Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/25.1T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DECISÃO POR DESPACHO
FUNDAMENTAÇÃO DA DESNECESSIDADE DA REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA
NÃO OPOSIÇÃO DO ARGUIDO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
VIOLAÇÃO DAS LEIS DE PROCESSO
NULIDADE
IRREGULARIDADE QUE AFECTA O VALOR DO ACTO PRATICADO E DOS ACTOS SUBSEQUENTES
Data do Acordão: 11/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A INVALIDADE DO DESPACHO QUE DECIDIU A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 10, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 41.º, N.º 1, E 64.º DO D.L. Nº 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO
ARTIGOS 118.º A 123.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - O juiz apenas pode decidir a impugnação judicial por despacho se a realização da audiência de julgamento for desnecessária e se o arguido e o Ministério Público a tal não se opuserem.

II - A desnecessidade da realização de audiência pode resultar do facto de o objecto do recurso se reconduzir a mera questão de direito ou, contendendo a questão com a matéria de facto, se o tribunal concluir que o processo já fornece todos os elementos necessários para o seu conhecimento.

III - No segundo caso a desnecessidade da audiência pressupõe que o juiz realize um juízo casuístico sobre essa desnecessidade, analisando os fundamentos, quer da decisão administrativa, quer da impugnação judicial, perscrutando com particular atenção se a matéria de facto é controvertida e/ou se é bastante para a decisão de mérito, e sopesando a necessidade de cumprimento do contraditório.

IV - Este exercício analítico deve ser reflectido, ainda que de forma perfunctória, no despacho que decide da desnecessidade da audiência de julgamento, pois só desse modo o arguido e o Ministério Público ficam em condições de manifestarem a sua oposição ou adesão à decisão.

V - A possibilidade de decidir por mero despacho não é um poder discricionário, pois depende sempre a dispensabilidade da audiência, pelo que a falta de oposição [expressa ou tácita] dos sujeitos processuais a essa forma de decisão não a torna legal se, face ao objecto da impugnação judicial, se impunha a realização de audiência.

VI - Radicando a questão nuclear em apurar se a arguida actuou no convencimento de que cumpriu a obrigação legal que sobre si impendia, resulta que ela impugnou a matéria de facto que lhe estava imputada, inviabilizando a decisão por despacho judicial, por ser imprescindível averiguar tal factualidade em sede de audiência de julgamento.

VII - A tal conclusão não obsta o facto de a arguida não ter indicado outros meios de prova além da documental, pois o seu legal representante poderá ter conhecimento dos mesmos, nada impedindo que ele preste declarações

VIII - Atento o princípio da tipicidade das nulidades, a decisão da impugnação judicial por despacho, quando a realização da audiência de julgamento era necessária, constitui irregularidade que, pela sua gravidade, afecta o valor do acto praticado e de todos os subsequentes, por se repercutir no mérito da decisão final.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da 4.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

            1. - O Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) condenou a arguida … Lda. numa coima de 425 (quatrocentos e vinte e cinco) euros, acrescida de custas no valor de 25 (vinte e cinco) euros e 50 (cinquenta) cêntimos pela prática de uma contraordenação grave em resultado da violação de normas da organização do mercado vitivinícola, no caso, a entrega da declaração de existência fora do prazo legal, com fundamento nos artigos 32º do Regulamento Delegado (EU) 2018/273 da Comissão, de 11/12/2017, do artigo 23º do Regulamento de Execução (EU) 2018/274 da Comissão, de 11/12/2017, conjugado com o disposto na Portaria nº 265/84, de 26 de Abril, e punida no artigo 18º, nº 1 do Decreto-Lei nº 213/2004, de 23 de Agosto, conjugado ainda com os artigos 18º e 19º do RJCE.      

2. - Não se conformando com tal decisão administrativa, a arguida deduziu impugnação judicial, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição[1]]:

                «1.ª - Em dia, concretamente, não determinado, dos primeiros dez dias do passado mês de Setembro de 2022, a arguida … apresentou no SIVV (sistema de informação da vinha e do vinho) a declaração de existências, relativa à campanha de 2022/2023.

                2.ª - Acabada de realizar a apresentação, a arguida "…" submeteu a respetiva declaração e, no fim da mesma, foi por si vista uma mensagem, contendo a menção "declaração submetida com sucesso", a "azul", no topo superior da página da plataforma SIVV, considerando o écran do computador portátil de onde foi enviada.

                3.ª - Tendo, por isso, a arguida, na pessoa do seu sócio-gerente, …, ficado tranquila, com a consciência de ter cumprido a obrigação legal …

                4.ª - Porém, em 9 de maio de 2023, quando o sócio-gerente da arguida "…, entendeu recorrer ao sistema informático SIVV do IVV,

                5.ª - Ao tomar consciência de que a declaração de existências, referente à campanha de 2022/2023, contrariamente, à sua expectativa, não se encontrava ainda no sistema,

                6.ª - Mal se apercebe da situação, de imediato, no próprio dia 9 de Maio, procedeu à entrega de uma nova declaração de existências da campanha de 2022/2023, desta vez, contudo, com total sucesso.

                7.ª - Com efeito, não foi o IVV que detetou o incumprimento do prazo legal da declaração de existências, relativamente à campanha de 2022/2023, por parte da arguida "…", mas antes esta que se antecipou, espontaneamente, a corrigir o sucedido, no sentido de evitar o eventual desencadeamento de um processo contraordenacional, por parte do IVV, reeditando a declaração ausente.

                8.ª - A arguida não tem, nem nunca teve, quaisquer trabalhadores assalariados com contrato de trabalho, ao seu serviço, nomeadamente, a nível administrativo ou qualquer outro, sendo que os únicos trabalhadores, aliás, não remunerados, que nela desempenham atividades, nomeadamente, aos fins de semana, são os seus dois sócios-gerentes, e os pais destes.

