Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3775/12.0TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: EXECUÇÃO
LITISPENDÊNCIA
LIVRANÇA
AVALISTA
INTERPELAÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.576, 580, 581, 794 CPC, 342, 805 CC, 10 LULL
Sumário: 1 – Não há litispendência entre o processo executivo que assenta em escrituras públicas e aquele que assenta em livranças, quando nestas o executado aparece como avalista e naquelas, numa delas, o mesmo nem sequer é parte.

2 - A lei cambiária não impõe, como condição de exigibilidade da obrigação de garantia do avalista de livrança emitida em branco, a prévia interpelação deste.

3 - O avalista pode opor à exequente o incumprimento do acordo de preenchimento que tenha subscrito, encontrando-se no âmbito das relações imediatas.

4 -O preenchimento abusivo do título é matéria com a natureza de exceção perentória, a ser alegada e provada pelo subscritor, nos termos do art.342º, nº2, do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O B (…), S.A. – Sucursal em Espanha (depois Novo Banco, com aquela sucursal) intentou execução para pagamento de quantia certa contra V (…) apresentando como título executivo duas livranças, subscritas pela sociedade D (…)SL e avalizadas pelo executado, nos valores de € 126.648,52 e € 30.235,62, emitidas em 9.7.2008 e com data de vencimento em 1.9.2012.

O executado deduziu oposição, alegando, em síntese, que não assinou os contratos e as referidas livranças, nem delas tinha conhecimento; os contratos de garantia a elas associados são omissos relativamente ao seu objecto; o preenchimento das livranças foi feito de forma abusiva. O executado invocou ainda o caso julgado relativo a condenação proferida em tribunal espanhol. 

A exequente impugnou o alegado, defendendo que as livranças foram assinadas pelo oponente, que as mesmas têm a data de vencimento de 1.9.2012 e, sendo uma obrigação a prazo, não carece de haver interpelação; o oponente foi interpelado dos valores de preenchimento; negou ainda o caso julgado.

Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu da inexistência do caso julgado ou da litispendência relativamente ao processo intentado em Espanha.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a oposição e a ordenar o prosseguimento da execução.


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Inconformado, o executado recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1.Verifica-se a existência da Exceção da Litispendência, atendendo ao supra exposto, e que a Meritíssima Juiz deveria ter considerado procedente. Ao não ter assim considerado, a decisão em causa, violou expressamente os artigos 581º e 582º do Cód. Proc. Civil, e o Regulamento (UE) Nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.12.2012, no seu capitulo II – Secção 1, artigo 4º, e, Secção 9, artigo 29º.

2.Verifica-se a existência de contradições entre a prova produzida quer testemunhal quer documental e os factos dados como provados 8., 9., 10., 11., e 14;

3.Ao ter decidido em sentido contrário, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 607º do Cód. Proc. Civil.

4.Verifica-se a falta de interpelação prévia do Oponente/avalista, desconhecendo por isso, o montante exato e a data em que se vencia a obrigação avalizada.

5.Sendo condição de exigibilidade do montante aludido no título de crédito – livrança, que havia sido subscrita e avalizada totalmente em branco, a interpelação prévia do avalista.

6.A Exequente não logrou provar ter praticado os atos consentâneos a tal desiderato, tal como estava obrigada nos termos do artigo 342º, 343º e 344º do C.C.

7.Por se verificar a inexigibilidade da obrigação exequenda por inexistência e invalidade do título executivo, deverá ser o executado/oponente absolvido do pedido.

8.Verifica-se ainda a exceção do preenchimento abusivo das livranças pela Exequente.

9.Foi demonstrado pelo Oponente a existência de um acordo de preenchimento em que interveio como gerente da sociedade subscritora e como avalista.

10.Porém, o tomador/portador dos títulos, aqui exequente, ao completar o preenchimento destes, efectivamente desrespeitou os termos do acordo, quanto aos valores que efetivamente se encontravam em dívida e já apurados pela Exequente, nas atas de fixação dos saldos devedores em ambos os contratos.

11.Estamos perante a subscrição e o aval de duas livranças em branco.

