Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
571/12.9TBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
MUNICÍPIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - MONTEMOR-O-VELHO - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 212 CRP, 1, 4 Nº1 G) ETAF
Sumário: 1.Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente.

2.Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de um acidente de viação fundado em responsabilidade extracontratual, imputada a um Município, como dono de uma obra realizada numa estrada municipal, e à respectiva empreiteira de tal obra.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

1. M (…) residente em Arazede, intentou (em Novembro de 2012) a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra V (…)& Filhos, SA, com sede em Oliveira do Bairro, e Município de Montemor-o-Velho, pedindo a condenação solidária das RR a pagarem-lhe a quantia de 6.878,56 €, acrescida dos danos futuros que se venham a revelar e a liquidar em execução de sentença.

Alegou para tanto, em síntese, que no dia 4.5.2012, conduzia o seu veículo automóvel, Renault Megane, na localidade de Valcanosa, concelho de Montemor-o-Velho, no sentido Meãs/Valcanosa Meco, a uma velocidade inferior a 50 Km/h, sendo que na ocasião o tempo e o piso da estrada estavam secos. À saída da localidade de Valcanosa, atento o seu sentido de marcha a estrada descreve uma curva fechada à esquerda, e com início na dita curva a R. V (…)& Filhos procedia à construção de um troço da rede de esgotos, para o que havia procedido à abertura de uma vala profunda para colocação das respectivas condutas, sendo que na altura do acidente a vala encontrava-se já tapada e coberta com gravilha permitindo a circulação do trânsito sobre a mesma, embora em condições de segurança muito deficientes, dado que a gravilha se havia se espalhado por toda a via. Tal obra estava a ser executada por conta do Município de Montemor-o-Velho, mediante a execução de um contrato de empreitada entre ambos celebrado referente à «Rede de Esgotos de Arazede Fase C», sendo este o dono da obra. A responsabilidade pela sinalização adequada das obras pertencia em exclusivo à V (...)& Filhos, cabendo à Câmara Municipal, enquanto dona da obra, e num acto de gestão privada, verificar se as normas de segurança estavam a ser cumpridas pela empresa adjudicatária. A sinalização das obras em curso era manifestamente escassa e insuficiente, pois no sentido de marcha que levava não existia qualquer sinalização antes da referida curva que informasse os condutores das obras ali em curso, bem como não existia qualquer sinalização que informasse do perigo de conduzir no estado em que a via se encontrava, existindo apenas no local do acidente e já após o início da curva e precisamente no inicio das obras, duas placas de sinalização, a primeira de modelo A 23 (trabalhos na via) e cerca de 10 metros após o início das obras uma segunda indicando ‘Maquinas em manobras’, sendo que nenhuma das referidas placas era visível antes de ‘entrar’ na referida curva. Ao efectuar a referida curva à esquerda (considerando o seu sentido de marcha) a uma velocidade inferior a 50 Km/h, foi surpreendida com a gravilha que se encontrava espalhada em quase toda a largura e extensão da faixa de rodagem direita, sendo que ainda tentou desviar-se da gravilha, mas de imediato o seu veículo deslizou sobre a mesma em direcção à berma direita, pelo que perdeu de imediato o controlo do veículo, entrando em despiste e indo embater na barreira em terra do lado direito (pinhal) e de imediato capotou sobre a estrada. Que se verifica, no caso, a existência de um comportamento omissivo de natureza voluntária (falta de sinalização ou corte temporário da via durante a execução das obras) e ilicitude, traduzida na ofensa de direitos ou interesses de terceiros ou de disposições legais destinadas a protegê-los, pois a primeira R. estava obrigada a sinalizar devidamente as obras que executava, e a segunda R. obrigada a verificar da suficiência da referida sinalização, tendo sido violados os arts. 493º, nº 1, e 483º do CC. Em consequência do acidente a autora sofreu os prejuízos cuja indemnização peticiona aos réus.

O R. Município de Montemor-o-Velho contestou e requereu a intervenção principal da L (...) - Companhia de Seguros, SA, como sua seguradora, o que foi admitido.

