Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
157/22.0GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CONTEÚDO DA ACUSAÇÃO
DESCRIÇÃO DO DOLO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 14.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALÍNEA B), E 311.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – O dolo consiste no conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade (consciência da ilicitude): o elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objetivo, sejam descritivos sejam normativos; o elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo, assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.

II – Deve constar da acusação a narração dos factos integradores da concreta situação, isto é, a intenção de realizar o facto, tratando-se de dolo direto, ou a previsão do resultado como consequência necessária da conduta, no caso de dolo necessário, ou ainda a previsão do resultado e a conformação com a sua verificação, no caso de dolo eventual.

III – Embora a prática dos tribunais venha sedimentando a utilização de expressões padronizadas para caracterizar o elemento subjetivo do tipo, não há qualquer obrigação de vinculação a fórmulas padrão

Decisão Texto Integral:
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            …, foi proferido, em 26/5/2023, o seguinte Despacho:

            “O assistente … deduziu acusação particular contra a arguida …, imputando-lhe a prática em autoria material e sob a forma consumada de um crime de injúrias p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, acompanhada parcialmente pelo Ministério Público, …

Numa análise mais impressiva do teor da referida acusação particular constata-se que dela não consta os factos relativos à descrição da voluntariedade e da imputação a título doloso, sendo que tais elementos constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena, na noção contida no artigo 1º, alínea a) do Código de Processo Penal.

No caso em concreto, tal desiderato processual é ainda mais premente, dado tratar-se de um tipo legal de crime de natureza dolosa, ou seja, apenas a conduta dolosa é punida e não, já, a negligente, cfr. art 13º do Código Penal, donde o elemento subjetivo, no que à situação interessa, apenas se pode traduzir no dolo.

Ora, não se encontrando descritos na acusação particular os factos integradores do dolo – como é o caso – a arguida desconhecendo, por um lado, o nexo de imputação dos factos, e, por outro, a modalidade do dolo, que o acusador tem por subjacente, vê-se impedida de exercer de forma cabal, o seu direito de defesa constitucionalmente consagrado.

Sem a descrição dos factos, não existe objeto idóneo à atividade do Tribunal e da mesma forma, fica o arguido impossibilitado de se defender.

O assistente não cuidou de à ação, típica e ilícita, descrever os elementos integradores da vontade e da imputação a título doloso.

Ou seja, a acusação particular não contém a narração dos factos integradores do elemento do dolo, o que a torna manifestamente infundada, sendo que já não é possível a sua retificação ou aperfeiçoamento.

Por outro lado, a falta de narração dessa factualidade leva ainda a que se considere, em consequência, que os factos vertidos na acusação não constituem crime.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 311º, nºs 1, 2, al. a) e 3 al. b) e d) do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação particular deduzida ….”

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2. …, o Assistente, em 30/6/2023, veio recorrer da mesma, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

           

3ª  Está, vitreamente, inteligível e expresso na Acusação Particular, nela constando que:

a) A arguida sabia que a sua conduta lhe estava vedada por lei e era penalmente punida, correspondente, pois, ao elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo;

b) A arguida agiu de forma livre (o que significa que pôde determinar a sua ação, com desimpedido arbítrio, assim, afastando as causas de exclusão da culpa), consciente, (ou seja, sendo imputável, que sabe o que faz, tem a razão ou a consciência sobre uma coisa) e voluntária, isto é, com intenção vincada de ofender a honra e consideração do denunciante (ou seja, quis o facto criminoso) aqui se contendo o elemento volitivo ou emocional do dolo, …

4ª Na Acusação Particular, está tudo dito, quanto aos elementos factuais estruturantes do dolo, …

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3. O recurso, em 5/7/2023, foi admitido.

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  4. O Ministério Público, em 24/7/2023, veio responder ao recurso, …

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            5. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 17/10/2023, emitiu douto parecer

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B - Cumpre apreciar:

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            A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se a acusação particular deve ser recebida.

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O artigo 311.º, n.º 2, a), do CPP, admite a rejeição da acusação, pública ou particular, quando, não tendo havido instrução, ela seja manifestamente infundada, o que acontece, nos termos das quatro alíneas do n.º 3 do mesmo artigo, quando:

a) a acusação não contenha a identificação do arguido;

b) a acusação não contenha a narração dos factos;

c) a acusação não indicar as normas legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) os factos descritos na acusação não constituírem crime.

No despacho recorrido, foi entendido no essencial, que a acusação particular não contém a narração dos factos integradores do elemento do dolo, o que a torna manifestamente infundada, sendo acrescentado que já não é possível a sua retificação ou aperfeiçoamento e, ainda, que a falta de narração dessa factualidade leva a que se considere, em consequência, que os factos vertidos na acusação não constituem crime, razão pela qual foi decidido, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3, al. b) e d), do CPP,  rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente … contra a arguida …, por ser manifestamente infundada.

