), APROVADO PELO DL Nº 324/2003, DE 27-12: - ARTIGO 102.º, ALÍNEA A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 266.º, 266.º-A, 456.º, N.º1, 494.º, I), 497.º, N.º2, 498.º, 671º, N.º1 (REDACÇÃO ANTERIOR AO DL Nº 303/2007, DE 24 DE AGOSTO), 673.º, 677.º.
DL 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO: - ARTIGO 19.º, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 06.07.1976 E 05.06.1991, IN BMJ 259º-180 E 408º-588, RESPECTIVAMENTE.

ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA Nº 6/2002, PUBLICADO NA I SÉRIE DO DIÁRIO DA REPÚBLICA, DE 18 DE JULHO.
Sumário :
I - O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior – arts. 494.º, al. i), e 497.º, n.º 2, do CPC.

II - Para além do caso julgado, que constitui um obstáculo a uma nova decisão de mérito, há igualmente que atender à autoridade do caso julgado, a qual tem antes o efeito positivo de impor a decisão.

III - A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção.

IV - Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

V - Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.

VI - A autoridade do caso julgado caracteriza-se pela insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do carácter definitivo decorrente do respectivo trânsito, designadamente por via de recurso. Se essa autoridade vem a ser posteriormente colocada numa situação de incerteza, pelas mesmas partes, seja em processos diferentes, seja no mesmo processo, então será possível ocorrer ofensa do caso julgado formado na acção anterior.

VII - Definido em acção anterior entre as mesmas partes quem fora o responsável pelo acidente de viação, a questão, uma vez decidida, ficou a ter força obrigatória dentro e fora do processo, não podendo contrariar-se a autoridade do caso julgado.

VIII - Havendo uma decisão judicial, transitada em julgado, que considerou que o réu foi o culpado de um acidente de viação e que tal acidente ocorreu por influência do grau de alcoolemia de que ele era portador (2,04 g/l), essa decisão tem de ser acatada na acção em que a seguradora pretende exercer o seu direito de regresso contra o condutor que tiver agido sob a influência do álcool, estando feita a demonstração do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

IX - A parte age com má fé se sabe que não tem razão ou se descurou completamente a ponderação da sua conduta, acabando por alegar factos não verdadeiros ou obstando à normal composição do litígio. Comportando-se a parte em tais termos, pratica um acto ilícito, a que a lei faz corresponder, simultaneamente, uma acção penal (multa) e, se requerida, uma sanção civil (indemnização). A alegação de factos contrários à verdade conhecida pelo responsável pela alegação, quando esses factos sejam intencionais e predeterminados em relação aos fins prosseguidos, não pode deixar de considerar-se dolosa.
Decisão Texto Integral:                          Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – No Tribunal Judicial da Comarca de Porto Santo, a AA, S.A., em acção com processo ordinário, intentada contra BB, pediu que, com a procedência da acção, seja o Réu condenado a pagar-lhe a quantia de € 63.506,08, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que, em virtude de contrato de seguro que transferiu para si a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo 00-00-00, teve que indemnizar CC, DD e EE, por terem sofrido lesões e danos materiais em virtude de acidente de viação culposamente causado pelo condutor do veículo 00-00-00, por circular em excesso de velocidade. No entanto, porque conduzia sob o efeito do álcool, o que deu origem ao acidente, pretende a Autora exercer o direito de regresso, ao abrigo do artigo 19º, alínea c), do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro.

Contestou o Réu, impugnando que conduzisse sob o efeito do álcool e em excesso de velocidade, contrapondo que o acidente ficou a dever-se a conduta dos lesados, porquanto o outro veículo sinistrado (00-00-00) se encontrava estacionado sem luzes de presença na faixa de rodagem por onde circulava, não havendo iluminação pública no local, e que os sinistrados DD e EE conversavam com o condutor desse veículo, ocupando todo o lado direito da estrada, considerando-os responsáveis pelo acidente.

