Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | SANDRA FERREIRA | ||
| Descritores: | FALTA DE PRECISÃO E FIDELIDADE DA TRADUÇÃO CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA PENA ACESSÓRIA DE EXPULSÃO | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 50.º CÓDIGO PENAL ARTIGOS 92.º, N.º 2, E 120.º, N.º 2, ALÍNEA C), E 123.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGOS 21.º E 40.º D.L. N.º 15/93 DE 22, DE JANEIRO ARTIGO 151.º, N.ºS 1 E 2, DA LEI N.º 23/2007 DE 4 DE JULHO/ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA E AFASTAMENTO DE ESTRANGEIROS DO TERRITÓRIO NACIONAL | ||
| Sumário: | I - Nos termos conjugados dos artigos 92.º, n.º 2, e 120.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. apenas a falta de nomeação de interprete constitui a nulidade, e ainda assim dependente de arguição.
II - A falta de fidedignidade da tradução efectuada pelo intérprete das declarações prestadas pelo arguido em julgamento, onde também estava presente a sua mandatária, configura irregularidade, cujo conhecimento depende de arguição pelo interessado, nos termos e prazo constantes do n.º 1 do artigo 123.º do C.P.P. III - O crime de tráfico de estupefacientes é, em geral, uma actividade organizada e prolongada no tempo, que se desenrola através de uma multiplicidade de actos quotidianos, que visam possibilitar o fornecimento lucrativo de substâncias estupefacientes e psicotrópicas a terceiros. IV - Na punição deste crime estão sempre presentes fortes razões de prevenção geral, decorrentes da frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade. V - Apesar de a regra ser a opção pela pena de prisão, há casos em que, perante o quadro geral dos factos, é possível formular um juízo de prognose favorável à suficiência da ameaça da pena de prisão, mesmo que subordinada a regime de prova, integrado por um plano individual de ressocialização com características correctivas e educativas, no sentido da interiorização de valores de convivência social. VI - Não é possível aplicar a pena acessória de expulsão do território nacional em caso de suspensão da execução da pena de prisão. VII - A pena de prisão superior a 1 ano, de que o legislador fala no n.º 2 do artigo 151.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, é pena efectiva, quer porque o mesmo artigo fala em juiz de execução de penas, nos n.ºs 4 e 5, quer porque, face ao disposto no n.º 1, a lógica o impõe, já que o regime do n.º 2 é mais exigente. | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I.1 … foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo [transcrição]: “DECISÃO: Em face do exposto, decide este Tribunal Coletivo julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação pública deduzida e, em consequência: ARGUIDO … CONDENAR o arguido … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.e p. pelo artigo 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-Canexa ao referido diploma legal, na PENA DE 5 (CINCO) ANOS E 4 (QUATRO) MESES DE PRISÃO; Declarar que sobre a pena aplicada não incide o regime do Perdão e Amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08, atenta a idade do arguido à data dos factos (superior a 30 anos de idade) e o crime praticado pelo mesmo – cfr. artigo 2º, nº 1 e 7º, nº 1, alínea f), ix) da referida Lei; CONDENAR, ainda, o arguido, pela prática do referido crime, na pena acessória de expulsão do território nacional, estando-lhe interdita a entrada neste território pelo período de 5 (cinco) anos; Julgar parcialmente procedente, por provada, a liquidação efetuada pelo Ministério Público contra o arguido …, e, em consequência, declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 104.206,32 (…) e CONDENAR o arguido no pagamento ao Estado do referido montante, ABSOLVENDO-O do demais peticionado; NOTIFICAR o arguido …, para, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, querendo, proceder ao pagamento voluntário da quantia de € 104.206,32 (cento e quatro mil duzentos e seis euros e trinta e dois cêntimos) suprarreferida, com vista à extinção do arresto decretado nos autos; REDUZIR o arresto decretado nos autos ao referido montante de € 104.206,32; … ** DO ESTATUTO COATIVO DOS ARGUIDOS: Mantém-se a situação de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, do arguido …, não ocorrendo, in casu, necessidade de alteração dessa medida de coação, à luz do disposto no artigo 375º, nº 4 do CPP, ex vi dos artigos 212º e 215º, ambos a contrario sensu. * … ** DOS OBJECTOS APREENDIDOS: … * I.1 - Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, o arguido …, com os fundamentos expressos nas motivações do qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “VI - CONCLUSÕES … 3. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, desconsiderando e mal valorando a prova produzida e existente nos autos, para além de que aplicou incorrectamente o Direito. … 5. Da simples leitura do Acordão proferido pelo douto tribunal a quo, resultam evidentes vários factos que foram indevidamente dados como provados, a saber: … 56. Em reforço desta nossa posição, vêm as circunstâncias da acção, sendo aqui de realçar que a única actividade que se pode atribuir ao arguido é o consumo. Na verdade, 57. Apesar de diligências de investigação intensas levadas a cabo, designadamente no que se refere à actividade e modo de vida do arguido, não há o menor indício de que ele tenha alguma vez proporcionado a quem quer que seja, a mínima quantidade de estupefaciente. 58. O arguido não tem antecedentes criminais 59. O arguido tem actividade profissional e boa inserção social. … 64. Mas, a verdade, é que tudo o que resulta sobre a personalidade do arguido, sua inserção social e modo de vida, designadamente no que se refere á sua “ligação” com produto estupefaciente (que é exclusivamente na perspectiva do consumo), aconselha, diga-se mesmo, impõe, que a pena aplicada seja suspensa na sua execução. 65. No que à expulsão se refere, é por demais evidente que tal se não justifica no caso em apreço, pelos mesmos motivos que impõem a suspensão da pena de prisão. Com efeito, … 78. O tribunal nem sequer cuidou de saber se a personalidade e inserção social do arguido aqui recorrente, aconselha, ou não, à aplicação de uma pena suspensa na sua execução. …
