Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
790/10.2GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: ALCOOLEMIA
ERRO
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional:
PORTARIA N.º 1556/2007, DE 10 DE DEZEMBRO
Sumário: No Anexo ao Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro, estão contidos os “erros máximos admissíveis” - EMA -, em função do teor de álcool no ar expirado (mg/l) - TAE -, tendo em conta cada uma das duas situações aí previstas: “aprovação de modelo/primeira verificação” e “verificação periódica/verificação extraordinária”.
Destinando-se o Regulamento à definição das regras a que deve obedecer o controlo metrológico dos alcoolímetros quantitativos, onde pontificam as especificidades constantes dos respectivos preceitos, os “erros máximos admissíveis” são de considerar tão só nos específicos domínios de aprovação e verificação dos alcoolímetros pelo Instituto Português da Qualidade, I.P. e não na fase da sua utilização casuística pelas autoridades policiais.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, após julgamento em processo sumário, por sentença de 18 de Outubro de 2010, o arguido MJ..., completamente identificado nos autos, foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena (principal) de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), e na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado por um período de 3 (três) meses.


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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - Nos termos do n.° 2, al. c), do art. 410 e n.° 3 do art. 412.°, al. a), ambos do C. P. Penal, considera, o recorrente, incorrectamente dados como provados os pontos 2, 3 e 4, demonstrando-se a douta sentença violadora do basilar princípio in dubio pro reo;

2.ª - A concreta taxa de álcool no sangue não pode ser provada por meio de confissão ou de depoimento: nos termos legais, só pode ser feita através de teste no ar expirado ou por meio de análise ao sangue;

3.ª - O arguido não pode confessar que conduzia com uma determinada taxa de álcool no sangue: falta-lhe, para o efeito, razão de ciência;

4.ª - Ainda que a margem de erro legalmente admissível seja levada em conta no momento da calibração do aparelho, tal facto apenas garante que o aparelho em concreto está apto a efectuar medições e que os resultados obtidos sempre se situarão dentro dos limites definidos por aquelas margens de erro;

5.ª - O princípio in dubio pro reo impõe a dedução do erro máximo admissível ao valor registado no talão emitido pelo alcoolímetro;

6.ª - Na fixação concreta de uma pena de multa o tribunal deve agir segundo os princípios gerais do doseamento da pena, isto é, deve considerar o grau de ilicitude e culpa, as exigências de prevenção e de reprovação, devendo ainda considerar quaisquer outras circunstâncias que não fazendo parte do crime em apreço resultem a favor ou contra o arguido, sendo que destas circunstâncias a decorrente da situação económica e financeira do arguido, desde que não tenha reflexo nos elementos de culpa e ilicitude só deve ser considerada para a determinação do quantitativo diário;

7.ª - Atendendo aos factos dados como provados em 5 a 10, respeitantes à situação pessoal, económica e social, deverá a taxa diária ser fixada no limite mínimo, em 5.00€ (cinco euros).

8.ª - Ao não considerar para efeito da pena a aplicar, o erro máximo admissível, e considerar, ao invés, a TAS 1.31 g/1, o tribunal a quo violou os artigos 40.°, n.° l e n.º 2, 71.º, n.ºs 1 e 2, 292.º, n.º 1, do Código Penal, artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, Portaria n.º 1556/07, de 10 de Dezembro e o princípio in dubio pro reo.

Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença, na parte em que considera como provado que o arguido era portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,31 g/l e, em consequência, dar-se como provada a taxa resultante da dedução do erro máximo admissível, que no caso de integrar ilícito contra-ordenacional, deverá extrair-se certidão para o competente procedimento, com o que se fará a necessária e costumada justiça!