Em sede de audiência preliminar, a Autora concretizou a alegação contida no artigo 14º da petição inicial, por forma a constar que «o acidente de viação verificou-se, por conseguinte, porque o ora réu, portador de uma TAS quatro vezes superior ao permitido legalmente e influenciado por essa TAS na sua condução, efectuou uma condução negligente, designadamente circulando a velocidade superior a 60 km/hora, encontrando-se a velocidade máxima para o local fixada em 50 km/h, não adaptando a velocidade às condições da rua em que circulava, desrespeitando a distância que poderia ter deixado, relativamente ao veículo que se encontrava estacionado à sua frente e não conseguindo parar no espaço livre e visível à sua frente».

A final, foi proferida sentença, segundo a qual a acção foi julgada totalmente procedente, por em igual medida provada, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € 63.506,08, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

         Após recurso do Réu, foi, no Tribunal da Relação de Lisboa, proferido acórdão, a julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o Réu do pedido.

         Inconformado com tal decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

         A recorrente apresentou alegações e respectivas conclusões, pedindo que se declare nulo o acórdão recorrido, por ter conhecido de alegações de apelação apresentadas extemporaneamente pelo Réu, mantendo-se a sentença proferida em primeira instância, e, caso assim não se considere, que se revogue o acórdão recorrido e se condene o Réu no pagamento da quantia de € 63.506,08, acrescida dos competentes juros moratórios desde a citação.

Juntou uma certidão extraída do processo nº 117/07.0TBPST – que, entre as mesmas partes, correu seus termos no mesmo Tribunal –, onde se incluem a sentença proferida e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou aquela decisão, defendendo estar-se perante a excepção dilatória do caso julgado.

          O recorrido não contra-alegou nem se pronunciou sobre o documento apresentado pela recorrente.

Em conferência, a Relação pronunciou-se no sentido da inexistência da apontada nulidade.

         Afigurando-se ao aqui relator estar-se perante uma situação de caso julgado, com manifesta repercussão na decisão a tomar nos presentes autos, e para evitar a prolação de uma decisão-surpresa, foi proferido o despacho de fls. 528 a 530, a determinar a audição das partes, em cumprimento do disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), bem como para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade de, na sequência disso, a conduta do Réu/recorrido poder consubstanciar uma grave litigância de má fé, a ser punida de forma exemplar (artigo 456º do mesmo diploma).

         Autora e Réu pronunciaram-se apenas quanto à existência ou não de caso julgado, a primeira no sentido afirmativo e o segundo no sentido oposto.

         Cumpre apreciar e decidir.

         II – No acórdão recorrido, depois das alterações aí introduzidas à decisão da 1ª instância, foram dados como provados os seguintes factos:

         1 - No dia 30 de Agosto de 2004, pelas 22.30 horas, na Estrada do Campo de Cima, freguesia e concelho de Porto Santo, o veículo ligeiro de passageiros de marca Renault com a matrícula 00-00-00, conduzido pelo Réu, embateu com a dianteira lateral direita na traseira lateral esquerda do veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula 00-00-00, pertencente e conduzido por CC – Alínea A).

2 - (excluído).

3 - À data do embate aludido em A), a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo 00-00-00, conduzido pelo Réu, encontrava-se transferida à Autora, mediante a apólice de seguro n° 0000000000 – Alínea C).

4 - Do embate referido em A) resultaram ferimentos nas pessoas de CC, DD e EE, que deram lugar a abertura de inquérito pelos Serviços do Ministério Público do Tribunal de Porto Santo com o nº 196/04.2PBPST, e subsequente acusação contra o Réu e o pedido de indemnização civil contra a Autora – Alínea D).

5 - O Réu foi acusado de um crime de ofensa à integridade física por negligência e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o pedido de indemnização civil referia-se à assistência prestada a DD, EE e CC, pelo Serviço de Urgência do Centro de Saúde Dr. Francisco Rodrigues Jardim, sito no Porto Santo – Alínea E).

6 - O Autor não contestou o pedido de indemnização civil referido em E) – Alínea F).

