Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2906/08.0PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 456º, DO C. PROC. CIVIL
Sumário: Não é aplicável ao processo penal a norma do art.º 456º, n.ºs 1 e 2, do C. Proc. Civil.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 3.º Juízo Criminal de Coimbra, após julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, foi proferida, em 13 de Janeiro de 2011, sentença na qual foi decidido:

• Condenar o arguido A..., devidamente identificado nos autos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à razão diária de €:6,50;

• Condenar o arguido a pagar ao demandante civil HUC a quantia de €: 375,60, a título de indemnização pelos danos patrimoniais por este sofridos, acrescida de juros moratórios a contar da notificação do demandado para contestar o pedido de indemnização civil deduzido e até efectivo e integral pagamento;

d) Condenar o arguido a pagar ao demandante civil ISS/IP - Centro Distrital de Coimbra a quantia de €: 1292,09, acrescida de juros moratórios contados desde a notificação do demandado para contestar o pedido de indemnização civil deduzido e até efectivo e integral pagamento.


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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

A) Do decurso da audiência de julgamento não resultou provado o facto de ter sido o arguido a praticar o crime em causa, o que pode ser sustentado pelos depoimentos do arguido e testemunhas B..., C..., e certidões emitidas pelo serviço de recursos humanos dos HUC, não assentando a sentença proferida em prova irrefutável e de modo a não deixar qualquer dúvida acerca da sua justeza/legalidade, sendo pelo contrário uma decisão de pura convicção.

B) Aliás, resulta do próprio depoimento da Assistente e das declarações do ora Recorrente, que a mesma apenas o reconheceu na própria sala de audiência e julgamento.

C) Quanto à testemunha da acusação D..., quanto à identificação do arguido enquanto agressor da assistente, sempre se dirá que o depoimento do mesmo não credível, atentas as circunstâncias de facto no local, e que põem em causa o grau de certeza da identificação do agressor, e no consequente grau de certeza numa condenação, o que não existiu.

D) O depoimento das testemunhas B... e C... foi isento, sério e credível, e coincidente; logo, deveria ter sido objecto de apreciação e valoração por parte do Tribunal a quo, o que não sucedeu, tendo a Mma. Juiz a quo alicerçado a sua falta de convicção no facto de serem colega e chefe de serviço do ora Recorrente, quando estas afirmaram, sem qualquer sombra de dúvida, que o dia dos factos coincidiu com o 8.º dia útil do mês, dia este em que existe um acréscimo da actividade laboral no serviço, sendo muito difícil haver uma ausência do local de trabalho.

E) Atento o intenso volume de trabalho, seria pouco provável que não fosse notada pelos colegas e chefe de serviço a ausência do Recorrente do local de trabalho, mesmo que por breves instantes, que à data o apoiavam a colocar materiais mais pesados atenta a sua lombalgia, diagnosticada duas semanas antes dos factos constantes da acusação.

F) A livre apreciação da prova encerra critérios legais de prova ou limitações como sucede no caso do art. 169.º, do CPP, sendo que o grau de convicção do julgador requerido para a decisão tem como limite a proibição da valoração de certos meios de prova, observância do princípio da presunção da inocência e observação do princípio in dubio pro reo, assim como a experiência comum que não pode ser confundida com um qualquer “lucky guess” do julgador.

G) O Tribunal andou mal ao valorar os depoimentos da assistente e da testemunha D..., que são notoriamente contraditórios entre si, mas como refere a douta sentença, trata-se de um mal-entendido, “... explicável pela emoção com que estas situações são vivenciadas pelas pessoas, pelo próprio funcionamento dos mecanismos de memória e dos efeitos da passagem do tempo nestes mecanismos”, contradições estas que se verificam designadamente, à questão de se apurar se a testemunha efectivamente permaneceu no local até a PSP chegar e tomar conta da ocorrência, bem como a questão de saber se o arguido se dirigiu ao carro a fim de mudar de lugar.

H) A prova documental junta aos autos, na questão dos dois episódios de urgência, é inequívoca e não deixa qualquer margem para dúvidas: no dia dos factos, dia 12 de Novembro de 2008, a assistente teve uma tumefacção no pulso; no dia 04 de Dezembro de 2008, ou seja, passadas mais de três semanas, a mesma padeceu de uma fractura.

I) Ora, é por demais notório, e sem qualquer sombra de dúvida, que o nexo de causalidade entre os factos e a fractura de que padeceu a assistente é inexistente, pelo que, não pode o mesmo ser responsabilizado criminalmente por um facto que não cometeu, por não provado.

J) Foi ainda importante para a formação da convicção do Tribunal o teor do auto de notícia de fls. 2, de onde resulta que, no próprio dia dos factos, foi indicada pela ofendida a matrícula do veículo do agressor, veículo esse de que, conforme resulta do teor de fls. 32, é proprietário o arguido.

K) Conforme se constata da própria acta de audiência de discussão e julgamento, o teor do auto de notícia de fls. 2, bem como o documento de fls. 32 dos autos, não foram analisados nem apreciados em sede de audiência e julgamento, nem os mesmos podiam ser lidos ou autorizados, pelo que a fundamentação da convicção do Tribunal a quo padece de nulidade, nos termos do n.º 9 do art. 356.º do C.P.P.