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3. O Ministério Público rematou a resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença que condenou o arguido MJ... como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 292.°, n.° l e 69.°, n.° l, alínea a) do CP, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 7euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses.
2. Não se conformando com a presente condenação veio o arguido interpor recurso da sentença, defendendo, em síntese:
- que se mostram incorrectamente dados como provados os factos 2, 3 e 4 da sentença, dado que não foi tida em consideração a dedução do erro máximo admissível ao valor registado no talão emitido pelo alcoolímetro.
- que deveria ter sido fixada uma taxa diária de 5 euros, dadas as condições económicas do arguido, dadas como provadas na sentença.
3. Como é jurisprudência pacífica nos nossos Tribunais superiores e resulta do princípio da cindibilidade do recurso em processo penal consagrado no artigo 402.° e subjacente ao artigo 412.°, ambos do C.P.P., o âmbito do recurso é dado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes.
3.a) Quanto à dedução do erro máximo admissível ao valor registado no talão emitido pelo alcoolímetro:
- Nem à face da Portaria 1556/2007 de 10 de Dezembro, nem da legislação que a precedeu, está ou esteve legalmente estabelecida qualquer margem de erro (mínimo e máximo) para aferir resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue, numa qualquer medição concreta. Tais margens de erro respeitam apenas à aprovação e verificação periódica dos alcoolímetros.
- Quando em operação de fiscalização de condutor para detecção de nível de alcoolemia no sangue, não seja levantada por ele qualquer dúvida sobre a autenticidade do valor registado inicialmente pelo aparelho de análise quantitativo de avaliação do teor de álcool no sangue, e mesmo sobre a fiabilidade deste último nem requerida contraprova, (situação dos autos), inexiste qualquer fundamento técnico-científico ou jurídico para a aplicação de qualquer margem de erro à taxa de alcoolemia detectada.
- Com efeito, a detecção da presença e a quantificação de álcool no sangue encontra-se regulada pelo Decreto Regulamentar n.° 24/92, de 30 de Outubro e o artigo 12.° desse diploma prescreve que só podem ser utilizados nos testes quantitativos de álcool no ar expirado, analisadores que obedeçam às características fixadas em Portaria conjunta dos Ministros da Administração Interna, da Justiça, da Saúde e que sejam aprovados pelo Director Geral de Viação, acrescentando o n.° 2 do mesmo inciso legal que a aprovação mencionada é precedida de aprovação de marca e modelo, a efectuar pelo Instituto Português da Qualidade, nos termos do Regulamento de controlo Metrológico dos alcoolímetros.
- O controlo metrológico dos alcoolímetros é da competência do Instituto Português da Qualidade, I.P.Q., que procede às operações de aprovação de modelo; primeira verificação; verificação periódica; e verificação extraordinária - artigo 5.° da referida Portaria n.° 1556/2007, de 10 de Dezembro.
- Uma vez verificado pelo Instituto Português da Qualidade que o dito aparelho não ultrapassa esses mesmos erros é aposta marca que assegura a qualidade metrológica dentro das tolerâncias admissíveis.
- Assim sendo, inexiste qualquer fundamento para, em qualquer momento posterior, nomeadamente na ocasião em que o agente de autoridade está a proceder a acção de fiscalização, serem considerados quaisquer valores de EMA a deduzir ao valor apurado pelo alcoolímetro quantitativo. Tais erros máximos admissíveis são valorados e ponderados no momento do controlo metrológico e antes da certificação pelo IPQ ser atestada.
- Assim, quaisquer deduções que a esta TAS sejam feitas carecem de fundamento legal e memo de suporte técnico-científico.
- Independentemente da tese que se sustente quanto à questão da aplicação ou não das margens de erro constantes da Portaria n.° 1556/2007, de 10 de Dezembro, aos valores indicados em cada uma das medições pelos alcoolímetros, o tribunal não pode dar como provada uma taxa diferente da constante da acusação quando o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados pelo Ministério Público, fazendo-o de livre vontade e fora de qualquer coacção, sem que o tribunal tivesse manifestado qualquer reserva quanto a essa confissão.
- Se, nessa altura, o tribunal tivesse tido dúvidas sobre a veracidade dos factos confessados - alínea b) do n.° 3 do artigo 344.° - não teria considerado válida a confissão e teria adoptado o procedimento previsto no n.° 4 desse mesmo preceito.
- Não se torna necessário que o arguido tenha consciência do teor exacto da taxa de álcool no sangue, sim que tenha consciência de que ingeriu bebidas alcoólicas e que a taxa respectiva - a apurar apenas por métodos científicos ou técnicos com quantificação desconhecida a priori e de impossível quantificação por convencimento pessoal ou crença - tem um significado normativo claro. Isto é, para afirmar o dolo e a consciência da ilicitude é aqui essencial ver o facto como realidade normativa e não como realidade naturalística.
- Quando a fiabilidade do aparelho (alcoolímetro) não seja fundadamente posta em causa, deve-se atender à medição nele indicada, não havendo, por conseguinte, a fazer qualquer desconto.
- O arguido não pôs em causa a fiabilidade do aparelho que procedeu à determinação da taxa de álcool de que o arguido era portador à data da prática dos factos.
3. b) Quanto à determinação do quantitativo da taxa diária da pena de multa:
Nos termos do artigo 47.°, n.° 2 do CP, a taxa diária da pena de multa é fixada entre 5 euros e 500 euros, de acordo com a situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Considerou-se na sentença que o arguido dispunha de um rendimento disponível de 200 euros.
E, nessa medida, entendeu aplicar uma taxa diária de 7 euros.
Fê-lo de acordo com a Lei e o Direito, pelo que inexiste motivo para criticar o doseamento da taxa diária.
4. Termos em que o recurso deve improceder.
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4. A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 79/81 dos autos, pronunciou-se, de igual modo, no sentido da improcedência do recurso.
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5. Cumprido art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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6. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Tendo o recorrente dado cumprimento aos ditames do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, para além da pretendida alterabilidade da matéria de facto, há que apreciar e decidir:
- Se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova;
- Se o tribunal de 1.ª instância violou o princípio in dubio pro reo;
- Se a taxa de álcool no sangue a atender,  decorrente do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, é a considerada pelo tribunal a quo ou outra, de valor inferior;
- A pena de multa aplicada, por se revelar excessiva, deve ser reduzida quanto ao quantitativo diário.