* O recurso foi admitido nos termos do despacho proferido a 21.08.2025 a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - art.ºs 399º, 400º a contrario, 401º nº 1 al. b), 402º nº 1, 406º nº1, 407º nº2 al. a), 408º nº1 al. a), 411º nº 1 todos do Código de Processo Penal. * I.2 - Resposta ao recurso: Efetuada a legal notificação: I.2.1- O Ministério Público respondeu ao recurso … *
I.3 - Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer … * I.4 - Resposta Foi notificado o referido parecer não tendo sido apresentada resposta pelo arguido.
*** Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir: ***
…
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes: *
II.1 Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida [transcrição]: “DA ACUSAÇÃO: 1. Os arguidos … e … têm nacionalidade paquistanesa e norte-americana, respetivamente, e dominam a língua inglesa. 2. Os arguidos residiram juntos … Nazaré, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 07.05.2024. 3. Em data não apurada, anterior a 07.05.2024, o arguido … encomendou, através de uma amiga residente nos EUA, pela aplicação Telegram, cerca de dois quilos de cannabis resina. 4. A fim de conseguir receber a encomenda, o arguido … indicou o nome … e o contacto telefónico … como dados de identificação do destinatário da encomenda, e indicou a morada “… como local de entrega da referida encomenda. 5. Em data não apurada, anterior a 07.05.2024, o arguido … encomendou, através de uma amiga residente nos EUA, pela aplicação Telegram, mais cerca de dois quilos de cannabis resina. 6. A fim de conseguir receber a encomenda, o arguido … indicou o nome … e o contacto telefónico … como dados de identificação do destinatário da encomenda, e indicou a morada … como local de entrega da referida encomenda. 16. O arguido … não tinha qualquer autorização que lhe possibilitasse ter na sua posse cannabis resina e folhas de cannabis. 17. O arguido … não apresenta rendimentos declarados em território nacional desde Novembro de 2023. … DA PERDA AMPLIADA DE BENS – ARGUIDO AA – ACUSAÇÃO E CONTESTAÇÃO: … Da Situação Pessoal do Arguido … * … ** * FACTOS NÃO PROVADOS: … ** MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO: …
* III. 1 – Do erro notório na apreciação da prova Invoca o recorrente o erro notório na apreciação da prova quanto aos pontos 13 e 15 a. i. e 15 b. ii. e também - se bem compreendemos a conclusão nº 69 - quanto à decisão tomada quanto à medida da pena e ao juízo efetuado sobre a não aplicação da pena de substituição, e quanto à pena acessória de expulsão. Vejamos então: O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, pág. 74]. … Em suma o vício do erro notório na apreciação da prova refere-se às situações de falha grosseira na análise da prova e não resulta da simples discordância quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo tribunal, mas antes tem de resultar de uma falta evidente de lógica entre os factos provados ou não provados, ou da decisão ressaltar uma apreciação evidentemente ilógica ou arbitrária que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício [A propósito deste vício, veja-se, entre outros, os Acórdãos do TRP de 15.11.2018, do TRC de 24-04-2018 e do STJ de 18.05.2011, todos acessíveis in www.dgsi.pt]. Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal. Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável. Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento. Tendo presentes estes parâmetros cremos que nenhum erro notório se verifica na apreciação dos factos dados como provados no acórdão recorrido. Na verdade, analisado o texto da decisão recorrida não se constata que o tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. O Tribunal explicou com clareza a razão pela qual não atribuiu relevância às declarações do arguido e os documentos e elementos periciais em que se fundamentou, não resultando do seu texto o aludido erro. Em suma, o tribunal a quo explicou de forma clara na motivação a razão pela qual deu como provados os factos que assim elencou e nestes os aludidos pontos 13, 15 a.i. e 15b. ii. Aliás, na análise efetuada quanto a estes pontos da matéria de facto o recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos documentos juntos aos autos e muito concretamente o auto de busca e apreensão datado de 07.05.2025 e a reportagem fotográfica que o acompanha e o auto de notícia e detenção em flagrante delito, com a finalidade de contrariar a valoração da prova vertida na decisão recorrida quanto aos pontos de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório. Ora, tal forma de impugnação tem o seu âmbito no art. 412º do Código de Processo Penal ( erro de julgamento) e será aí apreciada. … relativamente à invocação do erro notório na apreciação da prova quanto à aplicação da pena acessória de expulsão ou da graduação da medida da pena ou da opção por uma pena de prisão efetiva, o recorrente mais não faz do que manifestar a sua discordância quanto à apreciação da prova efetuada pelo Tribunal e subsequente subsunção jurídica e aplicação das penas principal e acessória, o que, não constitui o erro vício previsto no art. 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal. Em suma, não existe o apontado vício do erro notório na apreciação da prova, pelo que improcede neste segmento o recurso interposto. ***
