Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
472/09.8TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
JANELAS
FRESTAS
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1360, 1362, 1363 CC
Sumário: 1.- Quando o proprietário constrói uma parede no limite do seu prédio e deixa aberturas nela, estas aberturas só poderão ser qualificadas de janelas se permitirem que um utilizador comum possa apoiar-se e debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre a superfície que lhe corresponda, se este não existir, e com tal acção possa devassar o prédio vizinho.

2.- Se a possibilidade desta devassa não existir, a abertura não pode ser qualificada como janela.

3.- Com a abertura de frestas, seteiras ou óculos, o proprietário não usurpa, com tal acto e com a manutenção de tal situação, qualquer direito inerente ao prédio vizinho, pois o proprietário usa apenas de uma faculdade que a lei lhe reconhece e daí que não se justifique a tutela de um qualquer direito de servidão sobre o prédio do vizinho.

4.- As aberturas existentes na parede exterior do prédio dos Autores, desde 1968/1969, com 19 cm de largura por 92 cm de altura não podem ser qualificadas de janelas.

5.- Face ao disposto no n.º 1 do artigo 1363.º, do Código Civil, os Réus, seus vizinhos, podem erguer uma parede no seu prédio mesmo que ela tape estas aberturas.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrentes….MP (…), residente em (…) Penalva do Castelo

Recorridos….MJ (…), viúva residente (…) Penalva do Castelo.

……………… JD (…), residente em Cahorc, França.

…………………DD (…)  e esposa MD (…) , residente em Cahorc, França.


*

I. Relatório.

a) Os Autores demandaram os Réus através da presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, com o fim de obterem a condenação destes a (1) reconhecerem os Autores como únicos proprietários do prédio identificado no artigo primeiro da petição inicial; (2) a reconhecerem que o prédio dos Autores beneficia de uma servidão de vistas que onera o prédio dos Réus; (3) a respeitarem a propriedade e o direito de servidão de vistas dos Autores, abstendo-se de, por qualquer meio, o perturbarem; (4) a demolirem, a expensas suas, no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão, a parede e telhado/cobertura que construíram junto da extrema norte do prédio dos Autores, deixando um intervalo entre edificações não inferior a um metro e meio.

Como fundamento para estes pedidos, alegaram a sucessão hereditária e a aquisição originária do prédio em questão, bem como a construção neste prédio, em 1968-1969 de um edifício destinada a habitação, o qual, na sua face norte, que é a face que confronta com o prédio dos Autores, possuiu, desde a construção, uns vãos em forma de janela nas varandas do 1.º e do 2.º andar e uma janela em cada parede das cozinhas do 1.º e 2.º andar, abertas a um metro e meio de altura, a contar do chão de cada uma das cozinhas, com 19,5 cm de largura e 91 cm de altura. Os Autores, desde a construção, sempre olharam através delas para o prédio dos Réus e para a linha do horizonte até aonde a sua vista alcança, assim como sempre abriram estas janelas sem qualquer oposição por parte dos Réus, seus antecessores ou de qualquer pessoa, pelo que adquiriram, por usucapião, o direito de servidão de vistas sobre o prédio dos Réus.

Referem ainda que no verão de 2009 os Réus levantaram um edifício no seu prédio e encostaram a parede sul desse edifício à face norte da parede do prédio dos Autores, tapando os indicados vãos e janelas e daí o pedido de demolição da parede edificada pelos Réus, na medida necessária ao gozo da aludida servidão.

No final foi proferida sentença que reconheceu o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio que alegaram ser seu, mas absolveu os Réus dos restantes pedidos.

b) O Autores conformaram-se com a improcedência da acção no que concerne aos vãos das varandas. Porém, não aceitam a improcedência do pedido relativamente à constituição da servidão de vistas resultante das aberturas existentes na parede do seu prédio, por entenderem que devem ser consideradas janelas e, em todo o caso, mesmo que não recebam essa qualificação, sempre se teria constituído uma servidão de ar e de luz sobre o prédio dos Réus.

Recorreram nesta parte e concluíram assim:

«I - ... II - Os Autores/recorrentes entendem que as aberturas feitas nas cozinhas do seu prédio, referidas em 15) e até 18) e 22) e até 27) da matéria de facto considerada provada e constante da dita sentença, devem ser qualificadas como janelas, e, consequentemente, estar o prédio dos Réus onerado com uma servidão de vistas relativamente a tais janelas.

