Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/04.9TANLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 04/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 9ºDO CC, 105ºE 107 º DO RGIT E ART. 113º DA LEI 64-A/2008 DE 31/12,
Sumário: 1..O limite de € 7.500 previsto no n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do referido RGIT.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

No processo supra identificado, no qual são arguidos:

RR Lda, pessoa colectiva n.º …., Canas de Senhorim

T, filha de A e de M nascida  em .57, casada, doméstica, residente …, em Canas de Senhorim;

A, filho de A e de E, nascido em ----54, casado, empregado de escritório, residente… em Canas de Senhorim;

Foi proferida sentença na qual se decidiu:

1. Julgar a pronúncia improcedente, e em consequência,

a) Declarar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo art.º 107.º, e 105.º, n.º1, do RGIT, em virtude da descriminalização operada pela Lei 64-A/2008, de 31.12.

b) Declarar extintas as medidas de coacção de TIR aplicadas aos arguidos T e A

2. Declarar o pedido de indemnização civil procedente, por provado e em consequência:

c) Condenar os demandados RR Lda, T e A

i. no pagamento do capital de €4.765,24 (quatro mil setecentos e sessenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos) à Segurança Social, demandante;

ii. no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento, calculados à taxa de 1%, contados a partir do termo do prazo para a sua entrega à demandante;

Inconformado, o Magistrado do Mº Pº apresenta recurso para esta Relação.

Na sua motivação, apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso.

1- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, concretamente da parte em o Tribunal a quo decidiu "declarar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107 e 105, nº 1, do RGIT, em virtude da descriminalização operada pela Lei 64-A/2008, de 31.12".

2- O artigo 113 da Lei n.º 54-A/2008, de 31 de Dezembro, não alterou o artigo 107 do RGIT, cujo n.º 1 define (rectius, continua a definir) todos os elementos, objectivos e subjectivos, do crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo que a remissão que opera para o artigo 105, n.ºs 1 a 5 refere-se (rectius, continua a referir-se) somente às penas aplicáveis.

3- Assim, a interpretação segundo a qual o limite de €7.500,00, previsto no n.º 1 do artigo 105 do RGIT para a incriminação da conduta aí prevista, aplica-se também ao crime de abuso de confiança contra a segurança social é uma interpretação contra legem.

4- A favor dessa interpretação não procede o argumento da similitude dos regimes das infracções fiscais e das infracções contra a segurança social, não só porque não encontra sustentação na letra da lei, mas ainda porque essa similitude não é plena, não impondo, desta forma, que os crimes em apreço, que são autónomos, sejam tratados de forma idêntica.

5- O tratamento diferenciado do crime de abuso de confiança em relação à segurança social relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal não viola o princípio da igualdade, já que as incriminações em causa protegem bens jurídicos distintos, sendo que, em cada momento, a necessidade de tutela dos mesmos pode fazer-se sentir com maior ou menor intensidade, justificando, assim uma solução diferenciada para cada uma das situações.

6- Desta forma, o Tribunal a quo, ao proferir a decisão citada na conclusão 1, violou o disposto no artigo 113, Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, bem como o disposto no artigo 107, do RGIT.

Deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, a decisão recorrida ser substituída por outra que condene os arguidos pela prática dos crimes por que foram julgados.

Respondem os arguidos T e A, concluindo:

1- A Senhora Juiz andou bem no que concerne à fundamentação de direito.

2- Andou igualmente bem ao decidir pela descriminalização da conduta pela qual os arguidos foram julgados.

3- Da prova produzida e registada em sistema áudio resulta que a gerência da empresa e bem assim a sua administração e a gestão de pagamentos não esteve adstrita à arguida T, no período a que os autos se reportam, nem noutro qualquer.

4- Resulta outrossim que a respondente T nunca exerceu a gerência de facto, só ou juntamente com o arguido A.

5- Mais resulta que os aqui respondentes não ficaram com os meios de pagamento destinados à Segurança Social, como não os utilizaram em proveito próprio nem os integraram no seu património.

6- Resulta ainda que os aqui respondentes não tinham conhecimento da existência das dívidas à Segurança Social, nem da obrigação legal da sua entrega.

7- Como resulta que os aqui respondentes não gastaram nem utilizaram em seu proveito próprio os montantes que pertenciam à Segurança Social, nem quiseram obter como efectivamente não obtiveram qualquer benefício que lhe era vedado por lei.

8- Assim como resulta que os aqui respondentes não agiram de forma deliberada livre e consciente, no seu próprio interesse nem no da sociedade RR Ldª, nem procuraram nem conseguiram obter enriquecimento indevido à custa da Segurança Social.

Deve ser confirmada a douta sentença recorrida.

Quando assim não se entenda, deve ser dada como não provada a factualidade vertida nos pontos 2, 3, 8, 9, 11 e 12 de C. MOTIVAÇÃO e, em consequência, serem os aqui respondentes absolvidos da prática dos crimes pelos quais vinham acusados.