7 - Pelo escrito junto a fls. 95, datado de 29 de Outubro de 2004, e que aqui se dá por reproduzido, a Autora comunicou ao Réu o seguinte:

«Temos conhecimento que V. Exa., como condutor no momento do veículo que garantimos, acusava uma taxa de alcoolémia superior à permitida pela lei actual. Assim, e dada a responsabilidade do acidente lhe ter pertencido, iremos regularizar os danos causados a terceiros, exercendo, de seguida, o direito de regresso junto de V. Exa., nos termos do art. 25º, alínea c), das Condições Gerais da Apólice" – Alínea G).

8 - Pelo escrito junto a fls. 96, datado de 25.11.2004, e que aqui se dá por reproduzido, o Réu comunicou à Autora o seguinte:

«Em resposta à vossa carta de 29 de Outubro passado, venho dizer que não é verdade o aí referido" – Alínea H).

         9 - Ao abrigo da apólice de seguro referida em C), foi participado à Autora a ocorrência do embate referido em A) através do formulário designado "declaração amigável de acidente automóvel", junto a fls. 19/20 – Facto 1º da BI.

10 - O local do embate é uma recta com lomba e a faixa de rodagem tem uma largura de 6,50 metros – Facto 2° da BI.

11 - No local do embate existia um poste de iluminação, que, porém, não dava luz, porque avariado – Facto 3º da BI.

12 - O veículo 00-00-00 deixou no pavimento rastos de travagem de 14 metros de comprimento – Facto 4º da BI.

13 - O tempo estava bom – Facto 5º da BI.

14 - O Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 2,04 g/l – Facto 6º da BI.

15 - Do embate resultaram danos no veículo 00-00-00, cujo condutor nada pudera para fazer evitar o mesmo, tendo a Autora ordenado a peritagem respectiva – Facto 7º da BI.

16 - O valor da reparação do veículo 00-00-00 orçava em cerca de € 8.768,44 e o seu valor venal não ultrapassava os € 5.000,00 e os salvados cerca de € 250,00 – Facto 8º da BI.

17 - Pelo que a Autora comunicou ao proprietário do veículo 00-00-00 ser recomendável a respectiva regularização como perda total – Facto 9º da BI.

18 - Na sequência do embate referido em A), DD foi atropelado e arrastado pelo veículo 00-00-00 conduzido pelo Réu, tendo ficado politraumatizado e sofrido lesões no crânio, costelas e braço esquerdo – Facto 10º da BI.

19 - A Autora procedeu à elaboração da situação clínica de DD e enviou a um perito liquidatário que concluiu com aquele um acordo por € 37.500,00 – Facto 11º da BI.

20 - Também EE apresentou danos decorrentes do atropelamento, tendo sofrido escoriações no braço esquerdo e feridas profundas no braço direito – Facto 12º da BI.

21 - (excluído).

22 - (excluído).

23 - (excluído).

24 - (excluído).

25 - A taxa de álcool no sangue acima de determinado grau produz alteração da capacidade neuromotora do condutor – Facto 17º da BI.

26 - Reflectindo-se nas suas reacções e afectando o seu nível de concentração – Facto 18º da BI.

27 - Pelo que aumenta exponencialmente os riscos próprios da condução de veículos automóveis – Facto 19º da BI.

28 - Tendo aceite a responsabilidade do condutor do veículo 00-00-00 conduzido pelo Réu, a Autora, no cumprimento das suas obrigações contratuais despendeu:

28.1 - € 4.500,00, pela perda total do veículo 00-00-00;

28.2 - € 673,14, pelas despesas de tratamento e consultas médicas do sinistrado DD no Centro Médico e Reabilitação da Mouraria;

28.3 - € 8.265,25, pelas despesas de tratamento e consultas médicas do sinistrado DD na Clínica de Santa Catarina;

28.4 - € 3.093,70, pelas despesas de tratamento e consultas médicas do sinistrado DD, EE e CC pelo Serviço Regional de Saúde;

28.5 - € 37.500,00, como indemnização global do sinistrado DD;

28.6 - € 8.291,78 por despesas, perdas de salário e outros danos do sinistrado DD;

28.7 - € 505,72 por despesas de tratamento, incapacidade temporária e outros danos do sinistrado EE;

28.8 - € 676,49 por despesas de tratamento, incapacidade temporária e outros danos do sinistrado CC – Facto 20º da BI.