III - Deve entender-se que o conceito de janela é obtido pela negativa, ou seja, será janela toda a abertura que não possa qualificar-se como fresta, seteira ou óculo, isto é, numa formulação abrangente, janela é toda a abertura que tenha por destinação objectiva e função normal, para além de fornecer luz e assegurar a entrada de ar, a de facultar vistas permitindo vislumbrar através dela, tenha ou não vidraça,

IV - Pelo que, quanto às concretas aberturas (janelas) existentes nas cozinhas descritas, deveria o pedido formulado pelos Autores ter sido julgado procedente, com as devidas consequências.

V - Por outro lado, diz o tribunal a quo que as aberturas em questão devem ser  qualificadas de “frestas irregulares” e que as mesmas não conduzem à constituição de uma servidão de vistas por usucapião.

VI - Ora, deve entender-se que, mesmo considerando estas aberturas como frestas irregulares, como fez o tribunal a quo, ainda que as mesmas não possam importar constituição de servidão de vistas por usucapião, podem sempre conduzir à constituição de uma servidão de ar e luz, por usucapião, uma vez que, nos termos do artigo 1544º do CC, a servidão pode ter por objecto quaisquer utilidades.

VII- Se o dono da abertura adquire por usucapião o direito de a manter e de a usar para efeitos de avistar o prédio vizinho, de arejamento e de entrada de luz, então também “não pode deixar de se lhe reconhecer o direito de impedir que o vizinho a vede” ou tape, tanto mais que, “tratando-se de uma servidão, ela fica sujeita ao disposto no artigo 1568º, o qual não permite ao proprietário do prédio serviente estorvar o seu uso”.

VIII - Se o dono da abertura irregular adquire, através da usucapião, o direito de assim a manter, então também não se pode negar-lhe o direito de exigir do dono do prédio vizinho que observe o limite legal de 1,50m previsto no citado artigo, pois que, ao invés, ou seja, permitir que o proprietário do prédio vizinho pudesse erguer obra a menos de 1,50m em relação às “aberturas irregulares”, isso seria tolher o exercício dos direitos inerentes àquela servidão atípica de vistas, ar e luz constituída por usucapião.

IX - Tudo isto implica que os Réus não podem impedir ou dificultar o exercício da servidão atípica (de ar e luz) constituída a favor do prédio dos Autores, ou seja, não podem prejudicar a função que os Autores sempre deram às ditas “frestas irregulares, pois que os Autores adquiriram o direito de manter as mesmas em condições irregulares, e essas condições irregulares implicam necessariamente que se mantenham abertas e não possam ser tapadas, pois de contrário o significado do direito à sua manutenção em condições irregulares deixaria de fazer qualquer sentido.

X - Concluindo: no caso concreto, ainda que se considere que as aberturas em causa não são janelas, mas ao invés frestas irregulares, deve-se entender que se encontra constituída, por usucapião, a favor do prédio dos Autores, onerando o prédio vizinho dos Réus, não uma servidão de vistas, nos termos em que esta se mostra prevista no artigo 1362º do CC, mas antes uma servidão atípica de entrada de ar e de luz (recorde-se que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dos factos que é feita pelas partes), com a decorrência das consequência referidas supra, ou seja, não podendo os Réus construir a menos de um metro e meio daquelas frestas irregulares, pois que aos mesmos estão impedidos de impossibilitar ou estorvar o exercício dessa servidão (artigo 1568º do CC), pelo que, sempre por aqui também, devem os Réus ser condenados a demolir a construção que fizeram nos demais termos peticionados na petição inicial.

XI - Com a decisão que proferiu, violou o tribunal a quo as disposições conjugadas dos artigos 1360º, 1362º, 1363º, 1544º e 1568º, todos dos Código Civil.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento …».

c) Os Réus contra-alegaram concluindo pela improcedência do recurso, referindo, em síntese, que as mencionadas aberturas não podem ser qualificadas como janelas, não se tendo constituído, por isso, qualquer servidão de vistas impeditiva dos Réus encostarem a parede do seu prédio a essa parede do prédio dos Autores.

Por outro lado, a alusão à constituição de uma servidão de ar e luz constitui matéria nova nunca antes ventilada no processo, mas, mesmo nesta hipótese, a acção teria de improceder, na medida em que tal servidão também não tem a virtualidade de impedir a construção de uma parede no prédio dos Réus que tape essa abertura.

