Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5434/12.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO
CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T. J. DA COMARCA DE LEIRIA - JL CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1842º E 1844º Nº 2 AL A) DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade do art. 1844.º n.º 2 al. a) do Código Civil não é inconstitucional.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.... e mulher B... propuseram na 2ª Secção de Família e Menores da Instância Central de Pombal, Comarca de Leiria, uma acção com processo comum para impugnação da paternidade contra C.... , por si e em representação de seu filho menor D... , alegando, em síntese:

São pais de E... , já falecido, que casou com a Ré em 15.08.1992 e dela se divorciou em 26.06.2009; em 22.02.2000 nasceu D... , que foi registado como filho do então casal formado pelo dito E... e pela Ré; que em 1999 a Ré encetou um relacionamento com outro homem que não o marido, relacionamento que durou vários anos, de forma que com ele passeava em lugares públicos, à vista de todos, como também com ele passou férias; também em 2002 a Ré foi para França passar o réveillon com um indivíduo de nacionalidade ucraniana; este comportamento leviano da Ré conduziu o dito E... ao suicídio em 2012, tornando improvável a sua paternidade presumida.

Rematam pedindo se declare que o menor D... não é filho de E... , eliminando-se a referência a essa paternidade no respectivo assento de nascimento. 

Contestando, os RR. defenderam-se por impugnação e excepção.

Por excepção invocaram a ilegitimidade activa dos AA. por o direito de impugnar caber à viúva, descendentes e ascendentes desta, o que não é o caso; a ilegitimidade passiva dos RR. pelo facto de o menor dever estar representado por um curador ad litem; e a caducidade da acção por a mesma ter sido instaurada pelos Autores mais de 90 dias após o óbito do presumido pai.

Por impugnação refutam o circunstancialismo aduzido pelos AA. para a improbabilidade da paternidade deste último.

Terminam com a procedência das excepções, ou assim não sendo, com a improcedência da acção.

Houve réplica e tréplica sem influência nos elementos a apreciar.

Foi nomeada curadora ao menor.

As excepções de ilegitimidade activa e passiva foram julgadas improcedentes no saneador, relegando-se para final o conhecimento da excepção de caducidade.

Na sentença julgou-se procedente a excepção de caducidade e absolveram-se os RR. do pedido.

Inconformados, deste veredicto recorreram os Autores, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                           *

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:


1. Os AA. são pais de E... , nascido a 11.01.1967 na freguesia de (...) , falecido no dia 27.06.2012.
2. E... casou com a R. C... a 15.08.1992, tendo tal casamento vindo a ser dissolvido por divórcio em 26.06.2009.
3. Em 22.01.2000 nasceu na freguesia do (...) , D... , tendo sido registado como filho da R. C... e de E... e neto paterno dos AA..
4. E... faleceu por acto voluntário, suicídio por inalação de monóxido de carbono.
5. Na divisão onde se encontrava tinha consigo o computador ligado a um telemóvel com uma mensagem escrita sem destinatário registado e não enviada com o seguinte teor: “Da vida não quero muito…Quero apenas saber que tentei…Tudo o que quis, tivr tudo o que pude. Amei tudo o que valia e perdi apenas o que no fundo, Nunca foi meu …”.
6. Os AA. acreditam que com tal frase o E... queria significar que o R. D... não era seu filho, o que havia ficado a saber da boca da própria Ré, de modo exacto não apurado e que foi tal descoberta que o levou a terminar com a vida.
7. Pelo menos desde 1996, incluindo o primeiro semestre de 1999, que os AA. e restante família mantêm suspeitas sobre o comportamento da ré que consideravam fazer-se acompanhar de modo estreito e íntimo com outros indivíduos não obstante ser casada com seu filho.
8. Desde sempre por tais motivos os AA. alimentaram dúvidas sobre a paternidade do R. D... .
9. A presente acção deu entrada em 29.10.2012.
10.  O facto de o seu filho se ter suicidado abalou emocionalmente os AA. e levou até ao internamento da A. mulher entre 20.07.2012 e 07.08.2012, embora haja sempre estado consciente, orientada, apresentando discurso coerente e sem alterações.
11. Não obstante isso, face a todas as dúvidas que já tinham e ao que viram, pelo menos o A. marido de imediato criou a certeza de que o R. D... não era seu neto e procurou imediatamente um advogado para propor esta acção.

  

*

 

A apelação.

Nas conclusões com as quais encerra a respectiva alegação colocam os recorrentes as seguintes questões:

Inconstitucionalidade do prazo de caducidade da acção de impugnação para os ascendentes do presumido pai;

Na improcedência desta questão, a da obrigação do menor de se sujeitar ao exame ao ADN para determinação da paternidade;

E a da valoração da recusa da Ré em se sujeitar ao mesmo exame.

 

Contra-alegou a Ré, pugnando pela manutenção da sentença.

Apreciando.

Estatui o art.º 1842 do C. Civil:

“ 1. A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada:

a) Pelo marido, no prazo de três anos desde que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se pela sua não paternidade;

b) Pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento;

c) Pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido  emancipado ou, posteriormente, dentro dos três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

Por sua vez, o art.º 1844 do mesmo Código, dispõe:

 “1. Se o titular do direito de impugnar falecer no decurso da acção, ou sem a haver intentado, mas antes de findar o prazo estabelecido nos art.ºs 1842 e 1843 , tem legitimidade para nela prosseguir ou para a intentar:

a) No caso de morte do presumido pai, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens que não seja a mãe do filho, os descendentes e ascendentes.

b) (…)

c) (…).

2. O direito de impugnação conferido às pessoas mencionadas no número anterior caduca se acção não for proposta no prazo de noventa dias a contar:

a) Da morte do marido ou da mãe, ou do nascimento do filho póstumo, no caso das alíneas a) e b)”.

b) (…).”.

 

Batem-se os recorrentes pela inconstitucionalidade (material) do prazo de noventa dias estabelecido na alínea a) do nº 2 do art.º 1844 do Código Civil, por ofensa dos artigos 26, nº1, 36, nº 1 3 18, nº 2 da CRP.

Defendem que o direito de impugnação da paternidade pelos familiares do presumido pai não está sujeito a qualquer prazo, com a seguinte argumentação:

Tal prazo não é de todo razoável nem proporcional, pois, de tão curto que é, constitui uma limitação à possibilidade de impugnação, esgotando-se na fase inicial do luto pelo decesso do presumido pai;

A fixação de prazos distintos para o presumido pai, mãe, filho e ascendentes do presumido pai impugnarem a paternidade presumida traduz-se numa injustificada violação do princípio da igualdade;

O direito de impugnar a paternidade presumida não está sujeito a prazos de caducidade, mesmo no caso de o titular desse direito falecer sem o exercer.

Ao invés, a sentença ora recorrida procura sustentar a aplicabilidade daquele curto prazo de 90 dias com a seguinte fundamentação:

“Os prazos para impugnar paternidades estabelecidas são geralmente prazos curtos, que impõem uma decisão rápida de aderir à verdade biológica quando é invocada a sua desconformidade com a declarada. Tal rapidez, embora justificada pelos princípios de protecção dos laços familiares estabelecidos (e acrescentamos nós dos afectos crescentes que os acompanham pode tornar-se injusta sempre que a hipótese legal, típica e simplificada não responda à complexidade social e emocional do caso concreto.”

“ (…) quanto a tais prazos, menos se tem dito a propósito da sua conformidade ou desconformidade com a Constituição, todos os arestos existentes se pronunciando no sentido de que deverão existir prazos de caducidade, dentro do espírito de defesa dos vários interesses supramencionados e que os mesmos serão conformes à constituição se se configurarem como desproporcionais ou irrazoáveis (…) [[1]].

Acompanhamos esta fundamentação, à qual aditaremos algo mais.

A natureza do prazo excepcional de noventa dias do nº 2 do art.º 1844 para a impugnação pelas pessoas aí aludidas é bem diferente daquela que respeita aos prazos previstos no nº 1 do art.º 1842 para a impugnação do presumido pai, da mãe ou do filho, prazos que entre si são já de duração bastante diversificada (3 anos a contar do conhecimento do circunstancialismo dito na al. a), 3 anos sobre o nascimento para a situação da al.ª b), e 10 anos contados desde emancipação ou maioridade ou do conhecimento do circunstancialismo mencionado na alínea c)).

A verdade biológica assume uma importância ou dimensão radicalmente diferente para os progenitores e para o filho quando confrontada com o interesse que pode mover os cônjuges, descendentes ou ascendentes desses titulares na instauração da acção de impugnação.

Quando o art.º 1844 admite que essas pessoas intentem ou prossigam a acção já instaurada trata-se aí, na prática, de uma legitimidade substitutiva ou subsidiária que nunca se deverá sobrepor à vontade dos primeiros titulares do direito de impugnação elencados no art.º 1842.

Daí que, como condição de tempestividade da instauração da acção por estas pessoas, o citado nº 1 do art.º 1844 imponha que ainda não hajam findado os prazos estabelecidos nos artigos 1843 e 1842 do C. Civil.

Seria até absolutamente intolerável que os aludidos familiares pudessem intentar a acção de impugnação contra a vontade expressa por aqueles titulares.

É que lhes não é lícíto o uso da impugnação em vida destes.

A legitimidade daqueles é apenas consequencial da morte dos ditos titulares. 

É esta especial natureza ou configuração do “direito” dessas pessoas – devida, sem dúvida, à especial ligação que as caracteriza ao presumido pai, à mãe ou ao filho – que torna razoável e proporcionado o curto prazo de noventa dias do nº 2 do art.º 1844.

Elas podem propor a acção porque o legislador aceita que também estes titulares o fariam se não tivessem falecido.

Nesta perspectiva, são o presumido pai, a mãe ou o filho quem primacialmente pode questionar a verdade tabular para a sua correcção pela verdade biológica, sendo o direito das pessoas do artigo 1844 mero reflexo da impossibilidade daquelas.

A admissibilidade do exercício do direito de impugnação por estas pessoas só nasce com essa impossibilidade (decorrente da respectiva morte).

Aliás, a morte do presumido pai não impede a impugnação da mãe ou do filho nos prazos de que estes beneficiam, sendo o deste último considerável e compreensivelmente mais extenso que o daquele.

A fixação de prazos curtos para a impugnação da paternidade pelas pessoas mencionados nas alíneas do nº 1 do art.º 1844 não representa, em si mesma, uma restrição ao conhecimento da identidade pessoal ou da verdade biológica.

Como sobre este tema se escreveu no Acórdão de 13/10/2009, proferido na apelação nº 144/07.8TBFVN.C1, disponível em www.dgsi.pt.:

“(…) Sem escamotear que o princípio de verdade biológica é um princípio estruturante do direito da filiação, ele não foi erigido à veste constitucional e, por isso, não pode fundamentar, de per se, um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade. Donde haja notícia de sistemas jurídicos que diferenciam os regimes da investigação de paternidade e da impugnação de paternidade. Enquanto admitem a investigação de paternidade sem limite, preferindo a tutela do direito inviolável à identidade pessoal à certeza jurídica, ao invés, limitam a impugnação de paternidade e aceitam que, decorrido o prazo fixado na lei, se consolide a paternidade presumida ainda que não corresponda à verdade biológica.

A diversidade de regime propugnado para a impugnação de paternidade está particularmente justificada pela protecção da família conjugal e o prazo de dois anos fixado para o exercício do direito de acção conta-se a partir do «conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade» (artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), que corresponde a um facto subjectivo, do foro pessoal do presumido pai, simetrizando um prazo revestido de razoabilidade para permitir a ponderação dos interesses em jogo e a avaliação de vantagens e inconvenientes da decisão a assumir. É um tempo útil adequado à reflexão necessária para tomar a decisão de instaurar ou não a acção de impugnação de paternidade, prosseguindo a verdade biológica ou preservando a estabilidade da relação de filiação. Solução legal que não representa uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade e que nos determina a não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil. Aliás, a caducidade da impugnação de paternidade é admitida pela generalidade dos sistemas jurídicos e o próprio Tribunal Europeu tem entendido que a previsão legal de prazos para a impugnação da paternidade presumida não é contrária à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (…)”..

Ora – situando-nos agora no caso concreto – este tempo de reflexão do falecido E... , presumido pai do menor D... pode ter sido efectivamente escasso. Mas nada permite supor que a decisão do falecido de impugnar ou não a sua paternidade já não estivesse tomada à data da respectiva morte. No caso dos autos, o suicídio do presumido pai e a mensagem por ele deixada deixam absolutamente claro que, embora sabedor da sua não paternidade, não a quis impugnar.

Os noventa dias desde a morte daquele E... presumido pai não foram um tempo concedido aos Autores, seus ascendentes, para nele poderem formar a decisão de avançar ou não com a acção. Serviram apenas para a obtenção de elementos para a sua eventual instauração no pressuposto de que seria isso que o falecido filho desejaria.

Donde que o curto prazo de caducidade do artigo 1844, nº 2, al.ª a), do CC, não seja ofensivo dos princípios dos art.ºs 26, nº1, 36, nº 1 e 18, nº 2 da CRP, e, por conseguinte, não seja inconstitucional a norma que o institui.

Em tal conformidade, encontrando-se provado que E... faleceu em 27.06.2012 e que a presente acção deu entrada em 29.10.2012, é patente que nesta data havia já caducado o direito de os AA. como ascendentes daquele intentarem a acção de impugnação da paternidade presumida do menor D... .

Nenhuma crítica merece, por isso, a decisão recorrida de declarar caduco o direito dos AA..

Mostram-se prejudicadas as demais questões que vinham levantadas no recurso.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Relator:

Freitas Neto

Adjuntos:

1º - Carlos Barreira

2º - Barateiro Martins

           


[1] Cita aqui a sentença o AC. do STJ de 20.06.2013 disponível em www.dgsi.pt..