29 - O veículo 00-00-00 estava parado na via por onde circulava o Réu – Facto 21º da BI.

30 - O condutor do veículo 00-00-00, CC, conversava pela janela com DD e EE – Facto 22º da BI.

31 - O veículo 00-00-00 e DD ocupavam parte do lado direito da faixa de rodagem, atendo o sentido em que seguia o Réu – Facto 23º da BI.

32 - O veículo 00-00-00 estava parado pelo menos a 23,30 do entroncamento, situado à sua frente, no sentido Vila – Lapeira – Facto 24º da BI.

33 - O veículo 00-00-00 estava parado a cerca 50/60 metros da lomba – Facto 25º da BI.

34 - O veículo 00-00-00 tinha todas as luzes apagadas, incluindo as de presença e os mínimos – Facto 26º da BI.

35 - Aquela estrada não tinha iluminação pública à data do embate, que ocorreu à noite – Facto 27º da BI.


III – 1. Desde já, temos de aquilatar da repercussão da decisão tomada no processo nº 117/07.0TBPST a que acima fizemos referência.

Decorre da certidão de fls. 475 a 503 que BB (o aqui Réu) intentou contra a AAl, S.A. (a aqui Autora), na qualidade de (também) seguradora do veículo automóvel de matrícula 00-00-00, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 13.625,00, acrescida de juros legais desde a citação, a título de indemnização por danos sofridos no acidente em causa nos presentes autos, para o que imputa a responsabilidade pela produção do sinistro ao condutor da citada viatura.

Tal acção foi julgada totalmente improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da Ré, por sentença de 2 de Julho de 2008, confirmada por acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 2009, com trânsito em julgado a 21 do mesmo mês (Processo nº 117/07.0TBPST.L1).

Em tal acção, atenta a matéria de facto definitivamente dada por assente (bem diferente da que, neste processo, após o acórdão da mesma Relação, se considerou), concluiu-se, além do mais, “que, segundo as regras da experiência comum, foi a condução sob o efeito do álcool por parte do autor que se mostrou, em concreto, a causa adequada e apropriada a desencadear e a produzir o sinistro dos autos, sendo certo que, tratando-se de um dos maiores flagelos rodoviários, também em abstracto, a condução sob o efeito do álcool constitui consabidamente causa da ocorrência de acidentes de viação”.

2. No presente processo, a referida Companhia de Seguros Mundial – Confiança, S.A., tendo procedido ao ressarcimento dos prejuízos provocados pelo seu segurado, BB, no acidente em causa, vem pedir, em via de regresso, o reembolso do montante pago aos lesados, ao abrigo do disposto no artigo 19º, c), do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (diploma então em vigor, depois substituído pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sendo que idêntico direito de regresso se encontra previsto no seu artigo 27º, nº 1, c), em termos bem mais rigorosos para os condutores).

3. O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior – artigos 494º, i), e 497º, nº 2, do CPC.

O artigo 498º prevê os requisitos do caso julgado (como também da litispendência).
Assim, refere o nº 1 que “Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” – nº 2.
“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – nº 3.
“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” – nº 4.

Segundo o nº 1 do artigo 671º do CPC (redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, ainda aqui aplicável), “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 497º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro. Têm o mesmo valor que esta decisão os despachos que recaiam sobre o mérito da causa”.

“A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: (…)” – artigo 673º do CPC.

Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão com trânsito (cfr. artigo 677º) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.

Como diz RODRIGUES BASTOS (Notas ao Código de Processo Civil, 3ª edição, pág. 199), citando MANUEL ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, I, pág. 28), “O caso julgado material «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».”.