II. Objecto do recurso.

São duas as questões que se colocam neste recurso:

Em primeiro lugar, cumpre verificar se as aberturas existentes na parede norte do prédio dos Autores, que é a parte que confronta com os Réus, devem ser qualificadas como janelas e se deram lugar a uma servidão de vistas impeditiva dos Réus construírem uma parede a tapá-las.

Em segundo lugar, se a resposta anterior for negativa, cumpre verificar se, não podendo tais aberturas ser consideradas janelas, mesmo assim terão dado lugar à constituição de uma servidão de ar e luz sobre o prédio dos Réus, também impeditiva da construção da mencionada parede.

Verificando-se, previamente, se esta perspectiva poderá ser considerada, por se tratar de matéria nova.

III. Fundamentação.

A – Matéria de facto provada.

1) Os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, composto por uma casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, destinada a habitação, sita em (...) , (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo 762, a confrontar de nascente com os próprios Autores, norte com os Réus, poente com a rua pública e sul com herdeiros de (...) e outros, não descrita na Conservatória do Registo Predial de (...) [alínea A dos factos assentes].

2) Tal prédio foi edificado pela autora viúva (MJ (…)) e seu falecido marido (…) nos anos de 1968 e 1969, em prédio previamente adquirido para o efeito [alínea B dos factos assentes].

3) Em 15 de Junho de 1980 faleceu JD (…), marido da autora MJ (…) e pai dos Autores JD (…)  e DD (…) [alínea C dos factos assentes].

4) Na medida em que os ditos filhos eram menores, correu termos neste tribunal pela 1.ª secção, o inventário obrigatório 16/1980 [alínea D dos factos assentes].

5) No âmbito do dito inventário, o alegado prédio urbano veio a caber aos Autores na proporção de 6/8 para a viúva MJ (...) e 1/8 para cada um dos filhos JD (…) e DD (…)  [alínea E dos factos assentes].

6) O prédio dos Réus é hoje composto por uma casa de habitação em construção no prédio urbano, sito em (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número 1856, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1914, localizado na Rua Principal, 10, (...) , (...) , a confrontar de norte com a rua pública, sul com os Autores, poente com a rua pública e nascente com (…) [alínea F dos factos assentes].

7) Tal prédio resultou da anexação dos prédios urbanos descritos na dita Conservatória sob os números 1230 e 1648 [alínea G dos factos assentes].

8) Antes da demolição, no Verão de 2009, por banda dos Réus, dos antigos prédios urbanos ali existentes naquilo que lhes pertence, existia um pátio na parte que confrontava a sul com o prédio dos Autores [alínea H dos factos assentes].

9) Entre esse pátio e o prédio dos Autores não existia qualquer parede divisória [alínea I dos factos assentes].

10) Ou seja o pátio tinha como limite a parede norte da casa dos Autores [alínea J dos factos assentes].

11) No Verão de 2009 os Réus decidiram demolir um antigo casario existente no seu prédio [alínea K dos factos assentes].

12) E ali erguer uma nova casa destinada a habitação [alínea L dos factos assentes].

13) O que estão a fazer já desde as últimas semanas (a petição inicial deu entrada em 10-09-2009) [alínea M dos factos assentes].

14) Fizeram saber aos Autores que no limite sul do seu prédio e imediatamente junto à parede norte da casa dos Autores irão construir uma parede em toda a largura e altura da casa dos Autores [alínea N dos factos assentes].

15) Aquando da construção da casa referida no artigo 1.º, foi construída, em cada parede da cozinha do 1.º andar e do 2.º andar, uma abertura, exactamente na parte que confronta com o prédio identificado no artigo 6.º [Resposta aos artigos 1.º e 19.º da base instrutória].

16) As aberturas referidas no artigo anterior têm e foram construídas com as seguintes medidas: no lado interior, à face da parede, 30 cm de largura e 92cm de altura, do lado exterior 19 cm de largura e 92 cm de altura e as aberturas do primeiro e segundo andar foram construídas respectivamente a 1,48m e 1,43m de altura, a contar do chão da cozinha [Resposta aos artigos 2.º e 22.º da base instrutória].

17) As aberturas referidas nos dois artigos anteriores são destinadas apenas à entrada de luz e ar [Resposta aos artigos 20.º e 21.º da base instrutória].

