Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/21.0YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES SILVA
Descritores: SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA
PROCESSO ESPECIAL DE REVISÃO/CONFIRMAÇÃO
CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE DE 1958
FUNDAMENTOS DE RECUSA
TRÂNSITO EM JULGADO
FRAUDE À LEI
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 978.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 55.º, N.º 1, 56.º, 57.º DA LEI DE ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA, III A V DA CONVENÇÃO SOBRE O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DE SENTENÇAS ARBITRAIS ESTRANGEIRAS, CELEBRADA EM NOVA IORQUE A 10 DE JUNHO DE 1958
Sumário: I – Para efeitos de revisão e confirmação de uma sentença de arbitragem estrangeira, e em razão do disposto no art.º 978, nº 1, do CPC, importa observar o que decorre – imperativamente – da Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras.
II – Na Convenção de Nova Iorque, os fundamentos de recusa ou não reconhecimento de sentença arbitral estrangeira vêm consagrados no artigo V., fundamentos estes que são taxativos atento o que dispõe o Artigo III da CNI.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

A... LIMITED intentou processo especial de revisão de sentença arbitral estrangeira contra B..., LDA, pedindo que sejam revistas e confirmadas as decisões que identifica para que em Portugal possam vir a produzir os respetivos efeitos.

Alegou, em síntese: que é uma empresa, afiliada do grupo C... Limited, cuja atividade se centra na produção de aparelhos eletrónicos; que a requerida é uma sociedade cujo objeto se traduz no comércio, importação e exportação de medicamentos, materiais veterinários, hospitalares, cosméticos e respetivos acessórios; que em 17-02-2020, no contexto da pandemia gerada pela propagação da doença de Covid-19, celebrou com a requerida um contrato para fornecimento de máscaras faciais, modelo EN14683; que nos termos do contrato celebrado, a requerida se obrigou a proceder à entrega de 1.000.000 (um milhão) de unidades de máscaras faciais, modelo EN14683, contra o pagamento pela requerente no montante de $411,800 USD, dividido em duas prestações de $205,900USD, tendo ficado estipulada a entrega das máscaras até ao dia 20-02-2020; todavia, apesar da requerente ter efetuado o pagamento acordado, não recebeu a mercadoria em questão nem no prazo contratado, nem posteriormente, situação que se mantém até à data da entrada da presente ação; que, face ao incumprimento da requerida, em 24 de julho de 2020, a requerente deu entrada de uma ação arbitral que correu termos em Tribunal Arbitral, sito em Hong Kong, tendo sido adotadas as regras do Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong; que após as diversas tentativas frustradas de notificação da Requerida, o Tribunal Arbitral considerou a requerida como notificada, nos termos do artigo 3.1 (b) do Regulamento do Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong, tendo na sequência proferido no dia 11-02-2021, sentença arbitral, nos termos da qual, i. Reconheceu o incumprimento do contrato pela não entrega das máscaras; e, ii. Condenou a requerida a pagar à Requerente o valor de $ 411,800USD, acrescido de juros contados desde 16 de março de 2020 até integral e efetivo pagamento, à taxa prime do Hongkong and Shanghai Bank, acrescida de 1%; acresce que no dia 12 de abril de 2021 o Tribunal Arbitral proferiu decisão quanto a custas, tendo condenado a requerida a pagar à requerente o montante total de $248.530,27 HK, acrescido de juros contados desde a data da prolação da sentença até integral e efetivo pagamento; que se verificam todos os requisitos exigidos pela lei portuguesa para que as sentenças cuja revisão e confirmação ora se requer sejam confirmadas, nos termos do artigo 980.º do CPC.

