Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1041/10.5TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMBARGO DE OBRA NOVA
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.211, 212 CRP, 66, 101, 105 CPC, 4 ETAF, LEI Nº 13/2002 DE 19/2
Sumário: 1 - Com a reforma do contencioso administrativo e com a entrada em vigor do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, deixou de relevar a qualificação dos actos (actos de gestão pública/actos de gestão privada) para a atribuição da competência, em razão da matéria, ao foro administrativo, bastando agora a existência de uma relação jurídico – administrativa.

2 - A “ E.P.- Estradas de Portugal, S.A.” é uma sociedade anónima subordinada ao regime jurídico do sector empresarial do Estado, vertido no Decreto - Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, cujo artigo 18º determina que estas empresas são equiparadas a entidades administrativas, para efeitos de competência para julgamento de litígios, designadamente referentes a actos executados e contratos celebrados no âmbito dos poderes de autoridade a que o artigo 14º alude.

3 - Nem essa sua qualidade, nem a circunstância de ser demandada conjuntamente com uma entidade de direito privado excluem a competência dos tribunais administrativos para a resolução de litígios que tenham por objecto qualquer das situações previstas no artigo 4º, nº1 do ETAF.

4 - Os tribunais administrativos são os competentes, em razão da matéria, para conhecer dos procedimentos cautelares instaurados por particulares para prevenir a lesão de direitos privados que possa ser causada pela execução de uma obra de pavimentação de uma estrada, adjudicada, no âmbito de concurso público e celebração de contrato de empreitada, pela “E.P. - Estradas de Portugal, S.A.” a uma sociedade de direito privado.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. M (…) casado, médico veterinário aposentado, contribuinte fiscal n.º ..., e mulher M J (…), reformada, contribuinte fiscal n.º ... residentes (…), vieram, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 412.º e 383.º in fine, ambos do Código de Processo Civil, requerer contra E. P. – ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A., sociedade anónima de capitais públicos, sediada na Praça da Portagem, 2809-013 Almada, e contra A (…) & FILHOS LDA., (…) sociedade comercial por quotas (…), a ratificação judicial do embargo das obras de reparação e pavimentação da Estrada Nacional nº 338.

Para tanto, alegaram: os requerentes são proprietários de um prédio urbano; a faixa frontal à sua casa é detida e administrada pela primeira requerida e por essa faixa se faz uma parte do traçado na EN 338; no uso dos poderes de administração e gestão que detém sobre a dita faixa de terreno, a 1ª requerida está a executar obras da pavimentação sobre ela e sobre o demais traçado da dita EN 338; esta obra foi dada de empreitada à segunda requerida e consiste, de entre outras coisas, na aplicação de duas camadas de pavimento betuminoso, sendo uma camada de regularização com uma espessura média de 4 cm de altura e uma camada de alcatrão de desgaste com uma espessura média com 4 cm de altura, num total de 8 cm; com a execução da obra nos sobreditos moldes, que consiste no levantamento do nível da estrada em, pelo menos, 8 cm, a primeira soleira da porta de casa dos requerentes do lado norte ficará abaixo do pavimento da plataforma da estrada e as outras duas soleiras ficam também abaixo da rasante da estrada; para além disso, a obra nova de pavimentação em curso, eliminou a valeta que existia do lado oposto à casa dos requerentes, num espaço de 6,0 metros lineares; deste modo, as águas pluviais que escorrem pelo prédio rústico inclinado em direcção à estrada, sito em frente à casa dos requerentes e que vinham desaguar a essa valeta, com a eliminação desta, passarão a ser recolhidas e conduzidas através do pavimento da estrada, pavimento este com acentuada inclinação em direcção à casa dos requerentes, até desaguarem na valeta de secção triangular que faz o encaminhamento das águas em frente e em contacto directo destas águas com a frente da fachada da casa dos requerentes, sendo que as diferenças de cotas não são suficientes para comportarem a drenagem assim aumentada das águas pluviais, sem que se verifiquem inundações e ou infiltrações para o interior da casa. Acrescentam que a obra em curso ameaça causar-lhes prejuízos pelas infiltrações que virão a provocar na sua casa e, por isso, os requerentes, no dia 17 de Agosto de 2010, procederam ao embargo extra - judicial da obra.

