Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/24.5GDCNT.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
DIREITO DE NECESSIDADE
ACTUALIDADE DO PERIGO
SUPERIORIDADE DO INTERESSE A SALVAGUARDAR
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DO FACTO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
REENVIO DECORRENTE DE RECURSO INTERPOSTO APENAS PELO ARGUIDO
PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 15.º, 16.º, N.º 1 E 2, 17.º, 31.º, N.º 1 E 2, E 34.º, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 409.º E 426.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - O direito de necessidade, cujo fundamento é o princípio da solidariedade, pressupõe a existência de uma situação de perigo actual para determinado bem ou interesse jurídico do agente ou de terceiro, que só pode ser neutralizada se outro bem ou interesse jurídico for violado ou posto em perigo.

II - A actualidade do perigo significa que o bem jurídico a salvaguardar tem que estar objectivamente em perigo, mas este não tem que ser iminente

III - A exigência da sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado conduz-nos ao princípio do interesse preponderante e à análise dos interesses em conflito e do grau de perigo que os ameaça, ocorrendo a justificação «apenas quando é clara, inequívoca, indubitável ou terminante a aludida superioridade à luz dos factores relevantes de ponderação».

IV - Uma indisposição da companheira do arguido, no regresso a casa depois de uma ida ao serviço de urgência onde foi medicada e teve alta, que não lhe retirou a capacidade de exercer a condução e que não comportaria maior perigo para a sua integridade física ou de terceiros, não integra o direito de necessidade.

V - Mesmo que ela não estivesse em condições de conduzir ou que a condução nessas circunstâncias acarretasse perigo para a saúde e integridade física da própria e de terceiros, a condução do veículo automóvel por parte do arguido, não detentor de carta de condução, não era o meio adequado a afastar aquele perigo.

VI - Se o arguido agiu com consciência e capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação não se verifica qualquer erro, excludente da ilicitude ou da culpa.

VII - Em caso de decisão decorrente de reenvio, na sequência de recurso interposto pelo arguido, se a factualidade e o enquadramento jurídico forem sobreponíveis, o tribunal não pode alterar a pena anteriormente aplicada em prejuízo do arguido.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I-RELATÓRIO

I.1 …, na sequência de prévio reenvio para novo julgamento decretado por este Tribunal da Relação,   em 24.06.2025, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

 “III) DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido … pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido no art.º 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, com referência ao artº 121º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de 1 (um) ano de prisão;

b) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento das Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.


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Remeta boletim ao registo criminal.

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Proceda ao depósito desta sentença na secretaria.


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I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido … com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES

3. Corresponde à verdade que o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …, o qual era propriedade da sua companheira …, a qual corroborou tal facto nas declarações prestadas a 22 de Maio de 2025, entre as 15h01m e as 15h12m, as quais se encontram gravadas no sistema Habilus, disponível para o efeito pelo Tribunal, conforme se encontra exarado na respectiva acta de audiência de julgamento;

4. … bem sabia que não era portador do título que o habilitaria a conduzir veículos a motor, para além de já ter sido condenado pela prática do crime em escrutínio nos presentes autos, e que a sua conduta consubstanciava um ilícito criminal;

5. Contudo, perante a situação em apreço, de ausência de alternativas – convenhamos que o arguido e a sua companheira, …, não têm, nem tinham à data dos factos, capacidade económico-financeira para contratar o serviço de um táxi, nem tampouco se revelava ajustável passar a noite dentro do carro para regressarem a casa no dia seguinte de autocarro -, o interesse concernente ao bem-estar e saúde de … preponderou quando em confronto com a segurança rodoviária;

6. O facto n.º 4 dado como provado pelo Tribunal a quo corrobora a versão apresentada pelo arguido;

7. Considera-se, assim, que andou mal o Tribunal a quo ao não dar como provado – nem como não provado, apesar de o mencionar na sua fundamentação e enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, que este agiu ao abrigo de uma causa de justificação da ilicitude;

8. Com a sua versão dos factos … referiu que ao conduzir o veículo …, sem ser portador de título que o habilitasse para o efeito, quis permitir que a ansiedade e mal-estar doloroso de … fossem mitigados, e a sua integridade física preservada, o que apenas sucederia quando esta chegasse a casa e pudesse descansar, dado que apenas o repouso foi indicado, para além de medicação anti-dolorosa;

9. Para além disso, … pretendeu acautelar a segurança rodoviária, dado que ao conduzir ele o carro de … para casa, obstava a que esta potenciasse sobejamente o perigo para a segurança rodoviária – devido ao estado de saúde em que se encontrava – bem como a sua integridade física e a do arguido;

10. … agiu, claramente, ao abrigo de uma causa de justificação da ilicitude, mais propriamente o direito de necessidade previsto no art.º 34.º do Código Penal;