A requerida deduziu oposição, alegando em síntese: que se opõe à autenticidade da decisão, já que da documentação não consta uma certidão emitida pelo Tribunal arbitral da decisão da decisão, tendo-se junto apenas cópia certificada da mesma; acresce que, na decisão no lugar de identificação da requerente, página 2, nem sequer a refere, identificando apenas uma morada; que da documentação junta, não se retira que a decisão em causa tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; que a competência, no caso, foi efetivamente provocada de forma enganadora, já que o acordado entre as partes, foi a exclusividade da competência para litígios dos tribunais portugueses; que todo o processo correu à sua revelia; que o contrato junto não se encontra assinado pela requerida, estando apenas assinadas folhas avulso; que relativamente ao contrato em questão, e ainda que se admita verdade que foi celebrado um contrato de venda de máscaras entre as partes, não foi o contrato junto que se assinou, mas outro, cujo conteúdo, condições e termos de cumprimento sempre deveria a Requerida ter oportunidade de explicar, para se apurar da efetiva responsabilidade das partes na não conclusão do negócio.

Concluiu, pedindo que a presente ação seja julgada totalmente improcedente por não provada, com as legais consequências.

A requerente respondeu, referindo em síntese que a defesa invocada pela requerida em sede de contestação deve ser julgada improcedente e as referidas decisões serem revistas e confirmadas para que em Portugal possam vir a produzir os respetivos efeitos.

Notificado para alegar, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da inexistência de qualquer obstáculo ao reconhecimento das decisões em causa.

Notificados para o mesmo efeito, a requerente e a requerida alegaram reiterando os argumentos já esgrimidos na fase dos articulados, pugnando a requerente pela revisão e confirmação das sentenças arbitrais, e a requerida pela improcedência total da presente ação por não provada.

Foi proferido Acórdão por este Tribunal com o seguinte dispositivo:

“Com fundamento no atrás exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a presente ação de revisão de sentença arbitral estrangeira, e, em consequência:
1. Recusar o reconhecimento da decisão arbitral de 11-02-2021.
2. Reconhecer a sentença arbitral de 12-04-2021, com vista a produzir os seus efeitos em Portugal.
Custas pela requerente e requerida em partes iguais.
Valor da ação: €30.000,01.”
Inconformada com este acórdão, a requerente interpôs recurso de revista.
Não houve contra-alegações.
Em 29-09-2023, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, cujo dispositivo se transcreve:
“Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder parcialmente a revista, revogar o acórdão na parte em que recusou o reconhecimento da decisão arbitral de 11.2.2021, por falta de identificação da requerida, e determinar a remessa dos autos à Relação para conhecimento das questões prejudicadas e dos demais requisitos para a confirmação de sentença arbitral estrangeira.
Custas do presente recurso a cargo da parte vencida a final.”
Cumpre apreciar e decidir.

QUESTÕES A DECIDIR:
1. Autenticidade da decisão.
2. Trânsito em julgado da decisão em causa.
3. Competência provocada em fraude à lei.
4. Se foram violados os princípios do contraditório e igualdade das partes no processo arbitral que constituem princípios integrantes da ordem pública internacional do Estado Português.

