Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1278/11.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÃO
SENTENÇA PENAL
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 27º, Nº 1, AL. C) DO DEC. LEI Nº 291/2007, DE 21/08; 674º-A DO CPC.
Sumário: I – Nos acidentes de viação a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente a al. c) do nº 1 do artº 27º, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização, basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente.

II – Face à presunção estabelecida no artº 674º-A do CPC, não é ao beneficiário da dita presunção que incumbe fazer prova dos factos atinentes quesitados e já dados como assentes na sentença penal transitada em julgado. É ao não beneficiário dessa presunção que compete ilidir essa presunção que o desfavorece.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

A… SEGUROS, S.A., com sede na …, intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra M…, residente na Rua …, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 55.216,00 €, acrescida de juros de mora vincendos deste a citação até integral pagamento.

Alegou para tanto, em síntese, que na sequência de um acidente de viação provocado pelo réu, o qual conduzia, sob o efeito do álcool, uma viatura segura na autora, procedeu ao pagamento da competente indemnização ao titular da mesma, devendo, consequentemente, o demandado, em sede de regresso, ressarcir a autora da importância liquidada.

O R. deduziu contestação, impugnando, na sua essência, a factualidade alegada pela A. e sustentando que cabe à mesma a demonstração do nexo causal entre a ocorrência do acidente e a invocada taxa de alcoolemia.

Saneada, condensada e instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido despacho respondendo aos quesitos da base instrutória e desse modo decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou o R. no pedido.

Irresignado, o R. interpôs recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

....

A apelada respondeu defendendo a manutenção do julgado.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente quer se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:

         a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

         b) Direito de regresso da seguradora no caso de o segurado portador de TAS superior à legalmente admitida dar causa a acidente.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.1.1. Factualidade considerada provada pela 1ª instância

...

         2.1.2. Alteração da decisão sobre a matéria de facto

Como decorre das conclusões 1ª a 4ª da alegação do apelante, este impugna a decisão sobre a matéria de facto.

Estabelece o artº 685º-B do CPC, nos seus nºs 1 e 2:

1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º -C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.

Embora os não tenha referido expressamente nas conclusões, o recorrente indicou no corpo da sua alegação os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: são eles os resultantes das respostas dadas aos quesitos 4º, 7º, 8º, 9º, 13º, 18º a 26º, 31º e 32º da base instrutória. Todos, pois, relativos às circunstâncias em que o acidente ocorreu.

Os concretos meios de prova invocados são, se bem entendemos o raciocínio do apelante, a circunstância de nenhuma das testemunhas inquiridas ter presenciado o acidente, o que, a seu ver, implicaria que devesse subsistir a sua versão do mesmo, exposta no depoimento de parte que prestou.

Em sede de especificação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção o julgador da 1ª instância baseou-se na certidão da sentença penal proferida nos autos de processo comum penal (Tribunal singular) nº 124/09.GTAVR, na presunção estabelecida no artº 674º-A e na circunstância de a mesma não ter sido ilidida.

Assim, contra o que parece ser o entendimento do recorrente, não era à A., beneficiada pela presunção, que incumbia fazer prova dos factos quesitados e já dados como assentes na sentença penal transitada em julgado. Era ao recorrente que competia ilidir essa presunção que o desfavorecia, tarefa de que se não desincumbiu, já que, como ele admite na sua alegação, “nenhuma das testemunhas arroladas, quer pela A., quer pelo R., refere ter presenciado o acidente”.