Defende o recorrente que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, relativamente aos factos 3, 5, 9 a 11, 13, 15 a. i. e 15 b. ii., invocando relativamente a cada um deles os documentos e segmentos das declarações do arguido que concretamente indicou no seu recurso, que entende imporem decisão diversa. A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do Código de Processo Penal, tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6. Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, obriga à indicação do conteúdo específico do meio de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado. O recorrente terá de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões. Deve, pois, referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado. A remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação/transcrição, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis e outros, o recorrente tem, pois, de individualizar, no conjunto das declarações prestadas, quais as particulares passagens gravadas, que se referem ao facto impugnado. Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na ata da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens]. No caso vertente, o recorrente indica os concretos factos que considera incorretamente julgados, e os respetivos documentos e segmentos que, a seu ver, impõem decisão diversa. Como é sabido, entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Significa isto, por um lado, que na apreciação e valoração da prova, o juiz não deve obediência a quaisquer cânones legalmente preestabelecidos, dispondo do poder-dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente (vertente negativa daquele princípio). Por outro lado, significa que os factos são ou não dados como provados de acordo com a íntima convicção que o juiz gerar em face do material probatório validamente constante do processo (lado positivo do mesmo princípio). Todavia, conforme refere Germano Marques da Silva [ Direito Processual Penal, vol. II, pág. 111.], “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”. O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual, ordenado, que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça [Cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12-01-1998]. Neste quadro pode o tribunal lançar mão da prova indiciária ou indireta, ou seja, aquela que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema. Citando o acórdão proferido sobre esta questão pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 09-02-2000 [Publicado na CJ, tomo I, pág. 51], “(…) A associação que a prova indiciará proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho (Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal). Conforme refere André Marieta (La Prueba em Processo Penal, pág. 59) são dois os elementos da prova indiciária: a) - Em primeiro lugar o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. (…) O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa (v.g. prova testemunhal no sentido de que o arguido detinha em seu poder o objecto furtado ou no sentido de que no local foi deixado um rasto de travagem de dezenas de metros). O que não se pode admitir é que a demonstração do facto indício que é a base da inferência seja também ele feito através de prova indiciária, atenta a insegurança que tal provocaria. b) - Em segundo lugar é necessária a existência da presunção, que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que, apoiada no indício - premissa menor - permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade. A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. A lógica tratará de explicar o correto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova da capacidade de convicção. Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável. O juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. O facto de também relativamente à prova indireta funcionar a regra da livre convicção não quer dizer que na prática não se definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova. Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes e concordantes entre si. Nada impedirá, porém, que devidamente valorada, a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação (conforme Mittermaier “Tratado de Prueba em Processo Penal, pág. 389).” Os requisitos desse funcionamento reconduzem-se a que os indícios sejam graves, precisos e concordantes. A gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como sucede quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Será preciso quando não é suscetível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciador deve estar amplamente provado. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão. A concorrência de vários indícios numa mesma direção, partindo de pontos diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles com uma nova probabilidade que resulta da união de todas as outras. Verificados estes requisitos, o funcionamento da prova indiciária desenvolve-se em três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura média ou leis científicas aceites como válidas sem restrição.