L) Mesmo que, por mera hipótese académica, se permitisse a audição do teor dos referidos documentos, teria que a mesma ser objecto de prévio acordo do Arguido, ora Recorrente, e constar da própria acta, o que não sucede, nem poderia constar, por não se ter verificado tal formalidade legal, pelo que, a sentença, neste concreto ponto, padece de nulidade, atento os n.ºs 5 e 9 do art. 356.º do C.P.P.

M) A identidade de género e eventual semelhança de compleição física do agressor e do arguido e o erro na identificação do veículo são suficientes para condenar um inocente, que à data dos factos se encontrava a trabalhar, aliás como é seu apanágio.

N) Resulta que não foi o arguido o autor material do crime que lhe é imputado, por insuficiência da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

O) Mesmo que assim não se entenda, e por mera hipótese académica, nunca poderá ser imputada a fractura de que a assistente padeceu à suposta actuação do arguido, atento o enorme lapso de tempo entre as duas idas às urgências dos HUC e inexistência do necessário nexo de causalidade.

P) A sentença ora recorrida assentou, como já se referiu, única e exclusivamente na convicção da Mma Juiz a quo, logo arbitrária, alicerçada num elemento objectivo falível - a identificação de um veículo -, o qual de per se não estabelece o nexo de causalidade adequado necessário à incriminação. A ser assim, um crime praticado com um carro roubado seria imputado ao proprietário da viatura ou, como nos presentes autos, o proprietário de um carro, ao estacionar o seu veículo e este ao ser identificado, é arguido e condenado, quando se encontrava a trabalhar naquele preciso momento.

Q) A livre apreciação da prova em processo penal não se deve confundir com a apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova.

R) Ora ao descredibilizar por completo o depoimento do arguido, bem como não tendo suporte nos depoimentos da assistente bem como nas restantes testemunhas, que atestam, de forma credível e isenta que, atento o volume de trabalho no serviço, era impossível, sem ser notado, pelos colegas e chefe de serviço, que o mesmo se ausentasse do serviço, para mudar o veículo.

S) No que concerne em atribuir a agressão ao arguido, mais não fez a Mma. Juiz a quo do que uma apreciação arbitrária, discricionária e caprichosa da prova produzida, se assim lhe podemos chamar, violando por isso e nunca é demais referi-lo, o princípio da suficiência da prova.

T) Pelo exposto, resulta clara e inequívoca uma manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto (art. 410.º, n.º 2, al. a), do C.P.P), vício que é do conhecimento oficioso do Tribunal de Recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, o que não é o caso.

U) O Tribunal valorou as contradições de depoimentos da assistente e da testemunha D..., não lhes dando importância, quando os mesmos apresentaram contradições inequívocas e graves;

V) Já que, o consagrado a Constituição da Republica Portuguesa no seu artigo 32.º, n.º 2 o principio in dubio pro reo, o qual para alguma doutrina é um princípio geral do processo penal, cuja violação conforma uma autêntica questão de direito e que, como é consabido, estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, deveria tal princípio ter sido aplicado ao caso vertente, pois que tem aplicação ao processo penal sem qualquer restrição.

W) Ao entender-se que, por razões de política criminal, em caso de dúvida, face à alternativa de condenar um eventual inocente ou absolver um eventual culpado, o Estado preferiu entre esta alternativa, absolver o eventual culpado.

X) Não se compreende, de modo algum, como é que um mero facto objectivo (facto de ser proprietário de um veículo) possui a virtualidade de, face a tanta incoerência nos depoimentos da assistente e testemunha, estabelecer o nexo de causalidade adequada com prática de facto relevante para atribuir a culpabilidade ao arguido.

Y) É assim por demais evidente a violação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa, pois em caso de dúvida a decisão devia ter sido favorável ao arguido, ora recorrente.

Por todo o exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada e consequentemente o ora recorrente absolvido da prática dos crimes por que foi condenado e respectivos pedidos de indemnização cível, por verificados os vícios indicados nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal ou, então, caso assim não se entenda, dado cumprimento ao n.º 1 do artigo 426.º, também do Código de Processo Penal, fazendo assim V. Exas. a vossa costumada justiça!


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3. O Magistrado do Ministério Público e a assistente ... responderam ao recurso, conclusivamente nestes termos:
A) Ministério Público:
1. Deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão recorrida.
2. A sentença não incorre em erro de julgamento.
3. Fez uma correcta apreciação da prova e encontra-se devidamente fundamentada.
4. Não foi violado o princípio in dubio pro reo.
5. E não foram violadas normas legais, nomeadamente, dos artigos 125.º, 127.º e 356.º, n.ºs 5 e 9, do Código de Processo Penal, e do artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, negando provimento ao recurso, farão justiça!