                9.ª - A omissão verificada não causou qualquer dano, não determinou qualquer benefício económico para a arguida ou para terceiro, tendo sido pela própria detetada e suprida quando recorria ao sistema do IVV para confirmar os seus dados estatísticos.

                10.ª - A arguida "…" não agiu com negligência.

                …

                14.ª - No caso em apreço, tendo a arguida "…" apresentado, em prazo, a declaração de existências, relativa à campanha de 2022/2023, por via da plataforma SIVV, submetendo a declaração ao sistema informático da entidade destinatária do serviço, o IVV, no fim da qual foi vista uma mensagem, contendo a menção "declaração submetida com sucesso", a "azul", no topo superior da página da plataforma SIVV, considerando o écran do computador portátil de onde foi enviada, deve entender-se, razoavelmente, poder considerar-se ter o seu sócio-gerente ficado com a consciência tranquila do dever cumprido, em nome e representação da arguida.

                …

                16.ª - A decisão recorrida imputa à arguida a violação em causa, decorrente da mera inobservância do prazo fixado por lei, mas sem rebater a factualidade pela mesma invocada, no que respeita "aos problemas informáticos que obstaram à entrega atempada da declaração", e, não obstante considerar "justificada a conduta", entende que a mesma é "censurável, pois que a arguida não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz".

                17.ª - E, assim, a decisão recorrida não afronta a invocada falta do nexo de imputação subjetiva do facto à arguida, a título de negligência, quer consciente, quer inconsciente.

                18.ª - Padecendo, portanto, a decisão recorrida de falta de apuramento e consagração dos factos que, podendo e devendo ser indagados, se tornavam necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação da arguida (Acórdão do STJ, de 6-4-2000, BMJ nº 496, 169; e Acórdão do STJ, de 13-1-1999, BMJ n.º 483, 49).

                …

3. - Tal impugnação judicial deu origem ao processo n.º 9/25.1T8VLF, …, no qual, foi proferido despacho judicial nos termos previstos no artigo 64º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição]:

«Pelo exposto, o Tribunal julga procedente o presente recurso e consequentemente revoga a decisão administrativa, absolvendo a arguida da contraordenação que lhe foi imputada ….»

            4. - Não se conformando com o assim decidido, veio o Ministério Público interpor recurso, tendo, no termo da respetiva motivação, formulado as conclusões e o petitório que ora se transcrevem:

«1.º

Por decisão do Instituto da Vinha e do Vinho foi condenada a arguida … Lda. pela prática de uma contra-ordenação grave p. e p. pelos arts. 32.º do Regulamento Delegado (UE) 2018/273 da Comissão, de 11 de Dezembro de 2017 e 23.º do Regulamento de Execução (UE) 2018/274 da Comissão, de 11 de Dezembro de 2017, conjugado com o disposto na Portaria n.º265(84 de 26 de abril e artigo 18.º n.º1 do DL 213/2004 de 23 de Agosto, com as alterações efectuadas pelo DL 9/2021de 29 de janeiro, na coima de €450,00, imputada a título de negligência

2.º

Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial.

3.º

Por despacho de 06.02.2025, proferido pela Mmo. Juiz do Juízo de Competência Genérica de V. N. de Foz Côa, foi julgado procedente o recurso e consequentemente revogada a decisão administrativa, absolvendo a arguida da contraordenação que lhe foi imputada, uma vez que, no entender do Tribunal “a decisão administrativa não contém todos os factos que permitiriam imputar à arguida uma atuação negligente”.

6.º

Ora, o artigo 379.º n.º1 a) do CPP comina com a nulidade a sentença que não contiver as menções do n.º2 do artigo 374.º do CPP, vicio que aqui expressamente se argui e que deverá conduzir à reformulação da decisão proferida.

7.º

Por outro lado, a decisão da Autoridade Administrativa contém todos os elementos de facto e de direito, conforme estipula, aliás, o art. 58.º do RGCO, fazendo uma clara alusão à atuação negligente da sociedade … Lda, quando refere: a mesma é censurável, pois o arguido não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz; conclui-se, assim, que o arguido ao actuar da forma descrita, fê-lo a título de negligência, sem prejuízo da devida relevância para a medida da sanção.

8.º

Efetivamente, a decisão da Autoridade Administrativa explicita perfeitamente os factos em que se baseia, mormente, ao nível da conduta subjectiva, dos elementos do tipo subjectivo em causa – veja-se o que ali (decisão administrativa) é referido que «conclui-se, assim, que o arguido ao actuar da forma descrita, fê-lo a título de negligência, sem prejuízo da devida relevância para a medida da sanção; O arguido como operador comercial, comercializando produtos vínicos, tem obrigação de conhecer e cumprir com a legislação do sector em vigor, o que não aconteceu.”

9.º

A decisão administrativa ora em causa não padece de qualquer vício ou nulidade que lhe possa ser de assacar, conforme concluiu o Tribunal a quo, porquanto da mesma resulta suficientemente descrita a factualidade integradora dos fundamentos de facto e de direito do ilícito contra-ordenacional em causa, designadamente os elementos do tipo subjetivo.

10.º

A decisão condenatória da autoridade administrativa, Instituto do Vinho e da Vinha encontra-se fundamentada de acordo com o disposto no art. 58.º, n.º 1 do R.G.C.O. (Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro), não estando incompleta a descrição factual ao nível do tipo de ilícito subjectivo ou omissa de molde a não permitir à arguida compreender a razão da sua condenação administrativa e compreender o seu objecto e exercer todos os seus direitos de defesa.

11.º

Porém, mesmo que assim não fosse (ou seja, que a decisão administrativa não contém todos os factos atinentes ao elemento subjectivo) nunca seria de exigir o mesmo rigor formal que se exige para uma sentença judicial, pelo que a decisão administrativa, também por esta via, não padeceria de qualquer vicio.

