Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1646/06.9TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESCRIÇÃO
REGISTO AUTOMÓVEL
OMISSÃO
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 498.º, N.º 1 E 3; 306.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O prazo de prescrição não deixa de correr mesmo que o lesado não saiba quem é que lhe causou o dano.

2. O lesado, enquanto não souber quem é o responsável pelo dano, não está impedido de fazer valer o direito que considera que lhe assiste.

3. O artigo 498.º n.º 1 do Código Civil deverá interpretar-se no sentido de que o desconhecimento do responsável pelos danos não impede que decorra o respectivo prazo de prescrição, mesmo que esse desconhecimento não resulte de negligência ou incúria do lesado.

4. Não interrompe a prescrição o recurso a acção de indemnização intentada contra a pessoa errada.

5. O comprador que, após a compra de um veículo automóvel, não procede ao registo do respectivo direito de propriedade que, por essa via, adquiriu, responde, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por violação de normas de protecção, pelos danos que essa sua omissão possa causar a terceiros, dado que, nos termos do artigo 5.º n.º 1.º a) do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, aquele registo é obrigatório.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

 

I

A... SA instaurou, na comarca de Castelo Branco, a presente acção declarativa, com  processo sumário, contra B.... L.da, C..... e Fundo de Garantia Automóvel pedindo que:

- o réu Fundo de Garantia Automóvel seja condenado a pagar-lhe a quantia de 760 € (setecentos e sessenta euros), relativa aos danos causados às guardas de segurança acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até integral e efectivo pagamento;

- a ré B.... L.da seja condenada, a título principal, e o réu  C....subsidiariamente, a pagar-lhe a franquia de 299,28 € abaixo da qual o Fundo de Garantia Automóvel não responde;

- ré B.... L.da seja condenada, a título principal, e o réu  C....subsidiariamente, a pagar-lhe o montante de 4.000 € relativos aos prejuízos decorrentes da propositura da acção n.º 635/05.5TBCTB, acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que no dia 20 de Março de 2002, ao km 89,0 do IP2 (que integra a Concessão SCUT A....), no sentido sul-norte, ocorreu um acidente de viação, que envolveu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula IQ-...., o qual embateu e danificou quatro guardas de segurança, em cuja reparação a autora suportou custos de 760 €. Em consequência do acidente ficaram na via partes do veículo, designadamente, o seu pára-choques dianteiro e vidros que constituíram obstáculo à circulação rodoviária, criando desse modo perigo para a vida ou integridade física de todos os que aí circulavam, até à remoção de tais destroços. Após aquele embate o condutor do IQ-.... ausentou-se do local, sem sinalizar os destroços e sem dar conhecimento da ocorrência, sabendo que, desse modo, colocava em perigo todos os que circulavam na via.

Nessa ocasião o IQ-.... não tinha seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, encontrava-se registada a sua propriedade em nome de D....

Tendo em vista o ressarcimento dos danos sofridos, a autora intentou uma acção de condenação contra D.... e o Fundo de Garantia Automóvel, que correu termos no Tribunal Judicial de Castelo Branco, no 1.º Juízo, sob o n.º de processo 635/05.5TBCTB. Nesse processo veio a apurar-se que a aí ré D.... tinha vendido o veiculo IQ-.... à sociedade comercial B.... L.da, em data anterior à do acidente. Por isso decidiu-se que nenhuma responsabilidade pelos danos causados podia ser imputada a essa ré. Com tal acção a autora teve prejuízos de montante superior a 4.000 €, designadamente com honorários de advogados e custas judiciais.

Após serem citados, os réus contestaram, tendo, nomeadamente, deduzido a excepção de prescrição do direito da autora por, desde a data do acidente, já ter decorrido o prazo de três anos, dizendo também que os factos alegados na petição inicial, ao contrário do que lá se afirma, não correspondem à prática de um crime previsto e punido pelo artigo 290.º n.º 1 b) do Código Penal.

Respondeu a autora reafirmando que a conduta do condutor do IQ-.... se traduz na prática do referido crime, pelo que não se deu a prescrição do seu direito.

Foi proferido despacho saneador em que se decidiu:

Termos em que, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, se decide:

a) declarar extinta, por prescrição, a obrigação de indemnização a cargo dos responsáveis civis demandados e, consequentemente, declarar extinta a correspondente obrigação do Fundo de Garantia Automóvel.

b) absolver os Réus B.... L.da, C....e Fundo de Garantia Automóvel do pedido contra si formulado pela Autora A.... SA.

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso, que foi admitido como de apelação e com efeito meramente devolutivo, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª A sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia (cfr. alínea d) do art. 668.º do CPC) ao não ter conhecido e julgado o pedido de condenação dos 1.ºs Réus como litigantes de má-fé, pedido esse expressamente formulado pela Autora na réplica apresentada à contestação daqueles e cuja decisão é independente da afirmação jurisdicional da procedência ou da improcedência do direito peticionado na p.i.