FUNDAMENTOS DE FACTO

Encontram-se provados, face ao acordo e confissão das partes nos articulados e aos documentos (docs. nºs 1, 2, 3 e 4 juntos com a petição inicial) os seguintes factos:
1. A requerente é uma empresa, afiliada do grupo C... Limited, cuja atividade consiste na produção de aparelhos eletrónicos.
2. A requerida é uma sociedade cujo objeto se traduz no comércio, importação e exportação de medicamentos, materiais veterinários, hospitalares, cosméticos e respetivos acessórios.
3. Em 17-02-2020, no contexto da pandemia gerada pela propagação da doença de Covid-19, a requerente e a requerida celebraram um contrato para fornecimento de máscaras faciais, modelo EN14683.
4.  Nos termos do contrato celebrado, a requerida obrigou-se a proceder à entrega de 1.000.000 (um milhão) de unidades de máscaras faciais, modelo EN14683, contra o pagamento pela requerente no montante de $ 411,800USD, dividido em duas prestações de $ 205,900USD.
5. Tendo ficado estipulada a entrega das máscaras até ao dia 20-02-2020.
6. Todavia, apesar da requerente ter efetuado o pagamento acordado, não recebeu a mercadoria em questão nem no prazo contratado.
7. Nem posteriormente, situação que se mantém até à data da entrada da presente ação.
8. Em 24 de julho de 2020, a requerente deu entrada de uma ação arbitral que correu termos em Tribunal Arbitral, sito em Hong Kong.
9. O Tribunal Arbitral considerou a requerida como notificada, nos termos do artigo 3.1. b) do Regulamento do Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong.
10. No dia 11-02-2021, o Tribunal Arbitral, sito em Hong Kong proferiu decisão arbitral, nos termos do qual:
i) Reconheceu o incumprimento do contrato pela não entrega das máscaras; e
ii) Condenou a requerida a pagar à requerente o valor de €411,800USD, acrescido de juros contados desde 16 de março de 2020 até integral e efetivo pagamento, à taxa prime do HongKong and Shangai Bank, acrescida de 1%.
11. Esta decisão não foi objeto de qualquer recurso.
12. Resulta de declaração emitida pelo Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong, notarialmente reconhecida:
“Certificamos que a Decisão Final com data de 11 de fevereiro de 2021 (a “Decisão Final”) e a Decisão Final sobre Custas com data de 12 de abril de 2021 (a “Decisão Final sobre Custas”) foram emitidas pelo árbitro único, a Dra. AA, na referida arbitragem.
Nos termos do Art.º 35.2 das Regras de Arbitragem Administrada pelo HKIAC de 2018, a Decisão Final e a Decisão Final sobre Custas “serão definitivas e vinculativas para as partes e qualquer pessoa que reclame por meio de ou por alguma das partes.”
13. Consta da cláusula 6.1. do doc. nº 1 junto com a p.i., cuja tradução se transcreve:

“6.1. Lei Aplicável e Resolução de Litígios. Este Contrato de Compra e Venda será redigido por e interpretado ao abrigo das leis de Hong Kong, RPC, incluindo em todas as questões de interpretação, validade e execução, sem referência aos seus conflitos de princípios legais. Cada parte acorda que qualquer litígio ou desacordo que possa surgir ao abrigo deste Contrato de Compra e Venda será encaminhado e resolvida em definitivo por arbitragem vinculativa administrada pelo Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong, nos termos das Regras de Arbitragem Administrada pelo Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong em vigor quando a Notificação de Arbitragem for apresentada em Hong Kong.”

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Ponto prévio: do enquadramento jurídico:

Os termos do reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira são regulados, no nosso direito comum, pela LAV (capítulo X), ressalvando-se, porém, expressamente, no seu art.º 55.º, n.º 1, o que é imperativamente preceituado, a esse propósito, pela Convenção de Nova Iorque de 1958.

Artigo 55º- Necessidade do reconhecimento:

“Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei.”

Artigo 56º- Os fundamentos de recusa do reconhecimento e execução:

“1 - O reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral proferida numa arbitragem localizada no estrangeiro só podem ser recusados:

a) A pedido da parte contra a qual a sentença for invocada, se essa parte fornecer ao tribunal competente ao qual é pedido o reconhecimento ou a execução a prova de que:

i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade, ou essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de indicação a este respeito, nos termos da lei do país em que a sentença foi proferida; ou

ii) A parte contra a qual a sentença é invocada não foi devidamente informada da designação de um árbitro ou do processo arbitral, ou que, por outro motivo, não lhe foi dada oportunidade de fazer valer os seus direitos; ou

iii) A sentença se pronuncia sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam os termos desta; contudo, se as disposições da sentença relativas a questões submetidas à arbitragem puderem ser dissociadas das que não tinham sido submetidas à arbitragem, podem reconhecer-se e executar-se unicamente as primeiras; ou

iv) A constituição do tribunal ou o processo arbitral não foram conformes à convenção das partes ou, na falta de tal convenção, à lei do país onde a arbitragem teve lugar;

ou

v) A sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou suspensa por um tribunal do país no qual, ou ao abrigo da lei do qual, a sentença foi proferida;

ou

b) Se o tribunal verificar que:

i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido mediante arbitragem, de acordo com o direito português; ou

ii) O reconhecimento ou a execução da sentença conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português