15. Deverá ser igualmente dado como provado que os pressupostos para a mobilização da causa de justificação da ilicitude prevista no art.º 34.º do Código Penal se encontram reunidos, tendo o arguido agido de forma lícita, por o seu comportamento se subsumir ao âmbito de aplicação daquela;

16. De qualquer modo, uma vez que não foram devidamente ponderadas as declarações do arguido no que tange à argumentação subsumível a uma causa de justificação da ilicitude, impõe-se dar como provada para o efeito a verificação de todos os pressupostos do direito de necessidade ( 412.º, n.º 3, al. b) do CPPenal), pelo facto de ter existido um erro de julgamento;

17. Apesar de ter expendido sobre o estado de necessidade desculpante, no que concerne ao enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido – trazendo à colação o regime do art.º 35.º do CPenal – certo é que a conduta de … melhor se subsumia ao instituto do direito de necessidade;

21. Mesmo que assim não se entenda, sempre se consideraria que a pena concretamente aplicada extravasa a medida da culpa do agente, atendendo à motivação apresentada e que mereceu credibilidade pelo Tribunal;


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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 15.09.2024 a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, veio o Ministério Público responder ao recurso …


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I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer …


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I.5. Resposta

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.


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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

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II- FUNDAMENTAÇÃO


II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

- Do erro de julgamento por não terem sido dados como provados os factos que resultaram das declarações do arguido e que integrariam os pressupostos do direito de necessidade, previsto no art. 34º do Código Penal.

- Da verificação dos pressupostos de aplicação da causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 34º do Código Penal – Direito de necessidade.

- Da verificação de uma situação subsumível ao art. 16º, nº 1 e 2 do Código Penal – erro sobre as circunstâncias de facto.

- Do excesso da pena de prisão aplicada por ultrapassar os limites da culpa.

- Do princípio da reformatio in pejus a conhecer oficiosamente.


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II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“II) FUNDAMENTAÇÃO

1. Fundamentação de facto

A) Factos provados

1) No dia 28 de maio de 2024, pelas 23 horas e 50 minutos, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula … sem, contudo, ser titular de carta de condução ou de qualquer outro título que validamente o habilitasse a conduzir aquele veículo.

2) O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que não podia conduzir o supra referido veiculo automóvel naquela via, por não se encontrar legalmente habilitado para essa condução, atendendo a que não era titular de carta de condução ou de outro título que validamente o habilitasse para esse efeito.

3) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida e, contudo, não se absteve de a levar a cabo.

4) Na data mencionada em 1), o arguido deslocava-se para a sua residência, após ter estado no serviço de urgência dos Hospitais …, com a companheira …, por esta se sentir indisposta.


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B) Factos não provados

Não se provou qualquer outra matéria constante da acusação.


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C) Motivação


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II.3- Apreciação do recurso


Entende o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que conduziu para permitir que a ansiedade e mal-estar doloroso da … fossem mitigados e sua integridade física preservada, o que  apenas sucederia quando esta chegasse a casa  e pudesse descansar dado que apenas o repouso foi indicado para além da medicação anti-dolorosa.

Mais se devendo provar que pretendeu acautelar a segurança rodoviária dado que ao conduzir ele o carro … para casa obstava a que esta potenciasse sobejamente o perigo para a segurança rodoviária devido ao estado de saúde em que se encontrava.

Invoca para o efeito as declarações que prestou em audiência de julgamento a 22 de maio de 2025 entre as 14h46m a 14h55m e as prestadas pela testemunha AA entre as 15h01m e as 15h12m (que corresponde à totalidade das declarações e depoimento, conforme consta da ata de audiência de julgamento de 22.05.2025 – refª 97328914).

Como resulta das conclusões de recurso o objetivo do recorrente é ver acrescentados outros factos – para além do que já consta no ponto 4 dos factos provados.

Vejamos então:

A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.

Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

E, deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado, o que deve fazer por referência a cada um dos factos impugnados.

Esta forma de impugnação pressupõe, pois, o erro que incide sobre um facto que foi considerado provado e o não deveria ter sido ou o inverso, um facto que foi considerado não provado quando a prova permitia que fosse considerado provado.

A este propósito permitimo-nos salientar o recente Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.2025 [processo nº 9931/24.2PCCBR.C1, disponível in www.dgsi.pt] onde entre o mais se escreve: “VI - Não é possível impugnar, em recurso, a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto com vista a que se considerem provados factos que não constam da lista dos factos provados e não provados mas que, no entendimento do recorrente, resultaram da discussão da causa.

VII - O aditamento de tais factos por esta via significaria que se estaria a permitir a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso, face às provas produzidas perante o tribunal a quo.

VIII - O mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato é a invocação da nulidade da sentença, do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do C.P.P., traduzida na omissão das menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, ou seja, in casu, de determinado facto como provado com relevo para a decisão da causa e resultante da discussão da mesma.