2.ª Contrariamente ao entendimento expresso na sentença recorrida, a causa de pedir na acção proposta contra os Apelados não radica exclusivamente no facto ilícito e danoso em que se traduziu o "acidente de viação" ocorrido em 20 de Março de 2002, mas também - e sobretudo - no facto da Ré e Apelada B.... L.da não ter procedido ao registo da aquisição de propriedade do automóvel na competente Conservatória, ilícito este que gerou o dano associado à instauração, em vão, de uma acção judicial - v. alínea c) do petitório na p.i.

3.ª A sentença recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação o disposto no artigo 498°, n.º 1 do Código Civil, ao considerar prescrito o direito indemnizatório formulado na alínea c) do petitório, já que o evento ilícito que suporta tal pedido só veio a revelar-se com o conhecimento de que o veículo havia sido adquirido pela Apelada sem que a mesma tivesse procedido ao seu registo na Conservatória do Registo Automóvel, o que veio só a apurar-se contestação apresentada em 12 de Abril de 2005 no âmbito da acção 635/05.5TBCTB.

4.ª Tendo a acção respeitante aos presentes autos dado entrada em 6 de Outubro de 2006, não havia então decorrido o prazo de três anos previsto no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil para a prescrição do correspondente direito indemnizatório, contrariamente ao decidido na sentença recorrida.

5.ª A correcta interpretação e aplicação conjugada dos artigos 306.º/1 e 498.º do Cód. Civil, impõe que, não havendo incúria do lesado em identificar a pessoa do responsável, o prazo da prescrição não começa a correr enquanto a pessoa do responsável não for conhecida do lesado, pois "se este não sabe, sem culpa sua, quem é o responsável, não lhe é exigível que proponha uma acção de indemnização ou de declaração do seu direito de indemnização" - cfr., por todos, Adriano Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 106.º n.º 3511, pág. 347 e, na jurisprudência, o Ac. do STJ de 04/07/2002, in Col. Jur. STJ 2002, 2.º, pág. 151.

6.ª Ao considerar que o prazo prescricional do direito de indemnização pelos danos resultantes do acidente iniciou o seu curso com esse evento, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 498, n.º 1 e 306.º, n.º 1, do Código Civil, já que, na apontada data a Apelante estava impedida de exercer o seu direito por desconhecer sem culpa sua a pessoa do responsável.

7.ª O instituto da prescrição, protege o autor da lesão no pressuposto da sua actuação conforme com o direito e no pressuposto da incúria do lesado, sendo certo que, no caso dos autos, nem o responsável pela lesão actuou em conformidade com o direito (antes ocultou a aquisição de propriedade, não registando tal facto contra aquilo a que estava obrigado nos termos do art. 50 do DL n.º 54/75, de 12 de Fev.), nem a lesada ora Apelante foi negligente na averiguação da identidade do responsável pela lesão ao recorrer para o efeito à Conservatória do Registo Automóvel, confiando no registo.

8.ª A decisão recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação os artigos 498.º, 306.º/1 e 325.º do Código Civil ao considerar que a acção anteriormente proposta pela Apelante contra o proprietário inscrito do veículo interveniente no acidente não produz efeitos interruptivos no prazo prescricional, dado que, ao contrário do decidido, a entender-se que tal prazo teria iniciado o seu curso na data do citado evento (acidente), sempre deveria ter-se tal prazo por interrompido com o início da instancia dessa acção anterior, solução ditada pela correcta interpretação conjugada dos citados normativos.

9.ª Se o lesado tem o ónus de propor a acção indemnizatória mesmo que nessa acção não cite a pessoa do responsável, por a desconhecer, deve concluir-se que o legislador reconhece que a propositura de uma tal acção instaurada no desconhecimento do autor da lesão, interrompe o efeito prescricional independentemente de ser ou não aí citado o verdadeiro e efectivo autor da lesão.

10.ª Na peculiar situação patenteada nos autos, a Apelada foi, afinal, o verdadeiro sujeito da relação jurídica controvertida na citada anterior acção, não tendo aí sido chamada, quando conhecida, porque a tal se opôs a forma sumaríssima desse processo, pelo que, impõe-se reconhecer a extensão à sociedade Apelada do efeito interruptivo aí operado com a citação do proprietário que se mostrava inscrito no registo.

11.ª Tendo o Fundo de Garantia Automóvel sido citado na anterior acção, e interrompendo-se contra este, nessa data, o prazo prescricional que porventura se encontrasse em curso (v. artigo 323.º do Código Civil), sempre se deveriam estender os mesmos efeitos interruptivos à sociedade Apelada e demais vinculados à mesma obrigação.

12.ª Ao aplicar o prazo prescricional de três anos, julgando não terem sido articulados factos suficientes para integrar o tipo de crime previsto e punido pelo artigo 290.º/1/b) do Código Penal - que prescreve em 10 anos - a sentença recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada aplicação o disposto no artigo 498.º/3 do Código Civil.

Termina pedindo que este recurso seja julgado procedente, com as legais consequências.