2 - Se um pedido de anulação ou de suspensão de uma sentença tiver sido apresentado num tribunal do país referido na subalínea v) da alínea a) do n.º 1 do presente artigo, o tribunal estadual português ao qual foi pedido o seu reconhecimento e execução pode, se o julgar apropriado, suspender a instância, podendo ainda, a requerimento da parte que pediu esse reconhecimento e execução, ordenar à outra parte que preste caução adequada.”

Artigo 57º– Trâmites do processo de reconhecimento:

“1- A parte que pretenda o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, nomeadamente para que esta venha a ser executada em Portugal, deve fornecer o original da sentença devidamente autenticado ou uma cópia devidamente certificada da mesma, bem como o original da convenção de arbitragem ou uma cópia devidamente autenticada da mesma. Se a sentença ou a convenção não estiverem redigidas em português, a parte requerente fornece uma tradução devidamente certificada nesta língua.

2- Apresentada a petição de reconhecimento, acompanhada dos documentos referidos no número anterior, é a parte contrária citada para, dentro de 15 dias, deduzir a sua oposição.

3- Findos os articulados e realizadas as diligências que o relator tenha por indispensáveis, é facultado o exame do processo, para alegações, às partes e ao Ministério Público, pelo prazo de 15 dias.

4- O julgamento faz-se segundo as regras próprias da apelação.”

No caso dos autos é aplicável a Convenção Sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque a 10 de junho de 1958[1], mais precisamente os artigos IV e V.

Artigo III

“Cada um dos Estados Contratantes reconhecerá a autoridade de uma sentença arbitral e concederá a execução da mesma nos termos das regras de processo adotadas no território em que a sentença for invocada, nas condições estabelecidas nos artigos seguintes. Para o reconhecimento ou execução das sentenças arbitrais às quais se aplica a presente Convenção, não serão aplicadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas, nem custas sensivelmente mais elevadas, do que aquelas que são aplicadas para o reconhecimento ou a execução das sentenças arbitrais nacionais.”

Artigo IV
“1- Para obter o reconhecimento e a execução referidos no artigo anterior, a Parte que quer requerer o reconhecimento e a execução deverá juntar ao seu pedido:

a) O original devidamente autenticado da sentença, ou uma cópia do mesmo, verificadas as condições exigidas para a sua autenticidade;

b) O original da convenção referida no artigo II, ou uma cópia da mesma, verificadas as condições exigidas para a sua autenticidade.

2-  No caso de a referida sentença ou convenção não estar redigida numa língua oficial do país em que for invocada a sentença, a Parte que requerer o reconhecimento e a execução da mesma terá de apresentar uma tradução dos referidos documentos nesta língua. A tradução deverá estar autenticada por um tradutor oficial ou por um agente diplomático ou consular

Artigo V
“1- O reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da Parte contra a qual for invocada, se esta Parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova:

a) Da incapacidade das Partes outorgantes da convenção referida no artigo II, nos termos da lei que lhes é aplicável, ou da invalidade da referida convenção ao abrigo da lei a que as Partes a sujeitaram ou, no caso de omissão, quanto à lei aplicável ao abrigo da lei do país em que for proferida a sentença; ou

b) De que a Parte contra a qual a sentença é invocada não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação; ou

c) De que a sentença diz respeito a um litígio que não foi objeto nem da convenção escrita nem da cláusula compromissória, ou que contém decisões que extravasam os termos da convenção escrita ou da cláusula compromissória; no entanto, se o conteúdo da sentença referente a questões submetidas à arbitragem puder ser destacado do referente a questões não submetidas à arbitragem, o primeiro poderá ser reconhecido e executado; ou

d) De que a constituição do tribunal arbitral ou o processo de arbitragem não estava em conformidade com a convenção das Partes ou, na falta de tal convenção, de que não estava em conformidade com a lei do país onde teve lugar a arbitragem; ou

e) De que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as Partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida.