B) Assistente:
1. Nenhuma das testemunhas do Arguido afirmou, em audiência de discussão e julgamento, que este se encontrava no seu local de trabalho à hora (14H30M) em que ocorreu a agressão por ele perpetrada contra a Assistente.
2. A documentação junta aos autos pelo Arguido demonstra, contrariamente ao por si alegado, que ele (Arguido) não se encontrava a trabalhar, como dizia, à hora em que ocorreu a agressão, ou seja pelas 14H30M do dia 12/11/2008.
3. A testemunha C..., chefe de serviço do Arguido aquando da agressão em sindicância, disse na audiência de discussão e julgamento que não poderia garantir que no dia 12/11/2008, pelas 14H30M, o Arguido estivesse no local de trabalho, e que não estava recordado se nesse dia ele tinha saído...
4. Não tem qualquer interesse, nem relevo jurídico-processual, a ideia, nunca antes nos autos falada, de que o dia 12/11/2008 era o 8.º dia útil do mês e que, nesse dia, o Arguido terá tido mais trabalho do que o normal. Sendo ou não o dia de maior trabalho para o Arguido, o certo é que pelas 14H30M desse dia 12/11/2008, o Arguido, num parque de estacionamento dos Hospitais da Universidade de Coimbra, fora do seu local de trabalho, agrediu a Assistente.
5. A Assistente reconheceu o arguido na PSP (Auto de Reconhecimento de fls. 44) muito tempo antes da data da audiência de discussão e julgamento, não correspondendo à verdade que só o tenha reconhecido durante o julgamento.
6. A testemunha D... viu a agressão, viu que o agressor tinha saído do carro que acabava de estacionar e anotou a marca do veículo automóvel, o modelo, a cor e a matrícula.
7. Esta testemunha era e é uma autoridade, a prestar serviço na GNR de Anadia, que a tudo assistiu e que aconselhou a Assistente de como deveria proceder, ou seja chamar a polícia e transmitir-lhe a matrícula do carro.
8. Não há qualquer contradição entre os depoimentos da Assistente e da testemunha D... e o que foi dito por ambos na audiência de discussão e julgamento “não tem a virtualidade de retirar a credibilidade de qualquer um destes depoimentos” como referiu a Senhora Juíza “a quo” na douta sentença recorrida.
9. Os exames e relatórios médicos existentes nos autos e que constituem meios de prova, foram, todos, elaborados na sequência da agressão cometida pelo Arguido na pessoa da Assistente.
10. O Arguido, apesar de denunciar vícios nos exames médicos, não apontou qualquer outra causa, diferente da agressão, para a existência de tais exames.
11. O auto de notícia de fls. 2 dos autos foi confirmado, espontaneamente, pela Assistente, sem necessidade de ouvir a respectiva leitura. Ela tinha anotado a matrícula do veículo do arguido, mas disse-a de cor, por apelo à memória.
12. Não houve, pois, a leitura de quaisquer peças dos autos de inquérito, durante a audiência de discussão e julgamento.
13. A Senhora Juíza “a quo”, tendo ponderado toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento e os documentos constantes dos autos concluiu, e bem, pela condenação do Arguido.
14. A sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, nem, verdadeiramente, se descortina qual seja a nulidade que lhe aponta o Arguido.
15. Não há, nunca houve, qualquer confusão ou aproveitamento em função de semelhanças físicas ou erro na identificação do veículo, por parte da Assistente e da testemunha D....
16. Os autos de reconhecimento revelam isso mesmo e, para a realização destes reconhecimentos, foi respeitada toda a tramitação legal exigida.
17. A Assistente reconheceu inequivocamente o Arguido (fls. 44 v. dos autos).
18. Não há qualquer dúvida de que o Arguido foi o autor da agressão cometida na pessoa da Assistente e ora “sub-judice” e que existe nexo de causalidade entre a agressão e a fractura de que padeceu e padece a Assistente.
19. Contrariamente ao referido pelo Arguido, a Senhora Juíza “a quo” justificou a sua decisão e exarou a fundamentação dos factos valorados e dados como provados, como consta do art. 41.º desta resposta que aqui se dá por integralmente reproduzida.
20. O Arguido actuou desde sempre e até ao momento presente com clara má-fé. Ele sabe, tem consciência do crime que cometeu, mas porfia na negação dele. E não olha a meios para o fazer, sendo, até, incorrecto com a Meritíssima Juíza da 1.ª instância.
Termos em que:
1 - Deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Arguido devendo ser confirmada, integralmente, a douta sentença recorrida.
2 - Deve o Arguido, outrossim, ser condenado como litigante de má-fé, pela sua postura processual e consciência da mentira que invoca, em multa e indemnização a favor da Assistente/Ofendida.
3 - Deve o Arguido ser condenado nas custas como for de lei.
Assim farão V.ªs Ex.ªs, como se espera, justiça.
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4. Neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 620/621, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto pugna, de igual modo, pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.


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5. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Assim, o recurso do arguido circunscreve-se ao conhecimento das seguintes questões:

A) Se a sentença recorrida padece de nulidade;

B) Se a sentença contém os erros de julgamento alegados pelo recorrente;

C) Se a sentença está eivada dos vícios previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP;

D) Se a mesma peça processual violou o princípio in dubio pro reo;

E) Se alterada a matéria de facto, em consonância com os desígnios do recorrente, este deve ser absolvido, quer do crime que lhe está imputado na acusação pública, quer dos pedidos de indemnização civil contra si deduzidos.