Previamente à análise dos concretos pontos da matéria de facto indicados pelo arguido cumpre tecer algumas considerações acerca da alegada falta de precisão e fidelidade da tradução efetuada. O art. 118º, nº1, do Código de Processo Penal consagra o princípio da legalidade, segundo o qual «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei». Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular, conforme dita o nº 2 do mesmo dispositivo e diploma. Da conjugação destes preceitos decorre que «o processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos atos, não sendo admitida a prática de atos que a lei não permita; os atos previstos devem respeitar as disposições da lei de processo que dispõem sobre os pressupostos, as condições, o prazo, a forma e os termos. Porém, a «violação ou inobservância» das «disposições da lei do processo penal» só determinará a invalidade do acto quando a consequência for expressamente cominada na lei. O princípio da legalidade do processo e dos atos desdobra-se, deste modo, em matéria de nulidade ou invalidade, na consequência que se afirma na expressão de um numerus clausus dos fundamentos da invalidade; a nulidade do acto não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir. A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do acto, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do acto» (Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág. 383). Nulidades insanáveis são as previstas no art. 119° do Código de Processo Penal e aquelas que assim forem estabelecidas noutras disposições legais. São oficiosamente conhecidas. As nulidades sanáveis estão previstas no art. 120º da mesma lei adjetiva, estão dependentes de arguição, nos termos e nos momentos temporais ali definidos. Nos termos conjugados do disposto no art. 92º, nº 2 e do art. 120º, nº 2 al. c) ambos do Código de Processo Penal, apenas a falta de nomeação de interprete constitui a nulidade e ainda assim dependente de arguição. Deste modo, não configurando a situação em causa qualquer nulidade que se mostre tipificada processualmente, poderíamos estar perante uma irregularidade, cuja verificação, contudo – e por regra – dependerá de oportuna arguição pelo interessado nos termos e prazo previstos no nº 1 do art. 123º do Cód. de Processo Penal. Tratam-se das declarações prestadas pelo arguido … na sessão da audiência de julgamento que teve lugar a 26.05.2025, estando presente também a sua ilustre mandatária, e estes nada requereram nem nesse dia nem mesmo até ao encerramento da audiência, sendo certo que logo no dia 26.05.2025 foram disponibilizados os registos da gravação da aludida sessão (cf. ata de audiência de julgamento de 26.05.2025 refª 110970335 e refª 110984003 da mesma data). Ora, não tendo tal alegada irregularidade sido tempestivamente invocada está ela sanada. É certo que sempre poderíamos estar perante uma situação que integrasse uma irregularidade concludente, suscetível de conhecimento oficioso nos termos do nº 2 do mesmo art. 123º do Cód. de Processo Penal. Porém, ouvidas na íntegra as declarações prestadas pelo arguido e a tradução que delas foi feita pela Sra. Intérprete verificamos que não resulta qualquer falta de precisão ou infidelidade da tradução. Mesmo nos segmentos trazidos à liça pelo arguido é patente que inexistiu qualquer falta de fidedignidade, pois mesmo relativamente à expressão encomendou dois quilos que de facto naquele inicial momento da tradução referiu, logo ali acrescentou “não estava ciente que seria essa quantidade”, parecendo-nos que essa menção resultou apenas do encadeamento da resposta e não de uma verdadeira infidelidade. E, na verdade, aos minuto 9:20 resulta perfeitamente esclarecido que não pediu dois quilos e aos minutos 10:08 a 10:50 novamente reiterado que “Ele pediu-lhe três onças três vezes”, “ele nunca mandou vir os 2kg” mais resultando novamente aos minutos 10:55 a 11:05 “11:02 “Ele pediu três onças três vezes, mas