Contestou a R. V (…)& Filhos, e, no que ora importa, arguiu a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria do tribunal, por serem competentes para o conhecimento da causa os Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do art. 4º, nº 1, g), do ETAF, com a consequente absolvição da ré da instância.

Contestou a interveniente L (...), arguindo, igualmente, a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal, por serem competentes para o conhecimento da causa os Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do citado art. 4º, nº 1, g), do ETAF, com a consequente absolvição dos RR e interveniente da instância.

O ISS – IP, Centro Distrital de Coimbra apresentou pedido de reembolso contra os RR, o que foi contestado por ambos.

A A. respondeu, pugnando pelo indeferimento da arguida excepção de incompetência absoluta.

*

Foi proferido despacho saneador que julgou o Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho incompetente em razão da matéria para conhecer e julgar a causa e consequentemente, absolveu os réus e interveniente da instância.

*

2. A A. interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

I - Nos factos em apreço (acidente de viação causado por falta ou insuficiente sinalização de obras em curso na via publica) não está em causa qualquer acto do município materialmente administrativo.

II - A responsabilidade do município decorre apenas da fiscalização adequada ou omissão de fiscalização que fez da sinalização da obra que era responsabilidade do empreiteiro (V (…)e Filhos Lda), responsabilidade essa decorrente do contrato de empreitada que celebrou com o mesmo e não de qualquer norma legal de direito publico.

III - A responsabilidade do município nos factos em apreço é apenas a de um mero dono de obra, tal como qualquer particular.

III - O direito da Câmara Municipal de fiscalizar a sinalização da obra é um direito que a própria cuidou de ter e não uma imposição legal.

IV - Nos factos em apreço não está em causa qualquer acto ou omissão do município materialmente administrativo.

V - O direito do município de fiscalizar a sinalização da obra, não compreende qualquer relação jurídico administrativa.

VI - a autora, ao circular naquela via publica, também não havia estabelecido com o município de Montemor-o-Velho qualquer contrato, nem ao circular naquela via estava a estabelecer com o município qualquer relação jurídico administrativa.

VII - Excluída está assim a subsunção dos factos em apreço ás normas do direito administrativo, devendo a apreciação dos factos alegados pela autora e tal como ela os configurou na sua PI ser apreciados á luz das regras da responsabilidade civil extracontratual do direito privado.

VIII - Deverá assim ser o douto despacho saneador proferido pelo tribunal a quo ser revogado e substituído por outro que julgue materialmente competente o Tribunal Judicial de Montemor o Velho (actualmente Secção de Instancia Local de Montemor-o-Velho) e ordene o prosseguimento dos Autos.
VI- O douto despacho saneador recorrido  violou entre outras as disposições constantes do artigo 64º do CPC e artigo 1º e n.º 1 do artigo 4º do ETAF.

Nestes termos e nos melhores de direito, cujo douto e sábio suprimento se invoca, deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que julgue materialmente competente o Tribunal Judicial de Montemor o Velho (actualmente Secção de Instancia Local de Montemor-o-Velho) e ordene o prosseguimento dos Autos, assim se fazendo inteira e sã justiça.

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º do NCPC).

Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.

- Competência em razão da matéria do tribunal recorrido.

2.1. À partida cumpre referir que tem constituído entendimento invariável da doutrina e jurisprudência, o de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor, atendendo-se ao direito que o autor se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido.

“Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente” - Ac. do STJ, de 15.1.04, Proc.03B3846, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, entre muitos outros, Ac. do STJ, de 9.5.95, CJ, 1995, T. 2, pág. 68, da Rel. Porto, de 7.11.00, CJ, T. 5, pág. 184, e da Rel. Guimarães, de 16.6.04, Proc.961/04.1, in www.dgsi.pt.

Dos artigos 66º do CPC e 18º da L.O.F.T.J. (anteriores redacções, ambas aplicáveis ao caso em apreço) decorre que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Assim, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério da atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual - cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, 1994, pág. 76 e 77.