É certo que o recorrente foi ouvido em depoimento de parte e que confirmou a versão do acidente por si invocada na contestação, a qual diverge radicalmente da que resultou provada no processo nº 124/09.GTAVR, acima referido e que foi plasmada na petição inicial. Essa versão, porém, é, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, arredada pelo julgador da 1ª instância em termos que nos parecem irrefutáveis. Aí se diz:

“Cabendo ao R. a elisão de tais pontos factuais que lhe são desfavoráveis, será fácil de verificar que o seu depoimento de parte – no qual asseverou ter tomado precauções antes de iniciar a manobra de marcha-atrás, estando convencido de que a vítima teria caído, por si mesma, atrás do veículo, antes mesmo de este começar a andar – pouco ou nada serviria para constituir prova de suporte do que caberia ao mesmo R. demonstrar para lograr convencer do contrário do que consta da sentença criminal [onde, entre o mais, se lê que o aqui R. iniciou a manobra de marcha-atrás sem se assegurar de que na traseira da viatura não existia qualquer objecto ou pessoa (ponto 4) e que foi quando iniciou tal manobra que derrubou a vítima no asfalto (ponto 5) e que o fez porque tinha ingerido uma quantidade de bebidas alcoólicas que lhe impediam o discernimento e lucidez necessários e sem se assegurar que na traseira da viatura não havia pessoas ou outros obstáculos (ponto 8)].

Ora, nenhuma testemunha presencial do acidente foi apresentada, tendo as testemunhas ouvidas descrito apenas o que viram já depois dos factos, sendo certo que se apurou, como consta da sentença criminal, e do cômputo dos depoimentos (mormente do filho da vítima, …), que a senhora atropelada pelo R. se fazia locomover com o auxílio de uma bengala (tipo andarilho) de três pés, mercê da sua saúde debilitada, e fazendo-o com dificuldades.

Assim, não poderia a mesma ter-se aproximado a correr do veículo do R., de modo a poder-se cogitar, por exemplo, que, quando para ele o R. entrou, daquela se não poderia ter apercebido. De modo que, mesmo considerando as dimensões e características do veículo (com uma cobertura na caixa de carga), se o R. não pudesse aperceber-se da vítima através dos espelhos retrovisores (e se para eles olhou - o que não logrou demonstrar), o certo é que, atenta a mobilidade difícil da vítima, a aproximação desta ter-se-á processado lentamente, sendo por isso a mesma visível mesmo antes de iniciada a manobra (o R. estava no exterior da carrinha e entrou nela para fazer a marcha-atrás).

De outra parte, não se demonstrou de forma alguma, a alegação do R. que consta dos pontos da BI com os números 17 (parte final), 18, 19, 20, 21, 23 a 26, na perspectiva da defesa (com excepção do que vai exposto infra quanto ao nº 27), 28, 29, 31 e 32, sobretudo no que respeita ao facto invocado pelo R. de que a vítima teria caído por si e ficado prostrada no chão sem possibilidades de ser vista antes de iniciada a manobra.

Apenas se considerou elidido o facto relativo à passagem dos rodados por cima do corpo da vítima porquanto os testemunhos nos pareceram credíveis e seguros quanto a tal circunstância, afirmando as pessoas que a viram debaixo do veículo que o corpo da mesma se encontrava antes dos rodados traseiros e que não exibia marcas próprias da violência que decorreria forçosamente do esmagamento imprimido pela passagem e tais rodados, tendo em conta tratar-se de um veículo de peso considerável (uma Ford Transit, de cabina dupla, lotação de 7 lugares, com caixa de carga –cfr. fls. 24, facto nº 2) – assim, os testemunhos dos agentes policiais, ...”

Ou seja, o recorrente assentou o seu raciocínio no pressuposto de que o ónus de prova da factualidade relativa à forma como o acidente ocorreu recaía sobre a recorrida.

Olvidou, contudo, que, mercê da presunção referida e do disposto no artº 344º do Cód. Civil, o ónus de prova se inverteu, sobre si recaindo o encargo de ilidir aquela presunção.

E que, como cristalinamente se explicou na motivação da decisão de facto, o seu depoimento de parte, desacompanhado de quaisquer elementos corroborantes, é manifestamente insuficiente para ilidir a aludida presunção.

...

Assim, sem necessidade de maiores considerações, nega-se razão ao recorrente e mantém-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto.

         2.2. De direito[2]

         Tendo o acidente ocorrido em 14/09/2009, é aplicável ao caso o Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08, entrado em vigor em 20/10/2007 (cfr. respectivo artº 95º), diploma legal esse que revogou o Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12.