não todas ao mesmo tempo.” Por outra via, analisando a fundamentação do acórdão recorrido não resulta que se tenha atribuído ao arguido o reconhecimento da compra de 2kg de produto de cannabis resina. A tradução foi sendo feita em simultâneo, permitindo ao arguido responder, com serenidade e sem cortes no seu raciocínio às questões colocadas, não assumindo relevância, no contexto global da tradução de 45minutos e 44 segundos, a advertência efetuada pela Mmª Juíza Presidente aos minutos 7:51, de que “tem que traduzir o que ele diz, ele disse que era para fumar e ainda não disse isso”, quando resulta da própria transcrição efetuada pelo arguido e das declarações prestadas que a senhora intérprete já havia referido talqualmente o arguido havia mencionado “ele já fuma há algum tempo. Quando ele tinha 39 anos teve cancro”. Em suma, não foi atempadamente invocada qualquer irregularidade e ouvidas as declarações do arguido e a tradução que dela foi feita não se vislumbra que tenha ocorrido, por via dela, qualquer irregularidade que importasse conhecer oficiosamente, nos termos do disposto no art. 123º, nº 2 do Código de Processo Penal, designadamente por violação dos seus direitos de defesa. O que o recorrente não concorda é com a avaliação que o tribunal a quo efetuou das declarações que prestou o que nada tem que ver com a tradução efetuada e com os seus direitos de defesa, que não surgiram beliscados por esta. Isto posto, analisemos o invocado erro de julgamento: … *** IV.1 – Da integração dos factos apurados no mero consumo ou no crime de tráfico de menor gravidade previsto e punível pelo art. 25º do DL 15/93 de 22 de janeiro.
Defende o recorrente que os factos provados devem integrar o consumo (sem que indique o respetivo normativo legal) ou, assim não se entendendo, o crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo art. 25º do mesmo Decreto-Lei, argumentando que considerando as circunstâncias da ação (exclusivamente para consumo próprio) se impõe essa qualificação jurídica. A integração da conduta em causa no “Consumo” previsto no art. 40º do DL 15/93 de 22.01, pressupunha que se tivesse apurado que as quantidades adquiridas e detidas pelo arguido se destinavam apenas ao seu consumo, o que não resultou provado nos autos (vide factos não provados relativos à contestação do arguido …). Deste modo, não se tendo apurado que o arguido destinava tais produtos à venda não se apurou igualmente que apenas os destinasse a provisionar o seu consumo durante o período do verão, pelo que afastada se encontra a subsunção a este tipo legal de crime. Vejamos então a pretensão do recorrente de ver a factualidade apurada subsumida ao crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo art. 25º do mesmo diploma legal.
No acórdão recorrido entendeu-se que a conduta do arguido enquadrava a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, 21.º, n. º1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma legal. Decorre de tal disposição legal que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar (…) fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” (sublinhado nosso) O bem jurídico protegido neste tipo de crime é a saúde, tanto a física como a mental, como a social, sendo, por isso, públicos os interesses tutelados. Para além desse bem jurídico, protegem-se, igualmente, bens jurídicos individuais como a vida, a integridade física, a liberdade, o património e a segurança. Trata-se de um crime de perigo abstrato, presumindo-se o risco pela difusão das substâncias, e para a sua consumação não é exigível a ocorrência de um dano efetivo e real, bastando a ocorrência de um dos atos descritos no tipo legal de crime [Cf. entre outros o Acórdão do STJ de 02.10.2014, processo nº 45/12.8SWSLB.S1, disponível in www.dgsi.pt] O tráfico de produtos estupefacientes pode ser e é, em geral, uma atividade organizada e prolongada no tempo, que se desenrola através de uma multiplicidade de atos