Responde a arguida RR, Lda, concluindo:

A) A SENTENÇA RECORRIDA FEZ UMA CORRECTA E CRITICA APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LEI, DEVENDO MANTER-SE A NÃO CONDENAÇÃO DA AQUI ARGUIDA;

B) A SENTENÇA CONTEM UMA EXAUSTIVA E CRITERIOSA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO, DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA EM RELAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA;

C) O TRIBUNAL ABORDOU DE FORMA CRITICA AS VÁRIAS TESES QUE SÃO DEFENDIDAS PARA ESTE TIPO DE FACTUALIDADE, E CONCLUIU DE FORMA JUSTA PELA DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA;

D) O TRATAMENTO QUE AO LONGO DOS ANOS TEM SIDO FEITO PELO LEGISLADOR DE FORMA EQUILIBRADA E IGUALITÁRIA EM RELAÇÃO AOS FACTOS QUE PREENCHEM OS DOIS TIPOS DE CRIME EM ANALISE E A LIGAÇÃO QUE SEMPRE FOI FEITA DE UM PRECEITO COM O OUTRO, CONDUZ À DECISÃO TAL COMO FOI TOMADA;

E) NENHUMA RAZÃO HÁ QUE JUSTIFIQUE UM DIFERENTE TRATAMENTO A DAR AOS VALORES DAS CONTRIBUIÇÕES/ DOS IMPOSTOS EM FALTA NO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA À SEGURANÇA SOCIAL E DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL;

F) OS BENS E INTERESSES PROTEGIDOS COM AQUELES DOIS PRECEITOS SÃO OS MESMOS E COMO TAL DEVEM SER IGUALMENTE TRATADOS;

G) A DESCRIMINALIZAÇÃO OPERADA PARA O CASO DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL TEM DE SE CONSIDERAR POR RAZÕES DE TRATAMENTO IGUALITÁRIO E DE RACIONALIDADE DO MESMO MODO PARA O CRIME DE ABUSO CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL;

H) O LEGISLADOR ASSIM O QUIS E TAL RESULTA DA PRÓPRIA RATIO LEGIS DA ALTERAÇÃO DO PRECEITO QUE TEM DE SER INTERPRETADO DE FORMA EXTENSIVA E APLICADO TAMBÉM AO TIPO DE CRIME EM APRECIAÇÃO NOS AUTOS;

I) ALIÁS A PRÓPRIA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA E ESTUDOS QUE TÊM VINDO A DESENVOLVER-SE APONTAM PRECISAMENTE NO SENTIDO DE UMA CADA VEZ MAIOR E MAIS EXTENSIVA DESCRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS DESTE TIPO - E MAIS CEDO OU MAIS TARDE TAL DESCRIMINALIZAÇÃO VAI TER LUGAR INDEPENDENTEMENTE DO VALOR DE CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS, PASSANDO A TRATAR-SE TODO ESTE COMPORTAMENTO E AINDA QUE DE VALOR SUPERIOR AO HOJE INDICADO NA LEI COMO CONTRA-ORDENAÇÃO E NÃO EM CASO ALGUM COMO CONDUTA CRIMINOSA;

J) lN CASU, A RECORRIDA CONSIDERA QUE BEM ANDOU A MERITÍSSIMA JUIZ A QUO AO CONSIDERAR QUE A CONDUTA DA ARGUIDA ESTAVA COMO ESTÁ DESCRIMINALIZADA E ASSIM DECLARANDO EXTINTO O PROCEDIMENTO CRIMINAL.

DEVE NEGAR-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E MANTER-SE A DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA.

Nesta Relação, a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417 do CPP.

Não foi apresentada resposta.

Colheram-se os vistos e foi realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


***

É a seguinte a matéria de facto apurada e a fundamentação de direito:

A. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A RR Lda” é uma sociedade por quotas, que iniciou a sua actividade em 04.03.91, dedicando-se à actividade de construção civil e à compra e venda de propriedades.

2. A gerência da sociedade durante o período contributivo compreendido entre os meses de Novembro de 2001 a Junho de 2004, esteve adstrita à arguida T, incumbindo-lhe a administração da empresa e a gestão dos pagamentos aos credores, nomeadamente o pagamento das contribuições devidas à Segurança Social.

3. O arguido A, durante o período contributivo referido, exerceu a gerência de facto, juntamente com a arguida T.

4. Como firma empregadora de pessoal assalariado a arguida “RR Lda” era obrigada a entregar à Segurança Social as folhas de remunerações pagas no mês anterior aos trabalhadores ao seu serviço, com indicação dos tempos de trabalho prestado e das remunerações processadas, devendo, e para tanto na altura desse pagamento proceder ao desconto prévio dos valores devidos à Segurança Social, na percentagem de 11 e 10% da retribuição que constitui base de incidência constitutiva em relação, respectivamente, aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade.

5. O Instituto da Gestão Financeira da Segurança Social, delegação de Viseu, Serviços de Inspecção, procedeu a uma fiscalização mediante análise dos dados contabilísticos, verificando que os arguidos, não obstante terem deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, no valor global de €4.765,24 (quatro mil setecentos e sessenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), correspondente aos salários pagos a estes no período compreendido entre Novembro de 2001 e Junho de 2004, não efectuaram, até à data, a sua entrega nos serviços da Segurança Social.

6. Assim, os arguidos deveriam ter entregue e não entregaram:

a) a quantia de €28,68 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €108,16 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Novembro de 2001.

b) a quantia de €43,02 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €89,37 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Dezembro de 2001.

c) a quantia de €43,02 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €89,37 referentes às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Janeiro de 2002;

d) a quantia de €45,89 referentes a contribuições do salário do gerente e a quantia de €85,14 referentes às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Fevereiro de 2002;

e) a quantia de €45,89 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €47,56 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Março de 2002;

f) a quantia de €49,72 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €98,62 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Abril de 2002;

g) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €89,63 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Maio de 2002;

h) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,47 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Junho de 2002;

i) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,47 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Junho de 2002;

j) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €177,84 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Agosto de 2002;

k) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Setembro de 2002;

l) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Outubro de 2002;

m) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Novembro de 2002;

n) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Dezembro de 2002;

o) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Dezembro de 2002;

p) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Janeiro de 2003;

q) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €89,63 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Fevereiro de 2003;

r) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €89,84 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Março de 2003;

s) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Abril de 2003;

t) a quantia de €57,83 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €88,10 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Maio de 2003;

u) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Junho de 2003;

v) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €177,84 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Julho de 2003;

w) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Agosto de 2003;

x) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Setembro de 2003;

y) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Outubro de 2003;

z) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Novembro de 2003;

aa) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Dezembro de 2003;

bb) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €92,48 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Janeiro de 2004;

cc) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €80,42 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Fevereiro de 2004;

dd) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €84,83 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Março de 2004;

ee) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €76,63 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Abril de 2004;

ff) a quantia de €57,36 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €71,82 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Maio de 2004;

gg) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €86,36 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Junho de 2004;

hh) a quantia de €57,63 referente às contribuições do salário do gerente e a quantia de €86,36 referente às contribuições dos salários pagos aos trabalhadores, relativas a Junho de 2004;

7. Esses quantitativos deviam ter sido entregues até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam as operações líquidas e de desconto em que haviam sido deduzidos, o que não aconteceu.