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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
2.1. Da culpabilidade:
1. No dia 16 de Outubro de 2010, pelas 04:05 horas, o arguido conduzia o veículo de matrícula …, ligeiro de passageiros, na Rotunda ..., ...;
2. Fazia-o com uma taxa de álcool no sangue que testada pelo aparelho Drager n.º ARAN – 0019, às 04:30 horas acusou uma taxa de 1,44g/l (um vírgula quarenta e quatro gramas por litro de sangue);
3. Realizado exame de contra-prova no aparelho Drager n.º ARAN – 0016, pelas 05:11 horas desse mesmo dia, a requerimento do arguido, tal exame acusou uma taxa de álcool de 1,31 g/l (um vírgula trinta e um gramas por litro de sangue);
4. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta não era permitida por lei.
2.2. Da determinação da sanção:
5. O arguido é empresário e aufere, a título de vencimento, 750,00 € (setecentos e cinquenta euros) mensais;
6. O arguido paga, mensalmente, uma pensão de alimentos ao seu filho menor, no montante de 150,00€;
7. O arguido liquida mensalmente um empréstimo bancário no valor de 400,00 (quatrocentos euros);
8. O arguido mostra-se arrependido;
9. Da certidão do registo criminal do arguido nada consta;
10. O arguido é estimado pelos amigos e é reportado como sendo uma pessoa responsável.
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3. Inexistindo factos não provados, em relação à fundamentação da decisão de facto está consignado:

No caso em apreço, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido, que confessou, integralmente e sem reservas, os factos que lhe são imputados, em conformidade com o disposto no artigo 344.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, uma vez que a sua confissão não suscitou no Tribunal quaisquer dúvidas quanto ao carácter livre da mesma, quanto à imputabilidade plena do arguido ou quanto à veracidade dos factos confessados, e ainda quanto à sua situação pessoal, económica e social, declarações que, por terem sido prestadas com seriedade e espontaneidade, foram convincentes.