18) Nas aberturas referidas na resposta aos artigos 15.º e 16.º, na parede interior da cozinha, existe um caixilho em madeira, com um «janelo», que abre para o interior da cozinha, com dois vidros «martelados», que também serve para fechar aquelas aberturas [Resposta ao artigo 23.º da base instrutória].

19) Aquando da construção da casa referida no artigo 1.º, no primeiro e segundo andar, foi edificada uma varanda, servidas, do lado norte, na parte que confronta com o prédio referido no artigo 6.º, de uma parede ou muro, com um vão ou abertura entre essa parede ou muro e a estrutura da varanda do segundo andar e a cobertura da varanda do segundo andar, respectivamente [Resposta ao artigo 3.º da base instrutória].

20) As paredes ou muros e os vãos ou aberturas referidas no artigo anterior têm e foram construídas com as seguintes dimensões: no primeiro andar a parede ou muro tem 1,52m de altura, 1,55m de largura e 14 cm de espessura e o vão ou abertura tem 1,30m de altura e 1,52m de largura; no segundo andar a parede ou muro tem 1,59m de altura, 1,88m de largura, 14cm de espessura e o vão ou abertura tem 1,24m de altura do lado poente e 1m de altura do lado nascente [Resposta ao artigo 4.º da base instrutória].

21) Desde a data da construção do prédio referido no artigo 1.º até à data em que os Réus levantaram a parede sul do prédio referido no artigo 6.º, os Autores e, anteriormente, também o falecido J (…) tinham possibilidade de, através dos vãos ou aberturas existentes nas varandas referidas nos artigos 19.º e 20.º, olhar para o prédio dos Réus [Resposta aos artigo 5.º e 6.º da base instrutória].

22) Quando lhes apetece, os Autores têm abertos os «janelos» referidos no artigo 18.º, por forma a que as cozinhas apanhem ar e luz exteriores [Resposta aos artigos 7.º e 8.º da base instrutória].

23) O que nunca teve quaisquer intervalos de tempo [Resposta ao artigo 9.º da base instrutória].

24) Sempre foi assumida em exclusivo pelos Autores e antepossuidores [Resposta ao artigo 10.º da base instrutória].

25) Já dura há 40 anos [Resposta ao artigo 11.º da base instrutória].

26) Na ignorância de lesarem direitos de outrem [Resposta ao artigo 12.º da base instrutória].

27) E nunca os Réus ou os antigos proprietários do prédio que hoje lhes pertence se opuseram a tal prática, com o esclarecimento de que os factos mencionados nos artigos 23.º a 27.º referem-se às aberturas existentes nas cozinhas [Resposta ao artigo 13.º da base instrutória].

28) A parede norte a que se refere o artigo 10.º é aquela em que os Autores têm as aberturas existentes na cozinha e vãos ou aberturas nas varandas referidos nos artigos 16.º, 19.º e 20.º [Resposta ao artigo 14.º da base instrutória].

29) Em resultado dos Réus terem levantado a parede sul do prédio referido nos artigos 6.º e 12.º encostada à parede norte do prédio referido no artigo 1.º, taparam as aberturas existentes na cozinha e varandas referidas nos artigos 16.º, 19.º e 20.º, não permitindo quaisquer vistas por tais aberturas [Resposta aos artigos 15.º e 17.º da base instrutória].

30) Na casa referida no artigo 12.º os Réus colocaram uma cobertura [Resposta ao artigo 16.º da base instrutória].

31) Antes das construções que os Réus estão a levar a efeito no prédio referido nos artigos 6.º e 12.º o prédio referido no artigo 1.º confinava com o pátio mencionado nos artigos 8.º a 10.º [Resposta ao artigo 18.º da base instrutória].

B – Análise das questões objecto do recurso.

1 - Cumpre verificar, em primeiro lugar, se as aberturas existentes na parede norte do prédio dos Autores, tratando-se da parede que confronta com o prédio dos Réus, devem ser qualificadas como janelas ou como frestas e se deram lugar a uma servidão de vistas impeditiva dos Réus construírem no seu prédio uma parede que as tapa.

A resposta é negativa, tal como se concluiu na sentença.
Vejamos o teor das normas aplicáveis.
No artigo 1362.º do Código Civil dispõe-se que «1 - A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.
2 - Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras».
E no artigo 1363.º do mesmo código diz-se que «1. Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.
2. As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram».