No caso concreto, face à causa de pedir invocada pela A. e aos pedidos por si formulados, é indiscutível estarmos perante uma típica acção de responsabilidade civil extracontratual, prevista nos citados arts. 483º e 493º do CC, para a qual será, em princípio, competente o tribunal comum.

2.2. Só que a questão não acaba aqui.
Segundo o art. 212º, nº 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais «o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Importa considerar, apenas, o actual ETAF.

O art. 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19.2, e pela Lei nº 107-D/2003, de 31.12, estatui que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está especificada no art. 4º do ETAF, cujo nº 1 estatui que lhes compete:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extra-contratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

O art. 4º do ETAF em vigor ampliou o âmbito da jurisdição administrativa, no que respeita à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, de forma a abranger não só os casos em que essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública, mas também de actos de gestão privada praticados no exercício da função pública.

Nesse sentido, decidiu-se no Ac. do Trib. Conflitos, de 26.10.2006, Proc.018/06, JSTA00063698, mesmo sítio, que, nos termos do art. 4º, nº 1, g), do actual ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer por actos de gestão pública (como no ETAF de 1984) quer por actos de gestão privada, praticados no exercício da função pública - no mesmo sentido, pode ver-se o Ac. do mesmo tribunal de 20.9.2011, Proc.03/11).

Verifica-se, assim, que face ao ETAF, em vigor, o critério tradicionalmente considerado para distribuir a competência entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais que arrancava da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada passou a ser irrelevante para a determinação da competência material.  

Como se observa no citado acórdão do T. Conflitos de 26.10.06 “Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos.”

Tal alargamento da competência é hoje reconhecido maioritariamente pela doutrina, como se respiga do citado aresto.

Assim, Mário Aroso de Almeida, em O Novo Regime Do Processo Nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: “a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.

E, mais adiante salienta: “Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos”, invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.

Igualmente em Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sustentam que “Segundo a actual redacção desta alínea g) – posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual” dessas pessoas.”

E mais adiante: “(…) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada”.
Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Administrativo I, a pág. 714, salienta que “No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos”.

Podemos, ainda, acrescentar os Profs. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., pág. 36, que escrevem “Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação da gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa”.

Mas se dúvidas houvesse sobre o alcance da referida g) do art. 4º do novo ETAF, bastaria consultar a “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei nº 93/VIII que aprova o novo ETAF, e que está referenciada no Ac. do STJ, de 13.3.07, in CJ, T.1, pág.124 e segs., que decidiu pela competência dos tribunais administrativos, de que transcrevemos o seguinte passo “…dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado…”.

Interpretação, esta, que saiu reforçada com a Proposta de Lei nº 102/II (que visou alterar, ligeiramente, a redacção inicial do preceito, para a actual redacção, atrás transcrita) também referenciada no citado acórdão do STJ, e onde se diz que o único propósito é o de “esclarecer que o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos se estende à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público.

Todos os litígios, que é como quem diz, mesmo os decorrentes da sua actividade de gestão privada.”

No mesmo sentido, privilegiando um factor de incidência subjectiva, vai o Ac. do STJ, de 12.2.2007, Proc.07B238, in www.dgsi. Bem como se reafirma noutro aresto que “Na anterior redacção do ETAF a distribuição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum fazia-se segundo o princípio geral de que à primeira competia conhecer das relações jurídicas administrativas.

Assim, a primeira regra para discernir a qual das jurisdições competia o processo era a de ver se o litígio respeitava à gestão privada ou à gestão pública da entidade pública envolvida, sendo que na primeira hipótese, aquela em que tal entidade agia como um simples titular de direitos privados igual a qualquer outro, ficava como este sujeita apenas à jurisdição dos tribunais comuns. Estávamos, pois, perante um critério de atribuição de competência de carácter objectivo.