Os réus não apresentaram contra-alegações.

A Meritíssima Juíza proferiu despacho[1], nos termos dos artigos 668.º n.º 4 e 670.º n.º 1 do Código de Processo Civil, em que considerou não existir a nulidade de omissão de pronúncia alegada pela autora.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que, nos termos do preceituado nos artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do Código de Processo Civil, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

a) a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, ao não ter conhecido o pedido de condenação dos réus B.... L.da e C....como litigantes de má-fé;

b) o direito de indemnização da autora prescreveu.

II

1.º

O artigo 668.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil dispõe que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…);

Segundo a ré, a decisão recorrida está ferida de tal nulidade, na medida em que ao não ter conhecido e julgado o pedido de condenação dos 1.ºs réus como litigantes de má-fé, pedido esse expressamente formulado pela autora na réplica apresentada à contestação daqueles e cuja decisão é independente da afirmação jurisdicional da procedência ou da improcedência do direito peticionado na p.i.

A Meritíssima Juíza entende que assim não é, pois pronunciou-se sobre todas as questões que se impunha conhecer.

Examinada a decisão recorrida, verifica-se que nela, em momento algum, a Meritíssima Juíza toma posição quanto à alegada litigância de má-fé dos réus B.... L.da e C....

Assim, tem a autora razão quando afirma que, nesta parte, há uma omissão de pronúncia, pelo que se declara a nulidade da decisão, nesse segmento.

Uma vez que nada obsta à sua apreciação, nos termos do artigo 715.º do Código de Processo Civil é isso que se fará.

A autora, na sua resposta à contestação[2] das folhas 140 a 144, pede a condenação dos réus B.... L.da e C....como litigantes de má-fé, por estes, nos artigos 15.º a 24.º da sua contestação, terem faltado à verdade, alegando factos grosseiramente falsos.

O artigo 456.º n.º 2 b) do Código de Processo Civil estipula que litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.

Nos artigos 15.º a 24.º da contestação dos réus B.... L.da e C..., estes impugnam o que havia sido dito pela autora, nos artigos 16.º e 20.º da sua petição inicial, quanto à propriedade do veículo IQ-...., dizendo, em síntese, que o veículo IQ-.... nunca pertenceu a nenhum deles e que o mesmo foi comprado a D.... pelo filho do réu C..., que depois o vendeu a uma outra pessoa.

Não há, assim, dúvidas de que, quanto à propriedade da viatura, as partes apresentam versões opostas. É também certo que os documentos das folhas 145 e 146 apontam no sentido da tese apresentada pela autora.

Porém, não tendo tais factos sido submetidos a julgamento, mantendo-se eles controvertidos, não é possível, neste momento, saber a quem é que, realmente, D....vendeu a viatura IQ-....; se a um desses réus, como diz a autora, se a terceira pessoa, com afirmam aqueles.

Portanto, perante este cenário, não se pode afirmar, desde já, que os réus B.... L.da e C... com o alegado nos artigos 15.º a 24.º da contestação, faltaram à verdade. Isso significa que não há, por agora, fundamento para considerar que estes réus litigam com má-fé, pelo que, nesse capítulo, não podem, neste momento, ser condenados como litigantes de má-fé.

Se, em consequência do que se vier a decidir neste recurso, a acção prosseguir e aqueles factos forem submetidos a julgamento, então, nessa altura, terá que se indagar novamente se, face ao que nessa ocasião estiver provado, os réus B.... L.da e C....litigaram com má-fé.

2.º

Para a decisão relativa à excepção de prescrição, deverá considerar-se que a autora alegou, entre outros factos, que:

a) é concessionária da auto-estrada da A.....

b) instaurou uma acção de condenação (n.º 635/05TBCTB, do 1.º Juízo do Tribunal de Castelo Branco) contra D.... e o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização pelos danos causados pela destruição de quatro guardas de segurança da auto-estrada (barras de protecção), no valor de 760 €, em virtude de acidente ocorrido com o veículo de matrícula IQ-...., a 20-3-02.

c) esse veículo embateu nessas quatro guardas e, em consequência do embate, ficaram na via vidros e o pára-choques dianteiro.

d) o condutor do IQ-.... ausentou-se do local, sem sinalizar esses destroços e sem dar conhecimento do acidente à autora e à autoridade policial.

e) à data do acidente, o veículo IQ-.... tinha a sua propriedade registada em nome de D.... e não tinha o seguro obrigatório de responsabilidade civil.

f) naquela acção, veio a apurar-se que D...., aquando do mencionado acidente, já tinha vendido a viatura IQ-.... à ré B.... L.da.

g) na sentença aí proferida, a 28-10-2005, julgou-se improcedente o pedido da autora por não ser "possível estabelecer qualquer nexo de imputação subjectiva em termos de culpa entre a acidente e a ré D...., da mesma forma que, por se ter provado que o veículo já não lhe pertencia à data dos factos".

h) com essa acção sofreu danos de montante superior a 4.000 €, com honorários de advogados e custas judiciais.

i) a ré B.... L.da não procedeu ao registo do direito de propriedade, aquando da compra do veículo IQ-.....