12.º

É que o elemento subjectivo mostra-se susceptível de direta apreensão, retirando-se a forma/motivação como o agente atuou dos factos objectivos.

13.º

Efetivamente, a culpa, nas contra-ordenações, portanto, no ilícito de mera ordenação social, baseia-se na violação de um certo comportamento imposto ao agente, bastando-se, por isso, com a imputação do respectivo facto ao agente, o qual se encontra perfeitamente descrito.

14.º

À fundamentação da decisão administrativa não se exige o mesmo rigor formal nem a precisão descritiva que se impõe numa sentença judicial.

22.º

Conforme se infere da sentença recorrida, o tribunal a quo considerou na Motivação dos factos que ” a arguida não impugnou os factos. O conteúdo da decisão resulta da sua simples leitura”.

23.º

Com efeito, se a arguida não impugnou os factos, o tribunal a quo deveria ter julgado o recurso improcedente, porque aquela não impugnou os fundamentos vertidos na decisão administrativa, valendo os factos considerados provados pelo tribunal na sentença proferida, o que inquina a sentença do vicio da contradição entre a fundamentação e a decisão ( artigo 410.º n.º2 b) do CPP).

5. - A arguida apresentou resposta ao recurso, …

6. - Na vista a que se refere o artigo 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, aderindo à motivação do recurso, emitiu parecer …

          

7. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo havido pronúncia sobre o predito parecer.

         

8. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. - Delimitação do objeto do recurso

            …[2], …[3][4].

[5].

            2. - No caso vertente, tendo em conta as conclusões formuladas pelo Ministério Público, ora recorrente, as questões a apreciar – que não se confundem com os argumentos que são invocados em apoio das mesmas – são as seguintes:

                2.1 - Nulidade da decisão por falta de fundamentação;

            2.2 - Vício de contradição entre a fundamentação e a decisão e vício de erro notório na apreciação da prova;

            2.3. - Preenchimento do elemento subjetivo da contraordenação imputada.

            2. – Decisão recorrida

            A decisão judicial alvo de recurso tem o seguinte teor [transcrição]:


«Despacho

I

Relatório


 

   Nos presentes autos veio a arguida …, Lda. (melhor identificada nos presentes autos) impugnar a decisão administrativa da entidade Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) que a condenou numa coima de 425 (quatrocentos e vinte e cinco) euros, acrescida de custas no valor de 25 (vinte e cinco) euros e 50 (cinquenta) cêntimos pela prática de uma contraordenação grave em resultado da violação de normas da organização do mercado vitivinícula, no caso, a entrega da declaração de existência fora do prazo legal, com fundamento nos artigos 32º do Regulamento Delegado (EU) 2018/273 da Comissão, de 11/12/2017, do artigo 23º do Regulamento de Execução (EU) 2018/274 da Comissão, de 11/12/2017, conjugado com o disposto na Portaria nº 265/84, de 26 de Abril, e punida no artigo 18º, nº 1 do Decreto-Lei nº 213/2004, de 23 de Agosto, conjugado ainda com os artigos 18º e 19º do RJCE.      


***

Objeto do recurso  

   Em suma, no recurso apresentado, a arguida alega:

(i) A omissão dos factos que permitiriam a imputação subjetiva da conduta ilícita a título de negligência, pedindo a sua absolvição.


***

   O Ministério Público apresentou os presentes autos, valendo o ato como acusação, e não se opondo à prolação de decisão por simples despacho.

   O recurso foi admitido pelo Tribunal, e não tendo o arguido manifestado oposição à prolação da decisão por simples despacho, o Tribunal profere a seguinte decisão:


***

      O Tribunal é absolutamente competente.     

   Após o despacho de recebimento do recurso não ocorreram nulidades processuais ou questões prévias de que cumpra conhecer. Mantém-se, portanto, a validade e regularidade da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.

   O Ministério Público tem legitimidade para este recurso contraordenacional.


II

Dos Factos


   Factos dados como provados

1. A arguida não entregou a Declaração de Existência (DE) relativa à campanha de 2022/2023 até ao dia 10 de Setembro de 2022.

2. A arguida apresentou a referida Declaração com o nº ...33 no Sistema de Informação da Vinha e do Vinho (SIVV) no dia 9/5/2023, pelas 12 horas e 32 minutos.

3. Da decisão final proferida pela entidade administrativa consta o seguinte:

   «O arguido apresentou defesa alegando problemas informáticos que obstaram à entrega atempada da declaração. Apesar de justificar a sua conduta, a mesma é censurável, pois a arguida não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz; conclui-se, assim, que a arguida, ao atuar da forma descrita, fê-lo a título de negligência, sem prejuízo da devida relevância para a medida da sanção.»

Factos dados como não provados


***

      Não foram dados como não provados quaisquer factos com relevância para a decisão da causa.  

Motivação dos factos:

   A arguida não impugnou os factos. O conteúdo da decisão resulta da sua simples leitura.


III

Do Direito



IV

Das custas


 

   (…)

V

Decisão

    Pelo exposto, o Tribunal julga procedente o presente recurso e consequentemente revoga a decisão administrativa, absolvendo a arguida da contraordenação que lhe foi imputada (p. e p. pelos artigos 32º do Regulamento Delegado (EU) 2018/273 da Comissão, de 11/12/2017, do artigo 23º do Regulamento de Execução (EU) 2018/274 da Comissão, de 11/12/2017, conjugado com o disposto na Portaria nº 265/84, de 26 de Abril, e punida no artigo 18º, nº 1 do Decreto-Lei nº 213/2004, de 23 de Agosto, conjugado ainda com os artigos 18º e 19º do RJCE.      

(…)».