Verifica-se, como se referiu na sentença, que a lei não define o que é uma «janela».

Já o mesmo ocorria no domínio do Código Civil de Seabra ([1]) como nos dá conta Henrique Mesquita, ao referir que «O Código Civil vigente, tal como o Código de Seabra, não diz o que deve entender-se por janela, usando este vocábulo com o sentido que tem na linguagem corrente.
As janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes dos edifícios, mas que se distinguem não só pelas respectivas dimensões, como pelo fim a que se destinam.
As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função permitir a entrada de luz e ar.
As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam (1), olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo (2).
No nosso antigo direito, conforme já referimos, considerava-se janela toda a abertura, deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana.
Mas este critério, que foi formulado para edificações que apresentavam com frequência, em virtude das técnicas de construção ou dos materiais utilizados, aberturas (janelas) de dimensões muito exíguas, não parece hoje o mais adequado. No conceito de janela devem incluir-se apenas as aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas» ([2]).
É esta também a orientação geral da nossa jurisprudência, podendo citar-se, a propósito, o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Fevereiro de 2004, onde se ponderou:
«I - As janelas distinguem-se das frestas não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras se destinam.
II - As frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz, sendo as janelas aberturas mais amplas, através das quais pode projectar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
III - Só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no n.º 1 do art. 1360.º do CC: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objectos» ([3]).
Verifica-se, por conseguinte, que as aberturas existentes no prédio dos Autores não podem ser consideradas janelas.
Com efeito, consoante resulta da resposta aos quesitos 1.º, 2.º, 19.º e 22.º da base instrutória, estas aberturas têm as seguintes medidas: no lado interior, à face da parede, 30 cm de largura e 92cm de altura, do lado exterior 19 cm de largura e 92 cm de altura e as aberturas do primeiro e segundo andares foram construídas respectivamente a 1,48m e 1,43m de altura, a contar do chão da cozinha ([4]).
Verifica-se, através desta configuração física, que as mencionadas aberturas apenas permitirão, eventualmente e sempre com incómodo, a passagem da cabeça de um residente, mas não qualquer outra parte do corpo.

Estas aberturas são demasiado estreitas e altas para poderem ser consideradas janelas, pois além de não disporem de parapeito, não permitem pela sua reduzida largura que alguém se debruce e desfrute visualmente do panorama observável a partir delas, sendo certo, também, que a sua altura não permite desfrutar na totalidade das respectivas vistas, salvo se o utilizador subir para uma plataforma.

Concluindo: quando o proprietário constrói uma parede no limite do seu prédio e deixa aberturas nela, estas aberturas só poderão ser qualificadas de janelas se através do seu uso, comum a qualquer utilizador, permitirem que o mesmo possa apoiar-se e debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre a superfície que lhe corresponda se este não existir, e com tal acção possa devassar o prédio vizinho. Se a possibilidade desta devassa não existir, a abertura não pode ser qualificada como janela.

Os recorrentes não têm, por isso, razão quanto à pretensão de verem as aberturas qualificadas como «janelas».

A função destas aberturas é, por conseguinte, apenas a de permitirem a entrada de luz e ar (resposta aos quesitos 20.º e 21.º da base instrutória).

Passando à segunda questão.

2 – Vejamos então se, não podendo tais aberturas ser consideradas janelas, mesmo assim poderão dar lugar à constituição de uma servidão de ar e luz, a onerar o prédio dos Réus, impeditiva da construção da parede que eles edificaram no seu prédio.

a) Vejamos, previamente, se esta perspectiva pode ser considerada por se tratar de matéria nova.

Nos termos do artigo 664.º do Código de Processo Civil, «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.º e 665.º».

Sobre esta matéria cumpre lançar mão dos ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis que, a este respeito, escreveu o seguinte:

«Indagação. O juiz é livre na busca e na escolha da norma jurídica que considera adequada. O autor ou o réu invoca determinada disposição legal; se o juiz entender que tal disposição não existe ou que, apesar de existir, não é a que se ajusta ao caso concreto em litígio, põe completamente de parte a indicação feita pela parte e vai buscar a regra de direito que, em seu modo de ver, regula a espécie de que se trata.

E tanto importa, é claro, que a norma seja invocada somente por um dos litigantes, como que ambos estejam de acordo em a considerar aplicável.

Interpretação. Escolhida e fixada a norma que regula a relação jurídica controvertida, há que interpretá-la, há que determinar o seu conteúdo, o seu alcance, o seu sentido.