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2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

Da acusação pública:

1) No dia 12 de Novembro de 2008, pelas 14h30, no arruamento do Hospital da Universidade de Coimbra, o arguido, após uma breve discussão com a ofendida a propósito de um lugar de estacionamento que ambos pretendiam, aproximou-se da ofendida, ..., e deu-lhe um violento empurrão que lhe provocou a queda.

2) Tais agressões provocaram à ofendida dores e traumatismo do punho direito com tumefacção a nível articular, lesões melhor descritas nos relatórios de fls. 7/8 e 74/75, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e que lhe determinaram, directa e necessariamente, 89 dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho profissional.

3) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de agredir fisicamente a ofendida, bem sabendo que tal conduta lhe era proibida e punida pela lei penal.

4) O arguido não tem antecedentes criminais.

5) O arguido trabalha como secretário clínico nos HUC e recebe cerca de €:640,00 por mês em termos líquidos.

O arguido é casado e vive com a mulher e com a filha de ambos, de 6 anos de idade.

A mulher do arguido é esteticista e ganha cerca de €:450,00 por mês.

O arguido e a mulher vivem em casa própria, pagando de prestação mensal do empréstimo contraído para a sua aquisição €:250,00.

Pagam €:150,00 por mês do ATL da filha e pagam ainda a natação da filha.

São donos de um veículo de marca Ford modelo Focus, de 1998 e de um veículo de marca Ford modelo Fiesta, de 1990.

O arguido tem o 12.º ano de escolaridade.

É visto como um bom profissional, bom pai e bom amigo.

Dos pedidos de indemnização civil:

6) Nos dias 12/11/2008 e 4/12/2008, a assistente foi assistida no Serviço de Urgência dos H.U.C. e nos dias 29/12/2008 e 9/2/2009 foi assistida na Consulta Externa do Serviço de Ortopedia D.

7) A assistência médica que foi prestada à ofendida foi originada pelos ferimentos apresentados pela ofendida em virtude da agressão supra referida.

8) A assistência médica causou aos HUC encargos no valor de €:375,60.

9) A assistente é beneficiária da Segurança Social e tem o n.º 11100982401.

10) Em virtude da agressão supra referida a assistente esteve de baixa médica entre o dia 12/11/2008 e o dia 10/2/2009, com o subsídio diário de €:14,67.

11) A Segurança Social pagou à assistente €:1292,09 de subsídio de doença.


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3. Não existindo factos não provados, quanto à motivação da decisão de facto ficou consignado:

Para dar como provados os factos que supra se descreveram, o Tribunal fundou a sua convicção desde logo no teor do depoimento da assistente, que relatou a agressão de que foi vítima de forma coincidente com a factualidade provada. A depoente não teve qualquer dúvida em apontar o arguido como tratando-se do agressor. Tratou-se de um depoimento coerente, circunstanciado, convincente e, por isso, credível.

Tal depoimento, de resto, foi corroborado pelo depoimento da testemunha D...., que a tudo assistiu e que descreveu os factos de forma no essencial coincidente com o relato da assistente. Contou designadamente que, por ter visto que o senhor que agrediu a assistente tinha saído de um carro que acabara de estacionar, de marca Ford, modelo Focus e cor cinzenta, decidiu anotar a matrícula deste veículo, a fim da assistente a poder fornecer às autoridades policiais e assim poder ser identificado o agressor. Disse que aconselhou a assistente a chamar a Polícia e a colocar o seu veículo à frente do referido veículo, “trancando-o” e impedindo-o assim de sair do local. Tratou-se de um depoimento isento, uma vez que a testemunha não conhecia nem a assistente nem o arguido e a tudo assistido por uma mera casualidade. Foi sereno e convicto no depoimento que prestou.

Há que referir que a circunstância da assistente ter contado em audiência de julgamento que esta testemunha lhe disse ter visto o arguido a regressar e a tentar tirar o carro e da testemunha ter negado tê-lo feito não tem a virtualidade de retirar a credibilidade a qualquer um destes depoimentos. Efectivamente, trata-se provavelmente de um mal entendido, de uma má percepção por parte da assistente quanto ao que foi dito pela testemunha  … ., explicável pela emoção com que estas situações são vivenciadas pelas pessoas, pelo próprio funcionamento dos mecanismos de memória e pelos efeitos da passagem do tempo nestes mecanismos. Trata-se, pois, de um pormenor insignificante, insusceptível de abalar a credibilidade destes depoimentos.

Valorado foi ainda o teor dos autos de reconhecimento de fls. 43 e 44, dos quais resulta que, quer a assistente, quer a testemunha Rui, reconheceram o arguido como sendo o agressor em causa nos autos.

Foi ainda importante para a formação da convicção do Tribunal o teor do auto de notícia de fls. 2, de onde resulta que no próprio dia dos factos foi indicada pela ofendida a matrícula do veículo do agressor, veículo esse de que, conforme resulta do teor de fls. 32, é proprietário o arguido.