Adiante (pág. 200), refere RODRIGUES BASTOS:
“Esta força obrigatória reconhecida ao caso julgado material repousa essencialmente na necessidade de assegurar estabilidade às relações jurídicas, não permitindo que litígios, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, se repitam indefinidamente, em prejuízo da paz jurídica, que ao Estado, como defensor do interesse público, compete assegurar. E é pela imposição, aos litigantes, desse comando jurídico indiscutível, que constitui a decisão transitada sobre o mérito da causa, que o Estado prossegue essa finalidade.”.
 
Para além do caso julgado que constitui, assim, um obstáculo a uma nova decisão de mérito, há igualmente que atender à autoridade do caso julgado, a qual tem antes o efeito positivo de impor a decisão.

Efectivamente, há decisões que têm autoridade – valendo, assim, como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo.

A expressão “limites e termos em que julga”, constante do artigo 673º, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou dos pedidos formulados na acção.

Vistas as coisas na perspectiva do respeito pela autoridade do caso julgado, ou seja, da aferição do âmbito e dos limites da decisão (“termos em que a sentença julga” – artigo 673º do CPC), tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – que é o problema dos limites objectivos do caso julgado –, temos de reconhecer que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.

Efectivamente, a decisão não é mais nem menos do que a conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem – precisamente, os fundamentos – e aos quais se refere.

Como diz M. TEIXEIRA DE SOUSA (“Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579), “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

            Por seu lado, “a extensão objectiva do caso julgado comede-se ainda – antes de mais nada – pelo próprio teor da decisão. Se ela não estatuir de modo exaustivo sobre a pretensão do autor (o thema decidendum), não excluindo, portanto, toda a possibilidade de uma outra decisão útil, essa pretensão poderá novamente ser deduzida em juízo” (cfr. MANUEL DE ANDRADE, obra citada, pág. 324).

O referenciado Conselheiro RODRIGUES BASTOS, após aludir às teses em confronto nesta matéria, refere (obra citada, pág. 201):
“A nós afigura-se-nos, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério eclético, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.”.

Temos, assim, que, caracterizando-se o caso julgado, isto é, a autoridade do caso julgado, pela insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do carácter definitivo decorrente do respectivo trânsito, designadamente por via de recurso, se essa autoridade vem a ser posteriormente colocada numa situação de incerteza, pelas mesmas partes, seja em processos diferentes, seja no mesmo processo, então será possível ocorrer ofensa do caso julgado formado na acção anterior.

Conclui-se, assim – e cingindo-nos a uma situação como a dos presentes autos –, que, definido em acção anterior entre as mesmas partes quem fora o responsável pelo acidente de viação, a questão, uma vez decidida, ficou a ter força obrigatória dentro e fora do processo, não podendo contrariar-se a autoridade do caso julgado (cfr., neste sentido, acórdãos deste STJ de 06.07.1976 e 05.06.1991, in BMJ 259º-180 e 408º-588, respectivamente, citados pela recorrente).

4. Postos estes princípios, não pode deixar de se concluir que, havendo já uma decisão judicial, transitada em julgado, que considerou que o aqui Réu BB foi o culpado do acidente em causa nos presentes autos e que tal acidente ocorreu por influência do grau de alcoolemia de que ele era portador (2,04 g/l), a mesma tem de ser acatada no presente processo.

Na verdade, o objecto deste tipo de acções é essencialmente o apuramento da responsabilidade pela produção do acidente, de forma a que daí se possa partir para a definição de quem poderá ter direito a ser indemnizado pelos danos sofridos na sequência do sinistro.
Trata-se de um antecedente lógico para que o tribunal fique habilitado a julgar ou não procedente qualquer pedido de indemnização deduzido no respectivo processo.

Logo, a decisão tomada sobre esse objecto vincula o tribunal em qualquer outro processo que, entre as mesmas partes, possa surgir, relativamente ao mesmo acidente.

Infere-se, assim, de todo o exposto que a decisão tomada no processo cuja certidão foi junta aos autos pela aqui recorrente tem de ser aqui atendida.

IV – Perante isto, fácil é concluir que a presente acção tem de proceder.          

À presente acção, reportada a acidente de viação ocorrido em 20 de Agosto de 2004, aplica-se o regime constante do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, em vigor à data do acidente, e não o Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que revogou aquele diploma.