Com as novas regras do ETAF o legislador veio alterar esta disciplina, referindo expressamente a adopção de um novo critério, agora de carácter subjectivo. Ou seja, compete à jurisdição administrativa o julgamento das causas em que o Estado seja parte. E isto independentemente da relação jurídica em litígio ser regulada pelo direito privado ou pelo direito administrativo” - Ac. do STJ, de 27.9.2007, Proc.07B1477, mesmo sítio.

Considerando, assim, que a presente acção, relativamente ao pedido indemnizatório, tem o seu fundamento na responsabilidade civil extracontratual e que uma das duas entidades causadoras de danos é pessoa colectiva de direito público, o Município, o tribunal materialmente competente para a decidir é o tribunal administrativo.

2.3. Há quem entenda, contudo, que não basta a referida incidência subjectiva, como explanado em 2.2., para determinar a inerente competência material, sendo necessário que se esteja perante uma relação jurídico-administrativa. Nesta linha vai a seguinte argumentação, que transcrevemos:

“Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.

Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem competentes os tribunais administrativos e fiscais para acções “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).

Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos de a responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a comissão do acto ilícito estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.

Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo. Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.

Precisemos então o conceito.

Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia, resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.

É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares órgãos da administração.

Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa – Anotada”, 3ª ed, 815) “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”

O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, p. 117/118) refere: “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, (…)

Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º nº 1 alínea g) abrange todos os casos de responsabilidade civil extra contratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas” (ob. cit. 115).

Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da Administração (quiçá por os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior sensibilidade, para lidar com questões que envolvam aplicação do direito público e com a Administração pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia gestão pública – gestão privada, tantas vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos doutrinários entre administrativos e civilistas.

Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana de uma Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos.” – fim de transcrição, extraída do Ac. do STJ, de 8.5.07, Proc.07A1004, mesmo site.

Não nos parece ser a melhor interpretação legal, antes nos parece estar contemplada na lei a posição mais lata, exposta em 2.2.

De facto, acompanhando o citado Ac. do STJ, de 13.3.2007, diremos que a menção a relação jurídico-administrativa, feita pelos indicados artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF, não impede que a lei geral concretize a cláusula constitucional, atribuindo àquela jurisdição casos que verdadeiramente não emergem de relações jurídico-administrativas.

Como refere o Prof. Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, 7ª Ed., pág.116, “O âmbito da justiça administrativa não se determina, portanto, simplesmente no plano substancial e no plano funcional, com base na Constituição, dependendo ainda do recorte orgânico-processual que seja dado à jurisdição administrativa. E essa definição realiza-se no plano legal, onde, a par de normas que visam concretizar o conteúdo da cláusula geral estabelecida pela Constituição, são de destacar, por um lado, os preceitos que implicam a diminuição por subtracção do âmbito da jurisdição administrativa, e, em contrapartida outros que produzem a sua ampliação, por atribuição aos tribunais administrativos do julgamento de questões que, em princípio, não lhes caberia substancialmente conhecer…”.

É esta, de resto, a orientação que sobre o assunto tem vindo a ser acolhida pelo Tribunal Constitucional, que não vê na cláusula geral do nº 3, do art.º 212º, da CRP, o estabelecimento de uma reserva material absoluta de jurisdição para o conhecimento das relações jurídico-administrativas, admitindo-se a remissão para o legislador comum, que poderá excluir desta jurisdição matéria que a ela pertencia em princípio, bem como nela incluir outra que, regra geral, estariam dela afastadas (cfr. Ac. do T. Constitucional, nº 268/03, de 27.5.2003, in Acórdãos do T. Constitucional, Vol. 56, pág. 325).   

2.4. Mas, mesmo a acompanhar-se aquele raciocínio, conducente a uma posição mais restrita, sempre se dirá que o tribunal administrativo, não deixaria de ser competente, relativamente ao pedido indemnizatório apresentado pela A., quanto ao Município. Na verdade, no caso em apreço, a A. invoca a responsabilização do mesmo alicerçado na pretensa violação do seu dever de sinalização apropriada no local do acidente, alegando que a responsabilidade pela sinalização adequada das obras pertencia em exclusivo à R. V (…) & Filhos, empreiteira da obra em curso, cabendo à autarquia, enquanto dona da obra, e num acto de gestão privada, verificar se as normas de segurança estavam a ser cumpridas pela empresa adjudicatária.