8. Os arguidos não efectuaram os pagamentos correspondentes aos períodos acima discriminados, tendo ficado com tais meios líquidos e optando por os utilizar em seu proveito próprio, integrando-os no seu património e, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas.

9. Isto, não obstante terem conhecimento da existência das dívidas à Segurança Social e da obrigação legal da sua entrega a esse credor.

10. Em todos aqueles períodos de tempo (Novembro de 2001 a Junho de 2004) sabiam os arguidos que o montante que gastaram e utilizaram em seu proveito próprio pertencia ao Centro Regional de Segurança Social e a este devia ter sido entregue juntamente com as folhas de remunerações processadas.

11. Pelo que, não o tendo feito, quiseram e conseguiram os arguidos através das prestações deduzidas e da sua não entrega à Segurança Social, nos termos e pela forma relatada, obter um interesse próprio benefícios, que lhe eram vedados por lei.

12. Agiram os arguidos T, de forma deliberada, livre e consciente, no seu próprio interesse e no da sociedade “RR Lda.”, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da segurança social.

Mais se Provou

13. A arguida T é doméstica e o arguido é empregado de escritório, auferindo com a sua actividade o ordenado mínimo nacional.

14. Vivem com a filha de 16 anos numa casa emprestada.

15. Sobrevivem com a ajuda de familiares.

16. A arguida T não tem antecedentes criminais.

17. O arguido A sofreu uma condenação, no processo n.º ../02.2TANLS, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €2, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11.º, do DL 454/91, de 28.12, por sentença proferida em 16.06.06. Pena essa que se encontra extinta pelo cumprimento.

B. FACTOS NÃO PROVADOS

Provaram-se todos os factos constantes da acusação.


***

            DIREITO

Vêm os arguidos acusados da prática de um crime continuado de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos artigos º 27.º-B, do DL n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo DL 394/93, de 24.11.93, e DL n.º140/95, actualmente pelo artigo 107º e 105º da Lei n.º15/2001, de 05.06 (RGIT), e artigos 30º, n.º2 e 79º, ambos do Código Penal, sendo a arguida sociedade punível por via do disposto no artigo 7.º do RJIFNA, actualmente artigo 7.º do RGIT.

Nos termos do disposto no art.º 27.º-B, do DL n.º 20-A/99, com as alterações introduzidas pelos diplomas supra referidos, as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por este legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no art.º 24.º (sublinhado nosso)

Dispunha o artigo 24.º, com a epígrafe de “abuso de confiança fiscal”, na redacção introduzida pelo DL n.º 394/93, que:

“1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta, nem superior ao dobro sem que se possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.

2. Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela, que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4. Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250000$00, o agente será punido com multa até 120 dias.

5. Se no caso previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for de valor superior a 5000000$00, o crime será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

6. Se a obrigação de entrega for de natureza periódica, haverá tantos crimes quanto os períodos a que respeita tal prestação”.

Note-se que o artigo 27.º- B, não existia na versão primitiva, sendo introduzido pelo DL n.º 140/95, em cujo preâmbulo se pode ler o seguinte: “o quadro sancionatório dos regimes de Segurança Social tem-se mostrado incapaz de prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento de obrigações pelos contribuintes perante o sistema de segurança social (…)

(…) o presente diploma alarga o campo de aplicação do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA) às infracções praticadas no âmbito dos regimes da segurança social pelos respectivos contribuintes…”

Este normativo foi revogado pela Lei 15/2001, de 05.06.01, conforme decorre do artigo 2.º, al. b).

Os factos ocorreram entre Novembro de 2001 e Junho de 2004, ao abrigo, portanto desta lei última (que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação), não havendo, neste particular, nenhuma sucessão de leis no tempo que cumpra apreciar.

Todavia, o regime estatuído pela Lei 15/2001 veio a sofrer alterações com a entrada em vigor da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, colocando-se problemas de sucessão de leis no tempo, que se prendem, concretamente, com a questão de saber se a não entrega de quantias inferiores a €7.500,00 se encontra ou não descriminalizada.

Dispunha o artigo 107.º do RGIT, antes da referida alteração que:


Artigo 107.º

Abuso de confiança contra a segurança social


1- As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º

2- É aplicável o disposto nos n.os 4, 6 e 7 do artigo 105.º

Por sua vez, dispunha o citado artigo 105.º que:


Artigo 105.º

Abuso de confiança


1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2- Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3- É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária. (negrito nosso)

7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com o artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, foram introduzidas as seguintes alterações ao artigo 105.º:


Artigo 105.º

Abuso de confiança


1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

(2 a 5- mantêm-se iguais)

6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

7- (mantém-se igual)

Por sua vez, o artigo 107.º tem a mesma redacção que tinha antes Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, mantendo a remissão para o n.º 6, entretanto revogado.

Face a esta alteração divide-se a jurisprudência quanto à questão de saber, se, tal como ocorre no crime de abuso de confiança fiscal, quando as prestações devidas sejam inferiores a €7500 o crime de abuso de confiança à SS se encontra descriminalizado.