quotidianos que visam possibilitar o fornecimento lucrativo de substâncias estupefacientes e psicotrópicas a terceiros. Quanto à relevância do resultado, o tráfico de estupefacientes é um crime de mera atividade, bastando que a conduta se desenvolva sem que se torne necessário, para a sua consumação, a verificação de qualquer resultado, basta a simples detenção para se preencher o tipo legal. Atenta a factualidade provada concluímos que efetivamente o arguido praticou atos próprios da atividade de tráfico, designadamente detendo na sua posse estupefacientes e muito concretamente cannabis 2.964,80 gr de cannabis folhas, suficientes para 11.204 doses e adquirido 3.963,400 gramas de cannabis resina suficientes para 26.896 doses. Mais se apurou que o arguido … não tinha qualquer autorização que lhe possibilitasse ter na sua posse cannabis resina e folhas de cannabis. Conhecia as características e a natureza estupefaciente dos produtos estupefacientes que comprou e que detinha. Sabia que que não tinha autorização legal para deter ou, por qualquer forma, manusear produtos estupefacientes. E, por fim, provado que o arguido … atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Vejamos, então, se a imagem global dos factos se mostra consideravelmente diminuída, a ponto de a conduta recair na previsão do art. 25º do DL 15/93 de 22.01. Decorre do art. 25º, al. a) do D.L., nº15/93, de 22/1, que comete o crime de tráfico de menor gravidade “Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”, caso em que a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”. O DL n.º 15/93, de 22.01, parte do tipo base de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21º e daí, aditando-se certas circunstâncias atinentes à ilicitude, opera-se a agravação da pena prevista no art. 24º ou a sua atenuação nos termos do art. 25º do mesmo diploma legal. Nesta apreciação global dos factos assumem particular relevo os meios utilizados, a saber: a organização ou logística, a modalidade ou circunstâncias da ação (tráfico ocasional ou de circunstância, tráfico habitual, a intensidade do tráfico), o grau de perigosidade para a difusão da droga, a qualidade e tipo das substâncias ou preparados, a quantidade da droga transacionada, e ou detida como releva ainda a personalidade do arguido (se o arguido é ou não consumidor ou toxicodependente, o facto de o arguido fazer do tráfico de droga o seu modo de vida ou para assegurar o seu próprio consumo e a sua subsistência, etc.) – entre outros o Acórdão do STJ de 30.04.2008, processo nº 07P4723, ou o Acórdão do STJ de 24.09.2020, processo 109/17.1GCMBR.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Como se salienta no acórdão do TRC de 30.11.2011 [processo nº 10/10.0PECTB.C1, disponível in www.dgsi.pt]: “II - O tipo de crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 25º, do mesmo Diploma Legal, fica preenchido quando, preenchido o tipo do art.º 21º ou do art.º 22º, se mostre consideravelmente diminuída a ilicitude do facto. Esta considerável diminuição da ilicitude do facto será então o resultado de uma avaliação global da situação de facto, tendo em conta, entre outros factores, os meios utilizados, a modalidade e circunstâncias da acção, e a qualidade e/ou quantidade das substâncias, plantas ou preparados, reveladores de uma menor perigosidade da acção. O advérbio “consideravelmente”, que consta da previsão legal, não foi usado por mero acaso e, no seu significado etimológico, prevalece a ideia de notável, digno de consideração, grande, importante ou avultado. Apesar de constarem expressamente da previsão legal índices caracterizadores da ilicitude, a utilização do advérbio “nomeadamente” significa que tal enunciação não é taxativa, devendo pois ser ponderadas todas as concretas circunstâncias de cada caso concreto, a fim de se poder concluir ou não, que, objectivamente, a ilicitude da acção típica tem menor relevo que a tipificada para os art.ºs 21º e 22º.”