Determinante também para a formação da convicção do Tribunal foi o teor dos relatórios médico-legais juntos a fls. 7 a 19 e 74 a 76, de onde resulta que a ofendida, no dia em causa nos autos, sofreu ferimentos compatíveis com a agressão que descreveu.

Tais elementos probatórios, valorados à luz das regras da experiência e do normal acontecer, e conjugados entre si, levam-nos a concluir, num raciocínio lógico-dedutivo, pela veracidade da versão trazida a juízo pela assistente, afastando qualquer credibilidade que se pudesse reconhecer à versão dos factos trazida pelo arguido.

Efectivamente, o arguido negou ter praticado os factos de que vem acusado e sustentou que à hora dos factos se encontrava a trabalhar. No entanto, não só esta versão dos factos é contrariada pelo conjunto da prova acima indicada como também, por outro lado, nenhuma prova produzida em audiência de julgamento suporta esta versão dos factos: se é certo que do controlo biométrico consta que o arguido às 13.30 deste dia efectuou, no seu posto de trabalho, registo biométrico, tal não o impossibilita de ter saído depois do serviço onde trabalha. Aliás, a testemunha C..., que era na data dos factos o chefe do arguido, declarou que era seu hábito deixar os funcionários que estão na sua dependência ausentarem-se do serviço durante o horário de trabalho desde que lhe dessem uma explicação que ele considerasse válida, ponderosa, para tal ausência. Desconhece, naturalmente, atento o lapso de tempo decorrido, se neste dia isso sucedeu.

Acresce que dos documentos de fls. 118 e 119, 171 e 172, 209 a 217, 264 a 303 também não decorre que na hora dos factos o arguido se encontrava a trabalhar efectivamente.

Ouviram-se as testemunhas B... .,  … ,  … , todas elas colegas do arguido.

No entanto, estas só sabem que no dia em causa dos autos havia muito serviço e era difícil ausentar-se do serviço.

A testemunha  … apenas abonou do carácter do arguido, dizendo-o incapaz de praticar factos como aqueles que lhe são imputados na acusação.

Os factos atinentes ao pedido de indemnização civil deduzido pelos H.U.C. provaram-se considerando ainda o teor de fls. 90 e os factos atinentes ao pedido de reembolso do ISS provaram-se considerando, para além dos meios de prova já referidos, o teor do documento de fls. 432.

No que respeita às condições pessoais do arguido, valoraram-se as declarações prestadas pelo arguido e, ainda, os depoimentos das testemunhas … ,  …….e C... e, quanto aos antecedentes criminais, o teor do CRC junto aos autos.

Conforme é sabido, a prova da generalidade dos factos do foro íntimo ou subjectivo é normalmente uma prova indirecta sendo essencial o recurso às regras da experiência comum e reflectir em termos de normalidade das relações pessoais e negociais.

Ora, o sentido a que conduz a análise de toda a prova documental junta aos autos e dos depoimentos supra referidos, conduzem, em processo mental indutivo filiado nas máximas da experiência comum, a que se conclua, para além de qualquer dúvida à qual possam ser dadas razões, que toda a conduta do arguido, descrita nos factos provados, foi adoptada pelo arguido de forma livre, voluntária e consciente, querendo ele agir do modo como o fez.

No que respeita aos factos não provados, certo é que não se produziu qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que supra se descreveram como provados.


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5. Mérito do recurso:

Na tese argumentativa vertida no recurso, a fundamentação da convicção do tribunal a quo e, assim, a própria sentença recorrida, padecem de nulidade, nos termos dos n.ºs 5 e 9 do artigo 356.º, do Código de Processo Penal, porquanto foi valorado o teor do “auto de notícia” de fls. 2 e bem assim o documento de fls. 32 dos presentes autos - donde resulta que, no próprio dia dos factos foi indicada, pela ofendida, a matrícula ( …) de um veículo automóvel de marca “Ford”, modelo “Focus”, de cor cinzenta (o “auto de notícia”) e ainda que tal viatura automóvel é propriedade do arguido (o referido documento) - sem que, quer o “auto”, quer o documento, tivessem sido apreciados e analisados em sede de audiência de discussão e julgamento. É ainda dito que, esses elementos não podiam ser lidos em audiência e também que, caso essa leitura fosse legalmente possível, teria de ser precedida de prévio acordo do arguido e constar da respectiva acta de julgamento.

O recorrente parte de um equívoco manifesto.

Efectivamente, as nulidades de sentença são só as elencadas taxativamente no artigo 379.º, n.º 1, do CPP.

E, embora o n.º 1 do artigo 355.º do CPP disponha: «Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência», o n.º 2 do mesmo artigo esclarece, contudo: «Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes».

Na motivação da decisão de facto da sentença sob recurso está escrito:

«Foi ainda importante para a formação da convicção da convicção do Tribunal o teor do auto de notícia de fls. 2, de onde resulta que no próprio dia dos factos foi indicada pela ofendida a matrícula do veículo do agressor, veículo esse de que, conforme resulta do teor de fls. 32., é proprietário o arguido».