São duas as posições que se evidenciam a este propósito, diametralmente opostas, aliás.

Vejamos.

Pugnando pela não descriminalização, veja-se, na jurisprudência, entre vários, os acórdãos recentes da RL de 20.07.09 (processo n.º 7867/2008-3), da RC de 08-07-2009, (processo n.º 148/98.0IDCBR.C2), da RG de 09.07.09 (2438/07.3TAGMR.G1), e de 27.04.09 (1304.8TABRG.G1), da RP de 15.07.09 (0846834), de 27.05.09 (1760/06.0TDPRT), de 03.06.09 (0715084), de 20.04.09 (8419/02.6TDPRT).

A favor da descriminalização foram proferidos os acórdãos da RL 15.07.09 (processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1-4) e de 25.02.09 (processo n.º 102/04.4TACLD.L1-3) e da RP de 27.05.09 (3/05.7TAVNF.P1),

A primeira tese é claramente maioritária.

A favor da primeira teoria são deduzidos vários argumentos, dentro dos quais o mais forte é o argumento literal. Assim, advogam que a letra da lei é intransponível, e a remissão operada pelo n.º 2 do artigo 107.º é apenas para as penas, permanecendo o tipo objectivo e subjectivo de ilícito perfeitamente autónomo (o ac. da RC de 08-07-2009, considera uma interpretação diversa “contra legem”). A norma incriminadora é completa, apenas operando a remissão para efeitos da determinação da moldura legal.

O n.º 5, do art.º 105.º, para qual o art.º 107.º também remete, apenas se limita a prever uma circunstância qualificativa, no caso de a prestação em dívida for superior a €50.000,00.

Daí que, nesta perspectiva, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social conheça duas modalidades: a simples, quando os valores sejam inferiores a €50.000, e a forma qualificada, quando os valores sejam superiores àquele montante.

O facto de o n.º 6 ter sido revogado e de o 107.º, n.º 2, a par da remissão para o n.º 1 e 5, também remeter para o número extinto, não permite concluir que tenha sido intenção do legislador abranger o crime em apreço na fixação desse limiar de punibilidade dos €7500,00. A este propósito o acórdão da RL de 20.07.09, entendeu que: “É verdade que o legislador não levou em devida conta que o nº 6 do artigo 105º foi expressamente revogado, acabando por manter a remissão para o citado nº 6 operada pelo nº 2 do artº 107, ou seja, manteve uma remissão para uma norma revogada (havendo que fazer uma interpretação abrogante daquela remissão). Mas esta circunstância, conforme maioritariamente tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, não pode conduzir a outra conclusão senão a de que foi intenção do legislador não querer alterar o crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, designadamente, não querer tornar extensível aquele limite de €7.500 ao crime de abuso de confiança fiscal. Tanto assim que nem o reconstruiu, não alterando em nada o desenho da factualidade típica.”

Por outro lado, e partindo do texto, sustentam os defensores desta tese que os crimes não são similares, nem no tratamento jurídico, nem na ratio que lhes subjaz, constituindo, aliás, crimes autónomos, sistematicamente previstos em capítulos diferentes do RGIT.

Exemplo do diferente tratamento jurídico de um e outro é a circunstância de no âmbito da fraude fiscal e da fraude contra a segurança social serem também distintos os limites mínimos a partir dos quais a conduta é punida (€15.000,00 no primeiro e €7.500,00 no segundo) -cfr. artigos artigo 103º, n.º 2 e 106.º, do RGIT.

Por outro lado, contrariamente ao que acontece no abuso de confiança à SS, no abuso de confiança fiscal encontra-se previsto um regime sancionatório contra-ordenacional, constituindo a falta de entrega de prestação tributária igual ou inferior a €7500 contraordenação prevista pelo artigo 114º do RGIT.

Partindo do espírito da norma e do bem jurídico subjacente, sustentam que é distinto o círculo dos afectados pelas condutas em causa.

Tal como foi decidido no Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2005, “diversamente do que acontece em regra com os impostos, que constituem receitas do Estado, não afectas na fins específicos, as contribuições para a segurança social destinam-se a fins específicos da mesma, de que beneficiam apenas alguns cidadãos. Algumas das prestações sociais constituem, aliás, a contrapartida das quotizações dos trabalhadores”(, in DR, 1ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 005, pág. 2714).

O sistema previdencial é, sobretudo auto-financiado, tendo por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações -artigo 54º Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social.

Por outro lado, enquanto a administração fiscal visa arrecadar receitas, repartindo de forma justa os rendimentos e a riqueza, investindo aquelas quantias em bens, serviços e prestações de natureza vária, em ordem à redução das desigualdades sociais e ao desenvolvimento do país; a administração previdencial visa arrecadar receitas para prossecução dos seus fins específicos que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos.

Finalmente, a favor desta tese sustenta-se ainda a ideia de que opinião diversa criaria um factor de grave desequilíbrio na unidade do sistema, pondo em causa coerência intrínseca do ordenamento.

Com efeito, passaria a existir, incompreensivelmente, um mesmo limite para a fraude e para o abuso de confiança contra a Segurança Social (€7500), enquanto que no âmbito dos crimes fiscais o limite mínimo para a fraude (€15.000) corresponde ao dobro do estabelecido para o abuso de confiança (€7500).

Por outro lado, a total impunidade da falta de entrega de quotizações deduzidas, em montante igual ou inferior a €7500 é incompatível com a necessidade de assegurar a sustentabilidade do sistema da segurança social, particularmente ameaçado em tempos de gravíssima crise económica e financeira e não teria qualquer justificação no confronto com outros comportamentos bem menos censuráveis, tipificados como contra-ordenações contra a segurança social, nomeadamente pelo Dec.- Lei n.º 64/89 de 25 de Janeiro.

