Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5636/21.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE DELIBERAÇÃO DE CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 30.º DO CPC
ARTIGOS 289.º; 1418.º, 1, B); 1427.º, 1; 1428.º, 1; 1429.º, 1; 1429.º-A; 1433.º, 6; 1436.º, I) E 1437.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I- O disposto no nº 6 do artº 1433 do C.C. deve ser interpretado como referindo-se ao conjunto dos condóminos que integram o condomínio, por caber a estes o interesse em contradizer a impugnação da deliberação tomada em assembleia de condóminos, uma vez que a deliberação enquanto não for anulada vincula todo o condomínio e não apenas os condóminos que a aprovaram e a decisão que se pronuncie sobre a impugnação decide definitivamente a questão em relação a todos.

II-Deve considerar-se parte legítima numa acção visando a impugnação de uma deliberação, o condomínio representado pelo seu administrador (artsº 1437, nº1, do C.C. e 12, al. e), do C.P.C.), por o objecto destas acções se conter no âmbito dos poderes do administrador (artº 1436, al. i) do C.C.).

Decisão Texto Integral:

Proc. nº  5636/21.3T8CBR-A.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra- Juízo Local Cível de Coimbra-J....

Recorrente: AA

Recorrido: Condomínio do Prédio A..., ... ...

Juíza Desembargadora Relatora: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                         Luiz Falcão de Magalhães

                                                          


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ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

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RELATÓRIO


AA, instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra Condomínio do Prédio A..., ... ..., pedindo que seja declarada a:

1 – Nulidade da deliberação constante da Acta da Assembleia de Condomínio supra referenciada sob o art. 7º, por haver sido tomada em violação dos preceitos imperativos do art. 1425.º, n.º 1 e 1419.º, n.º 1, do CC, ex vi do art. 294.º, do CC;

2 - Quando assim se não entenda, o subsidiariamente, a anulação da mesma deliberação por através da mesma se pretender realizar obra de inovação que prejudica ostensivamente a utilização e fruição da fracção autónoma ..., propriedade do A. e sua mulher;

3 – A condenação do Condomínio no reconhecimento da mencionada nulidade, ou, subsidiariamente da peticionada anulação, com todas as consequências legais.


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Deduzida contestação, pelo R. Condomínio, veio este invocar a sua ilegitimidade, considerando que nos casos de impugnação de deliberações de assembleia de condóminos, a acção tem que ser intentada directamente contra os condóminos, embora a citação possa ser feita na pessoa do Administrador ou de representante especial, nos termos previstos no art.º 1433.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.

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Exercido o contraditório, veio o Tribunal a quo, a julgar o R. parte ilegítima, considerando que apenas tem legitimidade numa acção para anulação de deliberações do condomínio os condóminos que a hajam aprovado, nos termos previstos no artº 1433, nº6, do C.P.C., por serem quem tem interesse directo em contradizer.

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Não se conformando com esta decisão, dela apelou o A., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

CONCLUSÕES:

1ª – A sentença recorrida enferma de erro de julgamento e consequentemente, de interpretação do art. 1433.º, n.º 6, do CC,

2ª – Ao considerar que falta ao o R. Condomínio do Prédio A..., ... ..., representado pelos seus administradores, BB e CC, a legitimidade passiva para estarem em juízo;

3ª – O Recorrente procede a uma interpretação actualista do art. 1433.º, n.º 6, do CC, considerando que não devem ser demandados os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada;

4ª – A interpretação que se faz do preceito central aqui em discussão baseia-se no art. 9.º, n.º 1, do CC.

5ª – Por todos os argumentos expostos de forma desenvolvida no capítulo que antecede e aqui sucintamente se reproduzem:

6ª – A deliberação tomada pela assembleia de condomínio diz respeito a uma parte comum do prédio, concretamente, o logradouro onde se pretende construir um estacionamento,

7ª – Pelo que, nos termos do art. 1437.º, n.º 2, do CC tem legitimidade para ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício,

8ª – O que, aliás, já decorria do n.º 1 do mesmo preceito e é uma das suas funções, nos termos do disposto no art. 1436.º, al. h).