IX - Tal nulidade é de conhecimento oficioso.”

Tal como ali, permitimo-nos trazer à colação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº n.º 312/2012, processo n.º 268/12, 2.ª Secção [disponível in www.dgsi.pt] onde se escreve:

«Em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição que, relativamente à sentença condenatória, se traduz na necessidade de assegurar ao arguido a faculdade de pedir a sua reapreciação, quer quanto à matéria de direito, como à matéria de facto, por um tribunal superior.

Mas, o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando, conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu:

“Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…”

Daí que o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso considerar provados determinados factos que, no entendimento do recorrente, hajam resultado da discussão da causa, mas que não constam da lista de factos provados e não provados da sentença recorrida. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância.

Isto não quer dizer que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não fazendo recair sobre eles um juízo de prova, não deva ser passível de reação pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa (vide sobre a importância do tribunal incluir na lista dos factos provados e não provados os factos relevantes para a decisão da causa, mesmo que apenas tenham sido referidos em julgamento, SÉRGIO POÇAS, em “Da Sentença Penal – fundamentação de facto”, na Revista Julgar, Setembro-Dezembro 2007, págs. 24-25).

Mas o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento pelo tribunal de 1.ª instância.»

Ora, no caso vertente o recorrente não impugna um qualquer ponto da matéria de facto provada ou não provada, antes pretendendo que sejam aditados factos ao elenco dos provados, que na sua opinião resultaram da discussão da causa, o que, como vimos já, não pode ser obtido através da impugnação da matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º do Código de Processo Penal, que visa perceber se determinados factos foram ou não corretamente julgados, isto é, reapreciar a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto a determinados e concretos pontos da matéria de facto e perante as provas que o recorrente indica como impondo decisão diversa.

Por outro lado, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Visto o texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. 

Na verdade, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.

Do seu texto não resulta que os factos dados como provados se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum e a matéria de facto provada é suficiente para fundamentar a decisão de direito a que se chegou, não decorrendo do acórdão recorrido que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, pelo que deve manter-se inalterada a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.

Na verdade, como acima salientamos, uma questão como a colocada pelo recorrente apenas poderia ter lugar no âmbito de uma eventual nulidade nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.

Ora, em matéria de nulidade de sentença dispõe o artigo 379.º do CPP o seguinte:
1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a
d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos arts. 358º e 359ª.

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”

            Por seu turno decorre do disposto no art. 339º nº4 do Código de Processo Penal que “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º” E, nos termos do disposto no art. 368º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal, o tribunal na sentença começa por decidir as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver havido decisão,  e em seguida se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, deverá ser tomada posição, dando-os como provados ou não provados, sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como sobre os que resultarem da discussão da causa.

Analisando a sentença recorrida verificamos que esta tomou posição sobre todas as questões que lhe cumpria conhecer, tendo fixado os factos provados e não provados, expressando na respetiva motivação as razões que levaram a tal fixação da matéria de facto e não deixou de tomar posição sobre o invocado pelo arguido traduzindo o ponto 4 dos factos provados precisamente que “na data mencionada em 1) o arguido deslocava-se para a sua residência após ter estado no serviço de urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, com a companheira AA por esta se sentir indisposta.”

Por outro lado, mesmo considerando a salvaguarda da segurança rodoviária, cremos que, ainda que fosse feita prova de tal matéria, porque a condução sem habilitação legal visa precisamente a proteção desse bem jurídico e ainda com maior acuidade, quando a condução é exercida por alguém que não foi submetido às provas tendentes a aferir da sua aptidão (teórica e prática) para o exercício da condução, tais factos, mesmo a provar-se, nunca integrariam a causa de exclusão da ilicitude em apreço.

Isto é, os factos que o recorrente pretende ver aditados não foram alegados em contestação nem integraram, de forma juridicamente relevante, a discussão da causa perante o tribunal a quo, já que, nos termos do art. 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, apenas integram o thema decidendum os factos da acusação, os factos da defesa e aqueles que resultam da discussão da causa com relevância para a decisão.

Por conseguinte, em face do que resultou da discussão da causa e perante as soluções plausíveis de direito não se impunha ao Tribunal ir além do que foi em termos da fixação da matéria de facto e, consequentemente, não se justifica o aditamento de tais factos ao elenco dos provados.

Em suma, porque o Tribunal a quo se pronunciou sobre os factos constantes da acusação deduzida nos autos, tomou posição relativamente àqueles que efetivamente resultaram da discussão da causa com relevância para a decisão, inexiste qualquer omissão de pronúncia.

Improcede, pois, neste segmento o recurso interposto pelo arguido.


***

III – Do direito de necessidade – art. 34º do Código Penal.

Entende o recorrente que a sua atuação está a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, mais propriamente do direito de necessidade, previsto no art. 34º do Código Penal.

Dispõe o art. 31º, nº 1, do C. Penal que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.

E dispõe a alínea b), do seu nº 2 que não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.

Por sua vez, estabelece o art. 34º, do C. Penal, que tem por epígrafe «Direito de necessidade»:

Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”.

O direito de necessidade, cujo fundamento é o princípio da solidariedade, pressupõe a existência de uma situação de perigo atual para determinado bem ou interesse jurídico do agente ou de terceiro, que só pode ser neutralizada se outro bem ou interesse jurídico for violado ou posto em perigo.

O perigo atual significa que o bem jurídico a salvaguardar tem que estar objetivamente em perigo, o que não quer dizer que tenha que ser sempre iminente [Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo, I, 416].

Só no caso de a criação do perigo se ficar a dever a conduta dolosa do agente é afastada a justificação.

A exigência da sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, conduz-nos ao princípio do interesse preponderante e por isso, à análise dos valores dos interesses em conflito designadamente, dos bens jurídicos em oposição e do grau de perigo que os ameaça [Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 419]. Desta forma, a justificação ocorre “apenas quando é clara, inequívoca, indubitável ou terminante a aludida superioridade à luz dos factores relevantes de ponderação.” [Ob cit., pág.  427].

E no que diz respeito à caracterização do perigo que ameaça o bem jurídico escreve o referido professor [Ob cit, pág. 443] «o bem jurídico a salvaguardar tem que se encontrar objetivamente em perigo, porque só então se pode justificar que um dever de suportar a ação típica recaia sobre o atingido pela intervenção, demais se ele não for implicado na situação inicial. No mesmo sentido corre, de resto, a exigência expressa no art. 34º de que se trate de um perigo atual”.
E acrescenta:
«o perigo deverá para este efeito considerar-se atual mesmo quando não é ainda iminente, mas o protelamento do facto salvador representaria uma potenciação do perigo, e também no caso dos chamados “perigos duradouros”».

Como se salienta no Acórdão do TRG de 23.05.2022 [processo  19/21.8PFGMR.G1, disponível in www.dgsi.pt]: “quanto ao princípio do interesse preponderante, vertido na al. b) do preceito em análise, serão critérios indiciadores válidos - que não únicos e definitivos - para aferir do mesmo, os seguintes (cfr. A. cit., ob. cit., págs. 445 a 451):

- Medida legal da pena, quando os bens jurídicos em confronto se encontram jurídico-penalmente protegidos;

- Intensidade da lesão do bem jurídico, devendo aqui ponderar-se se está em causa o “aniquilamento” ou supressão completa do interesse ou somente a sua lesão parcial ou passageira. Este critério será tanto mais relevante quando os bens conflituantes se apresentem, em abstrato, da mesma ou semelhante hierarquia.

- O grau de perigo que é afastado ou criado com a ação de salvamento, nos casos em que a violação do bem jurídico não se mostra absolutamente segura.

Assim, se o agente atua visando evitar um dano que certamente se verificará se omitir tal ação, colocando só em pequena medida em perigo outro bem jurídico, prosseguirá, em regra, o interesse substancialmente preponderante.

- A autonomia pessoal do lesado, querendo significar, nas situações em que o bem jurídico ofendido seja de caráter iminentemente pessoal, que urge ponderar a razoabilidade de impor ao lesado a ação salvadora em cotejo com o seu direito de autodeterminação e de autorrealização.

- A “imponderabilidade” da vida de pessoa já nascida: cada vida vale o mesmo, não podendo ser ponderadas, como critérios justificantes, diferenciações qualitativas ou quantitativas.

A exigência legal da “sensível superioridade” do interesse salvaguardado, contida na al. b) do art. 34º, pressupõe não só ou não tanto que este último interesse se situe muito acima do interesse sacrificado, mas também ou essencialmente que a justificação apenas opere quando é clara e indubitável a superioridade à luz dos sobreditos fatores relevantes de ponderação.

Outro requisito legal é o da adequação ou idoneidade do meio utilizado para afastar o perigo (cf. corpo do art. 34º), pelo qual se afasta para este efeito a utilização pelo agente de um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objetiva, seja inidóneo para salvaguardar o interesse ameaçado.

Como assertivamente menciona Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., anot. 16 ao art. 34º, p. 161), «O meio adequado para afastar o perigo é aquele que é objetivamente idóneo, numa perspetiva ex ante, de prognose póstuma, para salvaguardar o interesse jurídico ameaçado. Sendo possível o recurso à força pública, não é admissível o direito de necessidade. Havendo vários meios disponíveis, é adequado o recurso ao meio menos lesivo para o terceiro, pelo que não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio excessivo (que não é o menos prejudicial) para realização do objetivo da salvaguarda do interesse ameaçado. De idêntico modo, não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio inútil, isto é, ineficaz para a salvaguarda do interesse ameaçado.»

Por outro lado, qualquer pessoa, e não apenas o sujeito ameaçado, pode levar a cabo a conduta ofensiva do interesse de outrem tendente a afastar o perigo de lesão do interesse juridicamente protegido deste.

Os requisitos subjetivos do estado de necessidade justificante consubstanciam-se no conhecimento do agente da situação de conflito e na sua atuação consciente de salvaguarda do interesse preponderante (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 459).

Neste mesmo sentido, expende a Prof. Teresa Pizarro Beleza, in “Direito Penal”, 2º Volume, aafdl, p. 301, que as causas de justificação, incluindo o estado de necessidade, têm como elemento subjetivo o conhecimento dos seus pressupostos de facto.”

Como vimos já a matéria de facto, até porque não foi validamente impugnada, mantém-se tal como fixada pelo Tribunal a quo.

Ora, da factualidade provada resulta que o arguido conduziu o veículo automóvel  em causa na via pública  sem ser titular de carta de condução ou de qualquer outro título que o habilitasse a conduzir aquele veículo.

Mais se provou que agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que não podia conduzir o referido veículo naquela via por não estar legalmente habilitado para o efeito e sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida e, contudo,  não se absteve de a levar a cabo.

Provado ainda que naquele dia e hora o arguido deslocava-se para a sua residência, após ter estado no serviço de urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, com a companheira …, por esta se sentir indisposta.

O Tribunal a quo na respetiva fundamentação de direito, apreciou a matéria de facto apurada soba a perspetiva do estado de necessidade desculpante (art. 35º do Código Penal), entendendo o recorrente que na situação em apreço deveria ser convocado o direito de necessidade (art. 34º do Código Penal).

Cremos, porém, que a factualidade provada não permite concluir pela verificação do aludido direito de necessidade.

Na verdade, não pode considerar-se que uma mera situação de indisposição por parte da companheira do arguido, já no regresso da sua ida ao Serviço de Urgência, onde foi medicada e lhe foi dada alta com destino à residência, consubstancie, sequer uma situação de perigo para a sua integridade física ou de terceiros. Dos factos provados não resulta que a companheira do arguido – que apenas se provou estar indisposta - não estivesse em condições de exercer a condução, ou que o exercício da condução gerasse um perigo atual ou eminente para segurança rodoviária e consequentemente a integridade física de terceiros.

Mesmo que se admitisse que não estivesse em condições de exercer a condução ou que a condução nessas circunstâncias acarretaria um  perigo para a saúde e integridade física da de terceiros nunca a condução de um veículo automóvel por parte do arguido constituiria um meio adequado a afastar aquele perigo.

É das regras da experiência comum que numa cidade como Coimbra existem transportes públicos (seja os autocarros, táxis, TVDE) que permitiam de forma menos prejudicial garantir a realização do interesse ameaçado, não resultando da factualidade provada – ao contrário do alegado em sede recursiva – que o arguido não tivesse disponibilidade financeira para acorrer a transportes alternativos dado que, apesar da renda que referiu pagar pelo apartamento onde habitavam, o agregado auferia 410,00€ de Rendimento social de inserção e o arguido por força dos serviços ocasionais de caracter indiferenciado tais como pintura da construção civil retirava rendimentos entre os 600,00€ e os 650,00€ mensais e a sua companheira fazia ainda horas em limpeza, daí retirando também rendimentos, o que garantiria, ainda que com algum sacrifício, a possibilidade de recorrer a esses meios de transporte, sendo certo que nunca poderia a falta de disponibilidade financeira justificar o recurso à condução de um veículo automóvel sem a devida habilitação numa situação como a presente, em que não resultou provada nenhuma situação de perigo para quaisquer bens jurídicos próprios ou de terceiros que a justificasse.

Não há, também, “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse salvaguardado”.

Como salienta Figueiredo Dias [Direito Penal Parte Geral, Tomo I, pág.523] “A lei

exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau de perigo que os ameaça, é dizer, dos decursos possíveis do acontecimento em função da violação(ou perigo de violação)dos bens jurídicos a que está ligada.”

Ora, na perspetiva trazida pelo arguido estamos perante o mesmo bem jurídico (a segurança rodoviária), não sendo possível afirmar que o grau de perigo de lesão deste bem jurídico através da condução por parte da companheira do arguido era superior ao da condução por parte do arguido, até porque este não se encontrava habilitado para o exercício da condução de veículos automóveis, o que de per si acarreta um maior perigo de violação do aludido bem jurídico.

Por fim,  salientar que a factualidade provada não permite sequer a configuração dos requisitos subjetivos do direito de necessidade, na vertente acima assinalada do conhecimento por parte do arguido da situação de conflito e da sua atuação consciente no sentido da salvaguarda do interesse preponderante, tendo aliás resultado provado, para além do mais, que o arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida e, contudo, não se absteve de a levar a cabo.

Improcede, pois, este segmento do recurso.


***

IV - Do erro previsto no art. 16º, nº 1 e 2 do Código Penal

Invocou o arguido/recorrente a ocorrência de erro nos termos do disposto no art. 16º, nº 1 e 2 do Código Penal.

Decorre do artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, que “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime (...) exclui o dolo.”

            E nos termos do nº 2 do mesmo artigo também excluirá o dolo “ o erro sobre um estado de coisas que a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”.

Trata-se de uma situação em que o agente atua erroneamente convencido da existência de uma situação de justificação”.

 O erro sobre a factualidade típica, ou sobre a ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude é um erro intelectual e um erro-representação.

Quando tal erro resulta da falta de atuação com a diligência que lhe é devida, o agente é punido a título de negligência nos termos dos artigos 16.º, n.º 3 e 15.º do Código Penal.

No direito penal português encontramos dois tipos de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo do tipo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal).

 Como refere Figueiredo Dias [Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, pág. 466]:Aquele que erra sobre a factualidade típica (ou sobre o decurso do acontecimento ou mesmo sobre proibições legais, na medida em que estes erros sejam relevantes ) atua sem dolo do tipo, enquanto quem aceita erroneamente elementos que, a existir, excluiriam a ilicitude, atua com dolo do tipo. Isto significa que, sendo embora a consequência jurídica num caso e no outro  a mesma – e exclusão da punição do agente a título de dolo – na hipótese e de erro sobre os elementos do tipo a exclusão dá-se logo a nível do ilícito típico: o facto não é tipicamente doloso. Diferentemente, em caso de errónea aceitação dos pressupostos de uma causa justificativa o dolo do tipo persiste; o que sucede é que o dolo, pelas razões sumariamente apontadas acima, virá a ser negado em definitivo em sede de culpa: O tipo (incriminador) é dolosamente realizado pelo agente , mas este atua sem culpa dolosa e, por isso, não pode, em definitivo, punido a título de dolo.

Ora, não resulta da matéria de facto provada qualquer circunstância que permita concluir que o arguido atuou ao abrigo de qualquer erro sobre na existência de uma causa justificativa.

No caso presente apurou-se que os atos foram praticados com consciência, e com inerente capacidade de querer e entender, isto é, de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação, sem qualquer tipo comprovado de erro e, como tal, não há como fazer operar a exclusão do dolo da culpa.

Deste modo, cai por terra a possibilidade de fazer operar na situação em apreço o invocado erro do art. 16º, nº 2 do Código Penal.

Pelo exposto, considerando os factos que resultaram provados, nenhuma censura merece o enquadramento jurídico que deles foi feito pelo Tribunal a quo, que merece a nossa total concordância.


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V - Do excesso da pena concreta fixada

Defende o recorrente que a pena que lhe foi aplicada é manifestamente exagerada, ultrapassando os limites da culpa concretamente verificada, impondo-se a sua redução para 6 meses de prisão.

A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final.

É função do recurso, antes de tudo, analisar criticamente os “parâmetros” da determinação de sanções.

Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada.

Importa, pois, ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.

Atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente [Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” pág. 227 e ss.].

Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe e não exceder a medida da culpa do agente.

Porém, na situação presente, importa ter em conta o princípio da  proibição da reformatio in pejus, designadamente no seu efeito “indireto”.

Na verdade, neste processo foi em 07.06.2024 proferida uma primeira sentença que havia condenado o arguido/recorrente “ … pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelos artigos 3º, nº 1 e 2 do Decreto-lei nº 2/98, de 03.01 e 121.º, nºs 1 e 4 do Cód. da Estrada na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 1200 (mil e duzentos euros), a qual se substitui por 240 (duzentos e quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade a prestar pelo arguido em entidade que vier a ser designada pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais”.

Dessa sentença interpôs apenas recurso o arguido, na sequência do qual foi proferido a 11.12.2024 por este Tribunal da Relação acórdão onde, entre o mais, se entendeu o seguinte:

“(…)se atentarmos na fundamentação jurídica da sentença sob recurso vemos que quando o Tribunal a quo se debruça sobre a escolha da pena referiu: “Ora, tendo em consideração que o Arguido confessou integralmente e sem reservas e que o motivo pelo qual conduziu o veículo em causa se ficou a dever a um estado de indisposição por parte da sua companheira que é a proprietária do veículo, o tribunal entende que ainda é possível que a pena de multa, enquanto pena principal, satisfaça de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E mais adiante na determinação da medida concreta da pena escreveu-se: O Arguido agiu com dolo direto como decorre da própria confissão, embora mitigado com o motivo que invocou no referido documento, todavia não se vendo o mesmo como causa de exclusão de ilicitude, mas apenas intervindo na medida da pena (…).”

Temos, pois, que na fundamentação jurídica efetuada e concretamente na tarefa da escolha da pena e subsequente fixação da medida da pena são mencionadas circunstâncias que não constam da factualidade provada e muito concretamente que “o motivo pelo qual conduziu o veículo em causa se ficou a dever a um estado de indisposição por parte da sua companheira que é a proprietária do veículo”.

E este segmento foi considerado o elemento fundamental para a escolha pela pena de multa (…) sendo, por isso, uma questão relevante sob o ponto de vista da decisão tomada, mas que não obtém sustentação na matéria de facto provada.

Concluímos, assim, que a sentença em causa enferma do apontado vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, tendo o tribunal a quo considerado partido de premissas contraditórias e distintas das que deu como provadas para efetuar a tarefa de escolha e medida da pena concreta encontrada.

O Tribunal a quo ao mesmo tempo que considera que o arguido efetuou uma confissão integral e sem reservas - o que fez constar da respetiva ata da audiência de julgamento e determinou nos termos do art. 344º, nº 2 al.s a) e b) a renúncia à produção de prova sobre os factos imputados e a consideração destes como provados e a passagem à fase de alegações orais -, invoca na fundamentação jurídica um motivo para o exercício da condução -“o estado de indisposição por parte da sua companheira que é a proprietária do veículo” - que não levou aos factos provados mas que considerou como um dos elementos fundamentais para a escolha e determinação da medida concreta da pena.

(…)

Aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, que a decisão recorrida não pode subsistir.

E como não é aqui possível suprir os apontados vícios, modificar a decisão de facto proferida e decidir, desde já, a causa, impõe-se a devolução do processo ao tribunal a quo [426.º, n.º 1 e 426.º-A, ambos do Código de Processo Penal], com vista à realização de novo julgamento com a inerente realização de prova, que o tribunal entenda ser necessária, para suprir as contradições apontadas.

Resulta, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


*

            III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar verificado o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e consequentemente determinar o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do disposto no art. 426º, nº 1 e 426º A, ambos do Código de Processo Penal, com a inerente realização de prova que o Tribunal entenda necessária para suprir o vício apontado e reexaminando-se depois a causa em conformidade.”

Ora, efetuado novo julgamento verifica-se que o Tribunal a quo veio a condenar o arguido, tendo por base idênticos factos e subsunção jurídica, numa pena de um ano de prisão efetiva.
Escreveu-se nesta nova sentença , entreo mais, o seguinte: “No caso concreto a pena de multa não satisfaz de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, designadamente as exigências de reprovação e prevenção do crime, estando, pois, indicada uma pena de prisão. Com efeito, como decorre dos factos assentes, o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de diversos tipos legais de crime, num total de 14 (catorze) condenações, sendo que tem 10 (dez) condenações pela prática de crimes de idêntica natureza ao que está em consideração nos autos, tendo cumprido já pena de prisão pela prática desses crimes, demonstrando uma personalidade desconforme ao direito, persistindo com a prática deste crime.
No que se refere à medida concreta da pena, esta é fixada de acordo com os critérios gerais do art.º 71º do Cód. Penal, com base nas seguintes directivas já enunciadas: o princípio da culpa que funciona como limite máximo da pena, as exigências de prevenção geral positiva ou de integração que funcionam como limite mínimo da pena e as exigências de prevenção especial de ressocialização que, dentro dos limites máximos e mínimos referidos, actua, determinando, em último termo, a medida da pena.
Ora, no caso concreto verifica-se que levando em conta a intensidade do dolo, no que se refere quer ao tipo-de-ilícito, quer ao tipo-de-culpa, tal intensidade é elevada, pois o arguido agiu com dolo directo.
No que diz respeito à ilicitude dos factos esta é também elevada, por referência ao bem jurídico violado e às consequências emergentes da conduta ilícita, pois estamos perante uma conduta objectivamente adequada a colocar em perigo a segurança da circulação rodoviária, sendo que o nosso país regista elevados níveis de sinistralidade rodoviária.
As exigências de prevenção geral positiva são de um nível bastante elevado, tendo em conta a necessidade de desincentivar eficazmente a comissão de crimes do tipo daquele que nos autos está em consideração.
As exigências de prevenção especial são muito elevadas, pois do CRC junto aos autos constata-se que o mesmo tem 14 (catorze) condenações, pela prática de diversos tipos legais de crime, dez das quais por crimes da mesma natureza do que está em consideração nos autos, algumas em pena de prisão.
A seu favor, considera-se o facto de ter admitido a prática dos factos e de estar familiarmente integrado, levando-se ainda em consideração o motivo que o levou a exercer a condução.
Assim, nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, aplica-se ao arguido uma pena de 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de condução sem habilitação legal.
O Cód. Penal consagra penas de substituição para penas de prisão aplicadas em medida não superior a um ano, quais sejam a substituição da prisão por multa (artº 45º) e o regime de permanência na habitação (artºs 43º e 44º).
Dispõe, o artº 58º do Código Penal que se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade, sempre que concluir que por esse meio realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Também o artº 50º do Código Penal dispõe que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 (cinco) anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias dele, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
No caso concreto, tendo em atenção que o arguido já tem um elevado número de condenações, com 10 (dez) condenações pela prática de crimes de idêntica natureza ao que está em consideração nos autos, demonstrando uma personalidade desvaliosa e indiferente às anteriores condenações que lhe foram aplicadas, incluindo as penas de prisão efectiva, persistindo com este tipo de conduta, conduzindo sem ser portador de habilitação legal, consideramos que as penas de substituição, o trabalho a favor da comunidade ou a suspensão da pena não se mostra adequada no caso concreto, dado que não é possível efectuar um juízo de prognose favorável no sentido de que a aplicação de qualquer um destes institutos surtisse o efeito desejado, nomeadamente dissuadindo o arguido da prática de futuros crimes.
Por todo o exposto, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 1 (um) ano de prisão, pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal previsto no art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.”
Sem prejuízo da lógica e justeza do raciocínio efetuado (que no caso nos surge como evidente), …
Porém, como já salientamos, na situação presente esta decisão decorreu de um prévio reeenvio por parte deste tribunal nos termos do disposto no art. 426º , nº 1 e 426º A do Código de Processo Penal, na sequência de um recurso apenas interposto pelo arguido, verificando-se que a factualidade submetida a julgamento é sobreponível, sendo-o também o enquadramento jurídico efetuado.
Ora, como se salienta no Acórdão do STJ de 14.09.2011 [processo 138/08.6TALRA.C1.S1 acessível in www.dgdi.pt]: “I - O princípio da proibição da reformatio in pejus prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo MP, no interesse exclusivo do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
II - Enquanto circunscrito ao direito ao recurso interposto pelo arguido no seu exclusivo interesse ou pelo MP no mesmo sentido, o princípio referido, na sua modalidade directa, é fortemente limitativo do poder decisório do tribunal; porém, concebido, embora com controvérsia, como um princípio geral de direito de processo penal, enquanto direito de defesa, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, o princípio, em nome do direito a um processo justo, actua com maior latitude, e, assim, no caso de anulação ou reenvio do processo para novo julgamento, em 1.ª instância, o princípio não se esvai – é aplicada a reformatio in pejus indirecta –, limitando, igualmente, o poder decisório do tribunal inferior, que não pode em tal caso agravar a situação do arguido.
III - O tribunal inferior, diz-se, não há-de ter poderes mais amplos do que o tribunal superior; a proibição de reformatio se limita o tribunal superior, por maioria de razão há-de limitar o inferior, atenta a cadeia hierárquica que se estabelece entre ambos e a íntima conexão entre o decidido nas instâncias, dada a decorrência lógica entre a solução a alcançar.
IV -Aliás, sempre que o titular da acção penal não manifesta discordância, não se concebe que o Estado, através dos seus órgãos de administração da justiça, sobrepondo-se ao arguido, lhe possa impor uma reacção penal mais severa do que a cominada do antecedente.”Em igual sentido o Acórdão do TRL de 25.02.2012 [processo nº 611/09.9PDOER.L1-5, disponível in www.dgsi.pt].
Nesta medida, uma vez que o Mº Público não havia recorrido da sentença inicialmente proferida nos autos e, atento o referido princípio da proibição da “reformatio in pejus” estabelecido no art. 409º, nº 1 do Código de Processo Penal, impõe-se revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na pena de um ano de prisão efetiva, devendo manter-se - por impossibilidade de agravação da punição do arguido único recorrente -  a sua condenação na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 1200 (mil e duzentos euros), substituída por 240 (duzentos e quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade a prestar pelo arguido em entidade que vier a ser designada pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, proferida na primeira sentença condenatória.

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III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e em consequência:

- Revogar a decisão recorrida no segmento em que condenou o arguido numa pena de um ano de prisão efetiva.

- Por força do princípio da proibição da “reformatio in pejuscondenar o arguido na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 1200 (mil e duzentos euros), substituída por 240 (duzentos e quarenta) horas de trabalho a favor da comunidade a prestar pelo arguido em entidade que vier a ser designada pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, proferida na primeira sentença condenatória.

Não são devidas custas.

Notifique.



Texto processado pela primeira subscritora (art. 94º, nº 2 do CPP)

Coimbra, 10 de dezembro  de 2025

As Juízas desembargadoras

Sandra Ferreira

(Juíza Desembargadora Relatora)

Maria da Conceição Miranda

(Juíza Desembargadora Adjunta)

Paula Carvalho e Sá

 (Juíza Desembargadora Adjunta)