Rebatendo a primeira tese, sustenta a segunda que o abuso de confiança fiscal e o abuso de confiança à segurança social são duas situações em tudo similares, tanto mais que um e outro constituem crimes tributários que visam, a final, a protecção dos interesses tributários do Estado e do erário público.

As contribuições assumem uma natureza similar à dos impostos, porquanto são devidas a entidades que exercem funções públicas para a satisfação dos fins próprios destas, têm carácter patrimonial e não constituem uma sanção (Ac da RP de 27.05.09, citando Diogo Leite de Campos). Tanto assim é que o próprio artigo 11.º do RGIT acaba por estabelecer essa equiparação.

Aliás, o Estado Social é suportado cada vez mais pelo estado Fiscal (cfr. Cecília Xavier, nota 13 do acórdão da RP citado).

Se é certo que integram capítulos diferentes, o facto é que integram o mesmo título.

Por outro lado, no regime contra-ordenacional do DL 64/89 de 25.02, não existe qualquer norma semelhante ao artigo 114.º, mas também já não o havia antes da alteração introduzida no art.º 105.º.

Contra o referido argumento de desequilíbrio sistemático, sustentam os defensores da segunda tese, que o diferente plafond no caso da fraude não legitima uma leitura de que os interesses da Segurança Social são objecto de uma acrescida tutela penal.

Já a manutenção da remissão para um n.º 6 já revogado é sintomática da falta de cuidado legislativa na forma como procedeu à referida alteração, não podendo o lapso normativo ser interpretado como uma vontade genuína de tratar diferentemente o que é similar, sob pena de se agravar injustificadamente a situação do infractor, pois onde antes havia 3 diferentes patamares de ilicitude, agora apenas só há dois.

Assim, e em conclusão, para os defensores da segunda tese, a tipicidade ínsita nos crimes do artigo 105.º e 107.º é similar, ocorrendo uma e outra com “a afronta ao dever legal de entregar tempestivamente” as prestações deduzidas ou retidas, conforme o caso.

Pelo que a própria proporcionalidade das penas, exige um tratamento igual quando a conduta, sendo a mesma, afronta administrações tributárias distintas (fiscal ou previdencial), resvalando para um excesso de punição, inconstitucional, pela violação do princípio da proporcionalidade e igualdade.

Finalmente, se o objectivo (ou um dos objectivos) do legislador ao estabelecer o limite de € 7.500,00 foi o de descongestionar os Tribunais, retirando-lhes processos-crime em que estavam em causa valores diminutos, então mais uma razão para se entender que tal limite deve ser tido em conta também quando está em causa a Segurança Social, pois que assim sendo, mais processos serão arquivados. A continuação da criminalização de determinada conduta não deve ser entendida por razões meramente economicistas, ainda para mais quando só é crime quando o credor é o Estado, seja a Administração Tributária, seja a Segurança Social, pois que a não ser assim, então que se criminalize também o não pagamento das dívidas dos empresários aos seus fornecedores e aos seus trabalhadores, pois que o seu não pagamento também afecta a economia (ac. da RL de 25.02.09, já citado).


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Exposta a controvérsia, cumpre tomar posição.

Os argumentos apresentados contrabalançam-se, em grande medida.

Com efeito, o argumento literal é muito forte, mas se é verdade que a letra constitui um limite à interpretação da norma, excluindo todas os sentidos que ultrapassem o texto, não é menos certo que a mesma constitui um princípio de interpretação, ao qual se devem aliar outros elementos hermenêuticos.

Neste sentido, Oliveira Ascensão, (O Direito, Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 1978, p.350), “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação…o texto funciona também como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento definitivo da lei. Para além disto porém não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra qualquer afinidade” (sublinhado nosso).

Atendendo ao elemento sistemático, o argumento de que são crimes autónomos, porque inscritos em capítulos diferentes, não é decisivo, porque tal como defendido no  acórdão da RP a que fizemos referência, ambos se incluem no mesmo título, com a epígrafe “Crimes Tributários”.

Aliás, é muito pertinente a consideração feita pelos partidários da segunda tese quanto à classificação operada no art.º 11.º, alíneas a), b) e c), quanto a “prestação tributária”, “serviço tributário e “órgãos da administração tributária”, já que compreendem as duas realidades, quer respeitantes ao fisco, e respectiva administração, quer respeitante à administração da segurança social.

Aliás, neste sentido também o artigo 1.º e 2.º, n.º 1, do RGIT.

Por outro lado, e neste sentido afastamo-nos da segunda tese, o certo é que, em alguns aspectos o tratamento jurídico respeitante a infracções fiscais e a infracções contra a segurança social é diferente.

Mas tal não se prende apenas com o 114.º, do RGIT, já que o argumento a este propósito avançado pelos partidários da primeira tese não se afigura decisivo. Com efeito, o artigo 114.º já existia na versão originária do RGIT, e já então não havia paralelo no âmbito dos crimes de abuso de confiança à SS.

Assim, não houve uma descriminalização associada à criação de uma contraordenação, já que as opções valorativas que presidiram a uma e outra norma foram tomadas em momentos diferentes.

Mas há tratamento jurídico diferente no âmbito dos crimes de fraude. Na realidade, se atendermos a diferente redacção do artigo 103.º e 106.º facilmente se conclui que, pelo menos aí, há uma menor exigibilidade quanto à fraude à SS, já que o limite a partir do qual se verifica o crime é inferior àquele que se exige para a fraude fiscal.

Atendendo à ratio subjacente aos diferentes preceitos, não deixa de impressionar a primeira tese, no que concerne à delimitação dos afectados por uma e por outra conduta.

Assim, a contribuição resulta de uma dedução do valor bruto do salário do trabalhador, que a não a recebe, mas a quem, em contrapartida daquela privação, é assegurado o direito a uma prestação social, designadamente no caso de doença, desemprego ou reforma.