Deverá ainda ter-se em consideração que, nos presentes autos, a autora, admitindo[3] como possível que o veículo IQ-.... possa ter sido comprado pelo réu C....(e não pela ré B.... L.da), também demandou este, ao abrigo do disposto no artigo 31.º-B do Código de Processo Civil, imputando-lhe as mesmas omissões que imputa à outra ré.

Por outro lado, é oportuno salientar que nas alegações deste recurso a autora menciona[4] alguns factos que não figuram nos articulados, motivo pelo qual, não podem ser tidos em consideração[5].

Finalmente, refira-se que esta acção foi instaurada[6] no dia 4-10-06.

O n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil dispõe que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso. E o seu n.º 3 acrescenta que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

Há, assim, que ter presente que a sujeição do prazo de prescrição do direito a indemnização fundado em responsabilidade delitual, extracontratual ou aquiliana ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica, de harmonia com o n.º 3.º do art. 498.º C.Civ. "se o facto ilícito" "primeiro dos pressupostos de toda e qualquer forma ou espécie de responsabilidade" "constituir crime"[7].

Como é sabido na responsabilidade civil extracontratual há dois tipos ou variantes de ilicitude[8], a relativa à violação de direitos subjectivos (ou de um direito de outrem)[9] e a que resulta da violação de normas de protecção (ou de lei que protege interesses alheios)[10].

No que se refere à primeira destas variantes, considerando o caso dos autos, o facto relevante é o acidente de viação, ocorrido a 20 de Março de 2002. Ora, a autora não alega que teve conhecimento do direito que lhe compete em momento posterior ao do acidente, nem mesmo na sua resposta à contestação, depois disso mesmo ter sido dito no artigo 4.º da contestação[11] dos réus B.... L.da e C.... Então, o prazo de prescrição dever ser contado a partir daquele dia, o que significa que, tendo esta acção sido instaurada a 4 de Outubro de 2006, nessa ocasião já tinham decorrido os três anos a que se refere o n.º 1 do citado artigo 498.º.

Porém, a autora afirma que em consequência do embate do veículo IQ-.... nas guardas da estrada, ficaram na via vidros e o pára-choques dianteiro da viatura, tendo-se o seu condutor ausentado do local, sem sinalizar esses destroços e sem dar conhecimento do acidente a si ou à autoridade policial. Estes factos, segundo a autora, correspondem à prática de um crime previsto e punido pelo artigo 290.º n.º 1 b) do Código Penal. Por isso, na sua tese, o prazo de prescrição é de dez anos, dado o disposto nos artigos 498.º n.º 3 do Código Civil e 118.º n.º 1 b) do Código Penal.

O artigo 290.º n.º 1 b) do Código Penal[12] estipula que quem atentar contra a segurança de transporte rodoviário colocando obstáculo ao funcionamento ou à circulação e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Este é, como bem se diz na decisão recorrida, um crime de perigo concreto, pois exige-se para o seu preenchimento a existência de uma conduta que segundo os padrões médios e as regras da experiência comum, permitam concluir pela existência do referido perigo[13]. Na verdade, a expressão e criar deste modo perigo pressupõe, sem margem para dúvidas, a necessidade de se verificar uma situação que realmente origine tal perigo.

Quanto a esse perigo, a autora alegou (somente) que ficaram na via vidros e o pára-choques dianteiro do veículo IQ-...., tendo-se o seu condutor ausentado do local sem disso dar conhecimento a si ou à autoridade policial; não se alegou se esses factos ocorreram de dia ou à noite, se nessa ocasião chovia, fazia sol ou havia nevoeiro, a que distância eram visíveis o pára-choques e os vidros, qual a quantidade de vidros, quais as dimensões do pára-choques, qual o local exacto em que tais objectos estavam na via, qual a largura da estrada e se restou ou não espaço livre para passar o trânsito automóvel.

Os factos alegados – pára-choques e vidros na via – só por si são insuficientes para se poder considerar que o condutor do veículo IQ-.... criou, efectivamente, uma situação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Para se poder concluir pela existência de tal perigo era necessário que se alegassem mais factos que, no seu conjunto, se traduzissem numa situação de perigo real, nos termos previstos na citada norma penal.

Deste modo, acompanha-se a Meritíssima Juíza quando afirma que não se mostra legítimo concluir que o comportamento imputado ao condutor (…) do veículo acidentado integra a prática do crime previsto e punido, pelo artigo 290.º n.º 1 alínea b) do Código Penal[14].

Mas, será que, como afirmam as partes e considerou a Meritíssima Juíza, o enquadramento jurídico-penal desses factos – pára-choques e vidros na via, com o posterior abandono do local sem nada reportar – é relevante para se saber se o direito da autora prescreveu?