2- Poderão igualmente ser recusados o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar:

a) Que, de acordo com a lei desse país, o objeto de litígio não é suscetível de ser resolvido por via arbitral; ou

b) Que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país.”

“Relativamente a este normativo é possível, à partida, definir, em sede interpretativa do mesmo, três ideias nucleares, quais sejam: - em primeiro lugar, o elenco dos fundamentos de recusa de reconhecimento é taxativo (“ só serão recusados “); em segundo lugar, os fundamentos referidos no n.º 1 têm que ser alegados e provados pela parte contra quem é oposta a sentença arbitral (“se esta Parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e execução forem pedidos a prova…”); em terceiro lugar, em sentido diverso, os fundamentos previstos no n.º 2 não carecem de ser alegados pela parte contra a qual é invocada a sentença arbitral, sendo, por isso, de conhecimento oficioso, embora este esteja, naturalmente, condicionado pela matéria de facto alegada nos autos pelas partes (ambas) e/ou pelos elementos disponíveis nos autos.”[2]

Feitas estas considerações, no caso dos autos, não existem, pois, dúvidas quanto à natureza de sentença arbitral “estrangeira “da decisão cujo reconhecimento se mostra formulado pela requerente, pois que a mesma conheceu do mérito substantivo da sua pretensão perante a aqui ré e, ademais, foi proferida em arbitragem localizada em país estrangeiro, concretamente perante o Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong.

Assentes estes pressupostos, a Convenção de Nova Iorque (CNI), como resulta do preceituado no seu artigo I, n.º 1, tem como respetivo âmbito de aplicação o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, sendo certo, que quer Portugal, quer China/Hong Kong[3] são partes outorgantes de tal Convenção.

                                                                                           *

Passa-se agora à apreciação das questões suscitadas na oposição.
1. Autenticidade da decisão

A primeira questão que a requerida suscita diz respeito à autenticidade da decisão, uma vez que em parte alguma da documentação consta uma certidão emitida pelo Tribunal arbitral da decisão, mas apenas cópia certificada da mesma.

Respondeu a requerente, dizendo em síntese que juntou cópia certificada da decisão em apreço devidamente certificada por Notário e apostiladas pela entidade competente em Hong Kong, nos termos da Convenção de Haia, pelo que tais documentos são autênticos, nos termos do artigo 35º do Código do Notariado.

O disposto no nº 1 do citado art.º 57º da LAV “tem correspondência com o artigo IV da Convenção de Nova Iorque e o artigo 35 (2), da Lei-Modelo. Tal como estes preceitos, visa a disposição em apreço facilitar o reconhecimento e a execução da sentença arbitral, reduzindo ao mínimo indispensável os requisitos formais a satisfazer pela parte que pretende obtê-los em Portugal. Esses requisitos resumem-se à apresentação do original autenticado da convenção de arbitragem e da sentença arbitral ou de cópias certificadas das mesmas, bem como de traduções certificadas desses documentos em português, caso não estejam redigidos nessa língua.”[4]

Segundo Luís Lima Pinheiro[5] “O art.º 4/1 da Convenção de Nova Iorque deve ser entendido no sentido de satisfazer a exigência de “autenticação” do original da sentença o reconhecimento simples da assinatura dos árbitros pelo notário ou autoridade equivalente do Estado de origem da decisão, ou por agente diplomático ou consular português neste Estado, ou por agente diplomático ou consular do Estado de origem em Portugal. Quanto à certificação da cópia trata-se da declaração da sua conformidade com o documento original que pode ser feita pelas mesmas autoridades e que não pressupõe a “autenticação” deste original.