Ver a alteração como uma medida de combate à crise económica em termos de sustentação das pequenas e médias empresas, como alguns pretendem (cf citado ac. da RP), é esquecer que precisamente em virtude da crise a Segurança Social encontra maiores solicitações graças ao aumento do desemprego, o que implica um reforço dos valores gastos com subsídio de desemprego e com outras prestações sociais, designadamente rendimento mínimo de inserção.

A falta de entrega de contribuição quando devida além de afectar trabalhadores identificáveis, perigando o direito concreto destes a prestações sociais, lesa a comunidade em geral porque afecta a própria sustentabilidade, a longo prazo, da já debilitada Segurança Social, sobretudo atendendo ao crescente envelhecimento demográfico.

Mas daqui não decorre que a Segurança Social mereça mais protecção que o Fisco, desde logo porque o círculo dos beneficiários da boa cobrança das prestações fiscais é bem mais abrangente, englobando a comunidade em geral, diferentemente do que ocorre com os beneficiários daquela.

Assim, há que retornar à letra da lei para tomar posição.

Na interpretação de qualquer norma, deve-se partir da consideração que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e que consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º, n.º 3, do CC).

Considerando a redacção anteriormente prevista, não se pode ignorar que o tratamento dado ao crime de abuso de confiança fiscal e ao crime de abuso de confiança à segurança social era, em tudo, absolutamente idêntico.

Como o já era ao abrigo do RJIFNA, operando a determinação da medidas da pena também para o estatuído nos crimes de abuso de confiança fiscal.

Sendo certo que a introdução do artigo 27.º-A, teve por fim, de acordo com o preâmbulo do DL n.º 140/95, prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento de obrigações pelos contribuintes perante o sistema de segurança social. E que, para concretizar tal desiderato, alargou o campo de aplicação do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras às infracções praticadas no âmbito dos regimes da segurança social pelos respectivos contribuintes.

Neste alargamento, não se pode deixar de ver a intenção de tratar as duas situações de forma idêntica, sem distinção do tipo de administração em causa ou da natureza da prestação devida, o que, aliás, o regime jurídico traduzia.

A alteração legislativa operada com a Lei 64-A/2008 veio introduzir uma discriminação, sem que a mesma se encontre devidamente justificada.

A lei em causa não contém qualquer preâmbulo, pelo que sempre se poderia consultar a proposta de lei 226-X, disponível, na base de dados da AR (http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.doc?path=6148523063446f764c3246795a5868546f334e7a67774c325276593342734c576c75615668305a586776634842734d6a49324c5667755a47396a&fich=ppl226-X.doc&Inline=true). Todavia, da consulta da mesma apenas resulta que alteração constante do artigo 105.º é aquela que já constava da proposta, sendo aprovada na íntegra.

O Relatório do Orçamento de Estado de 2009 (disponível em http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Documents/oe/2009/RelatorioOE2009.pdf), no que concerne às alterações operadas ao RGIT a este propósito nada diz (cfr. fls. 43).

Não se consegue, assim, compreender qual a razão de ser da diferente valoração operada nos crimes de abuso de confiança fiscal e do crime de abuso de confiança à segurança social, pelo que cumpre apreciar se a mesma terá sido intencional e se, sendo-o, é legítima.

Voltando novamente à letra, não se pode ignorar que a remissão para o n.º 6 se mantém, não tendo o legislador optado por fazer nenhuma alteração ao artigo 107.º, que manteve a sua redacção originária.

Todavia, onde antes havia três patamares distintos, hoje existem apenas dois, consoante a quantia em causa seja inferior ou igual a €50000,00, ou superior, no caso de abuso de confiança à Segurança Social.

Já no âmbito do crime de abuso de confiança fiscal todas as quantias entregues em valor não superior a €7500,00, não constituem crime, o que é uma solução muito diferente da consagrada no n.º 6 extinto, uma vez que ali só o pagamento de valor até €2000, levava à extinção da responsabilidade.

Agora, valor inferior àquele não é pura e simplesmente crime, pese embora possa ser contra-ordenação (artigo 114.º). Mas, já o assim era quando o n.º 6 era vigente, pelo que não se pode retirar do “aparente vazio de punibilidade” a não aplicabilidade do referido limite ao artigo 107.º.

Assim, e com a devida vénia pela jurisprudência que têm entendido em sentido inverso, não podemos deixar de considerar que a interpretação literal e restritiva defendida, constitui uma inovação sem precedentes no tratamento de dois crimes, que pelo menos ao abrigo da Lei 15/2001, na versão originária e do anterior diploma (RJIFNA), sempre foram tratados como iguais.

Ora, partindo novamente do princípio que o Legislador consagrou a solução mais acertada, não terá por certo pretendido uma solução tão desproporcional, violadora do princípio da igualdade.

Assim e como foi decidido no Acórdão da RL de 25.02.09, também entendemos que o “princípio da proporcionalidade impede uma tal discrepância na aplicação do novo regime previsto no art.º 105º, nº1 do RGIT relativamente aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social”. É que “a descriminalização do abuso contra o fisco redundaria numa agravação do regime do abuso de segurança contra a segurança social.”.

É que tal “representa uma ofensa injustificada ao princípio da legalidade e poderia significar uma interpretação inconstitucional do art. 107º nº 1 do RGIT, por conduzir a um excesso de punição quando em causa estivesse o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500, com consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade (na medida em que situações iguais eram tratadas em termos sancionatórios de forma desigual) e, portanto, por contrariarem o estatuído nos arts. 18º nº 2 e 13º da CRP”- Acórdão da RP de 27.05.09 a que temos vindo a fazer referência.

Ora, de acordo com o artigo 2.º, n.º 1, do CP, as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.