No âmbito da referida providência cautelar, foi proferida decisão judicial que declarou ser o Tribunal Judicial da Guarda “incompetente em razão da matéria para conhecer o presente litígio, sendo competente o Tribunal Administrativo competente em razão do território, absolvendo-se as requeridas da instância”.

2. Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os requerentes recurso de apelação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“A) Os recorrentes propuseram no tribunal Judicial da Guarda a presente providência cautelar de embargo de obra nova, onde, em suma, alegaram o direito de propriedade sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ... da freguesia de ..., concelho da ..., direito este que é lesado pela construção da obra a levar a efeito, pela requerida, que é uma pessoa colectiva de direito público E.P. - ESTRADAS DE PORTUGAL, S.A., e concluem formulando o respectivo pedido de embargo. 

B) Tanto a providência de embargo de obra nova aqui em causa como a acção principal a instaurar, têm por objecto uma questão ou relação jurídica de direito privado, devendo por isso ser reguladas pelas normas e princípios de direito privado, independentemente da demandada ser pessoa colectiva de direito público.

C) A competência do tribunal confere-se pela causa de pedir e o pedido. Nos termos do disposto no artigo 66.º do CPC “são da competência dos tribunais judiciais as causa que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e nos termos do artigo 212.º nº3 da CRP, são da competência dos Tribunais Administrativos, as acção que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

D) O direito de propriedade e a ofensa a esse mesmo direito, invocados pelos recorrentes, é uma questão de direito privado que é excluída da jurisdição administrativa por força do art. 4º n.º 1 alínea f) do ETAF.

 E) Pelo que, o Tribunal recorrido é o competente em razão da matéria para conhecer da presente providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova. Assim,

F) porque o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1.º n.º 1, e 4.° n.º 1, alíneas f) e g) do ETAF aprovado pela Lei n.º 13/2002 de Fevereiro, os artigos 66.°, 67º, 101.°, 105.º n.º 1, 234.° n.º 4 alínea b) e 234.º-A do CPC, o art. 18.° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) aprovada pela Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro, e ao art. 212.° n.º 3 da CRP, deve ser revogado e substituído por outro que ordem o prosseguimento dos autos no tribunal recorrido”. 

 Culmina as suas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da providência cautelar no Tribunal recorrido, por ser o competente em razão da matéria.

“E.P. - Estradas de Portugal, S.A” contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente a competência, em razão da matéria, do Tribunal recorrido (tribunal comum) para conhecer do procedimento cautelar instaurado pelos apelantes, ou se, pelo contrário, essa competência é reservada aos Tribunais Administrativos.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Além dos factos narrados no relatório, mostram-se relevantes para a decisão os seguintes factos:

1.  No dia 23 de Dezembro de 2009, na sequência da abertura do concurso público nº EP/245/2009 - Procedimento para a Contratação da empreitada “EN 338 - Beneficiação entre Guarda (EN 16) e Trinta -, no Gabinete de Concursos da “E.P. - Estradas de Portugal, S.A” foi deliberado adjudicar à concorrente “A (…) & Filhos, Ldª”, pelo valor base de € 436.824,42 a empreitada referente àquela obra.

2.  No seguimento dessa adjudicação, foi, com data de 1 de Julho de 2010, celebrado o contrato nº 155/2010/EMP/COCN entre “E. P. - Estradas de Portugal, S.A” e “A(…) & Filho, Ldª”, contrato de empreitada a reger-se pelas disposições do Decreto - Lei nº 17/2008, de 29 de Janeiro e pelas cláusulas do referido contrato, cuja cópia consta de fls. 136 a 139.

3. No dia 12 de Julho de 2010, no local da obra, foi assinado o auto de consignação da empreitada “EN 338 - Beneficiação entre Guarda (EN 16) e Trinta” cuja cópia consta de fls. 140, 141.