Ora, dispõe o art. 64º, nº 2, al. f) da Lei nº 169/99, de 18.9 (Competências e Regime Jurídico de Funcionamento dos Municípios e Freguesias), aqui aplicável ao caso dos autos, que: “Compete à câmara municipal no âmbito do planeamento e do desenvolvimento:

(…)

f) criar, construir e gerir instalações, equipamentos, serviços, redes de circulação, de transportes, de energia, de distribuição de bens e recursos físicos integrados no património municipal ou colocados, por lei, sob a administração municipal;, competindo-lhe, assim, por inerência funcional, além dos deveres conservação e beneficiação das vias municipais, os de sinalização. E como tal, atribuições praticadas no exercício de um poder público e não numa posição de paridade com os demais particulares, sendo que a omissão da prática dos respectivos actos pode implicar a responsabilidade civil extracontratual da autarquia.

Repare-se que a A. funda os danos por si sofridos num acidente de viação ocorrido numa estrada municipal, por se ter despistado em consequência de gravilha existente em toda a via, que tapava uma vala que havia sido aberta pela R. V (…) & Filhos, na execução de obra pública referente à «Rede de Esgotos de Arazede Fase C» pertencente ao R. Município e adjudicado por este àquela, não se encontrando sinalizadas as obras em questão, e não tendo tal município fiscalizado adequadamente a sinalização rodoviária de tais obras, acto susceptível de poder gerar a sua eventual responsabilidade.

Assim, a violação do dever funcional do Município de sinalizar ou fiscalizar a sinalização adequada do local onde estavam a ser realizadas as obras inscreve-se na gestão pública que lhe cabe, já que a lei lhe confere poderes para o prosseguimento do interesse público de sinalizar as estradas sob a sua jurisdição. Não o fazendo essa omissiva actuação, neste referido campo, não deixa de revestir acto omissivo com a natureza de gestão pública.

O que quer dizer que mesmo seguindo a exposta perspectiva interpretativa restritiva, no caso em apreço, a competência para o conhecimento do pedido indemnizatório, relativamente ao mencionado Município, pertenceria sempre ao Tribunal Administrativo.

2.5. Cabe salientar, por fim, que apesar de ser imputada responsabilidade solidária à R. V (…) & Filhos, mera executora da obra no âmbito de contrato de empreitada de obras públicas, e à interveniente L (...), seguradora do R. Município, responsabilidades aliás conexionadas com a de tal autarquia, que ordenou a sua execução, nada impede a sua demanda e eventual responsabilidade nos tribunais administrativos, ficando ambas sujeitas à sua competência, porquanto os particulares podem ser demandados nos processos do contencioso administrativo «no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares», nos termos do art. 10º, nº 7, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (vide neste sentido o aludido Ac. do Trib. Conflitos de 20.9.2011).

2.6. Em suma, face à factualidade alegada pela A., para alicerçar o seu pedido indemnizatório, vemos que este é consubstanciado na existência de danos sofridos pela mesma, designadamente por omissão do dever de cuidado do R. Município na fiscalização adequada da sinalização das obras efectuadas na estrada municipal (e para as quais contratou a R. V (…) & Filhos, que como sua executora terá provocado os referidos danos) na medida em que não agiu de forma a evitar que as mesmas obras causassem danos à A.

Assim, por tudo quanto atrás se disse, a competência em razão da matéria, no caso em apreço, cabe aos tribunais administrativos por força do mencionado art. 4°, nº 1, g), do ETAF. A decisão recorrida terá, pois, de ser confirmada, sem prejuízo do disposto no art. 99º, nº 2, do NCPC.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente;

ii) Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de um acidente de viação fundado em responsabilidade extracontratual, imputada a um Município, como dono de uma obra realizada numa estrada municipal, e à respectiva empreiteira de tal obra.   

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pela recorrente.

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  Coimbra, 27.1.2015

Moreira Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias