Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5101/19.9T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: MÚTUO
PRESTAÇÕES MISTAS
CAPITAL
JUROS
VENCIMENTO DA TOTALIDADE DA DÍVIDA
INTERPELAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU DO TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 310.º, ALÍNEA D, 781.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) Salvo estipulação em sentido contrário, o vencimento da totalidade de uma dívida que o mutuário se obriga a pagar em várias prestações mistas de capital e juros não opera automaticamente com o não pagamento de uma delas, antes carece de interpelação do credor a exigir ao devedor o seu pagamento integral.

II) Mesmo no caso de vencimento da totalidade da dívida do mútuo por interpelação do credor que a declare, não se altera a sua natureza de dívida fraccionada, continuando a aplicar-se o prazo de prescrição de cinco anos.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo de Execução de Viseu, Comarca de Viseu, A., S.A., moveu uma execução para pagamento de quantia certa sob a forma sumária contra B. , C. e D. , na qualidade de herdeiros de E., tendo por base a escritura pública de mútuo com hipoteca que com estes celebrou em 23 de Outubro de 2001, através da qual os mesmos se declararam devedores da quantia de Esc. 5.000.000,00 (€ 24.939,89), que se obrigaram a liquidar no prazo de 5 anos, em 60 prestações mensais e sucessivas, abrangendo capital e juros; alega que, apesar de instados, os falecidos mutuários não pagaram a prestação vencida em 23 de Dezembro de 2001, o que implicou o vencimento de toda a dívida; até à entrada do requerimento executivo venceram-se juros que se devem computar em € 37.148,73.

Reclama, assim, o pagamento deste valor acrescido dos juros vincendos à taxa contratual, acrescidos da sobretaxa de 3% e do imposto de selo, perfazendo um total de € 61.161,57.

Citadas, vieram as Executadas B. e D. deduzir oposição por embargos na qual invocaram a existência de litispendência, a inexigibilidade da dívida e a prescrição de todas as parcelas de capital e juros, Em conformidade, terminam com a extinção da execução.

Foi designada uma audiência prévia, nos termos do art.º 591, nº 1, al.ª b) do CPC, sendo comunicado às partes que o tribunal se propunha conhecer da insuficiência do título executivo, atenta a não junção pela Exequente no requerimento executivo de prova documental da interpelação dos mutuários para o pagamento da totalidade da dívida.

Viria a Exequente a reconhecer que não dispunha do comprovativo em causa, embora sustentando que dívida total foi objecto de confissão através da sua relacionação no processo de inventário para partilha das heranças dos mutuários, inventário em que interveio como credora e os Executados como interessados.  

Em saneador- sentença foi proferida decisão a julgar totalmente procedente a oposição com fundamento na prescrição da obrigação exequenda, e, em função disso, determinada a extinção da execução.

Inconformada, deste veredicto recorreu a Embargada/Exequente A. , recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Embora não tenha sido consignada a factualidade que o tribunal recorrido teve como provada, passam-se a elencar os fundamentos de facto que os autos permitem dar como assentes:


1. No exercício da sua actividade creditícia o Banco G., S.A., celebrou em 23 de Outubro de 2001 com E. e F. , uma escritura de mútuos com hipoteca no montante de € 24.939,89, ao abrigo das normas para o crédito à habitação, pelo prazo de cinco anos a liquidar em 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros conforme o documento de fls. 105 e ss..
2. Os mutuários faleceram em 27 de Fevereiro de 2011 e 5 de Março de 2014.
3. Por inventário foram habilitados os respectivos filhos, aqui Executados, B. , D. e C..
4. Nos termos da escritura de mútuo os mutuários confessaram-se devedores da quantia mutuada.
5. Vencendo-se a primeira prestação 30 dias após a conclusão das obras e as restantes em iguais dias dos meses seguintes.
6. De harmonia com o documento complementar elaborado com a escritura de mútuo, o empréstimo destinou-se a beneficiação de habitação própria, estipulando-se na respectiva cláusula 5ª que “a quantia mutuada será entregue ao(s) mutuário(s) à medida que as obras forem sendo realizadas, de acordo com as vistorias efectuadas pelo técnico indicado pelo Banco mutuante, sendo a última prestação entregue depois de concluídas as referidas obras”. 
7. Apesar de instados, os falecidos mutuários não pagaram ao Banco mutuante a prestação vencida em 23 de Dezembro de 2001.
8. Por virtude de cessões de crédito documentadas nos autos, operadas entre o Banco mutuante, H. , Lda e a Exequente/Embargada A. , SA, esta adquiriu o crédito do mutuante.
9. No requerimento executivo que formulou a Exequente e ora Embargada A. considerou vencida totalidade da dívida, composta pelo capital de 23.976,84 e pelos juros de € 37.184,73.

*

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a Exequente ora apelante levanta como única questão a de saber se, ao invés do que foi entendido na decisão recorrida, o prazo de prescrição da dívida objecto da execução não é o da alínea e) do art.º 310 do C. Civil, isto é, o prazo de cinco anos, ma antes o prazo ordinário do art.º 309 do mesmo Código, ou seja, o prazo de vinte anos.