À mesma luz, o original da convenção de arbitragem não tem de ser “autenticado” e por “cópia autenticada” do mesmo deve entender-se uma cópia certificada nos mesmos termos que são exigidos para a sentença arbitral.

Se houver fundadas dúvidas sobre a autenticidade do reconhecimento, a relevância do conhecimento pode ser subordinada a legalização, aplicando-se o disposto em relação à legalização dos documentos autênticos (art.º 365º/2 CC, art.º 44º/2 C. Not. e art.º 440º/2 CPC. Como Portugal é parte da Convenção da Haia relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros (1961), quando o documento tiver sido lavrado no território de outro Estado Contratante a legalização é substituída pela aposição de uma apostila pela autoridade competente do Estado de origem (arts. 2º e 3º).”

No caso presente, a requerente apresentou cópias certificadas da convenção de arbitragem e da sentença arbitral, bem como traduções certificadas desses documentos em português.

Não se verifica assim este fundamento de oposição ao reconhecimento da sentença arbitral.

2. Trânsito em julgado da decisão em causa

A segunda questão que a requerida suscita em termos de oposição ao reconhecimento refere-se à circunstância de não existir nos autos prova de que a sentença arbitral proferida tenha transitado em julgado.

Respondeu a requerida, que se encontra junto com a petição inicial como DOC. 4, que se trata de uma cópia certificada de uma comunicação emitida pelo Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong, devidamente certificada por Notário e apostilada pela entidade competente em Hong Kong, nos termos da Convenção de Haia, que atesta o seguinte:

“Certificamos que a Decisão Final com data de 11 de fevereiro de 2021 (a “Decisão Final”) e a Decisão Final sobre Custas com data de 12 de abril de 2021 (a “Decisão Final sobre Custas”) foram emitidas pelo árbitro único, a Dra. AA, na referida arbitragem.”

Vejamos:

A falta de obrigatoriedade para as partes é fundamento de recusa do reconhecimento e execução de uma sentença arbitral proferida numa arbitragem localizada no estrangeiro, conforme resulta do disposto no art.º 56º, nº 1, al. a), v) da LAV.

“Devem, em princípio, considerar-se obrigatórias para este efeito as sentenças que possam ser executadas segundo a lei daquele país. Mas não parece exigível que a sentença, a fim de ser tida como obrigatória, haja sido objeto de um exequatur no país de origem. Aquele requisito pode, além disso, considerar-se preenchido ainda que haja sido interposto recurso contra a sentença arbitral, contanto que este tenha caráter meramente devolutivo. O preceito em anotação consente, assim, uma autonomia mitigada na interpretação do conceito de obrigatoriedade da sentença relativamente à lei do país onde foi proferida.”[6]

Segundo uma outra tese, o conceito de “obrigatoriedade para as partes” previsto na CNI deve ser objeto de uma interpretação autónoma, independente da lei aplicável à sentença. Nesse sentido se pronunciou Luís de Lima Pinheiro[7] que, baseando-se nesta interpretação autónoma, defende que a decisão pode ser considerada “obrigatória” a partir do momento em que não é suscetível de recurso ordinário.[8]

Consta da factualidade dada como provada que a sentença arbitral não foi objeto de recurso, sendo certo que por princípio, é de presumir que a sentença se mostra transitada, pois que é ao oponente que cabe demonstrar o facto contrário.  É, por conseguinte, à parte requerida que incumbe provar a inexistência de trânsito em julgado segundo a lei do país em que a sentença revidenda foi proferida.[9]

Concluímos assim, que não se verifica, este fundamento invocado de recusa de reconhecimento da sentença arbitral.


3. Competência provocada em fraude da lei

Em terceiro lugar, refere a requerida que a competência do tribunal arbitral foi provocada em “fraude à lei “, pois que, foi acordado entre as partes, a exclusividade da competência para litígios dos tribunais portugueses.