12.E ao seu preenchimento abusivo, conforme se demonstrou nas presentes alegações de recurso.

13.O preenchimento abusivo destas livranças, por parte da Exequente, viola expressamente o disposto no artigo 10º e 77º da LULL .

14. Com a atitude descrita, violou ainda no nosso entendimento, a douta sentença recorrida o disposto no artigo 607º do Código do Processo Civil, por não atender à prova efetivamente produzida.

15.Com efeito, e de acordo com o ensinamento de Alberto dos Reis, (CPC Anot., 19ª edição – Setembro de 2007- na anotação nº 1 ao anterior artigo 655º), “O princípio da livre apreciação das provas, adotado no nº 1 do anterior art. 635.º do CPC, significa apenas a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queria atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”. (neste sentido Ac. RE, de 20.09.1990:BMJ, 300.º -603 – anotação nº 5 do referido CPC anotado – edição de Setembro de 2007).

16.Não estando assim, ao contrário do que decidiu a Meritíssima Juiz do Tribunal “A Quo”, encontram-se verificados todos os pressupostos: Da exceção da litispendência; e Da falta da interpelação prévia do Oponente; e Do preenchimento abusivo das livranças.

17.Logo estes fundamentos estão em oposição com a decisão, tendo havido lapso manifesto na subsunção dos factos ao direito.

18.A sentença recorrida violou, nomeadamente, os artigos 413º, 607º, 581º e 582º do Cód. Proc. Civil, o Regulamento (UE) Nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 12.12.2012, no seu capitulo II – Secção 1, artigo 4º, e, Secção 9, artigo 29º; os artigos 341º, 342º, 343º e 344º, todos do Cód. Civil, e artigos 10º e 77º da LULL.

Termos em que, e conforme o disposto no artigo 662º, nº do C.P.C., deve o Tribunal da Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando-se não provados os factos constantes dos quesitos 8., 9., 10., 11., e 14.

Deve o presente recurso proceder e em consequência, ser a sentença recorrida substituída por outra onde se considere procedente à exceção da litispendência, com a consequente absolvição do oponente da instância;

E ainda, se considere a inexigibilidade da obrigação exequenda por inexistência e invalidade do título executivo, devendo por isso, ser o executado/oponente absolvido do pedido.


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O Banco exequente contra alegou, defendendo a correção do decidido.


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As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação dos factos assentes em 8, 9, 10, 11 e 14;

A litispendência;

A interpelação prévia do avalista;

O preenchimento abusivo das livranças.


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O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1. Nos autos principais, foram dados à execução dois documentos, cujos originais constam de fls. 54.

2. Ambos apresentam como local e data de emissão Coimbra, 08.07.09 e vencimento a 01.09.2012, lendo-se neles: “ No seu vencimento pagarei(remos) por esta única via de livrança ao B (...) , S.A. ou à sua ordem”, as quantias de € 126.648,52, no primeiro, e de € 30.235,62, no segundo.

3. No local destinado à assinatura dos subscritores encontra-se, manuscrito, o seguinte: V (…) e D (…), seguido da indicação, no local destinado ao nome e morada dos subscritores, também manuscrito, D (…), S.L. (…).

4. No verso dos documentos, acha-se aposta de forma manuscrita, a seguinte indicação: Dou o meu aval à firma subscritora, seguida da aposição manuscrita, V (…), BI (…), Coimbra.

5. Com aqueles documentos, foram juntos os docs. de fls. 4 e ss. e 14 e ss., intitulados, respectivamente, Contrato de garantia n.º EC010185/08 e Contrato de garantia n.º EC010186/08, cujo teor aqui se dá por reproduzido, datados de 9.7.08 e contendo, entre outras, a aposição manuscrita, no local destinado a Clientes e Prestador(es) de Garantia (s): V (…)

6. As assinaturas manuscritas e referidas em D) e E) foram apostas pelo punho do oponente.

7. A data aposta para vencimento das livranças foi fixada pelo exequente e não foi comunicada ao executado.

8. O documento que titula o valor de € 126.648,52 destinou-se a servir de caução e garantia do crédito proveniente de uma abertura de “Linha de Fianças e Avales”, no

valor de € 60.00,00 (sessenta mil euros), a que se refere a Cláusula “1. Crédito garantido” das “Condições particulares” do referido “Contrato de Garantia n.º EC 010185/08”.