O facto ilícito de onde emerge o direito de indemnização da autora é o embate do veículo IQ-.... nas guardas da via. Os danos que ela sofreu foram causados pela colisão da viatura nas mencionadas barras de protecção, visto que foi em consequência desse acontecimento que essas protecções ficaram danificadas e que foi com a sua reparação que a autora suportou uma despesa de 760 €. O abandono na estrada, por parte do condutor do IQ-...., do pára-choques e de vidros não causou à autora qualquer dano.

Portanto, o que é relevante para efeitos de prescrição, não é saber se o condutor do veículo IQ-...., ao deixar na estrada vidros e um pára-choques, terá cometido um crime previsto e punido pelo artigo 290.º n.º 1 alínea b) do Código Penal, mas sim se ao colidir com as guardas da via praticou algum ilícito penal.

Ora, como é sabido, há muito que o dano negligente deixou de estar criminalizado. Por isso, não tendo sido alegados factos de que resulte que o condutor do IQ-...., ao embater nas barras de protecção, agiu com dolo, terá que se concluir que essa colisão não corresponde à prática de qualquer crime.

Assim, não existe um prazo de prescrição mais longo que, nos termos do n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, se aplique ao caso dos autos, o mesmo é dizer que o prazo de prescrição do direito da autora é o de três anos, que está consagrado no n.º 1 deste artigo. 

3.º

Conforme já se deixou dito, a autora alega que, para ser indemnizada pelos danos sofridos, instaurou uma acção de condenação contra D.... e o Fundo de Garantia Automóvel, demandando aquela por que, à data do acidente, era no seu nome que estava registada a propriedade do veículo IQ-.... e que foi apenas nesse processo que veio a saber que naquela altura esta viatura já tinha sido vendida à ré B.... L.da.

Se esta ré tivesse registado a propriedade do automóvel quando o comprou, como estava obrigada, a autora poderia ter desde logo dirigido contra ela o seu pedido de indemnização. Nestas circunstâncias, entende a autora que a correcta interpretação e aplicação conjugada dos artigos 306.º/1 e 498.º do Cód. Civil, impõe que, não havendo incúria do lesado em identificar a pessoa do responsável, o prazo da prescrição não começa a correr enquanto a pessoa do responsável não for conhecida do lesado, pois "se este não sabe, sem culpa sua, quem é o responsável, não lhe é exigível que proponha uma acção de indemnização ou de declaração do seu direito de indemnização".

Ora, o artigo 498.º n.º 1 do Código Civil estabelece que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos (…).

Segundo Antunes Varela[15], se no momento em que finda o prazo (de prescrição), ainda não for conhecida a pessoa do responsável, sem culpa do lesado nessa falta de conhecimento, nada impedirá a aplicabilidade do disposto no artigo 321.º do Código Civil. Nesse sentido decidiu o Ac. do STJ de 4-7-02[16], a que a autora faz alusão[17].

Américo Marcelino[18] opõe-se a tal entendimento dizendo que o artigo 321.º estabelece um regime geral que o artigo 498.º parece restringir, na medida em que exige como marco inicial da contagem o "conhecimento do direito", menosprezando o conhecimento da pessoa do responsável e a extensão integral dos danos. Lapso do legislador? Não parece. Se nos lembrarmos, então que hoje existe o Fundo de Garantia Automóvel que intervém como sujeito passivo precisamente (…) "quando o responsável seja desconhecido" então maiores dúvidas nos deixará a doutrina do aresto. (…) Não estará em causa, portanto, uma questão de incúria ou diligência quanto à identificação do responsável. É a estatuição objectiva da lei.

No caso em apreço não há um verdadeiro desconhecimento da pessoa do lesante, no sentido de que não se sabe quem ele possa ser. O que sucede é que a autora agiu em erro quanto à pessoa do responsável, resultando esse seu erro do facto de ter considerado que ela seria aquela que figurava no registo automóvel como proprietária do veículo IQ-..... É verdade que é razoável que a autora tomasse como boa a informação que resulta do registo automóvel, pelo que nessa medida se poderá defender que não lhe é imputável o erro em que caiu. Mas, também não deixa de ser verdade que uma actuação efectivamente diligente impunha que a autora, antes de instaurar uma acção contra a titular inscrita, tivesse, extrajudicialmente, procurado contactá-la para, por essa via, tentar uma solução amigável da questão e ouvir o que esta de relevante pudesse ter para dizer. Se tem feito tal contacto, tudo indica que a titular inscrita logo lhe teria dado conhecimento de que já não era a proprietária da viatura e a teria informado da identidade da pessoa a quem ela pertencia, como veio a fazer mais tarde, já no âmbito da acção que lhe foi movida.

O elemento literal do n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil é absolutamente claro[19] ao dizer embora com desconhecimento da pessoa do responsável. Ora, o texto (da lei) é o ponto de partida da interpretação. Como tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei[20]. E o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil impõe que na interpretação dos textos legais o intérprete presumirá que o legislador … soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Por isso, a expressão embora com desconhecimento da pessoa do responsável só pode significar que o prazo de prescrição não deixa de correr mesmo que o lesado não saiba quem é que lhe causou o dano, sendo certo que nesse n.º 1 não se faz qualquer ressalva para o caso do desconhecimento não lhe ser imputável, nomeadamente por, nesse aspecto, não haver da sua parte negligência ou incúria.