O Tribunal atendeu ainda às declarações das testemunhas AP..., PG…, AS… que, na qualidade de amigos, afirmaram, de forma credível e coerente, pelo modo isento e espontâneo com que prestaram as suas declarações, os factos provados em 10 supra.

Por fim, o Tribunal atendeu ainda à prova documental e pericial de fls. 3, 4 e 11 dos autos, e ao certificado de registo criminal do arguido, emitido em 18 de Outubro de 2010, junto aos autos a fls. 12.


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4. Do mérito do recurso:

Impugna o recorrente os pontos 2, 3 e 4 da matéria de facto provada, por entender, em suma, que, para o preenchimento objectivo do tipo de crime do artigo 292.º do Código Penal, consistente na condução de veículos com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1, 2 g/l, deve ser considerada a taxa de alcoolemia registada pelo alcoolímetro utilizado depois de descontado o valor do “erro máximo admissível”.

Desde já adiantamos, como o recorrente, que a confissão do mesmo em audiência de julgamento dos factos que lhe estão imputados, descritos no ponto n.º 3 do acervo factológico provado, não tem a virtualidade de abranger a TAS de 1,31 g/l indicada no talão do alcoolímetro

Nos termos do disposto no artigo 140.º, n.º 2, do CPP, «Às declarações do arguido é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 128.º e 138.º, salvo quando a lei dispuser de forma diferente», estatuindo, por sua vez, o n.º 1 do artigo 128.º: «A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova».

Como está escrito no Acórdão da Relação do Porto de 26 de Novembro de 2008, proc. n.º 0812537, também referido pelo recorrente, o que decorre impressivamente desses preceitos é que, quer as declarações do arguido, quer o depoimento das testemunhas, só assumem relevância em relação aos factos que sejam do conhecimento daquele que os relata, sendo que outro entendimento é susceptível de conduzir a que a verdade material, cuja descoberta o processo penal visa alcançar, pudesse ser alicerçada na confissão de factos não verdadeiros ou cuja veracidade o arguido não tivesse capacidade para afirmar aquilo que está para além da sua capacidade de apreensão.

Sendo assim, «os limites da capacidade cognitiva individual serão também os limites daquilo que, de forma juridicamente relevante, pode ser declarado ou deposto - e, portanto, também confessado. A contrario, tudo o que esteja para além desses limites ou constitui declaração ou depoimento irrelevante, não podendo valer mais do que uma mera opinião, ou constituiu raciocínio lógico-dedutivo que, se pertinente, o tribunal também terá de fazer e de forma autónoma».

Dito por outras palavras: só se pode confessar o que, efectivamente, é susceptível de ser confessado. O arguido pode confessar que ingeriu vários copos de bebida alcoólica, que estava convicto de que, se fiscalizado, acusaria uma taxa muito superior à legalmente permitida e que tendo feito o teste de álcool acusou uma taxa de x g/l de álcool no sangue. Mas já não parece que possa confessar que conduzia com uma certa e determinada taxa de álcool no sangue, porquanto lhe falta, para tanto, qualquer razão de ciência.

Efectivamente, a prova da concreta taxa de álcool no sangue, nos termos definidos na lei, só pode efectuar-se através de testes no ar expirado ou por meio de análise ao sangue, pelo que não se antevê prova por meio de confissão ou por depoimento.

No caso dos autos, é operante a confissão do arguido quanto ao circunstancialismo factual descrito no ponto 1. da matéria de facto provada (conduzia o veículo de matrícula …, ligeiro de passageiros, na Rotunda ..., ...).