9ª – E isto porque, o que se pretende impugnar é a deliberação que “exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

10ª – Bem como, deste modo evitam-se os problemas que poderão decorrer de demandar cada um dos condóminos que votou favoravelmente a deliberação,

11ª – Um dos quais porque da acta da qual consta a deliberação impugnada, não constam os elementos que permitam demandar os condóminos que a votaram favoravelmente, designadamente que permita cumprir o estipulado no art. 552.º, n.º 1, al. a), do CPC.

12ª – Por outro lado, porque não tem o A. obrigação de conhecer quem são os seus vizinhos, nem tão pouco tem a administração do condomínio legitimidade para fornecer esses dados, relativos a terceiros;

13ª – Outro dos argumentos no sentido da tese por nós defendida prende-se com a evolução legislativa verificada quanto à extensão da personalidade judiciária do condomínio, concretamente o art. 12.º, al. e), do CPC;

14ª – Sendo que, o art. 1433.º, n.º 6, do CC foi introduzido no nosso sistema jurídico quando aquela extensão da personalidade judiciária ainda não existia – concretamente foi introduzida com o DL n.º 267/94, de 25 de Outubro;

15ª – Este nosso entendimento encontra também acolhimento no art. 223.º, n.º 1, do CPC;

16ª – Assim, por todo o conjunto de normas jurídicas invocadas, entendemos que a posição que será de sufragar, pela necessária coerência do sistema jurídico terá de ser uma interpretação actualista do art. 1433.º, n.º 6, do CC, resultando que de onde se lê, “A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções (…)”,

17ª – Deverá passar a ler-se, “A representação judiciária do condomínio contra quem são propostas as acções compete ao administrador (…)”;

18ª – Interpretação esta de acordo com o art. 9.º, n.º 1, CC, como não poderia deixar de ser, que, contudo, o Tribunal a quo não fez e, consequentemente, violou-a;

19ª – Até porque, em termos práticos, uma ou outra solução traduzir-se-á sempre na representação do condomínio pelo administrador – segundo a nossa posição,

20ª – A representação dos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação através do administrador;

21ª – Assim, a acção de anulação de deliberação da assembleia de condóminos deve ser instaurada contra o condomínio, por só ele ter legitimidade passiva, representado pelo (s) respectivo (s) administrador (ers),

22ª – Conforme foi efectuado pelo A., nos presentes autos, ao contrário da interpretação efectuada pelo tribunal a quo na sentença recorrida.

Por tudo o exposto,

Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que:

- declare a legitimidade passiva do R. Condomínio do Prédio A..., ... ... e, consequentemente, dos RR., administradores, nas pessoas de BB e CC, nos termos do art. 1433.º, n.º 6, do CC,

Como se requer e é de INTEIRA JUSTIÇA.”

 


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Foram interpostas contra-alegações pelo R., pugnando pela manutenção do decidido.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos dos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, a única questão que importa decidir, consiste em saber

-a quem se mostra deferida a legitimidade passiva em acção intentada com vista à declaração de nulidade/anulação de uma deliberação tomada em assembleia de condóminos.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório acima elaborado.

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


O objecto do recurso incide sobre a vexata quaestio de saber quem deve ser considerado parte legítima, do lado passivo, em acção que visa a declaração de nulidade ou de anulação de uma deliberação tomada em assembleia de condóminos.