O legislador considerou que a circunstância de se desconhecer o autor do dano não é motivo suficiente para que o prazo de prescrição não corra. Se assim é, logo se conclui que o lesado, enquanto não souber quem é o responsável pelo dano, não está impedido de fazer valer o direito que considera que lhe assiste. Então, neste cenário não se vê como se poderá aplicar o disposto no artigo 321.º n.º 1 do Código Civil, dado que esta norma tem justamente, entre outros, como pressuposto que o lesado está impedido de agir.

Nestes termos, salvo melhor juízo, deverá interpretar-se o artigo 498.º n.º 1 do Código Civil no sentido de que o desconhecimento do responsável pelos danos não impede que decorra o respectivo prazo de prescrição, mesmo que esse desconhecimento não resulte de negligência ou incúria do lesado. Consequentemente, tal desconhecimento não se traduz num qualquer impedimento para o exercício do direito, sob pena de, não sendo assim, haver uma clara contradição entre o n.º 1 do artigo 498.º e o n.º 1 do artigo 306.º, ambos do Código Civil. Aliás, se aquele desconhecimento se traduzisse num impedimento para o lesado agir, então como é que ele demandava o Fundo de Garantia Automóvel nos casos em que este responde, exactamente, por não ser conhecido o responsável pelos danos[21].

Desta forma, no caso em apreço, a circunstância de a autora só ter vindo a saber, bastante mais tarde, que o veículo IQ-...., afinal, pertence à ré B.... L.da, não impediu que fosse correndo o prazo de prescrição, que, por esse motivo, não sofreu qualquer suspensão, nomeadamente nos termos do disposto no artigo 321.º do Código Civil.

4.º

Segundo a autora, a decisão recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação os artigos 498.º, 306.º/1 e 325.º do Código Civil ao considerar que a acção anteriormente proposta pela Apelante contra o proprietário inscrito do veículo interveniente no acidente não produz efeitos interruptivos no prazo prescricional, dado que, ao contrário do decidido, a entender-se que tal prazo teria iniciado o seu curso na data do citado evento (acidente), sempre deveria ter-se tal prazo por interrompido com o início da instancia dessa acção anterior, solução ditada pela correcta interpretação conjugada dos citados normativos. Isto porque se o lesado tem o ónus de propor a acção indemnizatória mesmo que nessa acção não cite a pessoa do responsável, por a desconhecer, deve concluir-se que o legislador reconhece que a propositura de uma tal acção instaurada no desconhecimento do autor da lesão, interrompe o efeito prescricional independentemente de ser ou não aí citado o verdadeiro e efectivo autor da lesão.

Antes de mais refira-se que não se vê como possa ser relevante para o caso dos autos o disposto no artigo 325.º do Código Civil, na medida em que esta norma se refere ao reconhecimento feito pelo lesante perante o lesado do direito que a este assiste. Ora, da matéria alegada não consta que os réus, ou qualquer outra pessoa, tenham reconhecido, junto da autora, os direitos que esta invoca e que o tenham feito assumindo-se como responsáveis pela produção dos respectivos danos. A referência que a autora faz a essa norma resulta, provavelmente, de um erro de escrita.

Por outro lado, nos termos do artigo 323.º do Código Civil, o facto interruptivo da prescrição consiste no conhecimento que teve o obrigado, através duma citação ou notificação judicial, de que o titular pretende exercer o direito[22]. Por isso, a interrupção da prescrição só opera em relação a quem tenha sido citado ou notificado em conformidade com o previsto naquele artigo, o que, no caso dos autos, significa que a propositura da primeira acção não pode ser susceptível de ter interrompido o prazo de prescrição relativamente aos réus B.... L.da e C..., pois eles não foram ali demandados. E, para este efeito, é de todo inócuo o facto de, por essa acção seguir os termos do processo sumaríssimo, nela a autora não ter podido fazer intervir terceiros, pois, assim que concluiu que, afinal, era uma outra pessoa que devia responder, sempre podia, quiçá devia, ter, desde logo, instaurado uma acção contra esse responsável.

De qualquer maneira, regista-se que a autora não alegou quando é que essa primeira acção foi instaurada e quando é que os aí réus foram citados. Se pretendia, como pretende, fazer valer a interrupção da prescrição tinha que ter alegado a data em que ocorreram os factos que produzem tal efeito. Perante a excepção de prescrição, se a autora lhe responde com essa contra-excepção tem o ónus de alegar os respectivos factos[23]. Se o réu invocar a prescrição (…), sobre o autor recairá, por sua vez, o ónus de provar a suspensão ou a interrupção da prescrição que haja obstado à consumação desta[24], dado que quanto à noção e modalidades das réplicas ou contra-excepções vale, mutatis mutandis, a doutrina já exposta para a defesa por excepção[25].

