Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
330/13.1GACND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO FORMULADO PELO ASSISTENTE
REQUISITOS
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 287.º E 339.º DO CPP
Sumário: I - No que especificamente respeita ao requerimento do assistente, a lei exige que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º.

II - Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como sabemos, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis.

III - O requerimento para abertura da instrução do assistente, como vem sendo entendimento jurisprudencial e doutrinal uniforme, deve estruturar-se como uma acusação, dele havendo que constar a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido fundamentadores da aplicação de pena ou medida de segurança o que, necessariamente compreende, os factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual se pretende a sua pronúncia.

IV - Esta exigência legal prende-se com a circunstância de o objecto do processo ser definido pela acusação e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4).

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 330/13.1GACND que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J3 foi proferido despacho de não pronúncia do arguido A... , no termo de instrução requerida pela assistente B... , visando a pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º do C. Penal ou, assim não se entendendo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do mesmo código, face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.


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Inconformada com a decisão, recorreu a assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

a) No requerimento de abertura de instrução, indicou prova constante dos autos que deveriam levar à formulação de acusação contra o Arguido;

b) Acusação teria de ser formulada pelo MP ou pela senhora Juiz de Instrução, uma vez que dos factos se retira a prática de crime público pelo qual só estes entes judiciários podem formular tal acusação;

c) Perante a evidência dos factos demonstrados nos autos, e também das enunciadas consequências, deveria ter sido deduzida acusação pública contra o Arguido;

d) Acusação que competia à senhora Drª Juiz de Instrução formular e complementar com todos os elementos que fizessem uma acusação perfeita;

e) Tipo de crime, público, contém em si a própria ilicitude quando cometido, como é o caso, pois a mesma se deduz da sua prática, já que ninguém agride a sua companheiro com desconhecimento que o faz por sua própria vontade e desejo;

f) Senhora Juiz deveria formular acusação, pois tinha todos os elementos para o efeito;

g) A sua abstenção a tal dedução, porque os autos contêm elementos para formulação pública da mesma, deve ser corrigida com obrigação de a formular;

h) Violados os temos do artºs 288º, 308º, e nº 3 do artº 311º do CPP

Nestes termos, e nos mais de Direito, com o Douto Suprimento de Vªs Exªs, deve o presente Recurso ser julgado procedente e provado, anulando-se a Douta decisão proferida, substituindo-a por fixação de obrigação da senhora Juiz de Instrução deduzir Acusação Pública contra o Arguido, pois função que lhe compete pelo crime ser público, pois assim se decidindo, farão Vªs Exªs Justiça.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente teria que configurar uma verdadeira acusação, fixadora do objecto do processo e limitadora da actividade instrutória do juiz, sendo que, nesta perspectiva, tal requerimento não contempla factos integradores do elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples pelo qual pretende a pronúncia do arguido, omissão insusceptível de reparo com recurso ao mecanismo do art. 358º do C. Processo Penal por a tanto impedir o Acórdão Uniformizador nº 1/2015, não restando outra alternativa que a não pronúncia, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Respondeu também ao recurso o arguido, alegando que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente deveria conter, substancialmente, uma verdadeira acusação o que, no caso, impunha que dele constasse, além do elemento objectivo, o elemento subjectivo do tipo, o que não sucedeu, não podendo a omissão ser suprida pela Mma. Juíza que bem decidiu, ao proferi despacho de não pronúncia, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público e a contramotivação do arguido, afirmando a essencialidade da rigorosa definição do thema decidendum para o efectivo exercício do direito de defesa, e concluiu pela manutenção do despacho recorrido.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o arguido deve ou não ser pronunciado, como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples.


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Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

Relatório

A assistente B... , não de conformando com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, veio requerer a abertura da instrução, pedindo que o arguido A... seja pronunciado pela prática deste crime.


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Realizou-se o debate instrutório, com observância do formalismo legal, como da respetiva ata consta.

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Questão prévia – artigo 308.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Nos termos do artigo 287.º do Código de Processo Penal, na parte que aqui nos interessa:

n.º 1 – A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

(…)

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)” – sublinhado e realce nosso.

O artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, por sua vez, refere que “a acusação contém, sob pena de nulidade:

(…)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis (…)”.

Temos, consequentemente, que se o requerimento de abertura de instrução for efetuado pelo assistente, visando a pronúncia do arguido, tem, obrigatoriamente, de conter os factos concretas que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e as disposições legais que tipificam a conduta como crime. Por outras palavras, o requerimento de abertura de instrução tem de conter os factos concretos que integram os elementos objetivos e subjetivos do crime que o assistente quer ver imputado ao agente e a sua qualificação jurídica.

A este propósito, escreveu-se no Ac. STJ de 12-03-2009, disponível em www.dgsi.pt que subscrevemos na integra: “ (…) se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objeto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis.

De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia”.

Seguindo este entendimento, que também perfilhamos, dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, consideramos que é de rejeitar liminarmente o requerimento de abertura da instrução se nele não forem narrados os factos concretos que vão determinar a aplicação de uma pena ao agente.