Contra-alegaram as Embargantes, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Apreciando.

Antes de avançarmos na análise do objecto recursivo, importa deixar postulado que, para além da questão da prescrição do direito de crédito da Exequente fundado no mútuo a que alude a factualidade provada, a sentença recorrida abordou as questões da insuficiência do título executivo e da inexigibilidade da obrigação, concluindo pela efectiva verificação destas anomalias ou patologias da execução.

No entanto, optou pela solução de apreciar previamente a questão substantiva da prescrição – que teve por verificada – sendo esta a única que vem colocada nas conclusões do recurso pela apelante e Exequente A. , e que, nos termos do art.º 635, nºs 3 e 4 do CPC, cabe agora a esta Relação conhecer e decidir[1].

Não existem, por conseguinte, questões não conhecidas pelo tribunal recorrido que tenham ficado prejudicadas, circunstância que, à luz do nº 2 do art.º 665 do CPC, poderia eventualmente legitimar a substituição do tribunal recorrido na respectiva apreciação.

Sobre a questão do prazo da prescrição.

Entendeu-se na decisão recorrida que a totalidade das prestações dos mutuários, decorrentes do contrato de mútuo aludido na materialidade provada, que compõem o pedido executivo se enquadram na alínea e) do art.º 310 do CC, uma vez que se devem configurar como “quotas de amortização de capital pagáveis com juros”.

Contra esta configuração se rebela agora a apelante, sustentando que, por se tratar de uma única obrigação, o prazo de prescrição aplicável ao caso é o prazo ordinário de 20 anos do art.º 309 do CC.

Vejamos.

A prescrição – instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei – funda-se especificamente na presunção de renúncia ao direito ou na indignidade da protecção jurídica do respectivo titular em consequência da negligência que se tem por implícita na sua conduta (Manuel de Andrade, Teoria Geral, 1972, p. 446).

Prevê a lei um prazo ordinário de 20 anos no art.º 309 do CC, estabelecendo um prazo de cinco anos para os créditos identificados nas várias alíneas do art.º 310 do mesmo Código.

Esta última prescrição insere-se na categoria das chamadas prescrições de curto prazo.

No que respeita às chamadas prescrições de curto prazo sem natureza presuntiva, o Prof. Vaz Serra, no seu Estudo sobre Prescrição Extintiva e Caducidade, in BMJ 106, p.107, explicita assim a sua motivação, citando os tratadistas Planiol, Ripert e Radouant: "A razão essencial desta prescrição, que remonta ao nosso antigo direito francês, claramente indicada nos trabalhos preparatórios, é proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital susceptível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser-lhe exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos». Precisamente sobre o problema que pode advir para o devedor com as fracções ou quotas de capital, expende ainda o mesmo Prof. (ob. cit. p.113-114): "Com os juros parece deverem prescrever as quotas de amortização, se deverem ser pagas como adjunção aos juros (Código alemão, § 197º), pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e tratá-lo como juros.”     

É à luz desta finalidade – subjacente, sem dúvida, à solução legislativa que vingou em 1966 – que deve ser interpretado o disposto no art.º 310, alínea e) do Código Civil, nos termos do qual prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização de capital pagáveis com juros. Isto é, desde que o pagamento das fracções ou quotas de capital se processe de forma adjunta com os juros, funciona a norma redutora do prazo (5 anos).

Compreende-se que as quotas de amortização pagáveis com juros se fundam com estes porquanto o perigo adveniente da acumulação destes últimos se soma ao que se liga ao vencimento daquelas.

O que, por conseguinte, está na base do instituto desta prescrição de curto prazo é o propósito de evitar uma acumulação de quotas/prestações ao longo de um lapso temporal considerável. Quotas/prestações que pelo seu carácter não unificado, não concitam a prudente ponderação pelo devedor das consequências que em dado momento o seu somatório pode atingir.

Foi esta, portanto, a solução adoptada na decisão recorrida.

Rebela-se, todavia, a Exequente e agora apelante contra um tal entendimento, pugnando pela aplicação do prazo ordinário de prescrição, para tanto argumentando que, com o não pagamento pelos mutuários de uma só das prestações – a de 23 de Dezembro de 2001 –  teria passado a existir uma única obrigação de pagamento de capital e juros em face do vencimento imediato de toda a dívida ex vi do disposto no art.º 781 do CC.

Citando em abono desta sua tese o Acórdão desta Relação de 26.04.2016, no p. 525/14.0TBMGR-A.C1 e da Relação de Guimarães de 16.03.2017 no p. 595/15.0T8VNF-A.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Salvo o devido respeito, não tem a apelante razão, além do mais, porque não há total identidade das situações ali abordadas com a dos presentes autos.

Se não vejamos.

Como é jurisprudência pacífica, o vencimento de totalidade de uma dívida que o mutuário se obriga a pagar em várias prestações mistas de capital e juros, salvo estipulação em sentido contrário, não opera automaticamente com o não pagamento de uma delas. Antes carece de ser declarado pela interpelação do credor ao exigir ao devedor o seu pagamento integral.

Assim se dá nota no Ac. do STJ de 26.01.2021, proferido no P. 20767/16.3T8PRT-A.S2 – no qual, no entanto, são avançadas algumas reservas sobre a aplicação do art.º 781 às prestações híbridas de capital e juros[2] – aresto no qual é referenciada diversa jurisprudência que recusa o vencimento automático da dívida com base no preceito (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 1244/15.6T8AGH-A.L1.S2, de 11 de Julho 2019 (Ilídio Sacarrão Martins), Proc. n.º 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1, de 15 de Março de 2005 (Moitinho de Almeida), Proc. n.º 282/05 e de 17 de Janeiro de 2006 (Azevedo Ramos), Proc. n.º 3869/05.

Ora é esta prévia interpelação, declarativa do vencimento integral da dívida, que no requerimento executivo a apelante não invoca e que, desse modo, não pode ser tida por realizada.

A única interpelação que pode ter-se por efectuada é a que acompanha o próprio requerimento executivo.

Entretanto, sobre o início do prazo de pagamento das prestações do mútuo (sempre anterior à data de 23 de Dezembro de 2001) e até sobre o prazo global de liquidação (60 meses) transcorreram necessariamente muito mais do que cinco anos.

O que leva necessariamente a concluir que, decorridos cinco anos sobre o vencimento da última prestação acordada – ainda que contabilizados, não da data da escritura de mútuo, mas, pelo mais tarde, desde 23 de Dezembro de 2001 – no momento da instauração da execução tal prazo estiva já irremediavelmente esgotado relativamente a todas as prestações.

É de lembrar aqui que, mesmo ocorrendo o vencimento da totalidade da dívida do mútuo por interpelação do credor que a declare, há quem sustente que se não dá uma modificação da sua natureza de dívida fraccionada, de tal sorte que a partir daí deva ser considerada uma obrigação única de capital e juros, passando toda ela – ou só a parte do capital – a ficar sujeita ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.

No sentido de que este prazo de prescrição de cinco anos continua a ser o aplicável, mesmo quando o credor já exigiu o pagamento antecipado de todas as prestações, com fundamento na falta de pagamento de uma delas, se podem ver os Acórdãos do STJ 18.10.2018, Proc. n.º 2483/15 (Rel. Olindo Geraldes); de 23.01.2020, Proc. n.º 4518/17 (Rel. Nuno Pinto Oliveira); de 3.11.2020, Proc. n.º 8563/15 (Rel. Fátima Gomes); de 10.09.2020, Proc. n.º 805.16 (Rel. Rijo Ferreira); e de 26.01.2021, Proc. n.º 20767/16 (Rel. Maria João Vaz Tomé), todo eles citados no Ac. do STJ de 29.04.2021, prof. no P. 723.18.8TOVR-A.P1.S1, onde também surge apontado o posicionamento de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (Tratado de Direito Civil, vol. V, cit., pág. 215, e Código Civil Comentado, vol. I, cit., pág. 893, quando refere que, nestes casos, “já não se trata de ... quotas de amortização”).

Na realidade, uma vez vencida toda a dívida anteriormente fraccionada, não se compreende bem como o credor poderá obstar a uma prescrição quinquenal de quotas ou fracções que já não teria que receber.[3]

Seja como for, nos vertentes autos, nunca a Exequente/Embargada pode prevalecer-se do prazo ordinário de prescrição com base no vencimento da totalidade da dívida (capital e juros), desde logo porque não alegou ter declarado esse vencimento e interpelado os mutuários ou aos seus herdeiros para o respectivo pagamento[4].

Em suma, a decisão recorrida não merece censura e o recurso improcede.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                        Coimbra, 25 de Janeiro de 2022

  

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       


[1] Não nos eximimos, em todo o caso, a concordar com a fundamentação exarada na decisão recorrida no que concerne à insuficiência do título porquanto, desde logo, nem dele, nem de qualquer outro documento, resulta que se tenha dado a condição suspensiva (art.º 715, nº 1, do CPC) da realização das obras na habitação dos mutuários, realização essa por via da qual, de acordo com a escritura de mútuo e documento complementar, seria dado início à entrega da quantia mutuada e ao prazo de 30 dias previsto na escritura para o pagamento da 1ª prestação. Não existindo sequer uma real exequibilidade do título, de harmonia com o art.º 707 do CPC, porquanto a Exequente tão pouco alega (muito menos prova) que “alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”. Como igualmente nos merece inteira adesão o tratamento aí dado à questão da inexigibilidade da obrigação proveniente da não perda do benefício do prazo da obrigação decorrente da ausência de alegação de interpelação dos mutuários para o pagamento da totalidade da dívida.
[2] Relevando-se aí o problema do sinalagma dos juros pela circunstância de estes se vencerem sem a inerente disponibilização do capital.
[3] Sendo evidente que esse prazo não levanta qualquer problema quanto às quotas ou fracções eventualmente vencidas até então.
[4] Isto, obviamente, sem prejuízo do que acima se deixou vertido sobre a insuficiência do título e inexigibilidade da obrigação, na medida em que se ignora, à luz do convencionado pelas partes, se e quando a quantia mutuada foi entregue aos mutuários e em que momento se venceu a primeira prestação.