Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
859/14.4T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE RECONHECIMENTO DE CONTRATO DE TRABALHO
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
TRABALHADOR
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – INST. CENTRAL – 1ª SECÇÃO DO TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 26º, Nº 1, AL. I), 186º-K A 186º-R DO CPT (LEI Nº 63/2013, DE 27/08).
Sumário: I – São duas as novidades trazidas pela Lei nº 63/2013:
- a criação de um procedimento próprio para utilização pela ACT, quando esta considere estar na presença de ‘falsos’ contratos de prestação de serviço;

- a instituição de um novo tipo de processo judicial com natureza urgente, denominado acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

II – Esta nova acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho surgiu com o objectivo de instituir um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços. Trata-se de uma acção com natureza urgente e oficiosa, iniciando-se sem qualquer intervenção do trabalhador ou do empregador, bastando, para o efeito, uma participação da Autoridade para as Condições do Trabalho, que a desencadeia.

III – Na instauração desta acção dispensa-se, expressamente, a iniciativa e até o consentimento do trabalhador, ao qual é conferida apenas a possibilidade de apresentar articulado próprio e constituir advogado.

IV – O interesse público no combate aos falsos recibos verdes, que preside à acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instituída pela Lei nº 63/2013, de 27/08, implica a fata de legitimidade do trabalhador para desistir do pedido formulado na acção proposta pelo M.º P.º ou para acordar com o empregador que a relação contratual em causa não é de natureza laboral.

Decisão Texto Integral:
                                  
                        Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                                                          

                        O Ministério público veio instaurar, na Comarca de Castelo  Branco – Inst. Central – 1ª Secção do Trabalho, a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 26º, nº 1, al i), e 186º-K, nº 1, do Código de Processo de Trabalho, ambos com as alterações introduzidas pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto,  contra A..., S.A.,  pedindo que seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e a trabalhadora B... , fixando-se a data do seu início em 13 de Setembro de 2010.

                        Alegou, para tanto e síntese, que a referida B... sempre trabalhou de forma subordinada para a Ré, pelo que estamos na presença de um contrato de trabalho.

                        Contestou a Ré, dizendo que o vínculo com a alegada trabalhadora se reconduz a um contrato de agencia.

                        Em sede de julgamento, realizou-se a audiência de partes, tendo a B... declarado que pretendia desistir do pedido, “uma vez que celebrou recentemente com a Ré um novo contrato de agência”.

                        A Ré declarou aceitar essa desistência.          

                        Tendo a Srª Juíza proferido o seguinte despacho:

                        “Encontra-se submetida à apreciação do Tribunal a questão de saber se no âmbito de uma acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é ou não admissível a homologação de acordo ou desistência do pedido alcançado entre a prestadora da actividade e a Ré.

                A este respeito tem-se dividido a jurisprudência nacional, havendo quem defenda que o contrato de trabalho é um contrato de direito privado, sendo por isso disponível o direito dos respectivos outorgantes a verem jurisdicionalmente definida a respectiva qualificação jurídica, nada obstando a que se homologue uma eventual desistência e se extinga o direito que se pretendia fazer valer, havendo também, porém, quem entenda que o interesse público no combate aos falsos recibos verdes que preside à acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, implica a falta de legitimidade do trabalhador para desistir do pedido formulado na acção proposta pelo MºPº ou para acordar com o empregador que a relação contratual em causa não é de natureza laboral.

                A favor da primeira tese pronunciaram-se os acórdãos da Relação de Lisboa de 24/9/2014, um relatado pelo Exmº Juiz Desembargador Sérgio Almeida e outro relatado pela Exmª Juíza Desembargadora Maria João Romba, ambos disponíveis em www.dgis.pt. Já a favor da segunda tese decidiram os acórdãos da Relação do Porto de 17/12/2014, também disponíveis em www.dgis.pt, um relatado pelo Exmº Juiz Desembargador António Ramos e outro relatado pelo Exmº Juiz Desembargador Eduardo Petersen Silva.

                Tomando posição em tal querela, e adiantando desde já conclusões, entendo que tendo a prestadora da actividade manifestado vontade de desistir do pedido e não havendo razões para por em causa que tal declaração seja consciente e livre, nada obsta que se homologue a desistência e que se julgue extinto o direito que se pretendia fazer valer.

                Na verdade, e como se refere no sobredito acórdão da Relação de Lisboa de 24/9/2014 relatado pela Exmª Juíza Desembargadora Maria João Romba, “apesar de a lei determinar que o Ministério Público intente tal acção, quando lhe forem participados os factos pertinentes para o efeito, sendo, como é, indiscutivelmente, o contrato de trabalho um contrato de direito de privado, cremos não poder negar-se aos outorgantes do contrato cuja qualificação jurídica é suscitada em tribunal pelo M.P., o direito de ver, ou não, essa questão jurisdicionalmente decidida. É, aliás, a lei que, ao estabelecer no art. 186º-O do CPT[3] que “se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los”, deixa claro que o direito em causa – de ver jurisdicionalmente definida a qualificação jurídica do contrato – é disponível, pois, de outro modo, não se compreenderia a previsão legal de tal tentativa de conciliação, sendo certo que o que está em causa na acção é apenas e só o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho. Não faria sentido, salvo o devido respeito, prever a realização de uma tentativa de conciliação se a única conciliação possível passasse apenas pela confissão, por parte do empregador, da pretensão formulada nos autos, como vem sustentar o recorrente. A tentativa de conciliação visa, em princípio, alcançar uma transacção, através de cedências recíprocas.

                Embora, no caso, a “trabalhadora” não tivesse aderido aos factos apresentados pelo M.P., nem apresentado articulado próprio ou constituído mandatário, como lhe era facultado pelo nº 4 do art. 186º-L, a partir do momento em que foi ouvida em audiência de partes, conforme previsto no nº 1 do art. 186º-O, assumiu, inequivocamente a posição de parte na acção, mais precisamente de autora, uma vez que é titular da relação material controvertida, tendo por isso interesse directo na demanda, que se exprime pela utilidade que para si derivaria da procedência da acção. Em suma, tem legitimidade activa (cfr. art. 30º do CPC).

                A própria previsão legal desta diligência – audiência de partes com “empregador” e “trabalhador” - revela que o legislador equaciona a acção em causa como visando resolver a dúvida que se suscita quanto àquela concreta relação, considerando o “trabalhador” como parte, ainda que o mesmo não tenha até então aderido aos factos apresentados pelo M.P. ou sequer apresentado articulado próprio.

                Assim sendo e tratando-se, como vimos, de um direito disponível, podia a “trabalhadora” desistir do pedido conforme previsto no art. 283º do CPC.”

                Aqui chegados, conclui-se pois pela admissibilidade da desistência do pedido efectuada, pelo que, para os efeitos do preceituado no nº 2 do artº 52º do C.P.T., declaro certificada a capacidade das partes e a legalidade do resultado da conciliação que antecede.

                Sem custas por a acção ter sido intentada pelo MºPº e a prestadora da actividade a elas não poder ser condenada (artº 186º-Q, nº 4 C.P.T.)

                Valor da acção 30.000,01€ (cfr. artº 186 Q, nº 2 do C.P.T.).

                                                                       x
                        Inconformado, veio o MºPº interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
                        […]

                A Ré apresentou contra-alegações, propugnando pela manutenção do julgado.

                                                                       x

                        Definindo-se o âmbito do recurso  pelas suas conclusões, temos como única questão a apreciar, a de saber se, na acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, é admissível a  desistência do pedido por parte do  invocado trabalhador .
                                                                       x         
                        Como circunstancialismo relevante temos o descrito no relatório do presente acórdão.                                  

                                                                       x

                        O direito:
                        Acerca esta problemática da desistência do pedido se pronunciou esta Relação, pelo recente acórdão de 26/3/2015, proc. 848/14.9TTCBR.C1, com o mesmo relator e adjuntos e disponível em www.dgsi.pt.

                        Não se desconhecendo a divergência jurisprudencial que se tem verificado, de que são exemplo os arestos citados no despacho recorrido, temos que sobre a acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho teve esta Relação e secção social oportunidade de se pronunciar, para além do já citado, nos  acórdãos de 26/9/2014, de 13/11/2014 (estes com o mesmo relator e adjuntos e disponíveis in www.dgsi.pt), de 20/11/2014, proc. 325/14.8TTRLA.C1 (relatado pelo aqui 1º adjunto) e de 20/11/2014, proc. 363/14TTLRA.C1 (relatado pelo aqui 2º adjunto), nos seguintes termos:

                        Importa transcrever aqui, para melhor compreensão do que se irá expor, os artºs 186º- L a 186-O do CPT, aditados pela Lei nº 63/2013, de 27/8:

                “Artigo 186.º -L

                Petição inicial e contestação

                1 — Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respetivos fundamentos, devendo juntar todos os elementos de prova recolhidos até ao momento.

                2 — O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias.

                3 — A petição inicial e a contestação não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                4 — O duplicado da petição inicial e da contestação são remetidos ao trabalhador simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

                Artigo 186.º -M

                Falta de contestação

                Se o empregador não contestar, o juiz profere, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente.

                Artigo 186.º -N

                Termos posteriores aos articulados

                1 — Se a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.

                2 — A audiência de julgamento realiza -se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

                3 — As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas.

                Artigo 186.º -O

                Audiência de partes e julgamento

                1 — Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los.

                2 — Frustrando -se a conciliação, inicia -se imediatamente o julgamento, produzindo -se as provas que ao caso couberem.

                3 — Não é motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários.

                4 — Quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efetuada pelo juiz.

                5 — Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência suspende a audiência na altura que reputar mais conveniente conveniente e marca logo dia para a sua continuação, devendo o julgamento concluir -se dentro de 30 dias.

                6 — Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral.

                7 — A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata.

                8 — A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral.

                9 — A decisão proferida pelo tribunal é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I. P.

                        São duas as novidades trazidas pela Lei 63/2013:

                        - a criação de um procedimento próprio para utilização pela ACT, quando esta considere estar na presença de “falsos” contratos de prestação de serviço;
                        - a instituição de um novo tipo de processo judicial com natureza urgente, denominado acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

                        Esta nova acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho surgiu com o objectivo de instituir um mecanismo de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços. Trata-se de uma acção com natureza urgente e oficiosa, iniciando-se sem qualquer intervenção do trabalhador ou do empregador, bastando, para o efeito, uma participação da Autoridade para as Condições do Trabalho, que a desencadeia. Institui-se um regime de celeridade e oficiosidade, a petição inicial e a contestação não têm de revestir forma articulada e a realização da audiência de julgamento não fica dependente do acordo das partes, nem pode ser adiada devido à falta destas, e dos respectivos mandatários, mesmo que justificada.

                         A Lei nº 63/2103, que expressa e significativamente veio consagrar a “Instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”- artº 1º, contém normas de interesse e ordem pública, designada, mas não exclusivamente, no que respeita à introdução da acção  de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aditando os artºs 186.º -K a 186.º -R ao CPT.

                        Teve-se em vista combater uma realidade que se vem prolongando ao longo do tempo, de verdadeiros contratos de trabalho subordinado encobertos sob a designação de contratos de prestação de serviços, ou, para usar uma expressão da gíria, os “falsos recibos verdes,” os quais, para além de afectarem o trabalhador subordinado em alguns dos seus direitos, prejudicam, igualmente, interesses do Estado, de natureza fiscal e de segurança social.

                        O que também foi salientado no Ac. da Rel. de Lisboa de 10/9/2014, citado no Ac. da mesma Relação de 8/10/2014, ambos disponíveis em www.dgsi.pt:

                “Analisando o regime legal condensado na Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, que veio alterar a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art.º 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

               Em causa está a sempre atual problemática dos designados “falsos recibos verdes”, isto é, o enquadramento de colaboradores como independentes quando as características da atividade por eles exercida, confrontada com a moldura legal aplicável, impõe antes a sua qualificação como trabalhadores subordinados”.

                        E porque se trata de um interesse de ordem pública, estamos perante uma acção oficiosa,  instaurada na sequência da intervenção da ACT - nº 1 do artº 186-K, ou por conhecimento e por iniciativa do MºPº- nº 2, que dispensa a intervenção do próprio trabalhador em causa, que é meramente facultativa - nº 4 do artº 168º-L. Ou seja, na instauração da acção, dispensa-se, expressamente, a iniciativa e até o consentimento do trabalhador, ao qual é conferida apenas a possibilidade de apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

                        Assim sendo, o julgamento da acção deverá traduzir a realidade e não ficar restrito ao peticionado pelo MºPº ou ao alegado no articulado do trabalhador, se o houver, devendo a sentença, mesmo que tal não seja indicado por qualquer daqueles, “fixar a data do início da relação laboral”- nº 8 do artº 186º-O. Esta norma, tal como todas as outras referidas, apresenta-se como imperativa, estando em causa, como já se aludiu, valores que o legislador considera fundamentais, impondo-se, portanto, à vontade das partes e diminuindo a sua liberdade de estipulação. Funciona aqui o princípio do inquisitório, aparecendo o princípio do dispositivo como claramente mitigado.

                        Sobre a problemática de estarmos perante normas de interesse e ordem pública se pronunciou, igual e positivamente, o citado Ac. da Rel. de Lisboa de 8/10/2014:

                “Afigura-se-nos importante – como aliás faz o Aresto anteriormente transcrito – e antes de cruzarmos as considerações jurídicas que reproduzimos com os factos emergentes da presente ação, definirmos, ainda que de forma sintética, a natureza e principais características da presente ação de reconhecimento do contrato de trabalho que, como ficou antes afirmado, se reconduz a uma ação declarativa de mera apreciação positiva.

                Ressalta desde logo do inerente regime legal que a mesma tem uma tramitação não somente especial como particular, com alguns pontos de contacto com as ações emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea e), 3 e 4 e 99.º a 155.º do C.P.T.) e de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (artigos 26.º, n.ºs 1, alínea a), e 5 e 98.-B.º a 98.º-P do C.P.T.), dado que estas últimas não só possuem natureza urgente como têm por base uma participação ou um formulário, iniciando-se a sua instância com a apresentação/recebimento dos mesmos.

                A diferença entre a fase conciliatória dos autos de acidentes de trabalho e aquela que tem inicialmente lugar, em termos latos e pouco rigorosos, no âmbito desta ação, é que aquela se integra, de pleno direito, na correspondente instância, ao passo que tal não acontece aqui, havendo uma fase prévia que decorre na ACT, que, ao invés do que com aquela fase conciliatória ocorre, não possui cariz judicial, muito embora uma e outra possam esgotar, por si e em si, o objeto do correspondente procedimento (cfr. n.º 2 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14/9 e 109.º, 111.º e 114.º do C.P.T.).

                O ato despoletador de um processo como este, à imagem do que se verifica com a ação especial de despedimento, é apenas um e de índole formal, radicando-se, nesta última, num formulário-tipo e naquele na participação da ACT.

                Importa referir que a ACT é a única entidade competente para levantar o auto a que alude o número 1 do artigo 15.º-A do RPCOLSS e desenvolver as diligências preliminares igualmente aí elencadas (cfr., muito significativamente, o n.º 2 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho) e que, com a participação ao Ministério Público do Tribunal do Trabalho, se «suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada», ou seja, os autos de contraordenação ou de execução relativos à dita infração (falso trabalho autónomo) ficam parados, a aguardar o julgamento definitivo na ação laboral.

                O Ministério Público, por outro lado, recebe no tribunal do trabalho tal participação da ACT e tem o prazo de 20 dias para apresentar a petição inicial, desde que entenda haver elementos suficientes para o efeito, fazendo-o em representação do Estado e para defesa, em primeira linha, dos interesses públicos pelo mesmo prosseguidos (cfr. artigos 1.º, 2.º e 3.º, al. a) do EMP) e não (apenas) do interesse privado “trabalhador” que, convirá dizê-lo, pode nem sequer ter qualquer intervenção nos autos, conforme decorre da falta de contestação do empregador e do disposto no artigo 186.º-M do C.P.T. e nunca é (pode ser) patrocinado pelo Ministério Público mas apenas por advogado nomeado ou constituído.

                Tal interesse público acha-se descrito por Pedro Petrucci de Freitas (No texto intitulado «DA ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO: BREVES COMENTÁRIOS», datado de 9/1/2014 e publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez -2013, páginas 1423 e seguintes e que pode ser consultado no sítio da Ordem dos Advogados, em “Publicações”) nos seguintes moldes:

                «A Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, instituiu mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado através de um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e de um novo tipo de ação judicial, a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, passando esta última a constar no elenco do art.º 26.º do Código de Processo do Trabalho.

                O objetivo indicado no art.º 1.º desta Lei, ou seja, a instituição dos referidos mecanismos, corresponde a uma intervenção marcadamente política de resposta a um grave problema social, e, quanto a nós, a um culminar de anteriores alterações legislativas (com o propósito de se atingir um nível de “decent work”, — tal como propugnado por instâncias internacionais -, e de se eliminar o fenómeno da precariedade laboral.

                A utilização indevida da figura do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado não é um fenómeno novo, e conduz, inclusivamente, à concorrência desleal entre empresas. Conforme se refere no relatório elaborado pelo Grupo de Ação Interdepartamental da organização Internacional do Trabalho: “ (...) para a empresa empregadora, a possibilidade de subcontratar tarefas ao trabalhador por conta própria “dependente” constitui uma oportunidade de poupar custos e de -no fundo - partilhar o risco empresarial. A empresa empregadora não se vê obrigada a pagar contribuições para a segurança social, seguros ou direitos relativos a férias e dias feriados; as transações relacionadas com a gestão de recursos humanos estão reduzidas ao mínimo e não há lugar a procedimentos e pagamentos com o fim da relação negocial entre as partes”.

                De acordo com este relatório, os trabalhadores por conta própria representam 17,1% do emprego total, dos quais 11,6% são trabalhadores por conta própria como isolados (sem empregados a cargo), sendo que na Eu-27, a percentagem média do trabalho por conta própria relativamente ao emprego total é de 15,8%, sendo 10,2% os trabalhadores por conta própria como isolados ([12]). Por seu turno, uma análise dos dados divulgados pela ACT, no que respeita à ação inspetiva no âmbito do trabalho declarado e do trabalho irregular permite identificar 326 casos de regularização de contratos de trabalho dissimulados em 2009, 436 casos em 2010, 1144 casos em 2011 e 396 casos em 2012, tendo, neste último ano, sido efetuadas 64 advertências e registadas 219 infrações.

                Independentemente da leitura que se possa fazer destes dados, não pode naturalmente a ordem jurídica deixar de criar mecanismos de combate e penalização de situações inequivocamente violadoras da lei com efeitos nocivos transversais, e com um impacto mais abrangente do que aquele que se possa identificar à partida, se incluirmos neste raciocínio a problemática da sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito, e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam.»

                Julgamos este excerto doutrinário assaz expressivo dos interesses de cariz não privado ou particular que se visam acautelar através da consagração deste novo tipo de ação (convindo ainda realçar a origem popular desse regime legal) e que moldam inequivocamente a interpretação das correspondentes normas jurídicas e a tramitação adjetiva que delas deriva”.

                Por sua vez, concorda-se com o afirmado nas alegações de recurso de que “Nem se vê em que termos é que a ação especial aqui em causa possa interferir ou prejudicar a liberdade contratual e os respetivos interesse privados, pois, de duas uma: ou o contrato de prestação de serviços se encontra celebrado nos casos em que a lei o admite e, então, na aludida ação especial isso mesmo será reconhecido e será declarada improcedente, ou, estando o contrato de prestação de serviços celebrado fora das condições legais, nenhuma tutela jurídica merecerá”.

                        Assim sendo, e se é certo que a invocada trabalhadora, que nem sequer apresentou, tal como lhe permite o nº 4 do artº 186º-L, articulado próprio, veio desistir do pedido, também o é que, em face do exposto no que ao interesse e ordem pública diz respeito, nenhuma relevância, em termos de desfecho da acção, pode assumir tal desistência, devendo a acção ter prosseguido, dado que não são só os direitos de carácter privado do trabalhador que estão em causa. Com efeito, a admitir-se tal desistência por parte do alegado trabalhador, facilmente se torneariam os objectivos prosseguidos pela lei, pondo unicamente nas mãos dos invocados trabalhador e empregador a sorte da acção e tornando inútil a acção do MºPº no sentido de se pretender apurar da existência, ou não, do contrato de trabalho. Aliás, o mesmo aconteceria se se homologasse uma eventual transacção no sentido de se considerar qualquer outro tipo de contrato - nomeadamente o de agência,  sustentado pela alegada trabalhadora e pela Ré - que não o contrato de trabalho.

                        Neste sentido vão as referências doutrinais e jurisprudenciais expostas nas alegações de recurso, as quais, pela sua pertinência e por irem de encontro à posição adoptada por esta Relação, entendemos ser aqui de reproduzir.

                        Assim, temos que afirmam Viriato Reis e Diogo Ravara, -Reforma do Processo Civil e do Processo do Trabalho, in http:www.cej.mj.pt/cej/recursos/ ebooks/ProcessoCivil/Caderno_IV_Novo%20_Processo_Civil_2edicao.pdf,  - que “estando em causa interesses de ordem pública na ARECT” se lhes afigura “que da conciliação prevista no art. 186º-O do CPT apenas pode resultar um acordo de “estrita legalidade”, à semelhança do que sucede no processo emergente de acidente de trabalho, não podendo relevar a eventual manifestação de vontade das partes contrária aos indícios de subordinação jurídica e, por isso, à verificação da presunção de laboralidade que motivaram a participação dos factos feita ao Ministério Público pela ACT e integram a causa de pedir invocada na petição inicial da ação”.

                        E acrescentam:

                        “Sendo os factos de que se dispõe na ação até esse momento da

tramitação processual os mesmos que a ACT havia apurado, enquanto indícios

de subordinação jurídica, aquando da elaboração do auto previsto no nº 1 do art. 15º-A, do RPCLSS, a conciliação a realizar no processo judicial apenas pode ter como objetivo a “regularização do trabalhador (…)”.

                        Do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 1083/14.1TTPNF.P1, datado de 17/12/2014, disponível in www.dgsi.pt, consta o seguinte:

                “O interesse público no combate aos falsos recibos verdes, que preside à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instituída pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto, implica a falta de legitimidade do trabalhador para desistir do pedido formulado na ação proposta pelo Ministério Público ou para acordar com o empregador que a relação contratual em causa não é de natureza laboral».

                        E no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/10/2014 retirou-se o seguinte  sumário:

                “Frustrada a  tentativa de conciliação na audiência de partes e tendo a trabalhadora, no início do julgamento, confirmado a posição da demandada, segundo a qual ambas mantêm um verdadeiro contrato de prestação de serviços e que não pretende celebrar com a Ré qualquer contrato de trabalho, essa declaração exarada em Ata, face aos interesses de natureza pública que estão presentes na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não retira o escopo ou utilidade à mesma, não constituindo aquela fundamento quer para a extinção da lide por inutilidade superveniente quer para a absolvição da instância, por falta de interesse em agir do Ministério Público”.

                        Pelo que já tivemos oportunidade de expor, evidente se torna que subscrevemos por inteiro estas considerações.

                        Assim, não podia a Srª Juíza ter homologado a desistência do pedido formulada pela invocada trabalhadora.

                        Procede, assim, o recurso.
                                                                       x

                        Decisão:

                        Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a normal e subsequente tramitação dos autos.

                        Custas do recurso pela Ré- apelada.

                                                                       x

                        Transitado o presente acórdão, dê cumprimento ao disposto no nº 9 do artº 186º-O do CPT.

                                  

                                                                       Coimbra, 07/05/2015

                                                             

                                                                       (Ramalho Pinto - Relator)

                                                                     (Azevedo Mendes)

                                                               (Joaquim José Felizardo Paiva)