Acontece que nenhuma data foi alegada. Assim, apesar de se ter alegado que contra o aqui réu Fundo de Garantia Automóvel já correu uma primeira acção e de, por isso mesmo, nesse processo terem sido, necessariamente, praticados actos que são susceptíveis de interromper o prazo de prescrição à luz do disposto no artigo 323.º do Código Civil, a verdade é que não se sabe quando é que eles ocorreram, o que implica o desconhecimento do momento em que tal interrupção se deu. Face a esse desconhecimento, não há factos que suportem a afirmação de que ainda não se consumou o prazo de prescrição.

Aqui chegados, há que concluir que, no que toca à responsabilidade civil extracontratual, em que a ilicitude se refere à violação de direitos subjectivos, na qual o facto relevante é o acidente de viação ocorrido a 20 de Março de 2002, deu-se a prescrição do direito invocado pela autora, por terem decorrido os três anos mencionados no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil.

Está, portanto, prescrito o seu direito subjacente aos dois primeiros pedidos, formulados sob a) e b), nas folhas 48 e 49.

5.º

 No entanto, como bem salienta a autora, segundo o por si alegado, a ré B.... L.da, ao não registar a seu favor a aquisição do veículo IQ-...., levou a que ela tivesse intentado, em vão, a acção n.º 635/05TBCTB, no convencimento de que a aí demandada D.... era a proprietária desta viatura. Esse engano, por sua vez, assentou no facto de ser esta quem figurava, no registo automóvel, como proprietária do veículo. Essa acção, segundo se alega, causou à autora prejuízos de montante superior a 4.000 €, com os honorários de advogados e as custas judiciais. E o terceiro dos pedidos é precisamente referente aos prejuízos decorrentes da propositura em vão da citada acção.

Ora, nos termos do artigo 5.º n.º 1.º a) do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o direito de propriedade dos veículos está sujeito a registo, o qual, por força do n.º 2 deste mesmo artigo, é obrigatório. Por outro lado, o artigo 42.º do Decreto n.º 55/75 de 12 de Fevereiro estipula que o registo obrigatório deve ser requerido no prazo de 60 dias a contar da data do facto.

Perante este quadro, logo se conclui que, tal como a autora configura a acção, a ré B.... L.da, após comprar o veículo IQ-...., não procedeu ao respectivo registo do direito de propriedade, sendo que aquela compra ocorreu antes de 20 de Março de 2002. É essa omissão que faz com que, quando a autora quer responsabilizar o proprietário desta viatura, instaure a respectiva acção, não contra a ré B.... L.da, mas sim contra D..... E fê-lo porque era esta quem ainda figurava no registo automóvel como sendo a proprietária do IQ-.....

Não há assim dúvidas de que aquela omissão é causal do erro em que agiu a autora, ao demandar D...., e que ela se traduz no incumprimento de um dever imposto por uma norma legal.

Convém ainda lembrar que o registo automóvel, como qualquer registo[26], tem por finalidade publicitar os factos a ele sujeitos, para que, sendo eles conhecidos pela comunidade, todos possam, em função deles, agir na medida dos seus interesses. A possibilidade de conhecer com verdade a situação jurídica de pessoas e coisas constituiu elemento essencial à confiança no estabelecimento de relações jurídicas e consequentemente à confiança na vida em sociedade. (…) Foi para responder a essa necessidade de certeza jurídica que os Estados organizaram os registos públicos[27].

Como já se disse, na responsabilidade civil extracontratual a ilicitude pode resultar da violação de normas de protecção.

Para esse efeito é necessário que:

1.º à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal;

2.º a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada;

3.º o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar[28].

Nos termos da causa de pedir, em que (também) assenta a pretensão da autora, há uma relação de causalidade adequada entre os danos por ela sofridos e o incumprimento, pela ré B.... L.da, da sua obrigação legal de registar o seu direito de propriedade relativo ao veículo IQ-..... Esse registo visa permitir a qualquer um saber quem é o proprietário do IQ-.... de modo a que, sendo esse facto juridicamente relevante, se conheça contra quem se pode exercer o direito que se entender ter. E os danos sofridos pela autora ocorreram, justamente, nos seus interesses que o registo visa tutelar, dado que este pretende assegurar a todos o exercício de quaisquer direitos em função dos factos que nele figuram, na medida em que o facto registado seja relevante para tal fim.  

Desta forma, estão preenchidos aqueles três requisitos, o que significa que, à luz do que se deixa dito, os factos alegados pela autora também configuram uma ilicitude, na conduta da ré B.... L.da, decorrente da violação de normas de protecção.