No mais, quanto às TAS de que era portador, voltando de novo ao citado Acórdão de 26 de Novembro de 2008, ultrapassando obviamente as capacidades cognitivas do arguido, como de qualquer ser humano, a determinação da concreta TAS que detinha só é alcançável, pelo menos com o rigor exigível, através de exame realizado mediante a utilização de aparelho próprio para o efeito, de nada valendo a confissão do arguido.

Feito este intróito, estamos então em condições de apreciar a questão nuclear que o recorrente suscita, e que se interliga, simultaneamente, com matéria de facto e direito.
Na posição manifestada pelo recorrente, a taxa de alcoolemia relevante é a correspondente à taxa determinada pelo alcoolímetro (1,31 g/l) reduzida da “margem de erro máximo admissível”.
Afigura-se-nos, contudo, não existir qualquer fundamento legal para a preconizada redução da taxa de alcoolemia revelada pelo analisador quantitativo utilizado na contraprova.
É o que passaremos a demonstrar, seguindo de muito perto a exposição de motivos constante do acórdão desta Relação proferido no processo n.º 350/07.5GBPMS.C1, no qual o relator do presente interveio na qualidade de adjunto.
De acordo com o disposto no artigo 153.º, n.º 1, do Código da Estrada, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente da autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
No caso dos autos está em causa a utilização do aparelho Drager, modelo 7110 MKIIIP, n.º de série ARAN-0016 devidamente homologado e aprovado, o qual, como analisador quantitativo que é, está sujeito às operações de controlo metrológico, a realizar pelo Instituto Português da Qualidade, em conformidade com a Portaria n.º 1556/2007, de 10-12, que aprovou o novo Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros (doravante designado apenas por Regulamento).
Dispõe o art. 5.º do Regulamento:
«O controlo metrológico dos alcoolímetros é da competência do Instituto Português da Qualidade, I.P – IPQ e compreende as seguintes operações:
a) Aprovação de modelo;
b) Primeira verificação;
c) Verificação periódica;
d) Verificação extraordinária».
Por sua vez, sob a epígrafe “Erros máximos admissíveis”, estabelece o artigo 8.º do mesmo Regulamento:
«Os erros máximos admissíveis – EMA, variáveis em função do teor de álcool no ar expirado – TAE, são os constantes do quadro que figura no quadro anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante».
Nesse quadro anexo estão contidos os erros máximos admissíveis - EMA -, em função do teor do álcool no ar expirado (mg/l) - TAE -, tendo em conta cada uma das duas situações aí previstas: “aprovação de modelo/primeira verificação” e “verificação periódica/verificação extraordinária”.
Destinando-se, como se disse, o Regulamento à definição das regras a que deve obedecer o controlo metrológico dos alcoolímetros quantitativos, onde pontificam as especificidades constantes dos preceitos citados supra, afigura-se-nos evidente que os “erros máximos admissíveis” são de considerar tão só nos específicos domínios de aprovação e verificação dos alcoolímetros pelo Instituto Português da Qualidade e não na fase da sua utilização casuística pelas autoridades policiais.
Neste sentido apontam as conclusões do 2.º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia, realizado em 17 de Novembro de 2006, relativas a comunicação de Maria Céu Ferreira e António Cruz, subordinado ao tema “Controlo Metrológico de Alcoolímetros no Instituto Português de Qualidade”, de que destacamos, pela sua relevância, o seguinte excerto:
«Ou seja, um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais (...). Os EMA (erros máximos admissíveis) não são uma “margem de erro” nem devem ser interpretadas como tal. O valor da indicação do instrumento é em cada situação o mais correcto. O eventual erro de indicação, nesse momento, nessa operação, com o operador que a tiver efectuado (…) está com toda a probabilidade contido nos limites do EMA. Por essa razão os autores defendem a ideia de que a instrução de processos pelas entidades competentes deveria observar os estritos limites definidos pela lei, para as respectivas penalidades. Os condutores autuados deveriam, se assim o entendessem, recorrer às faculdades que a lei lhes faculta».
Na verdade, a qualquer resultado de medição está sempre ligada uma incerteza, uma vez que não existem instrumentos de medição absolutamente exactos. Contudo, esta incerteza de medição é avaliada no acto da Aprovação de Modelo de modo a determinar se o instrumento, durante a sua vida útil, possui características construtivas adequadas a manter as qualidades metrológicas regulamentares, nomeadamente fornecer indicações dentro dos EMA definidos no respectivo regulamento.
A operação de adição ou de subtracção dos EMA aos valores das indicações fornecidas pelos alcoolímetros quantitativos ou evidenciais submetidos a controlo metrológico carece de justificação metrológica, sendo o valor da indicação do aparelho em cada operação de medição o mais correcto. O eventual erro da indicação, nessa operação, nesse momento, com o operador que a tiver efectuado, nas circunstâncias de ambiente locais, quaisquer que tenham sido os factores de influência externos ou contaminantes do ar expirado, seja ele positivo ou negativo, está com toda a probabilidade contido nos limites dos EMA[1].
Em situações como a dos autos, em que a medição é efectuada por aparelho aprovado e sujeito às verificações exigíveis segundo um regulamento destinado a conferir todas as garantias de rigor, confiança e segurança no resultado da medição, e em que não há notícia de terem ocorrido situações anómalas determinantes de uma imprecisão do funcionamento do alcoolímetro, tais como, a título de exemplo, vibrações, choque mecânico, problemas electrostáticos ou electromagnéticos, não existe motivo fundado para que se não gere um grau de probabilidade bastante (não a certeza absoluta, de todo em todo inalcançável) sobre a fiabilidade e precisão do resultado alcançado.
Se o arguido não questionou, fundadamente, a fiabilidade técnica e funcional do analisador quantitativo (alcoolímetro), não há fundamento para concluir que o TAS indicado pelo alcoolímetro quantitativo utilizado na pesquisa de álcool no ar expirado do arguido e considerado na sentença recorrida padece de erro.
Em suma, no caso concreto dos autos, a taxa de alcoolemia a considerar é aquela que foi registada pelo aparelho utilizado e que foi considerada pelo tribunal a quo na matéria de facto dada como provada.