            3. – Apreciação do recurso

           

            3.1 - Nulidade da decisão por falta de fundamentação

Começa o Ministério Público, ora recorrente, por alegar o seguinte:

«Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do CPP, aplicável ex vi pelo artigo 41.º do RGCO, ao relatório da sentença segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O tribunal a quo proferiu uma decisão de mérito, contudo não fez o exame crítico das provas. Ora, o artigo 379.º n.º 1 a) do CPP comina com a nulidade a sentença que não contiver as menções do n.º2 do artigo 374.º do CPP, vicio que aqui expressamente se argui e que deverá conduzir à reformulação da decisão proferida» [cfr. conclusões 4.ª, 5.ª e 6.ª].

Vejamos.

Estatui o artigo 64º do RGC, sob a epígrafe “Decisão por despacho judicial”:

“1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.

3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.

4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.

5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.”

Existem, pois, duas vias e formas de decisão – mediante sentença, após realização de audiência de julgamento, e por simples despacho.

Porém, o juiz apenas poderá decidir por despacho se se verificarem, em concreto, ambas as circunstâncias previstas no n.º 2 do enunciado preceito legal: uma de cariz material, que se prende com a (des)necessidade de efetivação de audiência de julgamento e outra, de cariz processual, atinente à posição assumida pelos sujeitos processuais [arguido e Ministério Público] de a tal não se oporem.

A doutrina e a jurisprudência são convergentes no sentido de que tais requisitos são cumulativos.

Assim, refere António Beça Pereira[6]: «Da conjugação coordenada copulativa “e” utilizada neste n.º 2, resulta, claramente, que estamos perante dois requisitos cumulativos, a saber: 1.º O juiz considera desnecessária a realização da audiência de julgamento; 2.º O arguido e o Ministério Público não se opõem à decisão do recurso por despacho».

Por seu turno, Paulo Pinto de Albuquerque[7] defende que «[p]ara a decisão por despacho são necessárias três condições cumulativas: (1) o juiz considerar desnecessária a audiência de julgamento; (2) o arguido não se opor à decisão por despacho, nem requerer produção de prova e (3) o MP não se opor à decisão por despacho. Faltando uma das condições, o juiz tem de marcar audiência de julgamento …».

Na jurisprudência, podem ver-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.02.2025 [processo n.º 190/24.7T8CBT.G1], de 21.02.2022 [processo n.º 223/20.6T8AMR.G1] e de 11.09.2017 [processo n.º 5527/16.0T8BRG.G1] e do Tribunal da Relação de Évora de 12.09.2018 [processo n.º 1738/17.9T8TMR.E1], de 08.05.2018 [processo n.º 3085/17.7T8LLE.E1] e de 07.01.2016 [processo n.º 47/15.2T8CCH.E1][8].

No que tange ao primeiro dos enunciados requisitos, pressupõe que seja efetuado pelo julgador um juízo casuístico sobre a desnecessidade de efetivação de audiência, o que, como é óbvio, se revela de difícil objetivação em face da ausência de critérios indicados pela lei e da multiplicidade de variáveis a equacionar.

A este respeito, observa António Leones Dantas[9]: «(…) a opção entre o conhecimento por despacho, ou em audiência, exige uma análise cuidadosa das alegações apresentadas pelo recorrente, sobretudo nos casos em que o recurso tenha por objecto matéria de facto, em ordem a ponderar se há necessidade ou não de realização da audiência».

Também António Beça Pereira acentua o papel da matéria de facto na equação:

«O recurso pode ser decidido por despacho nos termos do nº 2 quando o seu objeto consistir, unicamente, numa questão de direito, sendo, justamente por esse motivo, desnecessária a produção de qualquer prova. Para que isso aconteça, é preciso que seja possível considerar-se assentes os factos que são relevantes para se determinar a responsabilidade contra-ordenacional do arguido. E tais factos podem ter-se por assentes quando, sendo eles imputados ao arguido pela autoridade administrativa na sua decisão condenatória, aquele os aceitar como verdadeiros no recurso que, entretanto, interpôs. Isso não implica que o arguido tenha que admitir todos os factos de que é acusado; basta que aceite aqueles que forem tidos por suficientes para se apurar se lhe pode ser, efetivamente, imputada a contra-ordenação por que foi condenado pela autoridade administrativa e em que medida por ela deve responder.

É o que ocorre, designadamente, quando o arguido, não questionando um único facto dos que constam na decisão da autoridade administrativa, sustenta que essa mesma realidade não se traduz no cometimento de qualquer ilícito. Ou quando, sem alegar outros factos, se limita a pôr em causa a medida da coima ou a considerar que não há lugar à sanção acessória que lhe foi aplicada. Ou também quando defende que, face aos factos que foram considerados provados, se deve concluir que atuou somente com negligência e não com dolo, como foi condenado. Ou ainda quando, perante o quadro descrito na decisão condenatória, afirma que a infração não se chegou a consumar, pois, se está na presença de uma tentativa.»[10]

            Existem, porém, outras situações, para além de o objeto do recurso se reconduzir a mera questão de direito, que podem justificar a prolação de decisão por despacho judicial, nomeadamente, quando se perfila a verificação de alguma exceção, dilatória ou perentória, ou, mesmo que a questão suscitada no recurso contenda com a matéria de facto, o tribunal entenda que o processo fornece todos os elementos necessários para o seu conhecimento, v.g., por a questão em apreço depender de prova documental, que já consta dos autos ou que o juiz, entretanto, no uso do poder que lhe é conferido pelo artigo 72º, n.º 2, do RGC, solicitou para a eles ser junta (obviamente, notificando previamente os sujeitos processuais para lhes conceder a possibilidade de pronúncia sobre os novos elementos probatórios).[11]

            Com efeito, importa ter presentes as especificidades da decisão judicial a proferir na sequência de impugnação judicial [também designada de recurso na expressão normativa (cfr. artigos 59º a 63º, 65º, 71º do RGC)] da decisão administrativa, socorrendo-nos, para tanto, do que a esse propósito, profusamente se discorreu no acórdão para fixação de jurisprudência n.º 3/2019[12], de que se transcreve o seguinte excerto:

            «3.2. A decisão da qual se recorre para a Relação, prolatada em 1.ª instância, constitui a primeira decisão judicial, decorrente de uma impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

                Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda a questão em discussão — “o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa”[6].

                O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um controlo da legalidade do ato, mas procede a uma apreciação de todo o ato administrativo, uma “apreciação da veracidade e exactidão dos factos (e da sua qualificação)”, e também uma apreciação da medida da coima aplicada, considerando‑se que o Tribunal tem “poderes de jurisdição plena”[7]. Isto é, “são admissíveis, na fase judicial do processo contraordenacional, todos os tipos de pronúncia que incidem sobre o mérito da causa, designadamente a manutenção da decisão administrativa, a sua revogação in totum, por via da absolvição, e a sua modificação, quer da qualificação jurídica quer da sanção”[8]. Não se trata, pois, de um mero controlo da legalidade, mas de um pleno poder de conhecimento do mérito da questão, de uma plena jurisdição à semelhança do que ocorre atualmente nos tribunais administrativos[9].

                Daqui decorre que a impugnação da decisão da autoridade administrativa não é um verdadeiro recurso. A causa é retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal. E o tribunal irá decidir do mérito da causa como se fosse a primeira vez — o julgador não estará vinculado, nem limitado pelas questões abordadas na decisão impugnada, nem estará limitado pelas questões que tenham sido suscitadas aquando da impugnação, estando apenas limitado pelo objeto do processo definido pela decisão administrativa. Esta sofre uma transformação — o Ministério Público recebe da autoridade administrativa os autos, e remete-os ao juiz “valendo este ato como acusação” (art. 62.º, n.º 1, do RGCO)[10]. Aquela decisão administrativa passa a constituir uma “decisão-acusação”, e aquela fase administrativa “transforma-se” em fase instrutória.

                Porém, a transformação aparente da decisão da autoridade administrativa numa acusação apenas serve para demonstrar que, a partir da análise dos autos enviados pela entidade administrativa ao MP, este considerou que destes resultam indícios suficientes de se ter verificado a contraordenação e de quem foi que a praticou. E, não deixa de ser uma decisão, que se mantém, se o arguido decidir retirar a impugnação judicial (ou nas palavras da lei “recurso de impugnação” — art. 59.º, n.º 2, do RGCO) até à sentença em 1.ª instância ou até ao despacho referido (cf. art. 71.º, n.º 1, do RGCO), pese embora necessite do acordo do MP, quando esta desistência ocorra depois de ter início a audiência de discussão e julgamento. Mas já uma decisão que deixa de produzir os seus efeitos caso o MP, com o acordo do arguido, retire a acusação até à sentença em 1.ª instância (cf. art. 65.º-A, do RGCO) ou até ao despacho previsto no art. 64.º do RGCO.

                Ou seja, a decisão da autoridade administrativa, havendo impugnação judicial, vale como acusação pelo Ministério Público[11], mas o seguimento do processo judicial depende ainda da vontade do arguido e/ou do MP, com a concordância de um ou outro respetivamente.

                Decidindo o tribunal de 1.ª instância o mérito da causa como se fosse a primeira vez, os seus poderes de cognição são plenos, abarcando as questões de facto e de direito, e com possibilidade de determinação do âmbito de prova a produzir (cf. art. 72.º, n.º 2, do RGCO). Não se limita a analisar a prova trazida pela Administração[12] e eventualmente a proceder a uma renovação para assim evitar o reenvio do processo para a autoridade administrativa, valorando ainda a prova que o impugnante, eventualmente, tenha indicado. O que nos permite afastar o entendimento desta fase de processo como uma fase de recurso. Além de que, o Ministério Público pode “promover a prova de todos os factos que considera relevantes para a decisão” (art. 72.º, n.º 1, do RGCO).

                Assim sendo, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa tem um âmbito alargado a toda a situação sob escrutínio. Não pode, pois, ser classificada como recurso, uma vez que o tribunal de 1.ª instância tem poderes de cognição alargados ao conhecimento do mérito da questão, podendo conhecer de todas as questões que pudesse conhecer[13].

                O Tribunal decidirá ex novo com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus[14], consagrado no art. 72.º-A, do RGCO[15]  — isto é, ainda que em 1.ª instância o Tribunal qualifique, por exemplo, a infração praticada como sendo uma contraordenação mais grave do que a considerada na decisão da autoridade administrativa, não poderá, apesar de uma nova qualificação jurídica, agravar a coima aplicada (proibição extensível aos não recorrentes —“não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”, art. 72.º-A, do RGCO).

                (…)

                De tudo podemos concluir que a fase judicial não constitui uma reapreciação da questão, mas uma primeira apreciação judicial da questão contraordenacional sem limite dos poderes de cognição do juiz[20], que abarcam todo o objeto do processo. A impugnação judicial não constitui  “um recurso em sentido próprio, mas de uma fase judicial do processo de contra-ordenação em que o tribunal julga do objecto de uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e de decisão final”[21].

                A consideração desta fase judicial como uma fase do processo judicial contraordenacional, afastando qualquer entendimento desta impugnação judicial como um recurso da decisão da autoridade administrativa, irá necessariamente influenciar o entendimento da fase seguinte — a fase de recurso para a Relação da decisão judicial de 1.ª instância.»

            Por conseguinte, para aferir da (des)necessidade da realização da audiência, o tribunal deve analisar os fundamentos, quer da decisão administrativa, que equivale à acusação, quer da impugnação judicial, sempre tendo em perspetiva o amplo âmbito de cognição que lhe é acometido.

            Nesse enquadramento, deve perscrutar com particular atenção se a matéria de facto é controvertida e/ou se é bastante para a decisão de mérito que se lhe impõe proferir e se é necessária a realização da audiência para produção de prova, independentemente da indicação dos sujeitos processuais, atenta a faculdade prevista no n.º 2 do artigo 72º do RGC.

            Outrossim, deve sopesar a necessidade de cumprimento do contraditório, uma vez que o artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa estabelece que “[n]os processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, direito de defesa este que inclui o direito de exercer o contraditório de modo efetivo.

            E, efetuado esse exercício analítico, deve o mesmo ser refletido, ainda que de forma perfuntória, no despacho mediante o qual o tribunal afirme que não considera necessária a audiência de julgamento, pois só desse modo o arguido e o Ministério Público estarão em condições de manifestarem se se opõem à decisão por despacho ou, caso o tenham feito antecipadamente, alterarem a sua posição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64º, n.º 2, do RGC.

            Efetivamente, só o cumprimento do dever geral de fundamentação das decisões judiciais – de variável densidade consoante se trate de sentença ou de despacho e, neste último caso, da função reguladora da tramitação ou decisória, ainda que interlocutória – permite a sindicância da assertividade daquelas.

            Volvendo ao caso vertente, o tribunal a quo entendeu que não era necessária a audiência de julgamento e, não tendo o Ministério Público manifestado oposição à decisão por simples despacho, ordenou a notificação da arguida para se pronunciar, nos moldes que constam do despacho datado de 16.01.2025 [com a referência Citius 31948192] que se transcreve na parte que ora releva:

            «Considerando-se desnecessária a realização da audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do artigo 64º, nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, não tendo o Ministério Público manifestado oposição à decisão por simples despacho, notifique a arguida para, no prazo de 10 (dez) dias, informar o Tribunal se se opõe à prolação da decisão por simples despacho.»

            Compulsados os autos, constata-se que, efetivamente, o Ministério Público havia declarado, aquando da apresentação em juízo do processado remetido pela autoridade administrativa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 62º, n.º 2, do RGC, que não se opunha à eventual decisão por mero despacho, e que a arguida, devidamente notificada, nada veio opor.

            Independentemente da questão de o silêncio da arguida poder, ou não, ser interpretado como manifestação tácita de não oposição – sobretudo tendo em conta que não foi feita tal cominação –, que se mostra controvertida na doutrina e na jurisprudência, mas que ora não se mostra pertinente, constata-se que o sobredito despacho não explica os motivos pelos quais o tribunal a quo considerou desnecessária a audiência de julgamento, nomeadamente, se entendia que a(s) questão(ões) a decidir era(m) meramente de direito, ou se, embora fossem de facto, os autos forneciam os elementos indispensáveis para a sua decisão.

            Ora, analisada a decisão administrativa e a impugnação judicial da mesma, constata-se que a questão essencial a dirimir se prende com a factualidade atinente ao elemento subjetivo da contraordenação que se mostra controvertida.

            Vejamos mais detalhadamente:

Notificada para o exercício do direito de defesa, a arguida apresentou defesa, na qual, em apertada síntese, alegou que em dia não concretamente determinado dos primeiros dez dias do mês de setembro de 2022, apresentou no SIVV (Sistema de Informação da Vinha e do Vinho) a declaração de existências relativa à campanha de 2022/2023, submeteu-a e, no fim, viu uma mensagem a menção “declaração submetida com sucesso”, a azul, no topo superior da página da dita plataforma, tendo, por isso, ficado com a consciência de ter cumprido a obrigação legal decorrente do estipulado pelos artigos 58º do Regime jurídico das Contraordenações Económicas e 4º do DL n.º 213/2004, de 23 de agosto; mais tarde, em 09 de maio de 2023, no circunstancialismo que descreve, foi pesquisar dados de que necessitava no sistema SIVV do IVV e apercebeu-se que a declaração de existências referente à campanha de 2022/2023 não se encontrava no sistema e, nessa mesma data, procedeu à entrega de uma nova declaração; deste modo, não lhe sendo o nexo de imputação subjetiva do facto atribuível, a título de dolo ou negligência, o resultado verificado, embora ilícito não é contraordenacionalmente punível, não se verificando a contraordenação que lhe é imputada.

Na decisão administrativa expendeu-se, além do mais que por ora não releva, o seguinte:

«(…)

O arguido apresentou defesa, alegando problemas informáticos que obstaram à entrega atempada da declaração.

Apesar de justificar a sua conduta a mesma é censurável, pois o arguido não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz; conclui-se, assim, que o arguido ao actuar da forma descrita, fê-lo a título de negligência, sem prejuízo da devida relevância para a medida da sanção.

Quanto à infração em apreço, conforme supra exposto, a arguida encontrava-se legalmente obrigada a proceder à entrega da Declaração de Existências (DE), relativa à campanha de 2022/2023, até ao dia 10 de Setembro de 2022, … Porém, o arguido apresentou a referida Declaração com o n.º ...33, no Sistema de Informação da Vinha e do Vinho (SIVV), no dia 09.05.2023, pelas 12h32, ou seja, fora do prazo legalmente fixado.

Tal facto fica de forma evidente e inequivocamente provado, através da análise da referida Declaração, que consta no SIVV e que o arguido tem acesso, na referida plataforma.

O arguido como operador comercial, comercializando produtos vínicos, tem obrigação de conhecer e cumprir com a legislação do sector em vigor, o que não aconteceu.

Assim, o arguido viola, através da abstenção da prática do acto supra descrito, dentro do respetivo prazo, as Normas da Organização do Mercado Vitivinícola.

Porém, não foram presentes nos autos provas que levem a induzir o dolo (noção prevista no 14.º do Código Penal) da parte do arguido, mas apenas actos praticados a título de negligência ( omissão de um dever de cuidado ou diligência), punível pelo artigo 4.º n.º 3 do Decreto Lei n.º 213/2004 de 23 de agosto, atenuando-se desta forma a moldura contraordenacional para metade do limite máximo e mínimo da coima aplicável, de acordo com o artigo 8.º n.º2 do RJCE.»

            A arguida deduziu impugnação judicial, que rematou com as seguintes conclusões:

            «1.ª - Em dia, concretamente, não determinado, dos primeiros dez dias do passado mês de Setembro de 2022, a arguida "…" apresentou no SIVV (sistema de informação da vinha e do vinho) a declaração de existências, relativa à campanha de 2022/2023.

                2.ª - Acabada de realizar a apresentação, a arguida "…" submeteu a respetiva declaração e, no fim da mesma, foi por si vista uma mensagem, contendo a menção "declaração submetida com sucesso", …

                3.ª - Tendo, por isso, a arguida, na pessoa do seu sócio-gerente, …, ficado tranquila, com a consciência de ter cumprido a obrigação legal decorrente do estipulado pelos artigos 58º, do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, e 4º, do DL nº 213/2004, de 23 de Agosto.

                4.ª - Porém, em 9 de maio de 2023, quando o sócio-gerente …, entendeu recorrer ao sistema informático SIVV do IVV,

                5.ª - Ao tomar consciência de que a declaração de existências, referente à campanha de 2022/2023, contrariamente, à sua expectativa, não se encontrava ainda no sistema,

                6.ª - Mal se apercebe da situação, de imediato, no próprio dia 9 de Maio, procedeu à entrega de uma nova declaração de existências da campanha de 2022/2023, desta vez, contudo, com total sucesso.

                …

               

            Na decisão recorrida exarou-se, entre o mais, o seguinte:

            «Factos dados como provados

4. A arguida não entregou a Declaração de Existência (DE) relativa à campanha de 2022/2023 até ao dia 10 de Setembro de 2022.

5. A arguida apresentou a referida Declaração com o nº ...33 no Sistema de Informação da Vinha e do Vinho (SIVV) no dia 9/5/2023, pelas 12 horas e 32 minutos.

6. Da decisão final proferida pela entidade administrativa consta o seguinte:

   «O arguido apresentou defesa alegando problemas informáticos que obstaram à entrega atempada da declaração. Apesar de justificar a sua conduta, a mesma é censurável, pois a arguida não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz; conclui-se, assim, que a arguida, ao atuar da forma descrita, fê-lo a título de negligência, sem prejuízo da devida relevância para a medida da sanção.»

Factos dados como não provados


***

      Não foram dados como não provados quaisquer factos com relevância para a decisão da causa.  

Motivação dos factos:

A conduta objetiva foi imputada e descrita – trata-se de uma omissão de entrega atempada da declaração em causa. Porém, apenas se faz uma referência muito vaga à justificação da arguida sobre os problemas informáticos que teve e que, no entender da mesma, levaram ao atraso na entrega da referida declaração. Ora, diz-se na decisão – “apesar de justificar a sua conduta, a mesma é censurável.” A decisão administrativa dá, assim, um salto que não poderia dar sem explicar concretamente quais as circunstâncias ou factos concretamente alegados pela arguida para a não entrega atempada da declaração e a razão pela qual tais circunstâncias não afastam um juízo de negligência sobre a arguida. Se, por exemplo, a arguida não conseguiu entregar a declaração atempadamente (que é submetida eletronicamente) devido a falha do sistema informático relativamente ao qual é alheia, tal circunstância não permitirá concluir que a arguida atuou de forma negligente. Ou seja, as concretas circunstâncias ou alegadas falhas informáticas deveriam ter sido indicadas na decisão administrativa por forma a que se compreendesse por que razão essas mesmas falhas não foram tidas em conta e a entidade administrativa condenou a arguida por atuação negligente. A atuação negligente só é punida nos casos especialmente previstos na lei (artigo 8º, nº 1 do RGCC).

   O direito contraordenacional é um direito da culpa e não um direito que permita a responsabilização objetiva, pelo que se mostra essencial que se provem os factos relativos à culpa dos arguidos. (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5/5/2015). 

   Ora, a decisão administrativa limitou-se a formular um juízo pelo qual imputou à arguida uma atuação negligente, mas não indicou os motivos nem os factos que permitem concluir que a arguida, naquela ocasião, poderia ter atuado de forma diferente, para evitar os alegados constrangimentos informáticos e proceder à entrega da declaração em causa.

   Assim sendo, considera o Tribunal que a decisão administrativa não contém todos os factos que permitiriam imputar à arguida uma atuação negligente.

   Com efeito, deverá o Tribunal revogar a decisão administrativa e absolver a arguida da prática da contraordenação imputada a título de negligência.»

            Como sobressai do cotejo dos excertos das assinaladas peças processuais, a questão nuclear a decidir radica na matéria de facto – apurar se a arguida atuou pela forma por si alegada e se, em face das concretas circunstâncias que descreve, é de concluir que agiu sem o cuidado que lhe era exigível e de que era capaz –, de que dependerá a conclusão de direito sobre a integração, ou não, da sua conduta na figura da negligência, cuja caraterização teórica é naquelas peças efetuada de forma globalmente convergente e assertiva.

            Aliás, como ressuma dos extratos da decisão recorrida por nós sublinhados, o tribunal a quo está ciente da divergência da arguida relativamente ao decidido pela autoridade administrativa quanto a essa concreta questão factual e da essencialidade da averiguação do circunstancialismo em que aquela atuou para se concluir pela atuação negligente.

Daí que não se compreenda que, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, tenha o tribunal afirmado que «a arguida não impugnou os factos». Toda a argumentação da arguida é no sentido de admitir que estava ciente da obrigação legal que sobre si impendia de apresentar a declaração de existências referente à campanha de 2022/23 dentro do prazo previsto para o efeito, alegando, porém, que procedeu de forma a cumprir atempadamente tal obrigação, ficando convencida que o fez, pelas razões que explanou, vindo a constatar mais tarde que, por motivos [informáticos] alheios à sua vontade, tal declaração não ficou registada no sistema informático do SIVV, razão pela qual a submeteu novamente.

Aliás, a afirmação de que a arguida não impugnou os factos, além de não corresponder à verdade, é contraditória com a fundamentação aduzida para a decisão, conforme invocado pelo recorrente Ministério Público, sendo uma das questões a decidir supra elencadas, mas que não cumpre apreciar neste momento.

O que ora ressalta à vista é que constituindo o fundamento essencial da impugnação judicial da decisão administrativa a discordância da arguida quanto à factualidade relevante (des)considerada pela autoridade administrativa para aferir da sua atuação negligente, não podia o tribunal a quo ter decidido, como decidiu, por despacho judicial, sem realização de audiência, pois esta era imprescindível para averiguar tal factualidade.

A tal conclusão não obsta o facto de a arguida não ter indicado outros meios de prova, além da documental que juntou, pois, atentos os concretos contornos dos factos que alegou, apenas o seu legal representante, que neles interveio, terá conhecimento dos mesmos, não havendo, muito provavelmente, testemunhas que os tenham presenciado.

Não obstante, nada impede que o legal representante da arguida preste declarações, mediante as quais, em contexto de contraditório, explicite a versão dos factos subjacente à impugnação judicial por aquela deduzida, sendo tais declarações valoradas pelo tribunal – que beneficia de importantes fatores para aquilatar da credibilidade decorrentes da imediação e da oralidade – de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, conforme princípio orientador consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do preceituado no artigo 41º, n.º 1, do RGC.

Assim não se procedendo está-se a preterir o direito da arguida de fazer prova da sua tese recursória, de alcançar as finalidades da impugnação judicial, enfim, de efetivar o seu direito de defesa. Relembre-se que, apesar de a decisão recorrida lhe ser favorável, dela foi interposto o presente recurso pelo Ministério Público, visando a reversão daquela decisão.

Aqui chegados, forçoso é concluir que, ao invés do consignado pelo tribunal a quo no despacho datado de 16.01.2025 [com a referência Citius 31948192], não estavam reunidas, in casu, as condições necessárias para ter decidido a causa por simples despacho, já que a audiência de julgamento não era desnecessária.

Note-se que a possibilidade que o tribunal tem de decidir por mero despacho não é um poder discricionário, dependente somente do seu próprio e não sindicável juízo, pressupondo sempre a dispensabilidade da audiência, pelo que a falta de oposição [expressa ou tácita] dos sujeitos processuais a essa forma de decisão, não torna legal, sem mais, a decisão por despacho, quando, face ao objeto da impugnação judicial, se impunha a realização de audiência para produção de prova e cumprimento do princípio do contraditório[13].

Foram, assim, violadas as normas dos artigos 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa e 64º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações.

Atento o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades, a violação ou infração das leis de processo só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei e nos casos em que tal não sucede o ato ilegal é irregular, seguindo a nulidade e a irregularidade regimes diferenciados, conforme estatuído nos artigos 118º a 123º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do disposto no art.º 41.º, n.º 1, do RGC.

Não sendo a situação em apreço legalmente cominada de nulidade, estamos perante irregularidade, nos termos previstos nos artigos 118º, n.º 2, e 123º.

Porém, atenta a gravidade da irregularidade detetada, afetando o valor do ato praticado e todos os atos processuais subsequentes, por se repercutir no mérito da decisão final, impõe-se que se lance mão da faculdade prevista no n.º 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, ordenando-se, oficiosamente, a sua reparação[14].

Ante o exposto, declara-se inválido o referido despacho datado de 16.01.2025 [com a referência Citius 31948192] e os atos processuais posteriores, incluindo a decisão alvo do presente recurso, e determina-se a devolução do processo ao tribunal a quo para, em substituição daquele, proferir despacho que designe data para realização da audiência de julgamento e proceder à normal tramitação daí decorrente.

Como decorrência inelutável do ora apreciado oficiosamente e decidido, mostra-se, obviamente, prejudicado o conhecimento da questão da nulidade da decisão bem como das demais questões supra enunciadas, suscitadas pelo recorrente Ministério Público.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar inválido o despacho datado de 16.01.2025 [com a referência Citius 31948192] e os atos processuais posteriores, incluindo a decisão alvo do presente recurso, e determinar a devolução do processo ao tribunal a quo para, em substituição daquele, proferir despacho que designe data para realização da audiência de julgamento e proceder à normal tramitação daí decorrente.


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            Sem tributação.

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            Notifique.

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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*
Coimbra, 05 de novembro de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Helena Lamas

 [1.ª Adjunta]

Maria José Matos

 [2.ª Adjunta]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 05.04.2022, e deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14.05.2013, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[3] Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de Henrique Gaspar e outros, pág. 1359
[4] Cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005, Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[5] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[6] In Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 12.ª Edição, Almedina, pág. 197.
[7] In Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, 2ª edição, pág. 325.
[8] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, tal como os demais doravante citados sem expressa menção de fonte de consulta.
[9] In Direito Processual das Contraordenações, pág. 235.
[10] Obra citada, pág. 196
[11] Neste, vide Manuel Simas Santos/Jorge Lopes de Sousa [“Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral”, 2001, Vislis, anot. 5 ao art. 64º, p. 359], Manuel Ferreira Antunes [“Contra-Ordenações e Coimas, Regime Geral”, 2ª Edição, Petrony, anot. 4 ao art. 64º, p. 409] Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, UCE, anotações 3 e 4 ao art. 64º, p. 266.] e Sérgio Passos [“Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral”, Almedina, anot. 3 ao art. 64º, pp. 433-434] e o citado acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 21.02.2022
[12] Publicado no Diário da República, I.ª Série, de 02.07.2019
[13] Cfr., neste sentido, o citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.02.2022
[14] Em sentido idêntico se decidiu no citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.02.2025