Dispõe o artigo 19º, alínea c), do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, que, satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso designadamente contra o condutor que tiver agido sob a influência do álcool.

Assim, para poder exercer o direito de regresso, a seguradora, que pagou indemnização a terceiros, tem de demonstrar que houve um acidente causado pelo condutor do veículo seguro e que o condutor agiu sob o efeito do álcool.

         Tal demonstração mostra-se feita.

         Está, pois, provado o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002, publicado na I Série do Diário da República, de 18 de Julho, segundo o qual “A alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”). 

Terá, assim, de revogar-se o acórdão recorrido, decidindo-se pela procedência da acção.

V – 1. Vejamos agora a questão da litigância de má fé.

Segundo o nº 1 do artigo 456º do CPC, “Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”.
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.” (nº 2 do mesmo artigo).

O CPC consagra expressa expressamente o dever de boa fé processual como modo de actuação das partes, declarando-as vinculadas ao cumprimento do dever de cooperação – artigos 266º e 266º-A –, aí se incluindo o dever de probidade.
As condutas que o violem, de forma grave, com dolo ou negligência, são sancionadas no citado artigo 456º.

Verifica-se, pois, que, a par da violação dos deveres processuais, consubstanciada nas condutas tipificadas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 456º, a lei exige que a parte tenha agido com culpa nas modalidades de dolo ou negligência grave.
Remete-nos, assim, para o campo da responsabilidade subjectiva: a parte age com má fé se sabe que não tem razão ou se descurou completamente a ponderação da sua conduta, acabando por alegar factos não verdadeiros ou obstar à normal composição do litígio.
Comportando-se a parte em tais termos, pratica um acto ilícito, a que a lei faz corresponder, simultaneamente, uma acção penal (multa) e, se requerida, uma sanção civil (indemnização).
A alegação de factos contrários à verdade conhecida pelo responsável pela alegação, quando esses factos sejam intencionais e predeterminados em relação aos fins prosseguidos, não pode deixar de considerar-se dolosa.

No caso dos presentes autos, aquando da apresentação da sua contestação, o Réu defendeu-se, alegando factos que vieram a ser contrariados pelo julgamento da outra acção (por exemplo, que o outro veículo estava parado sem as luzes de presença e que não havia iluminação pública no local).
Nos presentes autos, quando, em 07.06.2009, o Réu apresentou as suas alegações de recurso da sentença que, julgando procedente a acção, o condenou a reembolsar a Autora da quantia despendida com indemnizações aos lesados, já havia transitado em julgado, no outro processo, a decisão que o culpara do acidente e que considerara que o mesmo se devera ao álcool, mostrando-se a factualidade aí apurada, relativamente à dinâmica do acidente, bem diferente da que foi alegada pelo Réu no presente processo, na ânsia de se subtrair à responsabilidade de pagar à aqui Autora os montantes liquidados aos lesados CC, DD e EE.

Decorre, assim, que o comportamento do Réu é altamente censurável, pois faltou consciente à verdade, afirmando factos que sabia não serem verdadeiros.

Litigou, pois, manifestamente de má fé.

2. Tendo o presente processo sido instaurado em 2007, o regime a aplicar é o resultante das normas do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de Dezembro.
Assim, a multa tem os seguintes limites: 2 UC a 100 UC – artigo 102º, a).  

Tendo em conta o descrito comportamento do Réu, antolha-se-nos equilibrado fixar o montante da multa em 15 UC.

Não há aqui lugar à fixação de indemnização a favor da Autora, dado que a mesma não foi requerida.
 
VI – Nos termos expostos, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e em decidir, com fundamento na mencionada autoridade do caso julgado, fazer prevalecer a decisão proferida na 1ª instância, julgando-se, assim, a acção procedente, por provada, e condenando-se o Réu no pedido.
Mais se condena o Réu, como litigante de má fé, na multa de 15 UC.
  
Custas, aqui e nas instâncias, a cargo do Réu.
          


Lisboa, 12 de Julho de 2011

Moreira Camilo (Relator)
Paulo Sá
Garcia Calejo