Deste modo, nenhuma alteração importa efectuar à matéria de facto, mantendo-se a  mesma nos precisos termos em que o tribunal a quo a definiu.


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Destituída de fundamento se apresenta também a residual alusão ao princípio processual do in dubio pro reo, já que, de todo, não se antolha da fundamentação da decisão de facto – supra transcrita – qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento do arguido, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou.

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O vício do erro notório na apreciação da prova ocorre quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente uma conclusão sobre o significado da prova contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito de factos relevantes para a decisão de direito, ou pelo menos que a prova não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto. Para que se verifique o requisito da notoriedade do vício é indispensável que o erro não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que seja por eles facilmente apreensível.
Este, como os vícios das als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.º, tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”.[2]
Ou seja: o erro notório tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão».[3]
Afirma-se no Ac. do STJ de 19/12/1990:

«Como resulta expressis verbis do art. 410.º do CPP, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento»[4]
No vertente caso, percorrendo as conclusões da motivação do recurso, o recorrente limita-se à proclamação genérica do referido vício, sem aduzir qualquer razão para a sua existência.
Todavia, tendo em conta a essência do apontado vício, é apodíctico que o mesmo não se verifica, pois os factos dados como provados são claros, precisos, encontram-se em consonância com a pormenorizada e lógica motivação da decisão de facto e não se vislumbra que o tribunal a quo tenha incorrido no alegado erro de apreciação da prova que em audiência foi produzida.