4. No dia 17 de Agosto de 2010, na Estrada Principal, nº 27, em ..., concelho e distrito da Guarda o ora apelante, através do seu advogado, constatando que a sociedade “A (…) & Filhos, Ldª”, com sede em (…), estava a efectuar obras de reparação e pavimentação da estrada frontal a um prédio urbano a ele pertencente alegadamente “em manifesta violação dos seus direitos de propriedade”, procedeu directamente ao embargo extrajudicial das mesmas obras, mandando-as suspender de imediato, notificando o encarregado da obra, (…), na presença das testemunhas (…).

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos.

De acordo com o artigo 211º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

E o artigo 66º do Código de Processo Civil determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

O carácter residual da competência dos tribunais comuns também encontra expressão no artigo 18º, nº1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro quando estabelece: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por sua vez, o artigo 212º, nº3 da Lei Fundamental delimita o campo de intervenção jurisdicional dos tribunais administrativos, os quais têm por objectivo a resolução de litígios de natureza administrativa e fiscal.

Dispõe, também no mesmo sentido, o artigo 1º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro[3] que “os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Freitas do Amaral[4] caracteriza a relação jurídico - administrativa como sendo a que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.

Vieira de Andrade[5] enquadra no mesmo conceito as relações “…em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

Por regra, à jurisdição administrativa só interessam as relações administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido.

No regime legislativo anterior à entrada em vigor[6] do actual ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro a qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, (de gestão pública ou de gestão privada) constituía o critério basilar para a delimitação do âmbito de actuação (competência) das duas ordens de jurisdição (tribunais administrativos/tribunais comuns).

O Prof. Marcello Caetano qualifica de gestão pública a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito, sendo actos de gestão privada os que surjam no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial[7].

Para o Prof. Antunes Varela[8], "actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público". E esclarece: "simplesmente, nem todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".

Como salientam os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida[9], “nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades” - quanto à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos -, “consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que (…) acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (...). Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, pois “não estabelece uma reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado (...). O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais”.

O artigo 4º do citado diploma, na redacção introduzida pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro delimita o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.

Contemplam-se nele, designadamente, os litígios que tenham por objecto “tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal” - alínea a) -, “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público” - alínea f) -, ou ainda “questões que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público…” - alínea g).

Com a entrada em vigor do novo ETAF, o acto de gestão pública, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do jus imperii por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição da competência dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público. Tal possibilidade encontra-se claramente consagrada na alínea g) do nº1 do artigo 4º do ETAF. Como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 06.07.2009[10], “deixou de relevar, para a determinação de competência, que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa, ou seja, aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração”[11].

No caso vertente, os requerentes, ora apelantes, pretenderam reagir, com o procedimento cautelar instaurado, contra actos, que consideram lesivos do seu direito de propriedade sobre um prédio urbano de que são donos, decorrentes da execução de obras de pavimentação da E.N. 338, frontal à sua habitação. Têm, pois, natureza privada os direitos que os apelantes visam proteger.

As obras em causa foram adjudicadas, no âmbito de concurso público realizado pela apelada “E.P. - Estradas de Portugal, S.A.”, à apelada “A (…) & Filhos, Ldª” e na sequência disso foi entre ambas celebrado contrato de empreitada, subordinado às disposições do Decreto - Lei nº 18/2008 e respectivo clausulado.

Os apelantes pretendem, com a providência instaurada, prevenir a lesão de direitos seus, alegadamente ameaçados pela execução do referido contrato de empreitada. A ter-se consumado a lesão desses direitos, ou vindo ainda a concretizar-se, podem os mesmos accionar os meios para obter a reparação dos danos sofridos, demandando, designadamente, as pessoas colectivas de direito público, no âmbito da responsabilidade extracontratual.

A situação em análise, considerando a pretensão dos apelantes e o quadro fáctico que lhe serve de suporte, é passível de enquadramento na previsão das alíneas a), f) e, porventura, g) do artigo 4º do ETAF.

O Decreto-Lei n° 239/2004, de 21/12 -E.P. substituiu legalmente o IEP pela E.P. -  Estradas de Portugal, que viria a ser transformada em sociedade anónima pelo Decreto - Lei nº 374/2007, de 7 de Novembro. Segundo o artigo 3º deste diploma, a esta sociedade anónima aplica-se o regime jurídico do sector empresarial do Estado, vertido no Decreto - Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, cujo artigo 18º determina que estas empresas são equiparadas a entidades administrativas, para efeitos de competência para julgamento de litígios, designadamente referentes a actos executados e contratos celebrados no âmbito dos poderes de autoridade a que o artigo 14º alude.

Deste modo, a circunstância de a “E.P. - Estradas de Portugal, SA” ser actualmente uma sociedade anónima não constitui entrave para atribuir à jurisdição administrativa competência material para a resolução do litígio em debate.

Do mesmo modo, não é o facto de ser demandada também uma sociedade de direito privado que retira essa competência aos tribunais administrativos: o artigo 10º, nº7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro permite que os particulares ou os concessionários, no quadro das relações jurídico - administrativas que estabeleceram com entidades públicas, sejam demandados conjuntamente com estes em situações de co-responsabilização[12].

São os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para a resolução da pretensão dos apelantes, não merecendo, por conseguinte, censura a decisão recorrida, que se mantém.

Síntese conclusiva:

- Com a reforma do contencioso administrativo e com a entrada em vigor do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, deixou de relevar a qualificação dos actos (actos de gestão pública/actos de gestão privada) para a atribuição da competência, em razão da matéria, ao foro administrativo, bastando agora a existência de uma relação jurídico - administrativa;

- A “ E.P.- Estradas de Portugal, S.A.” é uma sociedade anónima subordinada ao regime jurídico do sector empresarial do Estado, vertido no Decreto - Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, cujo artigo 18º determina que estas empresas são equiparadas a entidades administrativas, para efeitos de competência para julgamento de litígios, designadamente referentes a actos executados e contratos celebrados no âmbito dos poderes de autoridade a que o artigo 14º alude.

- Nem essa sua qualidade, nem a circunstância de ser demandada conjuntamente com uma entidade de direito privado excluem a competência dos tribunais administrativos para a resolução de litígios que tenham por objecto qualquer das situações previstas no artigo 4º, nº1 do ETAF.
- Os tribunais administrativos são os competentes, em razão da matéria, para conhecer dos procedimentos cautelares instaurados por particulares para prevenir a lesão de direitos privados que possa ser causada pela execução de uma obra de pavimentação de uma estrada, adjudicada, no âmbito de concurso público e celebração de contrato de empreitada, pela “E.P. - Estradas de Portugal, S.A.” a uma sociedade de direito privado.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas: pelos apelantes.


Judite Pires ( Relatora )
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do C.P.C., na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Sucessivamente alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei nº 1/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 26/2008, de 27 de Junho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto - Lei nº 166/2009, de 31 de Julho e Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
[4]Direito Administrativo”, vol. III, p. 439.
[5]A Justiça Administrativa”, Lições, 3ª ed., 2000, págs. 79.
[6] 1 de Janeiro de 2004: artigo 9º, na redacção introduzida pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro.
[7]Manual de Direito Administrativo”, tomo I, 10ª edição, pág. 431.
[8] “RLJ”, 124º, 59.
[9]Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª ed.., págs. 34, 35.
[10] Processo nº 464/08.4TBARC.P1, www.dgsi.pt.
[11] Idêntica posição é defendida pelo Acórdão do STJ, de 12.02.2007, processo nº 07B238, www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, cfr., designadamente, Acórdãos do STA, de 16.03.2004, da Relação de Coimbra, de 14.12.2004, processo nº 3633/04, do Tribunal de Conflitos, de 05.05.2010, processo 06/10, além do já citado Acórdão do STJ, de 12.02.2007, todos em www.dgsi.pt.