Também no Ac. TRC de 6-06-2012, disponível em www.dgsi.pt se escreveu: “1. O requerimento de abertura de instrução tem que materializar uma verdadeira acusação. 2.A omissão narrativa dos concretos factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, gera uma verdadeira ineptidão e nulidade do requerimento de instrução, tornando juridicamente impossível a realização da fase instrutória, por falta de objeto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer atos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar”.

Podemos, então, dizer que se o requerimento de abertura de instrução não contiver os factos que integram os elementos objetivos e subjetivos do crime, é manifestamente infundado, de acordo com o preceituado no artigo 311.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Este entendimento é facilmente compreensível se atentarmos que este requerimento, tal como a acusação, fixa o objeto do processo, nos termos dos artigos 288.º, n.º 4, 307.º e 309.º do Código de Processo Penal.

Voltemos ao caso concreto.

Se analisarmos o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, constatamos que a assistente questiona a valoração dos elementos recolhidos no inquérito por parte do Ministério Público mas não descreve os factos concretos praticados pelo arguido que consubstanciam, na sua ótica, a prática de um ilícito criminal, pois não são relatados os elementos subjetivos do crime de ofensa à integridade física simples não podendo, consequentemente, e pelo que acima dissemos, tal requerimento determinar a prolação de um despacho de pronúncia. Não tendo sido descritos no RAI os factos que integram tal ilícito – elementos objetivos e subjetivos – nunca podia ser proferido um despacho a colmatar tal omissão e sustentar um despacho de pronúncia. Com efeito, o recente Ac. de Uniformização de Jurisprudência 1/2015 veio definir que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.

Este entendimento que não poderá deixar de ser aplicado à instrução, impossibilitando o tribunal de colmatar a falta dos elementos subjetivos do crime com uma alteração dos factos.

Neste conspecto, verificando que os factos descritos no RAI não integram a prática de um crime de ofensa à integridade física, há que proferir despacho de não pronúncia.


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Em face do que fica dito, não se pronuncia o arguido pelo crime de ofensa à integridade física descrito no RAI.

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Custas da instrução a cargo do assistente, com taxa de justiça que se fixa em 2 Uc, nos termos dos artigos 515.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do RCP e tabela III anexa ao mesmo diploma.

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Remeta os autos à distribuição para julgamento dos arguidos A... e B... pelos factos constantes das acusações particulares juntas aos autos 303 e 334.

Notifique.

(…)”.


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            1. A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo penal na forma comum que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal).

A comprovação judicial mais não é do que a conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e na própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de estarem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo este formalmente explicitado na decisão instrutória. Daí que estabeleça o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal [código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem] que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Por outro lado, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

In casu, a instrução foi requerida pela assistente, visando a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito relativamente ao por si denunciado crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, b) do C. Penal ou, não se aceitando esta qualificação, ao denunciado crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do mesmo código. Porém, a questão suscitada no recurso não radica na suficiência ou insuficiência dos indícios probatórios colhidos, mas antes, nos requisitos essenciais do requerimento de abertura de instrução e nas consequências da sua inobservância.

Vejamos então.

2. Dispõe o art. 287º, com a epígrafe, «Requerimento para abertura da instrução», no seu nº 2 e na parte em que agora releva: “ (…)

2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)”.

Como se vê, no que especificamente respeita ao requerimento do assistente, a lei exige que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º. Assim, do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como sabemos, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis. A observância desta exigência significa que, no segmento da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento para abertura da instrução do assistente se deve estruturar, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na sua [do assistente] perspectiva, foi mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

Esta exigência legal prende-se com a circunstância de o objecto do processo ser definido pela acusação e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). Se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, requerendo a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar, não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução, como o da própria decisão instrutória. Por isso, a sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definida pelo requerimento para abertura da instrução, enquanto acusação alternativa, determina a nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento (art. 309º, nº 1). Na verdade, são a estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido que impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade.

Em conclusão, o requerimento para abertura da instrução do assistente, como vem sendo entendimento jurisprudencial e doutrinal uniforme, deve estruturar-se como uma acusação, dele havendo que constar a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido fundamentadores da aplicação de pena ou medida de segurança o que, necessariamente compreende, os factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual se pretende a sua pronúncia.

3. No requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente e ora recorrente, depois de nos seus arts. 1º a 4º afirmar a sua discordância quanto à decisão de arquivamento, depois de nos seus arts. 5º a 33º discutir os meios de prova produzidos no inquérito [desde a confissão de determinados factos e à negação de outros, pelo arguido, aos depoimentos das testemunhas Marco Lourenço João Alves, Sónia Leite, Lúcia Curgo, Márcia Lopes, e aos relatórios médicos de fls. 20 a 22 e 23] e de discordar do acompanhamento pelo Ministério Público da acusação contra si deduzida, consta dos seus pontos 34º e 35º o que segue:

- [34] Atentos os elementos probatórios dos autos, deverá ser proferida acusação pública contra o Arguido A... , o qual deverá ser julgado em Processo Comum, Juiz Singular, porquanto o mesmo, na vigência da vivência conjugal com a ofendida, que ocorreu entre Julho de 2010 e Outubro de 2013, a agrediu fisicamente, em Agosto de 2011 na praia de Portimão com uma cadeira, provocando-lhe um corte grande na mão, e em 11 de Setembro de 2013 no apartamento que ambos ocupavam em Condeixa-a-Nova e no acesso desse para o elevador, com chapada e pontapé, partindo-lhe os óculos e fazendo-a cair embrulhada com uma televisão, como agredindo-a verbalmente com palavras "vaca", "filha da puta", "não serves para nada", "ranhosa, não prestas para nada, és uma vaca", o que ocorreu também na data de 11 de Outubro, mas era prática do mesmo relativamente a si em várias situações e datas ao longo da sua vida em comum, ainda a desconsiderando com promessas de irem de férias e depois o arguido ir sozinho, ou de estar de férias, a ofendida em casa, ele sair para a praia e deixá-la em casa, não lhe permitindo ir com o mesmo, com tais comportamentos fazendo-a sofrer, como os relatórios médicos constantes dos autos relatam, sendo certo que ao assim agir, de forma reiterada e continuada o mesmo cometeu o crime de Violência Doméstica previsto e punido pelos termos do artº 152º do Código Penal;

- [35] Quando assim se não interpretasse, e pelos mesmos factos enunciados, sempre o arguido deveria, ao menos, ser pronunciado pelo crime de Ofensa à Integridade Física, previsto e punido pelo artº 143º do Código Penal, uma vez que já foi deduzida acusação particular pelas injúrias contra si perpetradas pelo mesmo.

Foi, pois, desta forma, que a assistente e ora recorrente, no requerimento para a abertura da instrução, descreveu factos que imputou ao arguido que, em seu entender, consubstanciam os crimes mencionados.

O crime de violência doméstica tutela o bem jurídico saúde – bem complexo que abarca a saúde física, psíquica e mental – enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 512, e Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Ed., AEFDL, 2007, pág. 110), e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora releva (art. 152º, nº 1, b), do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente, de modo reiterado ou não, inflija maus tratos físicos – factos integradores de ofensas à integridade física, de privações da liberdade e de ofensas sexuais – ou maus tratos psíquicos – humilhações, provocações, ameaças ainda que não consubstanciem o respectivo ilícito típico, injúrias e difamações – a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

Por sua vez, o crime de ofensa à integridade física simples tutela o bem jurídico integridade física – compreendendo a integridade corporal e a saúde física – e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

Basta confrontar os dois tipos de ilícito com o teor do art. 34º do requerimento, supra transcrito, para imediatamente concluir que este é completamente omisso quanto à narração de factos integradores do dolo e portanto, do tipo subjectivo, quer do crime de violência doméstica, quer do crime de ofensa à integridade física simples.

Contrariamente ao pretendido pela recorrente, independentemente da natureza do primeiro crime, nunca a descrição de factos integradores do tipo objectivo, dispensaria a narração dos factos integradores do tipo subjectivo que, aliás, nada têm a ver com a ilicitude integradores do tipo objectivo[esta é um mero juízo de valor].      

Por outro lado, a reparação da omissão verificada não sugerida nem efectuada pela Mma. Juíza de instrução por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque o Acórdão Uniformizador nº 7/2005 (DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005) uniformizou jurisprudência no sentido de não ser admissível o convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento instrutório, quando omita a narração dos factos fundamentadores da aplicação da pena. Em segundo lugar, porque o Acórdão Uniformizador nº 1/2015 (DR I, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015) uniformizou jurisprudência no sentido de a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo do art. 358º, regra que, por maioria de razão, não pode deixar de ser aplicável à decisão instrutória.

4. E qual a consequência desta omissão?

Não se apresentando o requerimento para abertura da recorrente, substancialmente, como uma acusação alternativa, na medida em que não contém uma completa narração do facto que fundamenta a aplicação da pena, a instrução carece de objecto o que, independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 2ª Edição, pág. 151), conduz à sua inadmissibilidade legal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 737 e Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 1003). E a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

   

Acontece que o requerimento passou o crivo do despacho liminar, uma vez que foi declarada aberta a instrução e imediatamente designada data para o debate instrutório [cfr. despacho de fls. 344], que decorreu sem realização de diligências de instrução, seguindo-se a decisão impugnada.

Significa isto que, mantendo a instrução a falta de objecto, não restava outra alternativa à Mma. Juíza de instrução que não fosse a de não pronunciar o arguido, pois que os factos ‘acusados’ são insusceptíveis de preencherem o tipo, por falta do respectivo elemento subjectivo, de qualquer dos crimes por cuja prática foi requerida a pronúncia daquele.

Em conclusão, não merece censura o despacho recorrido, uma vez que a narração dos factos da acusação alternativa que deve constar do requerimento para abertura da instrução da assistente [em procedimento por crime público ou semi-público por factos relativamente aos quais o Ministério Público não deduziu acusação], nos exactos termos em que foi efectuada, não constitui crime de violência doméstica ou crime de ofensa à integridade física simples.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 16 de Dezembro de 2015


(Vasques Osório – relator)


(Orlando Gonçalves – adjunto)