Independentemente de os fundamentos de recusa do reconhecimento não serem, os que se mostram previstos no artigo 980º, do CPC, mas apenas os que decorrem do artigo V da CNI, o que, em última instância, torna o argumento irrelevante, ainda assim se dirá que a requerida não provou qualquer acordo entre as partes.

Por outro lado, como já se viu, o litígio em causa contende com uma compra e venda comercial celebrada entre uma empresa com sede em Hong Kong e uma empresa com sede em Coimbra e com o seu alegado incumprimento por parte da requerida (vendedora) ao nível do fornecimento da mercadoria acordada.

Cumpre referir que a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, se restringe às hipóteses consignadas no artigo 63º, do CPC e nenhuma das suas alíneas – a) a e) – contempla um litígio que se refira ao incumprimento de um contrato de compra e venda celebrado entre uma empresa de Hong Kong e uma empresa portuguesa.

Acresce dizer que resultou provado que consta da cláusula 6.1. do doc. nº 1 junto com a p.i., cuja tradução se transcreve:

“6.1. Lei Aplicável e Resolução de Litígios. Este Contrato de Compra e Venda será redigido por e interpretado ao abrigo das leis de Hong Kong, RPC, incluindo em todas as questões de interpretação, validade e execução, sem referência aos seus conflitos de princípios legais. Cada parte acorda que qualquer litígio ou desacordo que possa surgir ao abrigo deste Contrato de Compra e Venda será encaminhado e resolvida em definitivo por arbitragem vinculativa administrada pelo Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong, nos termos das Regras de Arbitragem Administrada pelo Centro de Arbitragem Internacional de Hong Kong em vigor quando a Notificação de Arbitragem for apresentada em Hong Kong.”

Improcede, assim, este fundamento de oposição da requerida.


4. Violação do principio do contraditório e da igualdade das partes.

A requerida invoca ainda a violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes, alegando que não foi citada para a ação, tendo o processo corrido, à sua revelia.

Respondeu a requerente que após diversas tentativas frustrações de notificação da requerida, o Tribunal Arbitral considerou a requerida como notificada, nos termos do artigo 3.1. (b) do Regulamento do Centro Internacional de Arbitragem de Hong Kong.

Para o cumprimento do contraditório e da igualdade de armas basta ser concedida às partes, em termos efetivos, a possibilidade de exercerem os seus direitos ou faculdades processuais em pé de igualdade uma com a outra.

Lê-se no art.º V, nº 1, al. b), acima transcrito, que o reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados se a parte contra a qual for invocada fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova de que não foi devidamente informada quer da designação do árbitro, quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível por qualquer outro motivo, deduzir a sua contestação.

“Não foi estipulada naquela Convenção qualquer forma específica de comunicação dos atos, o que, na realidade, importa averiguar para este efeito é se a parte contra quem a sentença é invocada foi, ou não, efetivamente colocada em posição de, querendo, poder fazer valer os seus pontos de vista perante os árbitros.”[10]

Acresce que consta do contrato de compra e venda os seguintes contatos: “Tencent, 31/F, ..., nº 33 ..., ..., ..., ...57, P. R. China, 0755-...88 ext. ...06, .....g@.....com.

Supplier: Rua ... ..., Portugal, s...med@gmail.com”, sendo que figura nesse contrato como “supplier” a requerida.”

A requerida não demonstrou, que a forma utilizada para a informar da pendência do processo de arbitragem e do árbitro não tenha obedecido às regras do procedimento arbitral acordado com a requerente para dirimir extrajudicialmente eventuais litígios sobre o contrato de compra e venda aludido, nomeadamente que foi outro o endereço eletrónico que ficou acordado para receber notificações.

Refere Luís Lima Pinheiro[11] “… a ordem pública internacional permite também controlar a observância de um padrão mínimo de justiça processual (designadamente os princípios do contraditório e da igualdade de tratamento das partes), por forma concorrente com o fundamento de recusa de reconhecimento estabelecido na al. b) do nº 1. Quer isto dizer, designadamente, que mesmo que o requerido não alegue ou prove uma violação do principio do contraditório, o tribunal pode recusar o reconhecimento se verificar que há uma violação grave deste principio com base no nº 2”.[12]

Atendendo à factualidade dada como assente e aos documentos juntos, nada nos permite concluir que houve uma violação grave do principio do contraditório (assim como do principio da igualdade).

Por fim, cumpre referir que “a litispendência e o caso julgado não são fundamento autónomo de oposição ao reconhecimento perante a Convenção de Nova Iorque”.[13]

Em conclusão, não se verifica nenhum dos fundamentos de recusa de reconhecimento da decisão arbitral que é objeto desta ação.

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar procedente por provada a presente ação de revisão de sentença estrangeira arbitral, reconhecendo-se e confirmando-se a decisão arbitral de 11-02-2021, proferida pelo Tribunal Arbitral, sito em Hong Kong para produzir os seus efeitos em Portugal.

Custas pela requerida, atendendo ao seu vencimento- artigo 527, nºs 1 e 2, do CPC.

                                                                                              Coimbra, 13 de dezembro de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

Sumário (art.º 663º, nº 7, do CPC):

(…).

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original


([1]) Ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 52/94, de 8 de julho.
Entrou em vigor para Portugal em 16 de janeiro de 1995 (Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros
nº 142/95, de 21 de junho).
([2]) Vide, neste sentido, António Sampaio Caramelo, “O Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras”, 2016,  p. 129 “63. É sobre a parte requerida que recai o ónus da prova dos fundamentos previstos no Artigo V(1), que constituem a única forma de aquela resistir ao reconhecimento e execução da sentença arbitral. Mas o tribunal estadual pode também rejeitar o pedido de reconhecimento e execução da sentença arbitral que lhe foi submetida, com base nos dois fundamentos previstos no Artigo V(2), de que conhece oficiosamente, embora, na prática, o requerido costume invocar também estes fundamentos, na sua oposição ao reconhecimento. Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado Volume III - Tomo II - Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, 2019, p. 308: “Uma parte destes fundamentos de recusa de reconhecimento e de execução depende da alegação e prova pela parte requerida (nº 1). Os restantes fundamentos (inarbitrabilidade e contrariedade à ordem pública internacional são de conhecimento oficioso”.
Cf. ainda Ac. do TRP, de 8-11-2021, proc. 20/21.1YRPRT, relator Jorge Seabra, www.dgsi.pt.
([3]) Entrou em vigor no território de Hong Kong em 21 abril de 1977 por extensão do Reino Unido e em 1 de julho por aplicação da China).
([4]) Dário Moura Vicente, Lei de Arbitragem Voluntária, 6ª edição, 2023, p. 233.
([5]) Obra citada, pp. 289-290.
([6]) Dário Moura Vicente, Lei de Arbitragem Voluntária, 6ª edição, 2023, pp. 230-231.
([7]) O Reconhecimento de Decisões Arbitrais "Estrangeiras" ao abrigo da Convenção de Nova Iorque - Perspetiva Atual”, in Estudos de direito da arbitragem, Lisboa, AAFDL, 2022, págs. 383 a 385.
([8]) No mesmo sentido Maria Cristina Pimenta Coelho, A Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 relativa ao Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras”, in Revista Jurídica, n.º 20, outubro de 1996, pág. 60.
([9]) Cf. neste sentido, o Ac. do STJ, de 21-02-2006, proc.  05B4168,  relator Oliveira Barros, www.dgsi.pt.

([10]) Cf. Ac. do STJ, de 18-05-2005, proc. 05B3766, relator Oliveira Barros, www.dgsi.pt.
([11]) Obra cit. p. 324.
([12]) Cf. neste sentido, o Ac. do STJ, de 22-06-2023, proc. 991/20.5YRLSB.S1, relator Fernando Baptista,  www.dgsi.pt.
([13]) Luís Lima Pinheiro, obra cit., p. 326.