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Deste modo, é patente que o arguido incorreu na autoria material do crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, que lhe estava imputado e pelo qual foi condenado pelo tribunal de 1.ª instância.
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Insurge-se o recorrente contra a razão diária da pena de multa, preconizando a aplicação de uma taxa no mínimo legal, ou seja, € 5,00.

Nos termos do art. 47.º, do CP:

«1- A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360»;

2 – Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

(…)».

Como é sabido, a multa é uma genuína pena pública e não um mero crédito jurídico-público, tendo sido propósito do CP/82 abandonar de vez a concepção segundo a qual à pena pecuniária deve ser atribuído um papel somente marginal e subsidiário, e dar expressão prática à convicção da superioridade político-criminal da pena de multa face à pena de prisão no tratamento da pequena e da média criminalidade.

«Relativamente à pena de multa, o Decreto-Lei da revisão tornou mais vincados os dois princípios político-criminais que não podem deixar de configurar a multa enquanto sanção penal. Em primeiro lugar, o princípio de que a multa, enquanto sanção legal, não pode deixar de ter um efeito punitivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a “sentir na pele”» [5].

«Torna-se ainda mais imperiosa a necessidade de que a multa seja legalmente conformada e concretamente aplicada em termos que permitam a plena realização, em cada caso concreto, das finalidades das penas, em particular da de prevenção geral positiva, limitada pela culpa do agente. É indispensável, por outras palavras, que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir (....). Impõe-se, pelo contrário, que a aplicação da pena de multa represente, em cada caso, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada (...)».[6]

«A pena deve representar para o delinquente um sofrimento análogo ao de uma prisão correspondente, embora dentro de condições mais humanas (...). Portanto, a pena de multa deve corresponder sempre, de acordo com as condições sócio-económicas e financeiras do condenado, a uma privação que, não sendo de liberdade, ele sinta como verdadeira».[7]
Assim, na fixação da taxa diária, importa ter presente as seguintes três considerações:
Primeiro, há que ter em conta que a finalidade da fixação da quantia monetária de multa por dia visa eliminar ou esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre possuidores de diferentes meios de a solver[8].
Segundo, e como se decidiu no acórdão do S.T.J., de 2-10-1997[9], o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar. Assim, o montante pecuniário não pode ser tão elevado que possa colocar em risco a sobrevivência do arguido.
Contudo, não se pode ir tão longe que se faça perder o efeito da pena de multa que se visa fazer sentir. Isto é, a pena de multa é uma pena a que lhe estão associadas efeitos preventivos que, no que tange à prevenção geral, não podem ser olvidados, nem eliminados.
Face à moldura da taxa diária, de € 5 a € 500,00 (art. 47, n.º 2, do CP), bem como à condição económica e financeira do arguido, e tendo em conta que se deve fazer com que o efeito da pena de multa se faça sentir mas sem nunca colocar em risco a sobrevivência do arguido, considera-se adequada e proporcional a fixação do montante diário em € 7,00 (sete euros), como bem decidiu o tribunal a quo.

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III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção desta Relação de Coimbra em negar provimento recurso, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, com 3 UC´s de taxa de justiça [artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].

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Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales


[1] Cfr. António Cruz, Maria do Céu Ferreira e Andreia Furtado, A Alcoolemia e o Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, in http://www.ipq.pt/backFiles/CONTROLO-ALCOOLEMIA-080402.pdf.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339.
[3] Germano Marques da Silva, idem, pág. 340.
[4] Proc. n.º 41327 - 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Taipa de Carvalho, Conferência publicada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Vol. II, pág. 24, Edição do Centro de Estudos Judiciários.
[6] Cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993
[7] Cfr. Figueiredo Dias, in Reforma do Código Penal - Trabalhos Preparatórios, Edição da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, 1995, págs. 86/7.
[8] Assim Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 18.ª edição, Almedina, 2007, p. 208.
[9] In Colectânea de Jurisprudência, tomo 3, p. 183.