Vexata quaestio porque incidindo sobre matéria que durante muitos anos dividiu opiniões, defendendo uma parte da doutrina e jurisprudência, a legitimidade passiva dos condóminos que aprovaram a deliberação impugnada, com fundamento no teor literal do artº 1433 nº6 do C.P.C., embora representados estes pelo administrador, não faltando de entre estes quem defendesse que os próprios condóminos poderiam apresentar a sua defesa, pois que não se mostravam diminuídos na sua capacidade judiciária; outra parte que a expressão “condóminos” referido no nº 6 do artº 1433 do C.C. só se poderia referir ao conjunto dos condóminos, ou seja, ao condomínio integrado pela universalidade dos condóminos, este sim representado obrigatoriamente pelo seu administrador, cabendo assim a legitimidade passiva ao condomínio. É esta última a posição que tem merecido, actualmente, o acolhimento quase unânime da doutrina e da jurisprudência, quer para as deliberações nulas, quer para as anuláveis. Não é a sanção aplicável ao vício que afecta esta deliberação que define a legitimidade do lado passivo, ao contrário do que acontece do lado activo.

A lei fere com a nulidade as deliberações tomadas em assembleia de condóminos que violem preceitos de natureza imperativa e infrinjam normas de interesse e ordem pública, nomeadamente as previstas no artº 1427, nº1, 1428, nº1 e 1429, nº1 do C.C., nulidade que pode ser arguida a todo o tempo por qualquer interessado, conforme resulta do disposto no artº 289 do C.C.

Por sua vez, são anuláveis as deliberações que, tomadas em matéria da competência da assembleia de condóminos, ou seja, respeitantes às áreas comuns do edifício, sejam contrárias à lei (e não sejam causa de nulidade) que afectem o conteúdo ou o procedimento nela descrito, ou que sejam contrárias a regulamento anteriormente aprovado que discipline o uso, fruição e conservação das partes comuns (arts. 1418.º, n.º 1, al. b), 1429.º-A do CC), seja o vício de conteúdo, seja de procedimento. Incluída a sua impugnação no âmbito do disposto no artº 1433 do C.C., só podem ser anuladas a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado e nos prazos apertados definidos neste preceito.

Em qualquer caso, se a lei nos indica expressamente a quem pertence a legitimidade activa para obter a declaração de nulidade (qualquer interessado) ou anulação de uma deliberação (qualquer condómino que a não tenha aprovado), em relação à parte contra a qual deve ser dirigida a pretensão, não efectua essa indicação expressa.

Diz-nos apenas no nº 6 do artº 1433 do C.C., que rege sobre a anulação das deliberações, que a “representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito.” Embora a respeito da representação judiciária dos condóminos, retira-se do elemento literal deste preceito que a parte contra quem são propostas as acções são estes condóminos.

De acordo com este elemento literal, a legitimidade passiva nestas acções radicaria nos próprios condóminos que votaram favoravelmente a deliberação, embora representados pelo administrador ou, quando o impugnante seja o administrador ou este, sendo condómino, tenha votado em sentido desconforme, a pessoa que a assembleia designar para este efeito. Era esta aliás, a posição defendida pela ora Relatora, fundada nos ensinamentos de Moitinho de Almeida[3] e de Abílio Neto[4] por entender que deste preceito resultava deferida expressamente a legitimidade passiva aos condóminos que tinham votado favoravelmente a deliberação, os únicos com interesse em contradizer.

A este respeito defendia Abílio Neto, (ob. cit. pág. 731) que as “acções destinadas a apreciar a validade ou a eficácia das deliberações tomadas pelos condóminos em assembleia geral reportam-se à formação da vontade no âmbito interno deste órgão, seja quanto ao objecto, seja quanto à forma, cujo resultado dimana do sentido do voto expresso por cada um dos condóminos participantes, nada tendo a ver com as competências do administrador, enquanto órgão executivo. É isso que explica que só sejam demandados os condóminos que contribuíram de forma clara e positiva, através do voto, para o resultado que se tem por inválido, sem curar de todos os demais cujo comportamento em nada contribuiu para aquele resultado.”