Também neste capítulo o magistrado está, perante as partes, num aposição de absoluta liberdade. Ou as partes estejam em divergência quanto ao sentido da regra legal, ou estejam de acordo, o juiz tem o poder de lhe atribuir a significação e o alcance que julgar exactos, em conformidade com os princípios de hermêutica jurídica.

Aplicação. O juiz é igualmente livre no momento da aplicação da norma jurídica ao caso submetido ao seu veredicto. Quer dizer, ao fazer a aplicação da norma, há-de proclamar os efeitos e declarar as consequências jurídicas que entender legítimas, e não as que qualquer das partes se permita reclamar.

Se é da competência do juiz indagar e interpretar a regra de direito, pertence-lhe evidentemente a operação delicada da qualificação jurídica dos factos. As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º» ([5]).

Passando ao caso concreto.

Os Autores alegaram que aquelas duas aberturas eram qualificáveis como janelas e que, devido à sua existência e utilização ao longo dos anos que passaram desde a sua construção, até à instauração da acção, implicaram a constituição de uma servidão de vistas.

Ou seja: se se considerar que as aberturas não podem ser qualificadas como janelas, não poderão elas servir de fundamento a outra questão, isto é, à questão de saber se podem dar azo à constituição de uma servidão sobre o prédio vizinho de acordo com a sua funcionalidade?

A resposta deve ser afirmativa.

Com efeito, não ocorre qualquer alteração factual, pois estamos sempre a discorrer sobre as mesmas aberturas e as mesmas funções ou utilidades que elas permitem auferir, no caso, entrada de ar e de luz.

Ocorre apenas uma alteração na avaliação da realidade, deixando esta última incólume.

O que há de novo situa-se, portanto, apenas ao nível da qualificação, não ao nível dos factos alegados (causa de pedir) ou do pedido.

Repare-se que a denominada servidão de vistas é primordialmente uma servidão de entrada de ar e de luz e só secundariamente de «vistas».

Nada obsta, pois, à apreciação desta segunda questão.

b) Os Autores sustentam que «…ainda que se considere que as aberturas em causa não são janelas, mas ao invés frestas irregulares, deve-se entender que se encontra constituída, por usucapião, a favor do prédio dos Autores, onerando o prédio vizinho dos Réus, não uma servidão de vistas, nos termos em que esta se mostra prevista no artigo 1362º do CC, mas antes uma servidão atípica de entrada de ar e de luz (…), com a decorrência das consequência referidas supra, ou seja, não podendo os Réus construir a menos de um metro e meio daquelas frestas irregulares, pois que aos mesmos estão impedidos de impossibilitar ou estorvar o exercício dessa servidão (artigo 1568º do CC), pelo que, sempre por aqui também, devem os Réus ser condenados a demolir a construção que fizeram nos demais termos peticionados na petição inicial».

Os Autores não têm razão.

O n.º 1 do artigo 1363.º do Código Civil (sobre «Frestas, seteiras ou óculos para luz e ar») é claro ao determinar:

«Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas».

Realça-se: podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.

Valem aqui, em abono desta opção legislativa, as razões adiantadas por Cunha Gonçalves:

«Tratando-se de frestas ou seteiras abusivas, o proprietário vizinho tem o direito de as fazer suprimir, a não ser que o autor daquelas se sujeite a modificá-las conforme as prescrições legais. Aquêle proprietário conserva êste direito ainda que hajam decorrido trinta anos, porque a falta de oposição imediata contra o abuso cometido na abertura de frestas e seteiras constitue mero acto de tolerância e não dá lugar a posse e prescrição a favor do autor de tal abuso. Esta mesma doutrina foi afirmada pela nossa jurisprudência, julgando que, na acção intentada para fazer tapar os óculos, frestas ou janelas de dimensões superiores às permitidas por êste Código, podem os tribunais ordenar que as aberturas sejam conservadas, mas reduzidas nos termos indicados na lei actual e antiga.