9. Incluindo juros e demais encargos.

10. O documento que titula a quantia de € 30.235,62 destinou-se a servir de caução e garantia do crédito proveniente de uma abertura de crédito em conta corrente, no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros), a que se refere a Cláusula “1. Crédito garantido” das “Condições particulares” do referido “Contrato de Garantia n.º EC 010186/08”.

11. Incluindo juros e demais encargos decorrentes da relação subjacente.

12. Ambas as livranças foram entregues à exequente em branco.

13. Acompanhadas da autorização decorrente do pacto de preenchimento no que se refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento e valor correspondente aos créditos de que a exequente fosse titular por conta da operação em causa.

14. Por cartas registadas, datadas de 9 de Outubro e 24 de Outubro de 2012, o oponente foi interpelado para pagamento das responsabilidades de diversas operações de crédito, entre as quais as tituladas pelas livranças exequendas.


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Reapreciação da matéria de facto impugnada.

Estão em causa os factos assentes sob os nº 8 a 11 e 14.

(…)

Pelo exposto, julga-se improcedente a pedida alteração da matéria de facto.


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A litispendência.

            Dispõe o art. 580º, nº 1, do Código de Processo Civil que a exceção da litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso.

            Nos termos do artigo 581º da mesma lei, “repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

“Há identidade de sujeitos, quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e “há identidade da causa de pedir quando a pretensão das duas ações procede do mesmo facto jurídico”.

            A litispendência visa impedir inútil repetição de causas e evitar duplas decisões repetidas ou contraditórias.

Em processos executivos, a litispendência só faz realmente sentido quando são penhorados os mesmos bens, de acordo com o art.794º do Código de Processo Civil (Acórdãos da R. de Lisboa de 13/10/88, CJ, Ano XIII, Tomo 4º, pág. 124, e da R. do Porto de 13/11/90, CJ, Ano XV, Tomo 5, pág. 186, relativamente a idêntica norma do código anterior, o art.871º).

            No caso, destacamos as seguintes diferenças entre os processos espanhol e português (embora não tenham sido destacados os factos a este respeito, que estão documentados):

            O processo espanhol assenta nas escrituras públicas, numa das quais, a relativa ao “financiamento” de maior valor, o executado não aparece como garante e no respetivo contrato nem sequer é parte.

            O processo português assenta nas livranças, nas quais o executado aparece como avalista da sociedade subscritora.

Entre os referidos processos, não há identidade de sujeitos porque o executado aparece aqui como avalista de duas livranças, qualidade que não assume nas escrituras acionadas em Espanha, sendo ainda certo que, numa delas, nem sequer é parte.

Não há identidade de pedido porque na execução portuguesa ele é mais amplo; assentando no aval, ele inclui aqui a responsabilidade a respeito da garantia do crédito proveniente de uma abertura de “Linha de Fianças e Avales”, no valor de € 60.00,00 (sessenta mil euros), o que não acontece em Espanha.

Não há identidade da causa de pedir porque aqui a pretensão procede do aval nas duas livranças, relativamente aos dois contratos, o que não acontece em Espanha, onde a pretensão assenta nas escrituras públicas, numa das quais o executado não é sequer devedor.

            Não ocorre, portanto, a invocada litispendência, não se colocando a questão da eventual colisão de competências entre tribunais de diferentes Estados.

(Notemos por fim que o incuprimento derivado dos concretos contratos portugueses tem previsão de foro nacional próprio e que o executado nunca alegou qualquer pagamento.)


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A interpelação prévia do avalista.

            Esta objeção do Recorrente deve ser liminarmente afastada porque se provou o que consta em 14 dos factos, ou seja, que o avalista foi interpelado para pagar certo montante, decorrente da responsabilidade por si assumida com o aval.

Embora se tenha provado que a data aposta para vencimento das livranças não foi comunicada ao executado, provou-se que este teve conhecimento das cartas de interpelação de 9.10 e de 24.10.2012, datas anteriores à execução, razão pela qual a partir dessas datas era o mesmo conhecedor do acionamento das livranças e dos montantes reclamados.

            De qualquer maneira, mesmo que ficasse por provar a referida interpelação, esta não é exigida pela lei cambiária como condição da exigibilidade da específica obrigação exequenda.

A questão da falta de interpelação prévia do executado – que figura no título na qualidade de avalista – imposta pela circunstância de aquele título de crédito ter sido entregue em branco à exequente, já foi corretamente tratada no acórdão desta Relação, de 6.10.2015, no processo 990/12, em www.dgsi.pt, no qual se assinala (para a letra, mas que serve para a livrança), em síntese:

“Em primeiro lugar uma tal interpelação prévia do avalista não é reclamada, ao menos expressamente, pela lei cambiária, o que explica que quem sustente uma tal exigência – como é caso da sentença impugnada e das espécies jurisprudenciais em que se apoia - não indique o texto legal em que ela, directa ou indirectamente, se contém.”

“De outro aspecto, se a letra foi emitida em branco, designadamente quanto à época do pagamento e se o portador, de harmonia com a convenção de preenchimento, lhe insere essa indicação, a obrigação pecuniária que incorpora considera-se vencida – e como tal exigível - nessa data (artº 805 nº 2, a), do Código Civil). De resto, a indicação da época do pagamento nem sequer constitui um elemento essencial da letra”…

“Com a entrega da letra em branco, atribui-se ao portador, entre outros, o direito de decidir, designadamente quanto ao momento da inserção na letra, das estipulações cambiárias que determinam o conteúdo do direito cartular, deixadas em branco no momento da sua emissão e entrega.”


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O preenchimento abusivo da livrança.

A jurisprudência é uniforme na imputação do ónus da alegação e prova daquele abuso ao subscritor que a entregou em branco. (Ver, entre muitos outros, os acórdãos do S.T.J., de 14.12.2006, no processo 06A2589, e desta Relação, de 21.3.2006, no processo 395/06, em www.dgsi.pt.)

            Face à norma do art.10º da Lei Uniforme de Letras e Livranças, o preenchimento abusivo das letras e livranças é tido por “motivo de oposição ao portador”.

            Como tal, a matéria pertinente tem a natureza de exceção perenptória – art.576º, nº3, do Código de Processo Civil – a ser alegada e provada pelo subscritor, nos termos do art.342º, nº2, do Código Civil.

            No caso, perante a apresentação de duas livranças, o executado veio defender-se com a invalidade delas, alegando que as mesmas foram preenchidas abusivamente.

            Porém, à partida, o executado começou por negar o próprio acordo de preenchimento. Ora, seria a partir dele, como pressuposto, que se descreveria o abuso.

            O que o executado defendeu foi que o preenchimento das livranças não tinha sequer justificação. Provando-se o que consta em 13 dos factos, realidade que não foi agora impugnada, aquela justificação existe.

            O executado nunca discutiu em concreto os valores em dívida, não fazendo sentido alegar agora que existe discrepância entre o liquidado em Espanha e o liquidado nesta execução. Notemos que a liquidação espanhola é reportada a 2010 e que a liquidação portuguesa é reportada a 2012.

            Mesmo que não se provassem os factos assentes sob os nº8 a 11, o exequente não estava especialmente onerado com a prova da relação subjacente, beneficiando sempre da posse dos títulos. O executado entregou-os, pelo menos com a assinatura dele como avalista, ao exequente.

            Cabia ao executado demonstrar que as livranças tinham subjacente um pacto e que foram preenchidas contra este. Não o tendo feito, chegando mesmo a negar o tal acordo pressuposto, devemos retirar as conclusões decorrentes da titulação. Mercê da força probatória especial de que estão munidos, não destruída, os títulos constituem meio legal de demonstração da existência dos direitos.

            Pelo exposto, não merece censura a decisão recorrida.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente.

            Coimbra, 2017-02-07

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator)

 António Carvalho Martins

Carlos Moreira