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A acusação particular junta aos autos, em 2/3/2023, a fls. 249 a 251, naquilo que para agora é relevante, tem o seguinte teor:

           

11º

            A arguida procedeu livre e conscientemente, com intenção vincada de ofender a honra e consideração do Assistente, não obstante, sabendo que a Lei proscrevia a sua descrita e irascível conduta.

                                                                       12º

            Destarte, cometeu a arguida, em autoria material, e na forma consumada, um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal.”

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            Aqui chegados, e antes de chegarmos à apreciação em concreto da questão suscitada no presente recurso, convém referir que o Ministério Público, …, acompanhou a acusação particular deduzida pelo assistente, a partir do articulado 7.º até ao final.

            Acontece que o Ministério Público, na resposta ao recurso, …, defendeu que o recurso não merece provimento, divergindo do anteriormente expresso nos autos.

            Avancemos.

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            As duas orientações assumidas pelo Ministério Público na 1ª instância não podem deixar de significar que a questão ora em causa é controvertida.

            Vejamos.

Como decorre do artigo 283.º, n.º 3, b) do CPP, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, sendo certo que os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido são os que preenchem o tipo, objetivo e subjetivo, do crime que na acusação lhe é imputado. O tipo objetivo define o objeto da ação ou da omissão e o tipo subjetivo define a relação particular do agente com essa ação ou omissão.

O autor do facto só pode ser culpabilizado se a conduta praticada lhe puder ser imputada a título de dolo ou de negligência, de acordo com o disposto no artigo 13.º, do Código Penal.

No caso em apreço, está em causa a prática de um crime doloso.

O dolo, legalmente definido no artigo 14.º, do Código Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude. O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objetivo, sejam descritivos sejam normativos. O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.

Por conseguinte, a acusação deve descrever, pela narração dos respetivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.

Não existindo um padrão único para a descrição destes elementos subjetivos, destes factos interiores da vida do agente do crime, eles são normalmente traduzidos, como se pode ler no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014 (DR-IA, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), como «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».

Mais, uma vez que o dolo pode assumir, em cada caso, uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, deve constar da acusação a narração dos factos integradores da concreta situação isto é, a intenção de realizar o facto, tratando-se de dolo direto, ou a previsão do resultado como consequência necessária da conduta, no caso de dolo necessário, ou ainda a previsão do resultado e a conformação com a sua verificação, no caso de dolo eventual.

Assim sendo, na ausência de todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada.

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Revertendo ao caso em apreço, devemos ter presente que a prática dos tribunais vem sedimentando a utilização de algumas expressões padronizadas para caracterizar o elemento subjetivo do tipo.

Porém, não há qualquer obrigação de vinculação a fórmulas padrão para exprimir esse elemento, designadamente, quanto a crimes cuja existência persiste ao longo dos tempos, como é o caso do que está agora em causa, não sendo desconhecida a sua ilicitude pelo normal cidadão – ver, neste sentido, o recente Acórdão do TRP, Processo n.º 82/22.4GCVFR-A.P1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria do Rosário Martins, in www.dgsi.pt.

Vejamos, então, se o texto da acusação particular rejeitada confirma os fundamentos invocados para a sua rejeição ou se, pelo contrário, a sua interpretação revela aquilo cuja falta foi apontada.

            Assim, é apontada à acusação particular a falta de narração dos factos integradores do elemento do dolo. 

            Enfatize-se que a acusação tem que descrever os elementos constitutivos do dolo. Segundo o texto do Acórdão Uniformizador de 20-11-2014, “(…) tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).”

            Tal significa que os elementos subjetivos do crime acabam por ser descritos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

            Do artigo 11.º da acusação particular consta o seguinte:

            “A arguida procedeu livre e conscientemente, com intenção vincada de ofender a honra e consideração do Assistente, não obstante, sabendo que a Lei proscrevia a sua descrita e irascível conduta.”

            Salvo o devido respeito, resulta inequívoco do acabado de transcrever que a arguida sabia que estava a imputar factos e nomes ao assistente, com o propósito de o injuriar e humilhar.

Na verdade, ainda que não seguindo a forma usual da acusação, está alegada a voluntariedade da imputação enquanto elemento subjetivo do dolo, apontando, sem margem para dúvidas, para um dolo direto.

Note-se que está alegado que a arguida agiu livre e conscientemente, e, ainda, com intenção vincada de ofender a honra e consideração, o que só pode significar que a sua conduta surgiu imbuída de dolo direto.

            Além disso, também está alegado que a arguida sabia que a lei proscrevia a conduta da arguida, o que traduz a consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

            Assim sendo, não se vislumbra que haja qualquer razão para que a acusação particular seja rejeitada, uma vez que dela consta um mínimo de imputação fáctica que dá resposta às exigências de descrição do elemento subjetivo, consentindo a verificação de todos os elementos necessários a uma eventual condenação.

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C - Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido, devendo o tribunal recorrido substituí-lo por outro que receba a acusação particular.

Sem custas.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e3, do CPP)

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                                                  Coimbra, 13 de dezembro de 2023

                                                              José Eduardo Martins

                                                               Ana Carolina Cardoso   

                                         Isabel Valongo