Decorre da conjugação das referidas normas que é permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, podendo os meios de prova em causa serem, como sucedeu no caso concreto, objecto de livre apreciação pelo tribunal, independentemente dessa leitura[1].

Mesmo que os documentos constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de neles apoiar a sua convicção. Tratando-se de documentos que existem no processo desde o inquérito, o arguido teve todas as possibilidades de os questionar, podendo ter solicitado, na própria audiência de julgamento, a sua reapreciação individualizada, tendente ao esclarecimento de qualquer ponto relevante para a sua defesa.

Relativamente ao “auto de denúncia” de fls. 2 dos autos, dir-se-á ainda que não constitui, obviamente, um auto de prestação de declarações da assistente[2], não estando, assim, vedada, nos termos do artigo 356.º, do CPP, a sua apreciação e valoração.


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5. Conquanto o recorrente não haja indicado expressamente os factos que considera incorrectamente julgados pelo tribunal da 1.ª instância, resulta impressivamente do contexto global da motivação  e das respectivas conclusões que é posta em causa a factualidade relativa à agressão que lhe está imputada.

Posto isto, na exegese do recorrente, fundamentalmente, perante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, o juízo de convencimento do julgador do tribunal da 1.ª instância nunca poderia ter-se consolidado com base nas declarações, não credíveis, porque contraditórios entre si, da queixosa/assistente ... e da testemunha D..., nos episódios de urgência, divergentes, de fls. 364/367, datado de 12-11-2008, e de fls. 368/370 (elaborado em 04-12-2008), descurando as declarações do arguido e os depoimentos, isentos, das testemunhas B... . e C....

Na afirmação do juízo de convicção revelaram, sobretudo, as declarações da assistente e da testemunha D...., em detrimento das declarações do arguido. Tal sucedeu, como detalhadamente é dito na sentença, em função da segurança, rigor e objectividade que caracterizaram as primeiras, amplamente corroboradas pela prova documental existente nos autos, devidamente concretizada.

Passando à análise do conteúdo da prova, o arguido negou a prática da agressão física descrita no acervo factológico dado como provado.

No essencial, baseou a sua versão na impossibilidade do cometimento dos factos consubstanciadores das referidas ofensas corporais já que, segundo invocou, na data a que as mesmas se reportam (12 de Novembro de 2008), se encontrava no seu local de trabalho, sito nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Todavia, tal justificação fica irremediavelmente comprometida face às revelações, concordantes, nos aspectos decisivos, da ofendida ... e da testemunha D.....

A ofendida descreveu, com objectividade e riqueza de pormenores, a agressão de que foi vítima, perpetrada pelo arguido, no referido dia 12-11-2008, pelas 14,30h, aproximadamente.

A testemunha D...., Agente da GNR, que se encontrava, fora de serviço, no exterior dos HUC, à espera de sua mulher, corroborou a referida agressão e os precisos contornos em que ela se verificou. Aconselhou a ofendida sobre o processo conducente à responsabilização do arguido e anotou a matrícula do veículo por este conduzido.

As declarações das testemunhas B....,  …, colegas de trabalho do arguido, e C..., chefe de serviço do mesmo, não desvirtuam ou enfraquecem a posição sustentada pela ofendida e pela testemunha D..... Neste contexto, não podemos deixar de estar mais de acordo com a clarividente análise lógico-dedutiva referida na motivação da sentença sob recurso, quando é dito: «Aliás, a testemunha C..., que era, na data dos factos, o chefe do arguido, declarou  que era seu hábito deixar os funcionários que estão na sua dependência ausentarem-se do serviço durante o horário de trabalho, desde que lhe dessem uma explicação que ele considerasse válida, ponderosa, para tal ausência. Desconhece, naturalmente, atento o lapso de tempo decorrido, se neste dia isso sucedeu»; «Ouviram-se as testemunhas B... ., …………….; no entanto, só sabem que, no dia em causa nos autos, havia muito serviço e era difícil ausentarem-se do serviço».

Cabe acrescentar, ainda neste domínio, que as testemunhas B... . e  …revelaram expressamente não poderem garantir que o arguido tenha estado no seu local de trabalho no dia 12-11-2008, a partir das 11 horas.

Volvendo às declarações da ofendida, referiu, circunstanciadamente, com coerência e objectividade, o «ataque surpresa» de que foi alvo no dito dia, praticado pelo arguido. Na sequência de uma questiúncula ligada ao estacionamento dos seus veículos, este pôs a mão no peito da segunda e, acto imediato, empurrou-a, fazendo-a cair ao chão.

É evidente que, em face da posição interessada da assistente, a ditar o seu impedimento para depor como testemunha[3], é preciso usar de cautela redobrada no momento de pronunciar uma condenação baseada somente nas declarações do referido sujeito processual, sendo razoável e sensato o recurso a elementos que corroborem objectivamente o depoimento prestado.

