Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
290/12.6TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
FACTOS
ACUSAÇÃO
COMUNICAÇÃO
ARGUIDO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
Data do Acordão: 05/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152.º, 143.º, N.º 1, 145.º, N.ºS 1, AL. B), E N.º 2, E 132.º, N.º 2, AL. B), DO CP; ARTIGO 358.º, N.ºS 1 E 3, DO CPP
Sumário: A condenação de arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, por referência à al. b) do n.º 2 do art. 132.º (todas estas normas são do CP), num contexto em que, pelos mesmos factos, ao mesmo estava imputado, na acusação pública, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma legal, consubstancia tão só alteração de qualificação jurídica, que não carece de comunicação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, porquanto, constituindo o primeiro dos ilícitos um “minus” em relação ao segundo, o visado teve necessariamente conhecimento de toda a factualidade integrante dos seus elementos constitutivos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 290/12.6TAACN, do Tribunal Judicial da Alcanena, o arguido A... (melhor identificado nos autos), após ter sido acusado pelo Ministério Público como autor material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º nºs 1 e 2 do Código Penal, foi submetido a julgamento tendo, a final (a fls. 200 a 219), sido proferido sentença em que se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial):

“Atento o exposto, decide-se:

a)- absolver o arguido A... de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal;

b)- condenar o arguido A... na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 145.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, por referência à al. b) do n.º 2, do art.º 132.º, todos do CP;

c)- substituir a pena de 6 meses de prisão aplicada ao arguido A... por 180 dias de multa, à taxa diária de € 7 (sete) euros, no total de € 1.260 (mil duzentos e sessenta) euros;

 d)- condenar o mesmo arguido na taxa de justiça, que se fixa em 3 UC (art.ºs 513.º, n.º 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP) e nos demais encargos a que sua actividade houver dado lugar (art.º 16.º do RCP).

(…)”

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 222 a 225), retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

I- O Arguido foi acusado pelo Ministério Público e julgado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 alínea a) e nº 2 do C.P.

II - O Arguido vela a ser absolvido da prática do crime de violência doméstica e condenado pelo crime de ofensa à Integridade física qualificada p. e p pelo artigo 145º, nº 1 alínea b) e nº 2, por referência a alínea b) do nº 2 do artigo 132º todos do C.P, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (Sete euros) no total de € 1260,00 (Mil duzentos e sessenta euros)

III Nos presentes autos, verificou-se uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, alteração que não foi comunicada ao Arguido.

IV- A mera alteração da qualificação jurídica não constitui alteração de factos (substancial ou não substancial) mas é-lhe aplicado o regime jurídico da alteração não substanciai dos factos.

V- Nos termos conjugados dos artigos 379º, nº 1 alínea b), 358º, nº 1 e 3 do CPP, e nula a sentença que, sem prévia comunicação ao Arguido, procede à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.

VI- A não comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica implica a nulidade da decisão, nos termos do mencionado artigo 379º, nº 1 alínea b) do CPP

VII - A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo violou o estatuído no nº 3 do artigo 358º do CPP e, ao agir desta forma, cometeu a nulidade referida no artigo 379º nº 1 alínea b) do mesmo diploma

VIII - Os crimes de violência doméstica e da integridade física qualificada são distintos entre si, quer nos seus elementos objetivos quer nos subjetivos.

IX - A alteração de direito, da qualificação jurídica, será sempre questão de relevo para a decisão da causa.

X - O crime de violência doméstica tem natureza pública, sendo que o MP tem legitimidade para promover o processo penal (vd artigo 48º do CPP)

XI - O procedimento criminal pelo crime de ofensas a Integridade física qualificada, crime pelo qual o Arguido foi condenado pelo Tribunal o quo , depende de queixa, sendo que a queixa constitui o pressuposto para que o processo penal possa iniciar-se.

XII - No caso em apreço, a ofendida não manifestou de forma clara e inequívoca a vontade de exercer a ação penal contra o arguido pelo que é de concluir pela ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo, nomeadamente deduzir acusação na ausência de queixa da ofendida

XIII - Tendo alterado a qualificação Jurídica em face dos factos considerados provados, o Tribunal o quo deveria ter declarado inadmissível o procedimento criminal por inexistência de queixa da ofendida, pelo que, não o tendo feito, a douta sentença enferma, nessa parte e por tal fundamento, de nulidade.

Termos em que, e nos que doutamente serão supridos por V.ªs. Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se nula a sentença recorrida por violação do estatuído no nº 3 do artigo 358º, conjugado com o nº 1, b) do artigo 379º ambos do CPP e inadmissível o procedimento criminal por ausência de queixa.

Fazendo assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!”

3. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 226.

4. A assistente B... (a fls. 231 a 240), respondeu ao recurso concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida nos seus precisos termos.

5. O Ministério Público junto da primeira instância, a fls. 242 a 250, respondeu também ao recurso, concluindo que, no que respeita à arguida nulidade da sentença por falta da comunicação da alteração da qualificação jurídica, deverá ser dado provimento, o mesmo não sucedendo em relação à invocada inadmissibilidade legal do procedimento criminal pela alegada falta de queixa porquanto o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza pública.

6. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto (a fls. 258 e 259), acompanhando a resposta da magistrada do Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento como defendido por aquela magistrada.

7. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso as questões suscitadas, apenas de direito, consistem em saber:
1 - Se a sentença é nula nos termos do artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal, por não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nºs 1 e 3 do mesmo código;
2 - Se o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza semi-pública e, nessa medida, por falta de queixa, ao Ministério Público não assistia legitimidade para promover o processo.
                                                    *
Vejamos o que da sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto ao enquadramento jurídico dos mesmos (transcrição):

“A)- Factos Provados

1. A assistente B... e o arguido A... casaram-se no dia 2 de Dezembro de 1978 e residem numa habitação sita na (...), Concelho de Alcanena;

2. O referido casal tem dois filhos em comum, C... e D...., ambos já maiores de idade e economicamente independentes, tendo o filho D... residido com os seus progenitores, na morada supra indicada, até Junho de 2013;

3. Nos últimos treze a catorze anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, algumas vezes, dirigiu-se à assistente, quer quando se encontrava a sós com ela quer na presença de terceiros, dizendo-lhe “ És uma burra “ e, pelo menos uma vez, “És uma chula “;

4. O arguido assumiu sozinho a gestão da casa e os negócios de família;

5. No início do ano de 2012 e após a assistente ter dito ao arguido que se queria divorciar, continuaram a viver na mesma casa, mas a dormir em quartos separados;

6. O arguido não aceitou inicialmente o divórcio;

7. Por diversas vezes, o arguido convidou diversos amigos e outras pessoas para o interior da residência e para o anexo próximo da residência, tendo, em algumas dessas vezes, alguns dos convidados permanecido nesses espaços até de madrugada;

8. O arguido cancelou o cartão de crédito que dera à assistente e que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas;

9. No dia 15 de Agosto de 2012, no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, durante a qual o arguido disse à assistente para tirar a sua roupa do quarto porque precisava desse espaço para pôr a roupa de outra mulher e após a assistente se ter posto à frente da porta do quarto de vestir para evitar que o arguido retirasse as suas roupas daquele local, o arguido agarrou nos braços da assistente e, mantendo-os agarrados, empurrou-a até a colocar fora da porta do referido quarto;

10. Em consequência directa e necessária desta conduta do Arguido, a assistente sofreu dores nas zonas corporais atingidas e recebeu, nesse mesmo dia, assistência médica no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria/Pombal, tendo apresentado hematoma na face interna de ambos os braços;

11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, que concretizou, de ofender a honra e dignidade da assistente e de a molestar fisicamente;

12. O arguido sabia ainda que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal;

13. A assistente intentou procedimento cautelar de alimentos provisórios contra o arguido em 28/12/2012, que correu os seus termos neste Tribunal sob o n.º 514/12.0TBACN, no qual requereu que este lhe prestasse alimentos pois dele carecia, o qual veio a ser julgado improcedente por sentença proferida em 19/04/2013, já transitada em julgado;

14. Em Agosto 2013, o arguido passou a residir num anexo da casa de morada de família e independente desta;

15. No dia 15/08/2012, o arguido pediu à assistente uma reunião para lhe sugerir que tratassem do divórcio no Conservatória do Registo Civil, de comum acordo;

16. Durante a reunião, a assistente disse-lhe que isso só aconteceria se tratassem do divórcio e partilhas ao mesmo tempo;

17. Na data referida em 15), a assistente já dormia há algum tempo no quarto que era da filha do casal, no qual tinha os seus pertences mais frequentemente utilizados;

Mais se provou que:

18. O arguido não tem antecedentes criminais;

19. Encontra-se desempregado, auferindo um subsídio atribuído pela Segurança Social de € 582 por mês;

12. O arguido vive em casa própria;

13. É proprietário de um armazém situado em Mira d’ Aire, de quatro prédios urbanos (dois apartamentos e duas casas), de pelo menos 7 prédios rústicos, a maior parte deles no concelho de Alcanena, e de dois barcos;

14. O arguido tem o curso superior de engenharia têxtil.

*

B)- Factos não provados:

Não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que:

a)- o arguido tenha dirigido à assistente as expressões “És uma vadia”, “És uma puta”, “És uma cadela”, “Só queres boa vida”, “Habituaste-te a maus costumes”, “devias desaparecer”, “fazes tanta falta como a fome”, “vou-te secar financeiramente”, “não te dou cavaco dos rendimentos do nosso património” e “vais morrer de fome sua cadela”;

b)- o arguido se tenha dirigido ao quarto onde a assistente se encontrava a dormir, na residência supra indicada e por mais do que uma vez, sem que nada o fizesse prever ou justificar, tivesse começado a dar-lhe safanões e a empurrá-la, fazendo com que a mesma acordasse sobressaltada e que lhe tenha dito que não a queria ali e que a expulsava do quarto:

c)- o arguido, em vários telefonemas que efectuou para a assistente, a tenha chamado de “mulher da vida” e “chula”;

d)- o arguido nunca tenha deixado a assistente ter acesso às contas bancárias, aos lucros dos negócios e às rendas das casas das arrendadas pelo casal, ocultando desse modo os rendimentos dos bens do casal; e)- sempre que a assistente necessitava de dinheiro para efectuar despesas, o arguido apenas lhe tenha entregado o que queria e que, desse modo, a conseguia controlar economicamente;

f)- por diversas vezes, tenha dito à assistente, em tom de voz sério, exaltado e ameaçador: “queres o divórcio, eu deixo-te sem nada” “vais morrer de fome, sua cadela, vou-te secar financeiramente”, “seu eu quiser ficas na miséria”, e que queimaria e destruiria todos os haveres da assistente, tais como, vestuário e objectos pessoais:

g)- nos convívios promovidos pelo arguido em sua casa, os convidados tenham permanecido no interior da residência a fazer barulho, fazendo com que a assistente não conseguisse dormir e ficasse limitada em movimentar-se no interior da sua própria casa;

h)- o arguido, quando confrontado pela assistente sobre o cancelamento do cartão de crédito que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas, de crédito ), lhe tenha dado um empurrão e lhe tenha dito “és uma chula… pensas que vou continuar a sustentar-te … não sou teu paizinho”;

i)- o arguido, em 15/08/2012, tenha dado safanões à assistente;

Não se provaram igualmente os factos alegados nos art.ºs 8.º, 9.º, 11.º, 21.º da contestação do arguido.

*

(…)

*

Enquadramento jurídico – penal dos factos apurados

Fixados os factos, cabe proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo.

O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos do tipo legal de crime. É ilícito quando a conduta do agente é desconforme com valores jurídico-penais e é culposo quando a conduta do agente é censurável e, por isso, deve ser reprovada ao seu autor.

Vejamos então se o arguido pode ser penalmente responsabilizado nos termos constantes da acusação.

O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 14.º e 26.º, todos do Código Penal.

Dispõe o referido normativo, e no que no caso dos autos releva, o seguinte:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

 O crime de violência doméstica encontra-se sistematicamente integrado no título dos crimes contra as pessoas, visando a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, aliás, um dos vectores axiológicos constitucionalmente reconhecido e tutelado, matriz de todos os direitos pessoais (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa).

O bem jurídico protegido por este tipo de crime “é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que (...) afectem a dignidade pessoal do cônjuge” - Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense”, p. 332 e no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, (Rel. Des. Conceição Gomes, proc. 0041056, in http://www.dgsi.pt).

O Conselho da Europa caracterizou a violência na família como “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” (Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivo, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna) – citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2º vol., p. 179.

“O aparecimento de um novo tipo de crime de maus tratos no Código Penal de 1982, na sequência do projecto de Eduardo Correia, tem como fundamentos, além das experiências estrangeiras, a consciencialização de que a violência frequente entre pessoas relacionadas, em regra dependentes e fragilizadas, é um grave problema social (…)” – Catarina Sá Gomes, in “O Crime De Maus Tratos Físicos E Psíquicos Infligidos Ao Cônjuge Ou Ao Convivente Em Condições Análogas Às Dos Cônjuges”, AAFDL, Lisboa, 2002, p. 13.

«A criminalização das condutas inseridas na chamada “violência doméstica”, e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao cônjuge (...) maus tratos físicos ou psíquicos. Assim, neste tipo de criminalidade, as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus tratos físicos e psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservada da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal» - Ac. R. L. de 6 de junho de 2001, (Rel. Des. Adelino Salvado, proc. 0034263, disponível in http://www.dgsi.pt).

Caracteriza este tipo de crime, singularizando-o, ou o carácter reiterado das agressões à dignidade humana ou o grau de intensidade da referida agressão. Com efeito, este tipo legal de crime inclui comportamentos que de forma reiterada ou intensa lesam a dignidade humana da vítima.

Como refere a exposição de motivos da proposta de Lei n.º98/X “na descrição típica da violência doméstica recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”. Ecfetivamente, a actual redação do preceito legal estatui «Quem, de modo reiterado ou não, (…)». O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflição de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar.

Outra das características deste tipo legal é a específica relação de proximidade entre agente e vítima, impondo àquele um qualificado dever de respeito, e criando naquela uma qualificada esperança de protecção e consideração – por isso se trata de um crime especial próprio. E daí advém a especial censura que a ordem jurídica dirige às condutas que o realizam, sancionando-as, sem alternativa, com pena de prisão de 1 a 5 anos.

São elementos objetivos do tipo: a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos a qualquer das pessoas mencionadas na alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º.

Ora, os maus tratos físicos consistem em actos de violência física – ataque ao corpo –, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, que sujeitam a vítima a humilhações, vexames, provocações, injúrias, ameaças.

Quanto aos elementos do tipo subjetivo, exige-se o dolo, bastando-se a lei com qualquer uma das suas modalidades (cfr. artigo 14.° do Código Penal).

 Conforme claramente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/09/2011 (disponível in www.dgsi.pt), cujo entendimento perfilhamos integralmente, há que atentar que “Temos assim que a panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente [Plácido Conde Fernandes, pág. 307]; caracterizadas como maus tratos, entende-se que a situação integra um padrão de comportamentos com uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima - razão pela qual é crime. (…)

Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa [vítima] tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de “maus tratos”. E estes [maus tratos] só se dão como verificados quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.

No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima (…).

O que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como "maus tratos". Pois se assim for, e ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efectivo, é de admitir a existência de um perigo para a vida e para a saúde da vítima, que o legislador, consciente do padrão de comportamento deste tipo de agressores (por regra, intensifica o caudal de violência ou de manipulação da vítima ao longo do tempo), procura protegê-la por antecipação e de forma reforçada.

Com relevância para a apreciação do caso concreto, resultou provado que a assistente e o arguido são casados entre si desde 02/12/21978, que, nos últimos treze a catorze anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, algumas vezes, dirigiu-se à assistente, quer quando se encontrava a sós com ela quer na presença de terceiros, dizendo-lhe “ És uma burra “ e, pelo menos uma vez, “És uma chula “ e que, no dia 15/08/212, no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, durante a qual o arguido disse à assistente para tirar a sua roupa do quarto porque precisava desse espaço para pôr a roupa de outra mulher e após a assistente se ter posto à frente da porta do quarto de vestir para evitar que o arguido retirasse as suas roupas daquele local, o arguido agarrou nos braços da assistente e, mantendo-os agarrados, empurrou-a até a colocar fora da porta do referido quarto, o que lhe provocou um hematoma na face interna de ambos os braços.

Não obstante as expressões que o arguido dirigiu à assistente terem carácter ofensivo e constituírem uma manifestação evidente de violação do dever de respeito que deve existir entre os cônjuges e que legalmente está consagrada (art.º 1672.º do Cód. Civil) e ser igualmente inquestionável que o arguido no dia 15/08/2012, molestou fisicamente e assistente, quando a agarrou e empurrou, a verdade é que as expressões referidas, embora tenham sido ditas pelo arguido mais do que uma vez, e o episódio de agressão física não consubstanciam, isolada ou conjuntamente analisadas, condutas especialmente violentas ou que globalmente configurem uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, ou seja, não revestem a gravidade ou a intensidade do desvalor da acção e do resultado típicas do crime de violência doméstica. Com efeito, tais condutas não representam um potencial de agressão que, em abstrato, supere ou transcenda a proteção oferecida pelos crimes de injúria e de ofensa à integridade física, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade psíquica da vítima.

 As condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem num contexto de mau estar entre os cônjuges, de conflito conjugal e da iminente ruptura do casamento entre aquele e a assistente, que de certa maneira

Arredada está, assim, a punição da conduta do arguido como integrante de um crime de violência doméstica, impondo-se a sua absolvição quanto a tal.

*

Porém, atendendo ainda à situação de concurso aparente com os crimes de injúria e de ofensa à integridade física previsto e punido nos artigos pelos art.ºs 181.º e 143.º do Cód. Penal cumprirá, desde já, averiguar da subsunção das referidas condutas a estes tipos de crime.

De acordo com o disposto no artigo 181.º do Cód. Penal, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

Acontece, porém, que o crime de injúria reveste natureza particular, pelo que exige não só que o titular do direito se queixe e se constitua assistente, como também deduza acusação particular (art.ºs 113.º, n.º 1, e 188.º do C.P. e art.ºs 48.º a 52.º do CPP).

Ora, no caso dos autos, a assistente não deduziu acusação particular, pelo que o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a acção penal quanto ao indicado crime.

Assim, o procedimento criminal quanto a tal crime, não é legalmente admissível e, por isso, o tribunal não pode dele conhecer.

Vejamos de seguida se a conduta integra o crime de ofensa à integridade física.

Comete o crime de ofensa à integridade física simples quem ofender o corpo e a saúde de outra pessoa (artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal), podendo tal ofensa ser qualificada quando o facto for praticado contra o cônjuge ou ex-cônjuge (art.º 145.º, n.º 1, al. a). e n.º 2, do CP).

O presente ilícito penal caracteriza-se também por ser um crime de execução não vinculada, já que pode ser perpetrado por qualquer meio, não estando a sua execução descrita no tipo, e traduz-se num crime de resultado, cuja consumação depende da produção de um evento espácio-temporalmente distinto da acção.

 A ofensa à integridade física consubstancia-se ainda num crime de produção instantânea, consumando-se imediatamente com a acção produtiva do dano corporal.

Por fim, estamos perante um crime doloso, já que a sua efectivação pressupõe uma conduta intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde do ofendido.

São elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física: a) uma acção do agente dirigida a outra pessoa b) a ofensa no corpo ou na saúde da outra pessoa.

No caso concreto, a verificação destes elementos constitutivos não suscita qualquer dúvida, uma vez que o arguido agarrou nos braços da assistente e empurrou-a, provocando-lhe dor e uma hematoma na zona do braço atingida, sendo certo que o mesmo projectou esta sua actividade delituosa e, agindo livre, voluntária e conscientemente, quis concretizá-la, como efectivamente concretizou nos moldes descritos, sabendo que a sua conduta é punida por lei.

Além disso, e pese embora a iminente ruptura da sociedade conjugal e o conflito latente entre o arguido e a assistente daí resultante, a verdade é que o arguido agiu totalmente indiferente à relação conjugal que mantinha com a assistente (há quase 34 anos) e ao dever de respeito que dessa relação para si nasceu, relação e dever de que estava bem ciente, no interior da residência do casal, quando ambos estavam sozinhos (circunstâncias que dificultam a prova da ofensa e a busca de ajuda), razão pela qual se entende que a conduta do mesmo revela a especial censurabilidade prevista na al. b) do n.º 2, do art.º 132.º do CP.

Ora, estando preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 145, n.º 1, al. a), do CP, e não se verificando qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, conclui-se que o arguido cometeu o indicado crime.”

Apreciando.

Questão 1:
A primeira questão consiste em saber se a sentença é nula, por violação do artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal, devido ao facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto nos artigos 358º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Desde já adiantamos inexistir razão ao recorrente.
Vejamos o que dispõem os arts 379º nº 1 b), 358º e 359, todos do Código de Processo Penal.
Artigo 379.º
Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
a) (…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
Artigo 358.º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Artigo 359.º
Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
Teçamos algumas considerações, ainda que muito telegráficas, acerca da alteração substancial e não substancial dos factos.

Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento.

Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos:

Quanto à alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos é, pois, uma alteração dos “factos”, do pedaço da vida que consta da acusação ou da pronúncia. Dessa alteração dos “factos”resulta a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alteração não substancial dos factos, representando embora uma modificação dos “factos” que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Da alteração substancial ou não dos factos, distingue-se a alteração da qualificação jurídica dos factos, a que alude o art.358.º, n.º3 do Código de Processo Penal.
Uma alteração da qualificação jurídica dos factos, sem que haja qualquer modificação dos factos da acusação ou da pronúncia, não está submetida ao regime do art.359.º do Código de Processo Penal, mas sim ao do art. 358.º, n.º 3 do mesmo código.
Quer na situação de não alteração substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efectiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.
Porém, como se anota no acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07P2596 (in www.dgsi.pt) “ É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a comunicação ao arguido a que alude o art.358.º, n.º 3, do CPP não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar (v.g., convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o tipo simples).”
E neste mesmo sentido já anteriormente se havia expressado o mesmo STJ quando dizia:
“Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação ou da pronúncia, para efeitos do artigo 358º do Código de Processo Penal, quando os factos considerados provados representam um minus relativamente àqueles” (Ac STJ de 03/04/1991, in CJ Ano XVI, Tomo II, pag 17);
Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação, quando os factos provados representam um minus relativamente àqueles, não sendo sequer necessária, nestes casos, a comunicação a que alude o artigo 358º do Código de Processo Penal” (Ac STJ de 12/11/2003, proc. 1216/03.-3ª SASTJ, nº 75, 93).
E neste mesmo sentido também se pronunciam, entre outros, o Prof. Pinto de Albuquerque, no "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815.
Por fim, importa aqui consignar, repetindo, que o art. 379.º, n.º1, do Código de Processo Penal , estatui, designadamente, que é nula a sentença:
 « b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.» (sublinhado nosso)
No caso em apreciação, é certo que o arguido tinha sido acusado de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º nºs 1 a) e 2 do Código Penal e veio a ser condenado por uma crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145º nºs 1 al. b) e 2, por referência à alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
Todavia, existe identidade entre os factos que constavam da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida.
A diferença de factualidade na sentença recorrida, relativamente à acusação, como passaremos a ver (por comparação entre a acusação e a sentença)  está apenas em que foram dados como provados menos factos do que aqueles que constavam da acusação.

E para melhor ser feita essa comparação coloquemos na tabela que segue, lado a lado os factos da acusação (que ficarão à esquerda) e os factos que na sentença foram dados como provados (que ficarão à direita):

Acusação                                                Sentença

1.º) A Ofendida B... e o Arguido A... casaram-se no dia 2 de Dezembro de 1978 e residem numa habitação sita na (...), Concelho de Alcanena;1. A assistente B... e o arguido A... casaram-se no dia 2 de Dezembro de 1978 e residem numa habitação sita na (...), Concelho de Alcanena;
2.º) O referido casal tem dois filhos em comum, C...e D..., ambos já maiores de idade e economicamente independentes, continuando o filho D... a residir junto dos seus progenitores, na morada supra indicada.2. O referido casal tem dois filhos em comum, C...e D..., ambos já maiores de idade e economicamente independentes, tendo o filho D... residido com os seus progenitores, na morada supra indicada, até Junho de 2013;
3.º) Nos últimos treze a catorze anos, o Arguido passou a assumir, por inúmeras vezes, quer quando se encontrava a sós com a Ofendida, quer na presença de terceiros, um comportamento conflituoso, desrespeitador e ofensivo para com a ofendida.3. Nos últimos treze a catorze anos, em datas não concretamente apuradas, o arguido, algumas vezes, dirigiu-se à assistente, quer quando se encontrava a sós com ela quer na presença de terceiros, dizendo-lhe “ És uma burra “ e, pelo menos uma vez, “És uma chula “;
4.°) Assim, em datas não concretamente apuradas, mas durante o período temporal supra indicado, o Arguido:

4.1) dirigiu-se à Ofendida e por diversas vezes, disse-lhe: " És uma burra "; " És uma chula "; " És uma vadia "; " És uma puta "; " És uma cadela "; " Só queres boa vida ... habituaste-te a maus costumes ... devias desaparecer ... fazes tanta falta como a fome."; " vou-te secar financeiramente "; " não te dou cavaco dos rendimentos do nosso património "; "vais morrer de fome sua cadela".

4.2) dirigiu-se ao quarto onde a Ofendida se encontrava a dormir, na residência supra indicada e por mais do que uma vez, sem que nada o fizesse prever ou justificar, começou a dar-lhe safanões e a empurrá-la, fazendo com que a mesma acordasse sobressaltada, tendo-lhe dito que não a queria ali e expulsava-a do quarto.

4.3) em vários telefonemas que efectuou para a Ofendida, chamou-a de " mulher da vida"; " chula ";

5.°) O Arguido quis assumir sempre sozinho a gestão da casa e os negócios de família, nunca tendo deixado a Ofendida ter acesso às contas bancárias, aos lucros dos negócios e às rendas das casas das arrendadas pelo casal, ocultando desse modo os rendimentos dos bens do casal.4. O arguido assumiu sozinho a gestão da casa e os negócios de família;
6.°) Sempre que a Ofendida necessitava de dinheiro para efectuar despesas, tinha de pedir ao Arguido, o qual apenas entregava o que queria e desse modo, conseguia controlar economicamente a Ofendida.
7.°) No início do ano de 2012 e após a Ofendida ter dito ao Arguido que se queria divorciar, continuaram a viver na mesma casa, mas a dormirem em quartos separados.5. No início do ano de 2012 e após a assistente ter dito ao arguido que se queria divorciar, continuaram a viver na mesma casa, mas a dormir em quartos separados
8.°) O Arguido não aceitou o divórcio e por diversas vezes, disse-lhe em tom de voz sério, exaltado e ameaçador: " queres o divórcio, eu deixo-te sem nada ... vais morrer de fome, sua cadela, vou-te secar financeiramente ... seu eu quiser ficas na miséria.", tendo ainda afirmado que queimaria e destruiria todos os haveres da Ofendida, tais como, vestuário e objectos pessoais.6. O arguido não aceitou inicialmente o divórcio;
9.°) Por diversas vezes, o Arguido sem dar conhecimento à Ofendida, convidou diversos amigos e outras pessoas para o interior da residência ( em vez de, como habitualmente fazia, os convidar e levar para o anexo próximo da residência ), permanecendo a maior parte dos convidados no interior da residência até de madrugada e a fazer barulho, fazendo com que a Ofendida não conseguisse dormir e ficasse limitada em movimentar-se no interior da sua própria casa.7. Por diversas vezes, o arguido convidou diversos amigos e outras pessoas para o interior da residência e para o anexo próximo da residência, tendo, em algumas dessas vezes, alguns dos convidados permanecido nesses espaços até de madrugada;
10) O Arguido cancelou o único cartão de crédito que dera à Ofendida e que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas.8. O arguido cancelou o cartão de crédito que dera à assistente e que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas;
11) Quando a Ofendida confrontou o Arguido com essa situação ( cancelamento do cartão de crédito ), o Arguido deu-lhe um empurrão e disse-lhe: " és uma chula ... pensas que vou continuar a sustentar-te ... não sou teu paizinho.".
12) No dia 15 de Agosto de 2012 e no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, o Arguido, em tom de voz sério, exaltado e ofensivo disse à Ofendida: e , sua puta ... vadia ... chula ... és uma cadela ... , isto é tudo meu ... sempre viveste à minha conta ... vais imediatamente tirar a roupa do quarto, porque eu preciso desse espaço para pôr a roupa de outra mulher.".

13) No decorrer dessa discussão e após a Ofendida se ter posto à frente da porta do quarto de vestir, de modo a evitar que o Arguido retirasse das roupas da mesma desse local, o Arguido agarrou nos braços da Ofendida e mantendo-os agarrados, deu-lhe vários safanões e empurrões.

9. No dia 15 de Agosto de 2012, no decorrer de uma discussão relacionada com o divórcio, durante a qual o arguido disse à assistente para tirar a sua roupa do quarto porque precisava desse espaço para pôr a roupa de outra mulher e após a assistente se ter posto à frente da porta do quarto de vestir para evitar que o arguido retirasse as suas roupas daquele local, o arguido agarrou nos braços da assistente e, mantendo-os agarrados, empurrou-a até a colocar fora da porta do referido quarto;
14) Em consequência directa e necessária desta conduta do Arguido, a Ofendida sofreu dores nas zonas corporais atingidas e necessitou, nesse mesmo dia, de receber assistência médico no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria Pombal, tendo apresentado hematoma na face interna de ambos os braços.10. Em consequência directa e necessária desta conduta do Arguido, a assistente sofreu dores nas zonas corporais atingidas e recebeu, nesse mesmo dia, assistência médica no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria/Pombal, tendo apresentado hematoma na face interna de ambos os braços;
15) Ao actuar da forma supra descrita, o Arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de, no período temporal acima referido, ofender a honra e molestar fisicamente e psicologicamente a Ofendida, no interior da residência familiar, causando dores físicas e psicológicas, atingindo a integridade física, a saúde, a honra e dignidade da ofendida, num contexto de relacionamento marital e familiar, sem qualquer respeito pela sua identidade e dignidade, enquanto ser humano e sua cônjuge11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, que concretizou, de ofender a honra e dignidade da assistente e de a molestar fisicamente;
16) O Arguido sabia ainda que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.12. O arguido sabia ainda que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal;
13. A assistente intentou procedimento cautelar de alimentos provisórios contra o arguido em 28/12/2012, que correu os seus termos neste Tribunal sob o n.º 514/12.0TBACN, no qual requereu que este lhe prestasse alimentos pois dele carecia, o qual veio a ser julgado improcedente por sentença proferida em 19/04/2013, já transitada em julgado;

14. Em Agosto 2013, o arguido passou a residir num anexo da casa de morada de família e independente desta;

15. No dia 15/08/2012, o arguido pediu à assistente uma reunião para lhe sugerir que tratassem do divórcio no Conservatória do Registo Civil, de comum acordo;

16. Durante a reunião, a assistente disse-lhe que isso só aconteceria se tratassem do divórcio e partilhas ao mesmo tempo;

17. Na data referida em 15), a assistente já dormia há algum tempo no quarto que era da filha do casal, no qual tinha os seus pertences mais frequentemente utilizados;

Mais se provou que:

18. O arguido não tem antecedentes criminais;

19. Encontra-se desempregado, auferindo um subsídio atribuído pela Segurança Social de € 582 por mês;

12. O arguido vive em casa própria;

13. É proprietário de um armazém situado em Mira d’ Aire, de quatro prédios urbanos (dois apartamentos e duas casas), de pelo menos 7 prédios rústicos, a maior parte deles no concelho de Alcanena, e de dois barcos;

14. O arguido tem o curso superior de engenharia têxtil.

Recordemos também os factos que foram dados como não provados:

“Não resuItaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que:

a)- o arguido tenha dirigido à assistente as expressões “És uma vadia”, “És uma puta”, “És uma cadela”, “Só queres boa vida”, “Habituaste-te a maus costumes”, “devias desaparecer”, “fazes tanta falta como a fome”, “vou-te secar financeiramente”, “não te dou cavaco dos rendimentos do nosso património” e “vais morrer de fome sua cadela”;

b)- o arguido se tenha dirigido ao quarto onde a assistente se encontrava a dormir, na residência supra indicada e por mais do que uma vez, sem que nada o fizesse prever ou justificar, tivesse começado a dar-lhe safanões e a empurrá-la, fazendo com que a mesma acordasse sobressaltada e que lhe tenha dito que não a queria ali e que a expulsava do quarto:

c)- o arguido, em vários telefonemas que efectuou para a assistente, a tenha chamado de “mulher da vida” e “chula”;

d)- o arguido nunca tenha deixado a assistente ter acesso às contas bancárias, aos lucros dos negócios e às rendas das casas das arrendadas pelo casal, ocultando desse modo os rendimentos dos bens do casal; e)- sempre que a assistente necessitava de dinheiro para efectuar despesas, o arguido apenas lhe tenha entregado o que queria e que, desse modo, a conseguia controlar economicamente;

f)- por diversas vezes, tenha dito à assistente, em tom de voz sério, exaltado e ameaçador: “queres o divórcio, eu deixo-te sem nada” “vais morrer de fome, sua cadela, vou-te secar financeiramente”, “seu eu quiser ficas na miséria”, e que queimaria e destruiria todos os haveres da assistente, tais como, vestuário e objectos pessoais:

g)- nos convívios promovidos pelo arguido em sua casa, os convidados tenham permanecido no interior da residência a fazer barulho, fazendo com que a assistente não conseguisse dormir e ficasse limitada em movimentar-se no interior da sua própria casa;

h)- o arguido, quando confrontado pela assistente sobre o cancelamento do cartão de crédito que esta usava para pagar as despesas da casa e as suas próprias despesas, de crédito ), lhe tenha dado um empurrão e lhe tenha dito “és uma chula… pensas que vou continuar a sustentar-te … não sou teu paizinho”;

i)- o arguido, em 15/08/2012, tenha dado safanões à assistente;

Não se provaram igualmente os factos alegados nos art.ºs 8.º, 9.º, 11.º, 21.º da contestação do arguido.”


Ora, no que ao comportamento delituoso diz respeito (e apenas este importa, porquanto para a questão em apreço são inócuos os factos dados como provados a partir do ponto 12, inclusive, onde também se incluem os relacionados com as condições pessoais, económicas, habilitações literárias, modo de vida do arguido e antecedentes criminais) tendo em consideração estes factos dados como não provados e depois de feita a comparação entre os que foram dados como provados e os factos que constavam da acusação, resulta bem evidente - e sem quaisquer dúvidas - que foram dados como provados menos factos do que aqueles que constavam da acusação.
Não existindo factos novos ou modificação dos descritos na acusação com relevância para a decisão, não estamos perante qualquer situação de “alteração substancial dos factos”, nos termos definidos no art.1.º, al. f), do C.P.P., nem de “não alteração substancial dos factos” e, consequentemente, não estava em causa a aplicação, pelo Tribunal a quo, respectivamente, do regime do art.359.º, nem o do art. 358.º, n.º1, ambos do Código de Processo Penal.

Como vimos, da comparação efectuada atrás ao ladearmos, em colunas, os factos da acusação e os da sentença, a condenação do arguido pela ofensa à integridade física qualificada não se alicerçou em factos diversos daqueles que constavam da acusação; alicerçou-se, sim, em menos factos daqueles que constavam da acusação, representando os provados, um minus em relação aos acusados.

E da sentença, decorre que passaram para os não provados uma parte ainda significativa de factos que constavam da acusação.

Com efeito, como já dissemos, foram dados como provados menos factos daqueles que constavam da acusação. E, tal com é dito no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19.03.2013 (relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt) “… dar como não provados factos já constantes da acusação não é uma alteração de factos.”

Nem foi essa, verdade seja dita, conforme decorre da sentença recorrida, a pretensão do tribunal a quo.
O que houve, no caso em apreciação, e depois de lida e relida a sentença, foi apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos que constavam da acusação, em resultado de se terem dado como provados menos factos do que aqueles imputados ao arguido.
Procedeu-se na sentença recorrida à convolação do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, al. a) e 2 do Código Penal, pelo qual este vinha acusado, para um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.145º nº 1 a) e 2 do Código Penal e considerou-se que em relação às injúrias (porque de crime de natureza particular se tratava) faltava uma condição objectiva de procedibilidade, a saber: a ofendida/assistente não tinha deduzido acusação particular por este crime.
Importa agora decidir se era necessário proceder à comunicação desta alteração da qualificação jurídica dos factos ao arguido, desde logo em relação ao crime de ofensa à integridade física, o que nos remete para o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, al. a) e 2, do Código Penal.
Comete o crime de violência doméstica, ali previsto, “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
No crime de violência doméstica as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensas à integridade física, o de ameaça e o de injúria.
Por toda a matéria de facto subsumível à norma especial do artigo 152.º do Código Penal caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral (artigos 143.º, 145º, 153.º e 181.º, do Código Penal, entre outros possíveis tipos), existe uma relação de especialidade entre a primeira norma e estas últimas, prevalecendo, por essa razão aquela sobre estas. Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque [1]o crime de violência doméstica (…) está também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples (…). Portanto a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes.”
Porém, ao invés, pode acontecer, como aconteceu no caso dos autos, que realizada a audiência de julgamento as condutas típicas provadas não revelem o especial desvalor da acção pressuposto pelo crime de violência doméstica.
Neste caso, restou a punição por aplicação das normas penais gerais, que representam um “minus” em relação ao crime de que o arguido vinha acusado.
O arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime de ofensas à integridade física qualificada, designadamente dos relativos ao facto da ofendida ser seu cônjuge e à consciência da ilicitude, como se verifica dos pontos 1, 9, 11 e 12 da sentença recorrida, e teve possibilidade de os contraditar, pois todos esses factos constavam da acusação (cfr. factos 1, 13, 15 e 16 da acusação).
Por isso, e em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada por que o arguido veio a ser condenado, e na esteira dos já supra mencionados acórdãos do STJ de 03/04/1991, de 12/11/2003 e de 12 de Setembro de 2007, bem como do Acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2011 e do Acórdão da Relação do Porto de 12.01.2011 (ambos acessíveis através do site www.dgsi.pt), nem sequer tinha o arguido que ser notificado nos termos e para efeitos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal.
Não tendo, pois, a sentença recorrida condenado o arguido por factos diversos dos descritos na acusação e fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., não se reconhece a invocada nulidade da sentença recorrida, nos termos do art.379.º, n.º1, al. b), do C.P.P.
Por tal razão, naufraga a primeira pretensão do recorrente.

Questão 2:
No âmbito desta questão, considera o recorrente que o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza semi-pública e, nessa medida, por falta de queixa, ao Ministério Público não assistia legitimidade para promover o processo.
Muito embora possamos constatar que na queixa apresentada (fls. 5 a 11) a ofendida, motu próprio, tenha qualificado os factos nela discriminados como integradores de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal, e de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º nº 1 do mesmo diploma, e independentemente de saber se essa particular opinada qualificação é ou não vinculativa para o (ou no) desenvolvimento do processo, entendemos inexistir qualquer razão ao arguido quanto à posição por este afirmada de que o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza semi-pública. Temos para nós, e no seguimento da maioritária jurisprudência que tal crime de ofensa á integridade física qualificada reveste, sim, natureza pública.
Com feito, em prol desta afirmação, analisemos os diversos tipos de ilícitos, a partir do tipo legal fundamental, em matéria de crimes contra a integridade física:
O crime de ofensa à integridade física simples (tipo “base”) está previsto no art. 143º do Código Penal e incluído no seu Capítulo III (Dos crimes contra a integridade física). E já no seu nº 2 se confere a tal ilícito natureza semi-pública, ao ser exigida a queixa para o respectivo procedimento criminal, ressalvada a situação em que seja cometido contra agentes das forças e serviços de segurança no exercício das suas funções e por causa delas.
O art. 144º desse diploma legal prevê e pune os crime de ofensa à integridade física grave, que reveste decididamente natureza pública.
O mesmo se dirá em relação ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, previsto no art. 147º, cuja natureza é, também, pública.
Em suma, são públicos aqueles crimes a que a lei penal não confere expressamente outra natureza.
Ora o crime em causa, previsto e punido pelo art. 145º nº 1 a) e 2 desse diploma, constitui um tipo penal autónomo em relação ao crime base do artigo 143º, no qual o legislador quis punir de forma mais severa uma conduta mais grave, qualificando e agravando o tipo legal que lhe serve de base, sempre que o julgador considere verificadas e provadas as respectivas circunstâncias agravantes; e as semelhanças entre os dois tipos terminam aí: a agravação do crime resulta num crime novo, tal e qual como ocorre com o já citado art. 132º do Código Penal, este em relação ao art. 131º.
Embora não descortinemos jurisprudência publicada após a revisão do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro (recorde-se que com esta revisão o crime de ofensa à integridade física qualificada que até então se encontrava plasmado no âmbito do artigo 146º passou a estar plasmado, e sem grandes alterações de redacção, agora no âmbito do artigo 145º) já no âmbito daquele artigo 146º (que também tinha a mesma epígrafe do actual artigo 145º) era consensual a jurisprudência no sentido de que tal crime revestia natureza pública.
E entre vários arestos que antes dessa revisão já defendiam a natureza pública do crime de ofensa à integridade física qualificada, pode ver-se o Ac. da Relação do Porto de 29.11.2006 (relator Desembargador Cravo Roxo, in www.dgsi.pt) onde a dado passo (embora se deva chamar a atenção de que esse acórdão tinha versado sobre um recurso que havia impugnado a decisão de primeira instância que havia homologado a desistência de queixa) é dito: ”Assim, que o novo crime reveste natureza pública, poucas dúvidas restarão, na senda do que tem sido decidido maioritariamente nos Tribunais superiores, maxime neste Tribunal da Relação: nesse sentido, o Ac. RP de 27.10.2004, processo nº 0440051 e o Ac. RP de 16.01.2002, processo nº 0141092 (pesquisados em http://www.dgsi.pt).
Com efeito, ao lado dos tipos fundamentais ou tipos base de tipicidade criminal, existem os tipos de delitos construídos a partir deles, com acrescento de elementos, que constituem circunstâncias modificativas, dando lugar aos crimes qualificados ou privilegiados: confira-se Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. I, pág. 308; neste novo tipo legal – como aliás é técnica legislativa comum – não se prevê que o exercício da acção penal esteja dependente de queixa, ficando a sua prossecução no âmbito dos poderes do Mº Pº, para o prosseguimento do jus puniendi do Estado.
Trata-se, com efeito, de dar visibilidade e consistência à técnica legislativa utilizada para diferenciar as naturezas das diversas infracções penais constantes do diploma: sempre que um crime reveste natureza semi-pública ou particular, o legislador optou por incluir essa condição, ou no próprio tipo legal, ou numa norma autónoma que faça a chamada para o tipo legal correspondente. Recordemos, aliás, que o Direito Penal não comporta interpretação analógica.
No caso concreto, tal elemento não consta do tipo, nem de norma autónoma. E, ao contrário do que se defende no despacho sob censura, essa omissão não permite outra conclusão que não a já indiciada: o crime é público; dizer-se que, porque se trata de elementos qualificativos referentes à culpa, essa condição não tinha de estar presente é esquecer a plenitude do sistema jurídico e tirar conclusões onde as mesmas não são possíveis.
Assim sendo e sem maiores desenvolvimentos, o despacho sob recurso não respeitou o disposto nos Arts. 146º, nº 1 e nº 2, 113º e 116º, todos do Código Penal.
E no mesmo sentido de que o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza pública, para além dos mencionados na parte do acórdão que acabamos de transcrever, podem ver-se ainda os Acórdãos da Relação do Porto de 21.02.2001 (in CJ 2001, tomo I, pag. 237), e de 27.06.2006; o Ac. da Relação de Lisboa, de 11.12.2001; o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 10.12.2008 e o Ac. da Relação de Évora de 27.06.2006 (estes quatro últimos acórdãos acessíveis através do site www.dgsi.pt).
Aderindo ao entendimento perfilhado em tais acórdãos de que o crime de ofensa à integridade física qualificada se traduz num crime autónomo em relação ao crime de ofensa à integridade física simples, o mesmo reveste, logo por isso, natureza pública.
Perante tal natureza pública do crime de ofensa à integridade física qualificada, não ocorreu nenhuma inadmissibilidade legal do procedimento criminal por parte do Ministério Público, face ao que estabelece o artigo 48º do Código de Processo Penal.
Falece, pois, também esta pretensão do recorrente.

                                                    *

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando as pretensões do recorrente - e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais, designadamente os invocados nas suas conclusões de recurso - terá o recurso que improceder.

                                                    *

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.

                                                    *

                                         *

Coimbra, 14 de Maio de 2014

 (Luís Coimbra - relator)

(Isabel Silva - adjunta)


[1] In Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pags 406 e 407.