Se, como estabelece o n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, o prazo de prescrição se começa a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, tinham os réus que, nos termos do artigo 342.º n.º 2 do Código Civil, ao deduzir a excepção de prescrição, alegar em que momento é que a autora teve conhecimento do direito daqui decorrente. Esse conhecimento ocorreu quando a autora soube que o veículo IQ-...., afinal, pertencia à ré B.... L.da e se apercebeu que esta não tinha cumprindo a sua obrigação de registar o respectivo direito de propriedade; deu-se, pois, posteriormente à data do acidente.

Ora, os réus não alegaram em que altura é que a autora terá tido esse conhecimento, o que significa que não é possível concluir-se que, desde tal momento, já decorreu o respectivo prazo de prescrição de três anos.

Nestes termos, é improcedente a excepção de prescrição do direito da autora em que assenta o terceiro dos seus pedidos[29].

Mas, esta responsabilidade decorrente do incumprimento da obrigação de registar a propriedade do veículo só recai sobre o titular desse direito, pois somente ele é que tem tal dever, o mesmo é dizer que por tais factos não responde, de forma alguma, o réu Fundo de Garantia Automóvel.

Finalmente, deverá ter-se presente que tudo o que acima se deixou dito quanto à ré B.... L.da aplica-se, no âmbito do disposto no artigo 31.º-B do Código de Processo Civil, ao réu C.....

III

Com fundamento no atrás exposto julga-se o recurso parcialmente procedente e:

- declara-se a nulidade da decisão recorrida na parte em que não se pronunciou quanto à alegada litigância de má-fé dos réus B.... L.da e C....e, nos termos do artigo 715.º do Código de Processo Civil, apreciando-se tal questão, decide-se que, por estar controvertida a matéria de facto relevante para a mesma, não há elementos para, por agora, se poder decidir se estes réus litigam com má-fé, relegando-se para a decisão final a apreciação de tal matéria;

- julga-se improcedente a excepção de prescrição do direito da autora subjacente ao terceiro dos seus pedidos, o qual se encontra formulado sob c) na folha 49, revogando-se nessa parte a decisão recorrida.

No mais, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela autora e pelos réus B.... L.da e C....na proporção dos decaimentos.


[1] Cfr. folhas 241 e 242.
[2] Cfr. folhas 140 a 144.
[3] Cfr. artigos 19.º e 20.º da petição inicial.
[4] No verso da folha 205, alega que a sentença do processo 635/05TBCTB foi proferida a 28-10-05 e, nas folhas 211 e 221, que foi com a contestação apresentada nessa acção, a 12-4-05, que teve conhecimento de que a ré B.... L.da era a proprietária do veículo IQ-...., aquando do acidente.
[5] Cfr. artigo 151.º do Código de Processo Civil.
[6] Por fax enviado nesse dia, às 22h e 59m.
[7] Ac. STJ de 2-12-04, Proc. 04B3724.
[8] Cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Vol. III, pág. 294 e seguintes, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 486 e seguintes, Almeida Costa Direito das Obrigações, 5.ª Edição, pág. 451 e seguintes, Ac. STJ de 12-6-07, Ref. 3769/2007 e Ac. Rel. Guimarães de 2-10-02, Ref. 9074/2002, estes em www.colectaneadejurisprudencia.com.
[9] Os direitos subjectivos aqui abrangidos (…) são, principalmente, os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas (…) ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual, Antunes Varela, obra citada, pág. 486.
[10] Trata-se de normas que, embora dirigidas à tutela de interesses particulares – quer exclusivamente, quer conjuntamente com o interesse público – não atribuem aos titulares desses interesses um verdadeiro direito subjectivo, por não lhes atribuírem em exclusivo o aproveitamento de um bem, Menezes Leitão, obra citada, pág. 299.
[11] Cfr. folha 97.
[12] Na sua redacção vigente em 2002.
[13] Cfr. folha 181.
[14] Cfr. folha 189.
[15] Obra citada, pág. 588.

[16] Pode ser consultado em www.colectaneadejurisprudencia.com.
[17] Cfr. folha 214.
[18] Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 10.ª edição, pág. 256.
[19] Lex clara non indiget interpretatione.
[20] Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª Reimpressão, pág. 182.

[21] Cfr. artigos 47.º e 49.º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto e artigo 21.º do Decreto-Lei 522/85 de 31 de Dezembro.
[22] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, 3.ª Edição, Vol. I, pág. 289.
[23] Neste sentido Ac. STJ de 14-2-95, Proc. 086237, www.dgsi.pt, Ac. Rel. Lisboa de 19-5-94, Ref. 4147/1994 e Ac. Rel Porto de 14-12-05, Ref. 7661/2005, estes em www. colectaneadejurisprudencia.com.
[24] Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 304.
[25] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 169.
[26] Cfr. nomeadamente o artigo 1.º do Código do Registo Predial ou o artigo 1.º do Código do Registo Comercial.
[27] Seabra Lopes, Direito dos Registos e do Notariado, 5.ª edição, pág. 11 e 12.
[28] Antunes Varela, obra citada, pág. 492 e 493. A este propósito pode ainda ver-se Menezes Leitão, obra citada, pág. 299.
[29] Formulado sob c) na folha 49.