Contudo, no caso em apreciação, a versão da assistente tem, nos aspectos relevantes, a concorrência de corroboração objectiva de outros elementos de prova, quais sejam, para além do depoimento, insuspeito, da testemunha D...., os autos de reconhecimento a fls. 43 e 44, os documentos de fls. 7/8, 11/13, 15/16, 18/19, 74/76 (relatórios elaborados, em 13-11-2008, 03-12-2008, 16-12-2008, 16-12-2008 e 15-02-2010, respectivamente, na Delegação Centro do Instituto de Medicina Legal) e os episódios de urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra relativos aos dias 12-11-2008 e 04-12-2008 (cfr. fls. 364/370).

O depoimento de D...., pelas razões supra expostas.

Os autos de reconhecimento, porquanto a ofendida e a testemunha D...., no decurso do inquérito, e tendo sido observadas os requisitos contidos no artigo 147.º do Código de Processo Penal, reconheceram o arguido como o praticante do acto de agressão em causa.

Quanto aos documentos (consonantes com a descrição factológica dada pela ofendida): o de fls. 364/367, revelando a assistência prestada à ofendida por esta apresentar “entorses e distensões do punho e da mão»; o de fls. 368/370, dando conta de que, na data acima referida, a ofendida padecia de «fractura cuneana externa do rádio e escafóide cárpico à direita»; os restantes, enunciando a compatibilidade das lesões sofridas pela ofendida com a informação prestada por esta e com os dados clínicos fornecidos pelos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Relativamente ao nexo causal entre a agressão e as lesões supra referidas, também não procedem as objecções contrapostas pelo recorrente.

Embora o documento de fls. 364/367 revele «queda com traumatismo do punho direito; tumefação a nível articular; rx sem sinais de fractura; tala antálgica» e o de fls. 368 acentue a fractura supra descrita, a contradição é apenas aparente.

Na verdade, na ausência de qualquer sinal sobre a ocorrência, entre as duas datas assinaladas (12-11-2008 e 04-12-2008), de qualquer evento causador da referida fractura, termos de entender, segundo os dados da experiência comum de vida - sendo estas orientadas no domínio do ensinamento empírico que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante a generalização no sentido de que diversos casos concretos semelhantes tendem a repetir-se -, que a mesma não foi detectada na primeira intervenção médica ou, então, que proveio da primitiva lesão.
Posto o que fica dito, nenhum reparo há que fazer ao juízo valorativo sobre a prova assumido pelo tribunal a quo, mantendo-se, assim, nos precisos termos, o acervo factual constante da sentença recorrida.

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Preceitua o art. 410.º, n.º 2 do CPP:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova».
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[4].
Ou seja: os vícios têm de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão».[5]
Afirma-se no Ac. do STJ de 19/12/1990:
«Como resulta expressis verbis do art. 410.º do CPP, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento»[6].
Para a verificação do vício a que alude a alínea a) do n.º 1 do normativo citado, é necessário que os factos se apresentem insuficientes para a decisão a proferir, ou seja, a matéria de facto dada como provada necessita de ser completada, por lhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são indispensáveis à formulação de um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Por seu turno, o vício de erro notório na apreciação da prova corresponde ao erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando dos factos tidos por provados e não provados decorre uma conclusão logicamente inaceitável para o homem de média formação.
Percorrendo as conclusões da motivação do recurso facilmente nos damos conta de que o recorrente não se circunscreve ao acervo factológico que o tribunal a quo consagrou na decisão da matéria de facto vertida na sentença; antes, parte da valoração que ele próprio estabeleceu da matéria de facto produzida em audiência de julgamento para, com base nessa apreciação de cariz pessoal e subjectivo, argumentar a existência do vícios plasmados nas als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Todavia, percorrendo a globalidade da decisão recorrida, é apodíctico que os propalados vícios não ocorrem, por não se verificar qualquer insuficiência para a decisão de direito da matéria da factualidade provada, nem se vislumbrar que o tribunal a quo tenha incorrido no alegado erro de apreciação da prova que em audiência foi produzida.

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Destituída de fundamento se apresenta também a residual alusão ao princípio processual do in dubio pro reo, já que, de todo, não se antolha da fundamentação da decisão de facto – supra transcrita – qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento dos arguidos, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou.

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Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão do recorrente, de ser absolvido do crime de ofensa à integridade física simples que lhe está imputado e dos pedidos de indemnização civil, assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada.

Pelo que, mantendo-se inalterados os pressupostos de facto que determinaram a condenação do arguido pela prática do referido crime e nos pedidos cíveis, soçobra, sem mais, o recurso.


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Por fim, pronunciando-nos sobre o pedido de condenação do arguido/demandado, como litigante de má-fé, formulado pela assistente, na resposta que apresentou ao recurso, há que ver se o artigo 456.º é aplicável no âmbito do processo penal.
Existirá na lei processual penal uma lacuna que tenha de ser integrada pela citada norma da lei adjectiva civil?
Determinar, em certos casos, o que é uma lacuna da lei, implica uma tarefa interpretativa recheada de dificuldades, porquanto, em grande número de situações, o que se verifica é um “silêncio eloquente da lei”.
«O termo “lacuna” faz referência a um carácter incompleto. Só se pode falar de lacunas de uma lei quando esta aspira a uma regulação completa em certa medida para um determinado sector (...)».
«Uma lacuna da lei é uma “imperfeição contrária ao plano da lei”»[7], ou como ensina Baptista Machado[8] «uma incompletude contrária a um plano», revelando-se a lacuna quando a lei, no plano ordenador do sistema jurídico, padece de um déficit de regulamentação, ou seja, quando não oferece um tratamento jurídico concreto a uma dada questão.
Diversamente, os “silêncios eloquentes” da lei são, porventura, determinados por razões político-jurídicas e correspondem a uma opção do legislador que, conscientemente, ainda não conferiu cobertura jurídica a um certo caso.
«Esses “silêncios eloquentes da lei” não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos competentes.
Pode, assim, haver casos em que a inexistência de regulamentação (...) corresponde a um plano do legislador e não da lei, a uma inexistência planeada, que não representa, enquanto tal, uma deficiência (...)».[9]
Retomando o caso sub specie, o Código de Processo Penal vigente preocupou-se, muito mais do que o de 1929, em estabelecer uma regulamentação completa e autónoma do processo penal, em termos de funcionar completamente por si, nos procedimentos e na teleologia dos institutos que consagra, tornando-se menos dependente das normas do Código de Processo Civil[10].
Ora, o instituto da má fé processual não foge a essa preocupação de completude, onde foi desígnio do legislador uma regulamentação sem qualquer “espaço vazio”, em função dos específicos fins que norteiam o processo penal.
Na realidade, o processo penal não é um processo de partes; nele prevalece, enquanto direito público, a procura incessante da verdade material, onde as garantias de defesa dos arguidos assumem uma dimensão constitucional, na protecção dos direitos  fundamentais inerentes à própria dignidade humana, no domínio de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
Na regulamentação de comportamentos consubstanciadores de uso indevido do processo penal, optou o legislador por criar expedientes sancionatórios  diversos do que a lei processual civil prevê, como são os regulados, inter alia, nos arts. 223.º, n.º 6, 420.º, n.º 4 ou 456.º, parte final, todos do CPP, dispositivos estes que sancionam condutas denunciadoras de mau uso do processo.
Pelo exposto, não é aplicável ao processo penal a norma do art. 456.º, n.ºs 1 e 2 do CPC[11].
Hodiernamente, na lei adjectiva penal, tal como também sucede, aliás, no âmbito do Código de Processo Civil, existe a possibilidade de aplicação da taxa sancionatória excepcional prevista no artigo 10.º do Regulamento das Custas Processuais, inter alia, aos requerimentos, recursos, reclamações e pedidos de rectificação, quando se verifiquem os requisitos enunciados no artigo 447.º-B, do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 521.º do CPP, que no caso manifestamente não se verificam.   

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Face à improcedência do recurso, incumbe ao arguido/recorrente o pagamento das custas (arts. 513.º e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 82.º, n.º 1, e 87.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, do Código das Custas Judiciais).
Tendo em conta a simplicidade do processo e a situação económica do arguido, fixa-se a taxa de justiça em 3 UC.

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III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e o pedido formulado pela assistente, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, com 3 UC de taxa de justiça.


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Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales


[1] Cfr., v.g., Acórdãos do STJ de 23-02-2005, CJ/STJ, XIII, tomo I, pág. 50, e de 31-05-2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt.. Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 87/99, de 10 de Fevereiro, DR, II série, de 01-07-99, decidiu não considerar inconstitucional a norma do artigo 355.º do CPP, interpretada no sentido de que os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.
[2] Neste sentido, embora reportado a um “auto de notícia”, veja-se o Ac. do STJ de 14-06-2006, proferido no processo n.º 06P1574 e publicado no sítio www.dgsi.pt.
[3] Cfr. art. 133.º, n.º 1, al. b), do CPP.
[4] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339.
[5] Germano Marques da Silva, idem, pág. 340.
[6] Proc. n.º 41327 - 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ n.º 9/2005, de 11-10-2005, proferido no proc. n.º 3172/2004, citando Karl Larenz, Metedologia da Ciência do Direito, tradução da 5.ª edição, revista, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 448 e segs.
[8] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, pág. 194.
[9] Cfr., o Ac. citado e Mário Bigote Chorão, Temas Fundamentais de Direito, Coimbra, 1986, págs. 231 e segs.
[10] Cfr., Maia Gonç., Código de Processo Penal anotado, 6.ª edição, anotação 2 ao art. 4.º, pág. 55.
[11] Neste sentido, cfr. os Acórdãos do STJ de 05-11-1998 (proc. n.º 574/98-3.ª Secção) e 26-06-2002 (proc. n.º 1385/02-3.ª Secção), com sumários publicados no “Boletim interno do STJ”, elaborado pelos Srs. Juizes Assessores, n.º  25 e 62, respectivamente; da Relação de Coimbra de 11 de Outubro de 1995, CJ, Ano XX, 1995, Tomo IV, pág. 51-52 e da mesma Relação de 2 de Maio de 2001, ob. cit., Ano XXVI - 2001, Tomo II, pág. 41-42, embora este último aresto restrinja a inaplicabilidade do art. 456.º do CPP ao processo penal stricto sensu, por entender que relativamente ao pedido civil a norma tem aplicação.