Acrescentando o n.º 2 que, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções.

Pelo exposto, concluímos que se a contribuição deduzida e comunicada em cada declaração, que não foi entregue, for não superior a € 7.500, o crime de abuso de confiança contra a segurança social não é punido, por estar descriminalizado (art. 2 nº 2 do CP).

Assim, revertendo ao caso dos autos, constata-se que as quantias devidas a título de contribuições, declaradas mensalmente no período que compreende Novembro de 2001 a Junho de 2004 (descontadas mensalmente nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida), são todas elas de valor inferior a € 7.500,00, pelo que as mesmas se encontram a coberto do disposto no art.º 105.º, n.º 1, do RGIT, interpretado extensivamente, pelo que a não entrega das mesmas se encontra descriminalizada.

Em consequência, e nos termos do disposto no art.º 2, n.º 2, do CP, o procedimento criminal encontra-se extinto.


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Conhecendo:

Questão suscitada:

A única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 – é ou não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma.

A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, indicando as duas posições seguidas a nível jurisprudencial.

Ambas as posições têm fundamento, bastando atentar nos Acs. do STJ, de 17-12-2009, Proc. 331/01.2TAVCD.S1 que sustenta a não aplicação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social e de 04-02-2010, Proc. 106/01.9IDPRT.S1, que sustenta a outra versão, ambos em www.dgsi.pt.

O nosso entendimento, que aliás vem de encontro ao seguido nesta Relação, é no sentido da não aplicação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social.

Seguiremos de perto, entre outros, os Acs. desta Relação proferidos nos processos Nº 386/07.6TAMGL.C1 e Nº 148/98.0IDCBR.C2

No primeiro se concluiu que, “A alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 –não é  aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma”, e no segundo, “O entendimento segundo o qual o limite de €7500 previsto no art.º 105/1 também é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107/1 constitui interpretação «contra legem»”.

Neste sentido, também o Ac. do STJ de 17-12-2009, referido, “o art. 113 da lei nº 64-A/2008, de 31-12, que posteriormente à prática dos factos, alterou o RGIT, deixou intocado o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art. 107 daquele e punível com as penas previstas no art. 105, não sendo alvo de tácita revogação pelo art. 113 do citado regime, no aspecto de assimilar o quantitativo da entrega imposto enquanto elemento objectivo do crime de abuso de confiança relativamente à Segurança Social, ao correspondente de €7500, estabelecido para o ilícito penal”.

            Sobre esta mesma questão foi elaborado um estudo pelo colega da Relação de Guimarães, Desembargador Cruz Bucho, o qual conclui: “Tudo devidamente ponderado, afigura-se-nos que o limite de € 7500 a que alude o n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT”.

O artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, veio alterar a redacção do n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, mediante a introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando-se a exigir que ela seja de "valor superior a € 7500".

            No caso dos autos, foram aos arguidos imputados factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, sendo que nenhuma das prestações, perfazia 7.500€.

Como se refere nesse estudo, uns entendem que a nova redacção dada ao artigo 105º, n.º 1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2009 de 31 de Dezembro, que estabeleceu o limite de €7500 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força do n.º 1 do artigo 107º desse mesmo RGIT (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia, in www.dgsi.pt e Ac. da Rel. de Guimarães de 23-3-2009, proc.º n.º 2378/08-2ª, rel. Anselmo Lopes) outros sustentam que o referido limite de € 7500 não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (cfr. o Ac. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009, proc.º n.º 257/03.5TAVIS.C1, rel. Jorge Raposo, além dos supra referidos e o Ac. da Rel. do Porto de 25-3-2009, proc.º n.º 1131/01.5TASTS, rel. Maria Leonor Esteves, ambos in www.dgsi.pt).  

A redacção actual resultante da alteração legislativa é do seguinte teor: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”

Com esta nova redacção, por força daquele limite, é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária - o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n° 7 do referido art. 105° - não excede € 7.500.

            A redacção do art. 107 do RGIT, que não sofreu alteração, é a seguinte:  "1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°.

2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105º”.

            - O tipo de crime abuso de confiança contra a segurança social é autónomo, independente do do crime de abuso de confiança fiscal;

            - Um e outro destes crimes tutelam bens jurídicos distintos;

            - A remissão para o crime de abuso de confiança fiscal apenas respeita às penas.

- A entender-se que o nº 1 do art. 105 do RGIT se aplicava na totalidade, por força do disposto no art. 107, tal consistiria numa quase total despenalização dos factos integradores do crime de abuso de confiança contra a segurança social.  Por um lado, apenas grandes empresas terão prestações mensais à segurança social de valor igual ou superior a 7500€, por outro, verifica-se que, com a revogação do nº 6 do referido art. 105, ficaria totalmente despenalizado (nem contra-ordenação) o abuso contra a segurança social em que a dívida fosse inferior ou igual a 7500€.

Como salientado no Ac. desta Relação, no processo 257/03.5TAVIS.C1,  “entender-se que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social foi despenalizado, cria-se um espaço de absoluta impunidade para comportamentos bem mais censuráveis do que aqueles que são tipificados como contra-ordenações contra a Segurança Social”.

Por outro lado, o art. 113º da Lei 64-A/2008, de 31.12 (Lei do Orçamento de 2009) integra-se na sua secção II –“Procedimento e Processo Tributário” do Capítulo XI –“Procedimento, processo tributário e outras disposições”, enquanto as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V –“Segurança Social” (art.s 55º e seguintes) e, nesta parte é que poderia –deveria – caber qualquer alteração aos crimes contra a segurança social.