Além disso, conforme o disposto no mesmo § 1.º do art. 2325, ainda que as frestas, seteiras ou óculos estejam em condições legais, o proprietário vizinho pode, a todo o tempo que queira, levantar a sua casa ou contra-muro, conquanto vede a luz das ditas aberturas. Êste direito pertence-lhe ainda que hajam decorrido trinta anos, visto que aquelas aberturas, como diz também êsse §1.º, não prescrevem contra o vizinho. Nem pode deixar de ser assim, porque a prescrição supõe uma usurpação do direito ou cousa doutrem; e o proprietário que no seu prédio abre frestas, seteiras ou óculos não usurpa direito algum do vizinho, porque usa duma faculdade que a lei lhe reconhece, embora sujeita a ser inutilizada. Convém não olvidar que, no direito francês, as frestas ou seteiras são designadas por “jours de tolérance”. O proprietário vizinho tolera-as; e a lei também como tais as considera.

Pelo contrário, se o proprietário dum prédio novo, construído ao longo da linha divisória, abrir janelas, portas, varandas, eirados, escadas com ou sem patamares, etc., sem deixar o interstício legal de 1m,50, haverá uma usurpação, ou antes uma infracção do dever de não-devassar de perto o prédio vizinho (…).

Se o proprietário do prédio vizinho se descuidar de embargar a obra nova ou, depois de concluída esta, fazê-la demolir, principiará a correr a prescrição, que se completará com o decurso do prazo de dez anos, como se declara no § 3.º do art. 2325, acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 19:126» ([6]).

Ou seja, o legislador entendeu que, não sendo a abertura uma janela, a existência de frestas, seteiras ou óculos para luz e ar não dá lugar à constituição de qualquer servidão sobre o prédio vizinho e diz, sem deixar lugar a dúvidas, que o vizinho pode levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.

Por conseguinte, apesar da existência lícita das aludidas aberturas, estas, face à lei, não impedem o vizinho, no caso os Réus, de licitamente as tapar se decidir construir uma parede na estrema, como ocorreu no caso dos autos.

Improcede, por conseguinte, o recurso.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos Autores.


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Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Cunha Gonçalves definia janela nestes termos: «Janela é a abertura feita na parede, acima do nível do solo, a-fim-de se dar luz e ar às divisões interiores do edifício, e, ao mesmo tempo, permitir que os respectivos moradores espreitem e até se debrucem para o exterior e, em caso de absoluta necessidade, por aquela abertura saiam ou entrem, embora com o auxílio de escada ou corda. As janelas podem ser mais ou menos amplas, iguais ou desiguais em dimensões e feitio, conforme a natureza do edifício, o destino do compartimento, o traçado do arquitecto ou o mestre de obras» - Tratado de Direito Civil, Vol. XII. Coimbra, Coimbra Editora, 1938, pág. 73.
[2] Revista de Legislação e de Jurisprudência. Ano 128, páginas 151/152.
[3] E ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1.4.2008, proc.07A3114, disponível em www.dgsi.pt, mencionado nas contra-alegações dos Réus, cujo sumário é o seguinte:

I – As aberturas situadas na parede exterior de um edifício que deitem directamente para o imóvel contíguo e alheio, podem permitir a constituição de uma servidão de vistas, se tiverem as características previstas no art. 1362º, em confronto com o disposto no art. 1363º, ambos do Cód. Civil, para serem classificadas como janelas. II – A diferença entre janelas e frestas está, além de nas suas dimensões, na finalidade de umas e outras. III – Assim, as janelas além de terem maiores dimensões, devem, em princípio, permitir através delas, a projecção da parte superior do corpo humano e ser dotadas de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se para descansar, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo. IV – Por seu lado, as frestas sendo de menores dimensões, e situando-se a altura superior a 1,80 metros do sobrado e do solo do prédio vizinho, não são servidas de parapeito e não permitem a projecção através dela do corpo humano sobre o prédio vizinho. V – A existência de aberturas que não respeitando os limites previstos para as frestas no art. 1363º, nº 2 do Cód. Civil, mas que não permitem a referida projecção das pessoas sobre o prédio vizinho, apenas permitindo a entrada de ar e luz, pode levar à constituição de uma servidão predial, mas não de servidão de vistas impeditiva de o proprietário do prédio vizinho levantar construção que tape aquelas aberturas» (sumário).

[4] A abertura existente na face interior da parede excede em 11 cm a abertura situada ao nível da face exterior da parede, isto é, a abertura «afunila» a partir do interior para o exterior, como resulta do teor do auto de inspecção ao local  que se encontra elaborado após o registo relativo à inquirição das testemunhas.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V. Coimbra, 1981, pág. 93.
[6] Ob. Cit., pág. 85-86.