De acordo com o artº 27º, nº 1, al. c) do mencionado Decreto-Lei nº 291/2007, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso … contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.

Esta formulação da lei permite a dúvida interpretativa que se suscitou na vigência do artº 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85, consistente em saber se a existência de direito de regresso por parte da seguradora que pagou a indemnização se basta com a mera constatação de que o condutor exercia a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou se, para além disso, pressupõe e exige um nexo de causalidade adequada entre a alcoolemia e a ocorrência do acidente.

Na vigência do aludido artº 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85[3] a larga controvérsia jurisprudencial que se gerou só com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) nº 6/2002, de 28/05/2002, publicado no D.R., I Série-A, nº 164, de 18/07/2002, foi resolvida[4].

Com efeito, através do referido Acórdão foi uniformizada a jurisprudência no sentido de que “a alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

         A pergunta que naturalmente se coloca é, logicamente, a de saber se com a alteração da lei – saída de vigência do Decreto-Lei nº 522/85 e entrada em vigor do Decreto-Lei nº 291/2007 – permanece válida a orientação que do mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência decorria.

         É que o legislador falava, anteriormente [al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85] em o condutor ter “agido sob a influência do álcool” e, actualmente [al. c) do nº 1 do artº 27º do Decreto-Lei nº 291/2007], em “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

         Terá querido dizer o mesmo por diferentes palavras – e a orientação anterior continuaria válida – ou, pelo contrário, quis dizer coisa diversa, tomando, ainda que discretamente, posição quanto ao rumo que vinha sendo seguido pela jurisprudência?

         São já algumas as decisões judiciais dos nossos tribunais superiores que abordaram a questão.

         Apesar de ao caso ali apreciado ser ainda aplicável o artº 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85, no seu Acórdão de 08/10/2009[5], o Supremo Tribunal de Justiça deixou exarado o seguinte:

“O que o novo diploma diz – e não é despiciendo trazê-lo aqui para comparar – é que (art.27º), satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem apenas direito de regresso (c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida

Agora, as coisas são claras – o condutor dá causa ao acidente (qualquer que seja a causa) e, se conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ele.

Antes, ao tempo do acidente de que nos ocupamos, e é o regime desse tempo o que nos importa, as coisas eram o que eram e o direito de regresso da seguradora (interpretado o art. 19º, al. c ) do Dec.lei nº 522/85 pelo acórdão PUJ nº 6/2002) exigia por parte desta a prova de um duplo nexo de causalidade – a prova da causa do acidente em si mesma, a prova de que o álcool tinha sido a causa dessa mesma causa.

Só assim podia ficar provado o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Mas no seu Acórdão de 06/07/2011[6], o mesmo Supremo Tribunal, igualmente ao decidir um caso a que era ainda aplicável o artº 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85, adoptou entendimento diverso, tecendo, relativamente à redacção do artº 27º, nº 1, al. c) do Decreto-Lei nº 291/2007, as seguintes considerações:

“Esta redacção suporta duas interpretações:

Uma no sentido de que, circulando o condutor com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, se der causa a um acidente, relacionado ou não com a etilização, a seguradora tem direito de regresso;
Outra com o entendimento de que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização.

O condutor etilizado que vê uma pessoa conhecida no passeio ao lado e se distrai a olhar para ela, não reparando que está a entrar numa passadeira por onde passa um peão, que atropela, sem que o seu comportamento tenha algo a ver com a alcoolização, teria contra si o direito da seguradora na primeira das interpretações e não o teria na segunda.

Ainda que mais apegada à letra da lei, a primeira das interpretações tem contra ela os mesmos argumentos que já ficaram referidos em VII[7]. Acrescentados dum de índole histórica, pois, estando firmado o entendimento de que tinha que haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento, se se pretendesse romper com ela, a redacção havia de ser muito mais categórica. A referência “quando tenha dado causa” não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que o condutor tenha dado causa ao acidente, mas antes o consagrar, em texto legal, do que faltara ao texto anterior e já vinha sendo entendimento constante.

Perfilhamos, assim, a segunda interpretação.”

E o nº 1 do sumário deste aresto é inequívoco:

“O artigo 27.º do Decreto-Lei n.º291/2007, de 21.8 deve ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.”

Também a Relação do Porto tomou já – sintomaticamente de forma divergente – posição sobre a questão em apreciação. Assim, no Acórdão de 13/12/2011[8], entendeu-se, como decorre do respectivo sumário, que “agora, com o novo regime legal introduzido pelo Dec. Lei n° 291/2007, de 21.8, art. 27°, n° 1, al. c), para que o direito de regresso da seguradora proceda exige-se tão só que alegue e prove a culpa do condutor na produção do acidente e que este conduzia, com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei” e que “já não se lhe impõe, que alegue e prove factos donde resulte o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Por sua vez, no Acórdão de 19/01/2010[9], decidiu-se que “para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool, exige-se a alegação e prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre o estado de etilizado e o acidente de que resultaram os danos do terceiro por ela indemnizados, segundo a melhor interpretação do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, de 21/8.”

A discrição do legislador ao alterar a lei ressuscitou, se bem vemos, a antiga controvérsia jurisprudencial, não sendo muito ousado vaticinar que, a não surgir interpretação autêntica, vai, mais cedo ou mais tarde, ser necessária nova uniformização.

Entretanto o tribunal não pode abster-se de julgar (artº 8º, nº 1 do Cód. Civil), pelo que se impõe, “in casu”, tomar posição.

Das diferentes redacções da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85 e da al. c) do nº 1 do artº 27º do Decreto-Lei nº 291/2007 afigura-se-nos, com todo o respeito, que o legislador não pretendeu dizer o mesmo por diferentes palavras.

Sabedor da controvérsia jurisprudencial passada e da prolação do AUJ do STJ nº 6/2002, se fosse vontade do legislador manter a situação existente, teria deixado inalterada a expressão “tiver agido sob influência do álcool”.

         Ao substituir aquela expressão por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”, o legislador não foi “categórico”, mas deixou suficientes indícios de que não era vontade sua que a situação decorrente do AUJ se mantivesse.

         Com efeito, enquanto a antiga expressão tem uma carga subjectiva, quase podendo dizer-se que verdadeiramente relevante era, independentemente da taxa de álcool no sangue (TAS) ser maior ou menor, a influência do álcool sobre a actuação do condutor e, consequentemente, sobre o eclodir do acidente, a nova expressão abandona essa carga subjectiva, objectiva-se claramente, retirando importância aos efeitos da etilização sobre o comportamento do condutor e sobre o deflagrar do sinistro e bastando-se com a constatação material de que o condutor era portador de uma TAS superior à legalmente permitida (artºs 81º, nºs 1 e 2, 145º, nº 1, al. l) e 146º, al. j) do Cód. da Estrada e artº 292º do Cód. Penal). Ou, por outras palavras, o regime anterior preocupava-se com a influência da alcoolemia sobre o concreto condutor em apreciação, enquanto o regime actual se preocupa com o grau objectivo da alcoolemia, independentemente do efeito que o mesmo tenha sobre o condutor visado.

         É certo que, em casos de TAS que pouco ultrapassem o máximo admitido e/ou que o condutor tenha uma especial resistência aos efeitos do álcool, as seguradoras poderão beneficiar de um direito de regresso que, em bom rigor, não lhes era devido.

         Esse inconveniente, contudo, parece não ter incomodado o legislador, porventura mais sensibilizado pelo desincentivo que a modificação não deixará de ter, a prazo, sobre a condução com TAS superior à legalmente admitida, com a previsível diminuição de acidentes de viação daí adveniente.

Conscientes do melindre jurídico da questão, adoptamos, pois, o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente da al. c) do nº 1 do artº 27º, postergou a orientação que, na vigência da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, decorria do AUJ do STJ nº 6/2002 e, portanto, que, nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente.

Mas, no caso dos autos, ainda que se perfilhasse, quanto à questão jurídica acabada de analisar, o entendimento contrário, sempre teria, se bem vemos, que se reconhecer à A. o accionado direito de regresso.

É que foi dado como assente, logo após os articulados, sob a al. I), que “após o acidente, o réu foi submetido ao teste quantitativo de alcoolemia, tendo acusado uma TAS de 1,79 g/l” e, em resposta ao quesito 13º da base instrutória, que “o réu não acautelou a presença do peão, tendo acabado por embater no corpo da vítima, mercê do facto referido em I)”. Ou seja, encontra-se provado o nexo de causalidade entre a alcoolemia de que o R. era portador e a produção do sinistro.

Nega-se, por conseguinte, também quanto à questão acabada de analisar, razão ao recorrente.

Assim, soçobrando todas as conclusões da alegação do recorrente, tem de improceder a apelação e, consequentemente, de manter-se a sentença recorrida.

Sumário (artº 713º, nº 7):

Nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente a al. c) do nº 1 do artº 27º, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização, basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente.

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza.


***

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

Declaração de voto

            Voto o acórdão, explicitando que, tal como deixei exarado no voto de vencido aposto no Ac. desta Relação de 8/5/2012 (proc. nº 665/10.5TBBNO.C1), disponível em www.dgsi.pt (com o mesmo colectivo de juízes), propendo a adoptar (ressalvando melhor estudo) a interpretação dada pelo Ac. Do STJ de 6/7/2011 (Proc. nº 129/08.7TBPTL) à norma do art. 27 nº 1 do DL 291/2007, de 21/8, no sentido da relação causal entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. Ora, o nexo de causalidade está aqui perfeitamente comprovado, como, de resto, se refere.

Jorge Arcanjo


[1] Diploma a que pertencem as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] Este colectivo abordou já em anterior acórdão, datado de 08/05/2012, proferido no Processo nº 665/10.5TBVNO.C1, consultável em www.dgsi.pt, a questão jurídica colocada pelo recorrente. Não tendo, entretanto, havido qualquer desenvolvimento jurisprudencial susceptível de fazer evoluir as posições ali assumidas, repete-se a argumentação e a solução então adoptadas.
[3] Cuja redacção era a seguinte:
  “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso … contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.”
[4] Mal resolvida, segundo João Valente Martins, Contrato de Seguro, Notas práticas, Quid Juris 2006, pág. 103. Aí diz o Autor que “Ao obrigar-se as seguradoras a terem de provar o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente, este Acórdão veio pura e simplesmente desculpabilizar os condutores que habitualmente abusam do álcool e são causadores de muitos incapacitados e inúmeras mortes. E prossegue: “Efectivamente, não se compreende o objectivo, o sentido e menos ainda a justificação de um Acórdão desta natureza num país com uma taxa de sinistralidade automóvel tão elevada, causada em grande parte pela condução sob o efeito do álcool”. Finalmente, depois de apelar à intervenção do legislador, conclui que “nos casos da condução sob o efeito do álcool deveria ser estabelecida uma presunção de culpabilidade do condutor.
[5] Proc. 525/04.9TBSTR.S1, relatado pelo Cons. Pires da Rosa, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Proc. 129/08.7TBPTL.G1.S1, relatado pelo Cons. João Bernardo, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Essencialmente, que a não exigência de nexo de causalidade entre a alcoolemia e a ocorrência do acidente “levaria, inaceitavelmente, a um objectivar, em benefício da seguradora, das consequências da condução sob a influência do álcool, assacando ao condutor responsabilidades que não tinham a ver com a conduta culposa consistente na perturbação etílica”.
[8] Proc. 592/10.6TJPRT.P1, relatado pelo Des. Rodrigues Pires, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Proc. 774/10.0TBESP.P1, relatado pelo Des. Teles de Menezes, consultável em www.dgsi.pt.