No entanto, em contraponto, Aragão Seia[5], defendia que a legitimidade passiva cabia ao condomínio, “pois a decisão judicial que anule a deliberação é oponível ao condomínio, integrado por todos os condóminos.” São então, para este autor, o conjunto destes condóminos os “titulares do interesse directo em contradizer, pois a deliberação enquanto não for anulada vincula todo o condomínio; a impugnação que julgar procedente a impugnação continua a vinculá-lo. É por isso que o nº 6 impõe que a representação judiciária dos condóminos compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia nomear para o efeito.”

Em sentido concordante Sandra Passinhas[6], defende que “A deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados ou dos que aprovaram a deliberação). E, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador”, melhor dizendo ao condomínio, embora representado pelo seu administrador.

Por sua vez Miguel Mesquita[7], confrontado com o elemento literal deste preceito, veio defender a necessidade de uma interpretação actualista da aludida norma, por entender que a norma constante do artº 1433, nº6 do C.P.C., “foi redigida numa época em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte activa ou passiva num processo cível. A causa dizia respeito ao condomínio? Pois bem, tornava-se indispensável a intervenção, do lado activo ou do lado passivo, de todos os condóminos.

Só muito mais tarde, a Reforma processual de 1995/1996 veio estender, no art. 6.º, alínea e), a personalidade judiciária ao condomínio. E o art. 231.º, n.º 1, cuja redacção deriva da mesma Reforma, acrescentou que o condomínio é citado ou notificado na pessoa do seu legal representante (o administrador).” Nesta medida, considera este autor necessário substituir a “expressão condóminos pela palavra condomínio.”

Há que dizer, no entanto, que a redacção reconhecidamente infeliz deste preceito, podendo encontrar justificação no facto de quando adoptada, o condomínio não gozar de personalidade judiciária, se manteve inalterada, desde a redacção inicial do D.L. nº 47344/66 de 25/11, que aprovou o Código Civil até à data, apesar de ter sido estendida a personalidade judiciária ao condomínio para as acções integradas nos poderes do administrador (cfr. artº 6, al. e), do C.P.C. na redacção introduzida pelo D.L. 329-A/95 de 12 de Dezembro) e da polémica que esta redacção tem suscitado, quer quanto à posição que entende que deste preceito resulta a indicação da parte legítima do lado passivo e não apenas a sua representação, face ao (também ele infeliz) normativo contido no artº 1437 do C.C. que sob a epígrafe da legitimidade regulava afinal a capacidade processual[8], quer quanto à interpretação do termo “condóminos contra quem são propostas as acções”.

E, inexplicavelmente, não se alterou esta redacção nos sucessivos diplomas que vieram alterar o regime da propriedade horizontal, a última das quais, introduzida pela Lei nº 8/2022 de 10/01 e que, introduzindo alterações ao artº 1437, nenhuma introduziu ao artº 1433, nomeadamente ao seu nº 6. A controvérsia existente impunha que o legislador clarificasse de vez esta redacção enviesada e pacificasse esta questão, esclarecendo contra quem deveriam ser intentadas estas acções: se contra os condóminos que as aprovaram, caso em que reconhece-se não faria sentido serem estes representados pelo administrador pois que dotados de personalidade judiciária; ou se contra o condomínio, sendo certo que a sua representação se mostrava já resolvida pela alteração aos artsº 1436 e 1437 do C.C.  

Com efeito, o artº 1437 do C.C., cuja epígrafe deixou de ser “legitimidade do administrador para passar a ser “representação do condomínio em juízo”, veio afirmar, apesar da sua redacção também ela muito infeliz, que a representação do condomínio em juízo cabe sempre ao seu administrador, o qual pode agir em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos. (nº2).[9]

Embora decorra da exposição de motivos do Projecto Lei 718/XIV/2 (publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, de 5/3/2021) que deu origem à Lei nº 8/2022, que se visava por termo à controvérsia existente sobre a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial em que em causa estivessem questões respeitantes às áreas comuns, na realidade a redacção introduzida ao artº 1437 do C.C. deixa intocada a necessidade de interpretação deste preceito, no sentido de resolver a questão da legitimidade passiva nas acções visando a impugnação das deliberações de condomínio, pois que outras existem em que do lado passivo deve estar o condomínio e em que não se coloca em causa a sua legitimidade, mas antes e apenas a sua representação. Foi aliás esta questão, tendo em conta que a anterior redacção deste preceito tratava da legitimidade do administrador, como se fosse parte, em vez de representar o condomínio, esse sim a parte, que esta alteração veio alegadamente, resolver, deixando intocado o artº 1433 e, nomeadamente o seu nº 6.

Mantém-se assim a necessidade de interpretação deste preceito, necessidade que não foi resolvida pela Lei 8/2022. Conforme refere acertadamente o Ac. do TRL de 27/10/2022[10] a necessidade de tal interpretação não deixa de se verificar pela entrada em vigor das alterações decorrentes da Lei 8/22, de 10/1, na exacta medida em que tal diploma não alterou a redacção do referido art.º 1433º do Código Civil (desde logo o seu nº 6), mas apenas (no que aqui releva) a redacção do art.º 1437º do Código Civil, para que este preceito legal não mais se referisse à representação em juízo do condomínio (isto é, à sua capacidade judiciária) como se se tratasse do pressuposto da legitimidade processual do seu administrador. Aliás, por isso é que o legislador substituiu a epígrafe “legitimidade do administrador” pela epígrafe “representação do condomínio em juízo”, na medida em que deixou (há muito) de estar em causa que o condomínio não pudesse estar em juízo (activa ou passivamente), enquanto conjunto organizado dos condóminos e, por isso, carecendo de ser estabelecida a sua representação orgânica, em juízo.

No entanto, se o legislador falhou mais uma oportunidade de alterar e tornar claro este preceito, das alterações ao artº 1436 e 1437 resultaram apesar de tudo, contributos que nos auxiliam na interpretação do sentido da expressão “condóminos contra quem são intentadas as acções”. Quem são afinal estes condóminos? Apenas os que aprovaram as deliberações impugnadas? A universalidade dos condóminos, ou seja, o condomínio?

A alteração efectuada ao artº 1437 do C.C., vem esclarecer, embora a propósito da representação do condomínio, duas questões: o condomínio pode demandar e ser demandado e a sua representação cabe ao administrador no exercício das funções que lhe competem, ou seja, porque o condomínio nos termos previstos no artº 12, al. e) do N.C.P.C. tem personalidade judiciária naquelas acções que se insiram no âmbito dos poderes, das funções do administrador, segue-se que este é parte legítima em todas as acções que visem estas matérias - as descritas no artº 1436 do C.C., ou as atribuídas por mandato da assembleia (na redacção introduzida pela Lei 8/2022) - e não (alguns) dos condóminos ou o próprio administrador.

Conforme refere Gonçalo Magalhães[11]O legislador, ciente de que o condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, dota-o de organicidade e, muito embora não lhe atribua personalidade jurídica, admite que ele pode ser parte nas acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.

3. A medida da personalidade judiciária do condomínio coincide, portanto, com a das funções do administrador — ou seja, as acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador devem ser intentadas por (ou contra o) condomínio. Fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio.”

A resposta à questão de saber a quem cabe a legitimidade passiva nas acções que visem a anulação ou declaração de nulidade das deliberações do condomínio, resolve-se pela resposta à questão de saber quem tem interesse em contradizer e pela medida da personalidade judiciária atribuída a este condomínio: as matérias incluídas no âmbito das funções do administrador.  

Entre estas funções consagra este preceito legal, na sua alínea i), que se incluem a execução das “deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada;”

As deliberações não impugnadas, conforme referia Aragão Seia, vinculam todo o condomínio, integrado pela universalidade dos condóminos, incluindo os que votaram contra estas deliberações, se abstiveram ou até os que não participaram na votação. Se, como refere o Tribunal a quo, “o lado passivo da instância terá de ser integrado pelos condóminos perante os quais o condómino autor pretende que se produzam os efeitos da impugnação da deliberação da assembleia”, temos de concluir que estes efeitos se produzem na esfera jurídica da universalidade dos condóminos.

A decisão que anula ou declara nula, uma deliberação do condomínio é vinculativa para a universalidade dos condóminos, não podendo ser executada, nem invocada por qualquer condómino; não sendo estas impugnadas ou improcedendo a impugnação, deve o administrador do condomínio proceder à sua execução.

Neste sentido, conforme defendido em Acórdão proferido nesta Relação pelo ora 2º adjunto, em 23/02/2021[12], se ao administrador “cabe executar as deliberações da assembleia de condóminos (artigo 1436º, alínea h), do Código Civil), por igualdade de razão cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.

Acresce ainda um argumento que se nos afigura decisivo apontado em Ac. do TRP de 13/02/2017[13], proferido ainda antes da alteração efectuada ao artº 1437 do C.C. e que constitui um contributo importante para o esclarecimento do teor do artº 1433, nº6, do mesmo diploma legal. A incongruência resultante de pretendendo o legislador referir-se neste preceito apenas aos condóminos que aprovaram estas deliberações, estes carecerem “de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas total ou parcialmente de capacidade judiciária ou relativamente a entidades coletivas, nos termos que a lei ou respetivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas coletivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência”.  Por esta razão, conclui-se neste acórdão que terá havido uma incorrecção da expressão utilizada pelo legislador, e que se afinal “a deliberação exprime a vontade da assembleia de condóminos, estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação”.

Na realidade sempre foi este o busilis da questão para aqueles que, como a ora Relatora, entendiam que se justificava a demanda dos condóminos que tinham votado (favoravelmente) a deliberação, não existindo uma verdadeira justificação para a restrição da sua capacidade judiciária, restrição que apenas se justifica em relação ao condomínio.

Questão a que em bom rigor nunca encontrámos resposta cabal pois que a posição que defendia que os condóminos demandados poderiam contestar isoladamente, permitindo a lei, não obstante, que o administrador representasse todos os demandados, não só não era consentânea com a exigência de representação contida neste preceito, como da apresentação de contestação por este administrador, resultava, não raras vezes, posições divergentes e litígios entre os alegadamente representados e o seu representante.

Assim sendo, este argumento em conjunto com o que resulta da alteração constante do artº 1437 do C.C. e a consideração do teor dos artºs 12, al e), do C.P.C. e 1436, al. i), do C.C. leva-nos a considerar uma posição consentânea com o entendimento de que a legitimidade passiva nestas acções deve caber ao condomínio, e que este condomínio cabe no âmbito definido pelo artº 1433, nº6 do C.C. e é conforme à noção de parte legítima constante do artº30 do C.P.C.

Nesta medida, revendo agora a nossa anterior posição, entendemos efectivamente que o artº 1433, nº6, do C.C., deve ser interpretado como referindo-se ao conjunto dos condóminos que integram o condomínio, por caber a estes o interesse em contradizer, incluídas estas acções no âmbito das funções do administrador, conforme decorre da previsão contida na alínea i) do artº 1436 do C.C., sendo assim parte legítima nos presentes autos, o condomínio representado pelo seu administrador.      

É também a posição unânime seguida actualmente no nosso Supremo Tribunal de Justiça, conforme resulta dos Acórdãos de 24/11/2020[14], 04/05/2021[15], de 25/05/2021[16], posição a que aderimos por corresponder à melhor interpretação desse preceito. 

Assim sendo, acordam os juízes que constituem este tribunal em revogar a decisão proferida, substituindo-a por outra que considera a R. parte legítima nos autos e ordena o seu prosseguimento se nenhuma outra razão processual ou de mérito a tal obstar.


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DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão proferida, julgando a R., Condomínio do Prédio A..., parte legítima nos autos.
Custas pelo apelado (artº 527 nº1 do C.P.C.)