No mesmo Acórdão se refere: “Enquanto nos crimes fiscais os deveres impostos aos contribuintes convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiças tributárias, reconduzindo-se assim a um mais amplo bem jurídico tutelado, qual seja "a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte";

Já no crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, não é o Estado/Administração Fiscal o destinatário desses montantes, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com personalidade jurídica e património próprio, dotado de autonomia administrativa e financeira para a gestão dos interesses de segurança social que lhe estão cometidos defender e prosseguir, e cujo orçamento próprio assenta fundamental e prioritariamente nas receitas provenientes das prestações sociais resultantes dos descontos efectuados, sendo pois esta efectiva arrecadação o bem jurídico tutelado”.

Assim, presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, como impõe o art. 9º do Código Civil, tem de se concluir que o art. 113º da referida lei não procedeu a qualquer despenalização dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social”.

 Assim que se entenda inexistir lei despenalizadora dos crimes de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, nem lei nova, que consagre regime mais favorável ao arguido, não havendo necessidade de lançar mão do disposto no art. 2 nº 1 ou 4 do CP.

Se bem atentarmos nos transcritos segmentos legais, neles se define o que deve entender-se, respectivamente, por crime de abuso de confiança fiscal e por crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Constata-se que não são idênticas as respectivas previsões. Efectivamente, o elemento gramatical é a regra de ouro quando se trate da previsão de tipos legais de crime.

Dum modo geral, o ponto de partida na interpretação de qualquer lei é o seu elemeto literal. Elemento este irremovível (O.. Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 13ª ed. 2005, pág. 396) e que assume especial acuidade quando se trate de definir tipos legais de crime atento os princípios da legalidade e da tipicidade.

Pela simples leitura dos preceitos constata-se, por um lado, que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constam integralmente do n.º1 do art.º 107° que permaneceu intocado perante as alterações introduzidas no RGIT pela Lei 64-A/2008; pelo outro, que a remissão constante do artigo 107°/1 se circunscreve às penas.

Assim, como se diz no Ac. da RG de 23/3/2009, a falta de remessa no art.º 107º para o novo valor inscrito no art.º 105/1 encerra só por si as portas à aplicação da restrição ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.

O argumento de que não faz sentido que se interprete a mesma norma de duas formas diferentes, consoante a remissão se faça para o n.º1 ou para o n.º 5 do mesmo preceito (cfr. neste sentido o citado Ac. da RG de 23/3/2009) não colhe pois não há quaisquer diferentes atitudes de interpretação já que o n.º 5 do art. 105º se limita à previsão duma circunstância qualificativa que apenas releva quanto à penalidade aplicável.

A favor da repudiada tese observou-se no Ac. da RL de 25-2-2009 que “não se compreenderia que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a €7.500 se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”.

Tal visão carece de qualquer valor interpretativo pois só o legislador está em posição de ajuizar da oportunidade das alterações a introduzir no tecido penal.

A dar-se-lhe valia corresponderia à possibilidade de criação ou de alteração pela via jurisprudencial de tipos legais de crime, o que é insustentável.

O art.º 1º do Código Penal consagra o princípio da legalidade e seu corolário lógico é o princípio da tipicidade, pelo qual cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma pena. Por isso importa que a sua definição seja tanto quanto possível precisa.

Com função primacialmente garantística impõe-se que só a lei possa delimitar uma função delituosa. Donde a sua consagração no art.º 29º da CRP e a apresentação da lei penal como um sistema fechado, sem possibilidade de aplicação analógica ou extensiva (embora nesta última com indefinição sobre o que ela realmente constitui).

A isto adite-se que é da competência relativa da Assembleia da República a definição dos crimes e penas. E que o legislador ordinário tem uma ampla liberdade de conformação dos tipos dentro do respeito dos princípios constitucionais.

Não obstante alguma semelhança decorrente da igual conformação dos tipos em causa (ambos omissivos puros cuja consumação ocorre com a não entrega de prestações/contribuições deduzidas) e a identidade dos regimes punitivos, os tipos em causa são autónomos e encontram previsão em diferentes capítulos o RGIT.

Servem de exemplo a autonomia, o limite a partir do qual a conduta é punível no crime de fraude fiscal (€15.000/artigo 103º/2) e no crime de fraude contra a segurança social (€7500/artigo 106/1); bem como a previsão dum regime sancionatório especial quanto aos ilícitos contraordenacionais contra a Segurança Social (art.º 1º/2 da Lei 15/2001).

Não há que fazer apelo ao princípio da igualdade já que se trata de crimes que protegem bens jurídicos diversos.

A orientação que em termos sintéticos aqui se deixa delineada tem sido uniforme nesta Relação.

Como é referido no Ac. do STJ de 17-12-2009, já citado, “o descritivo típico objectivo se há-de buscar no art. 107, tipo legal de crime incompleto, pois que carece, para completar o segmento de punição de recorrer, para integração punitiva de outro preceito; não se basta por si próprio, havendo e só que respeitar a técnica legislativa usada e não intentar descortinar interpretações sem a mais leve tradução na lei” e, “se fosse de referenciar como obstáculo punitivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social aquele segmento atinente ao valor em débito, transpondo-o, sem mais, para o art. 107, estar-se-ia a introduzir no tipo uma circunstância que aí não figura; estar-se-ia a construir, pura e simplesmente, um tipo legal novo, inserto num diploma aprovando o OGE e o legislador orçamental arvorado, mais uma vez, estranhamente, em legislador penal, numa postura próxima, porém criticável, da usurpação de poderes. Se o legislador entendesse dever introduzir aquela limitação quanto à punição do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não teria deixado de o fazer, antes mantendo referência à punição mediante recurso e só às penas e não já, e, também, ao valor em débito”.

Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em:
- Julgar provido o recurso interposto pelo Magistrado do Mº Pº e, em consequência, anula-se a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por outra que aplique o direito aos factos julgados provados.

Sem custas.

Coimbra,

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