                                                           Coimbra 30/05/2023





[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] MOITINHO DE ALMEIDA, L.P., Propriedade Horizontal, Almedina, 3ª edição, págs. 115.
[4] NETO, Abílio, Manual da Propriedade Horizontal, Ediforum, 4ª edição, 2015.
[5] ARAGÃO SEIA, Jorge Alberto, Propriedade Horizontal, Almedina, 2ª ed., pág. 216/190.
[6] PASSINHA, Sandra, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina, 2.ª edição, pág. 356.
[7] MESQUITA, Miguel, “A Personalidade Judiciária do Condomínio nas Acções de Impugnação de Deliberações da Assembleia de Condóminos”, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Setembro 2011, pág. 54.
[8] Como assinala MAGALHÃES, Gonçalo Oliveira, “A PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DO CONDOMÍNIO E A SUA REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO”, Revista Julgar, nº 23, 2014, pág. 64 “no art. 1437.º o legislador não trata da legitimidade processual, no sentido da legitimidade ad causam, até porque a legitimidade, que consiste no interesse directo em demandar ou em contradizer, consoante se trate de legitimidade activa ou passiva, respectivamente, é um pressuposto processual que só em concreto pode ser determinado. A norma respeita à legitimatio ad processum, ou seja, à capacidade processual.”

[9] Embora como assinala TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, em anotação a um Ac. da Relação de Lisboa de 10/11/2022 (1000/22.5T8OER.L1-2), em artigo denominado “A aplicação "por metade" do n.º 1 do art. 1437.º CC”, Blog do IPPC, a redacção deste preceito pode conduzir a duas interpretações incompatíveis: “a primeira metade do art. 1437.º, n.º 1, CC é incompatível com sua a segunda metade, e vice-versa. No fundo, a primeira metade atribui ao administrador a qualidade de representante do condomínio e a segunda a de substituto processual desse condomínio. É escusado dizer que estas qualidades são mutuamente incompatíveis: o administrador ou está como representante do condomínio (que é a parte demandante ou demandada) ou está como como parte demandante ou demandada e, portanto, como substituto processual do condomínio (que, neste caso, é a parte substituída não presente na acção). É por isso que, como se afirmou no referido comentário, há que escolher entre aplicar apenas a primeira ou apenas a segunda parte do disposto no n.º 1 do art. 1437.º CC. Afirmar que, como resulta da sua primeira parte, o condomínio é um demandante ou demandado representado pelo administrador e que, como decorre da sua segunda metade, este representante deve demandar e ser demandado em nome daquele condomínio é não só uma impossibilidade processual (o representante nunca pode demandar ou ser demandado), como, a ser tomado à letra o preceito, significa que se constitui um litisconsórcio necessário (!) entre o condomínio demandante ou demandado e o administrador igualmente demandante ou demandado.” Cremos, no entanto, que a melhor interpretação deste preceito reclama a primeira solução, não resultando de nenhum elemento interpretativo e resultando aliás o seu contrário da exposição de motivos, que tenha sido intenção do legislador que o administrador actuasse como um substituto processual do condomínio.
[10] Proferido no proc. 2131/21.4T8AMD.L1-2, de que foi relator António Moreira, disponível in www.dgsi.pt.
[11] MAGALHÃES, Gonçalo Oliveira, “A PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DO CONDOMÍNIO E A SUA REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO”, ob. cit. págs. 61/62.
[12] Proferido no proc. nº 146/19.1T8NZR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Proferido no proc. n.º 232/16.0T8MTS.P1, de que foi relator Carlos Gil, disponível in www.dgsi.pt.
[14] Proferido no proc. 23992/18.9T8LSB.L1.S1, de que foi relator Raimundo Queiroz., disponível in www.dgsi.pt
[15] Proferido no proc. nº 3107/19.7T8BRG.G1.S1, de que foi relator Fernando Samões, disponível in www.dgsi.pt.
[16] Proferido no proc. nº 7888/19.0T8LSB.L1.S1, de que foi relatora Maria Clara Sottomayor, disponível in www.dgsi.pt.