Cremos que a imagem global dos factos não nos aponta para esta menor ilicitude. Na verdade o arguido detinha na sua residência 2.964,800 gramas de cannabis folhas, suficientes para 11.204 doses e adquiriu mais 3.963,400 gramas de cannabis resina, suficientes para 26.896 doses. Dos autos decorre que pelo menos a cannabis resina proveio dos Estados Unidos da América e a cannabis folha o arguido já a havia obtido em momento anterior. Não estamos pois, perante uma conduta impensada ou meramente ocasional, transmitindo a importação do produto estupefaciente dos Estados Unidos, sob nomes falsos e com diferentes moradas, um cuidado e ponderação e diríamos até alguma sofisticação que afasta a considerável diminuição da ilicitude. Estas quantidades de cannabis folhas e resina, detidas e adquiridas pelo arguido, traduzem e acarretam também um perigo significativo para o bem jurídico que o tipo legal de crime visa proteger. Cremos, assim, que a visão global dos factos traduz um grau de ofensa à lei e de desvalor da ação, que se afastam de uma ilicitude consideravelmente diminuída e, consequentemente, não nos reconduz a um crime de tráfico de menor gravidade. Assim, tudo ponderado, cremos não merecer censura a cremos que a condutas do arguido cabe no tipo base do art. 21º do DL nº 15/93 de 22 de janeiro, de que vinha acusado. *** Argumenta o recorrente que a pena que lhe foi concretamente aplicada se mostra exagerada em face do grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, tendo excedido a culpa do recorrente, pugnando por uma pena que se situe nos 4 anos e 6 meses e no máximo 5 anos de prisão. Vejamos: … Deste modo, o Tribunal de recurso deverá intervir modificando a pena concreta quanto ocorrer desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Na análise desta matéria, importa, pois, ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”. Decorre, por fim, do n.º3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. Anabela Miranda Rodrigues [A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570 e 571] escreve: “Entendida a prevenção geral com o sentido que lhe vimos dando – isto é, a protecção de bens jurídicos alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, postula ela, já o dissemos, a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado.” Acrescentando “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” . Adindo relativamente à prevenção especial que: “o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” E prosseguindo refere “resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” [Ob cit., pág. 574 e 575]. Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente [Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” pág. 227 e ss.]. Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe e não exceder a medida da culpa do agente. Aqui chegados: Analisando o caso concreto, à luz dos considerandos acabados de expor, constata-se que o arguido foi condenado numa pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, numa moldura penal que se situa entre 4 (quatro) anos e 12 ( doze) anos de prisão. Na situação que se analisa são elevadas as exigências de prevenção geral. Como vem sendo referido pelo Supremo Tribunal de Justiça, na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade. Com este tipo jurídico criminal pretende-se erguer barreiras à incessante expansão de um fenómeno de raízes culturais, mas com manifestações imediatas e bem visíveis na saúde do indivíduo, e, bem assim, no desenvolvimento de uma comunidade. Como é consabido, o tráfico de estupefacientes põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a saúde, a integridade física, a vida e a liberdade dos virtuais consumidores, além disso, afeta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos. Tal crime, pela multiplicidade de consequências que lhe subjaz, é, pois, suscetível de gerar enorme insegurança e intranquilidade públicas. As necessidades de prevenção especial não sendo elevadas não são de menosprezar. Na verdade o arguido não tem antecedentes criminais e está aparentemente inserido socialmente. Porém, o consumo ativo e regular de cannabis que mantinha à data da prática dos factos impõe algumas necessidades de ressocialização. No que concerne ao grau de ilicitude dos factos ter-se-á em conta fundamentalmente os concretos atos apurados, que se consubstanciaram na compra por duas vezes de cannabis resina e na detenção de cannabis folhas, e as respetivas quantidades que no seu total ascendem a 6.928,200 gramas suficientes para 38.146 doses. Tendo-se integrado a conduta do arguido no art. 21º do Dl nº 15/903 de 22.01, o certo é que, dentro das atividades que integram este normativo, a concreta dimensão da atividade deste arguido e a ilicitude subjacente não farão com que a pena se destaque com significativo relevo do seu mínimo legal. O arguido agiu com dolo direto. Apurou-se nos autos que o arguido residia há cerca de três anos em Portugal. … Tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade. Desde que está a residir em Portugal é proprietário de um restaurante sito no rés-do-chão do imóvel onde habita. À data dos factos era consumidor habitual de cannabis. O arguido não tem antecedentes criminais registados. O arguido prestou declarações confessando parte dos factos, embora não a encomenda das quantidades efetivamente recebidas. Porém, o arguido está inserido socialmente, explorando uma estabelecimento de restauração e sendo referenciado favoravelmente junto da comunidade em que se insere. Considerando, pois, todos os elementos atendíveis entendemos ser justa e equitativa uma pena concreta de 5 (cinco) anos de prisão, não nos parecendo que a as exigências de prevenção geral, de prevenção especial e a culpa do agente suportem uma pena superior, merecendo, assim, provimento nesta parte o recurso interposto. *** V.1 - Da suspensão da execução da pena de prisão Nos termos do art. 50º do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Como refere Figueiredo Dias [Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518], pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescenta: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. Por outro lado, há que ter em conta que na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Adverte ainda - § 520 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime». Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa” [Acórdão do STJ de 16-01-2008, Processo nº 07P3485, in www.dgsi.pt.]. Esse prognóstico a efetuar consiste na esperança de que o agente ficará devidamente avisado com a sentença e não cometerá nenhum outro delito, e reporta-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do facto, razão pela qual devem ser tidos em consideração, influenciando-o negativa ou positivamente, designadamente, crimes cometidos posteriormente ao crime objeto do processo e circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham já tomadas em consideração em sede de medida da pena. Verificadas as condições de aplicação desta pena de substituição, o tribunal pode, nos termos do artigo 53.º do Código Penal, determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, que assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, ou subordinar a mesma a deveres e obrigações (arts. 51º e 52º do Código Penal). Vejamos então: No caso sub judice, como supra se referiu, são elevadas as exigências de prevenção geral e as de prevenção especial, não sendo elevadas não são de menosprezar. O arguido tem 47 anos de idade, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais registados. Explora um restaurante, vivendo num apartamento arrendado que partilha com um amigo, …, tendo obtido entre janeiro de abril de 2024 um rendimento liquido de 14.639,33€ . Cumpre de forma adequada a medida de coação imposta não sendo conhecidos incumprimentos. No meio residencial é referenciado como tendo uma boa conduta social. Desta feita, face ao quadro traçado pela sua situação atual de vida é possível efetuar um juízo de prognose favorável à suficiência da ameaça da pena de prisão aplicada, ainda que subordinada a regime de prova, que sendo constituído por um plano individual de ressocialização, conterá uma assistência especializada lhe imprime uma característica corretiva e educativa no sentido da interiorização de valores de convivência social, que consideramos fundamental no caso em análise. De resto, a finalidade politico-criminal da suspensão da pena é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer “correção”, “melhora” ou – ainda menos – “metanoia” das conceções daquele sobre a vida e o mundo. (...) Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência”[cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 343]. Assim sendo, parece-nos que com a intervenção dos serviços de Reinserção Social na modelação e introdução de conceitos e condutas normativas – através do plano de reinserção social a traçar -, será possível a este arguido, querendo, ressocializar-se em liberdade e ainda assim serem salvaguardadas as “necessidades de reprovação e prevenção do crime” exigidas pela comunidade, devendo o prazo de suspensão coincidir com o da pena aplicada, assim se permitindo uma efetiva intervenção. O plano de reinserção social deverá privilegiar a necessidade de adoção de condutas pró-sociais, com particular intervenção nos comportamentos aditivos verificados, ficando a suspensão da execução da pena subordinada às seguintes condições a cumprir pelo arguido: *** Dispõe o art. 34º do DL nº 15/93 de 22.01: “Sem prejuízo do disposto no artigo 48.º, em caso de condenação por crime previsto no presente diploma, se o arguido for estrangeiro, o tribunal pode ordenar a sua expulsão do País, por período não superior a 10 anos, observando-se as regras comunitárias quanto aos nacionais dos Estados membros da Comunidade Europeia”. Por seu turno dispõe o art. 151º da Lei nº 23/2007 de 04.07 o seguinte: “ 1 — A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efetiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses. 2 — A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal. 3 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, a pena acessória de expulsão só pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro com residência permanente, quando a sua conduta constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional.”
O arguido tem nacionalidade americana e, face ao que resultou provado, reside em Portugal há cerca de 3 anos, tendo residência temporária em território nacional. Nestes autos concluiu-se que o arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes – crime classificado como criminalidade violenta a altamente organizada (art. 1º do Código de Processo Penal e 51º do DL 15/93 de 22.01). Porém, foi decidido aplicar ao arguido uma pena de 5 (cinco) anos de prisão suspensa na sua execução, o que afasta desde logo a possibilidade de aplicação da aludida pena de acessória de expulsão, que, em nosso entendimento, apenas pode ser aplicada quando perante uma pena principal de prisão efetiva. Na verdade, entendemos que o legislador quando referiu no nº 2 do art. 151º da Lei nº 23/2007 de 04.07, pena superior a um ano, está a referir-se a pena de prisão efetiva [para este sentido nos apontando também as menções ao “juiz de execução de penas” efetuadas nos nº 4 e 5 do citado artigo]. Aliás, sendo o regime previsto no nº 2 do art. 151º da Lei 23/2007 de 04.07 mais exigente do que aquele previsto no nº 1 do mesmo artigo, o que se compreende pois que o nº 2 se aplica a estrangeiro residente no país, e, portanto, com uma maior ligação ao mesmo, tornar-se-ia difícil sustentar que no nº 1 se exigisse uma pena de prisão efetiva admitindo-se apenas a pena acessória de expulsão no caso de substituição por pena de multa em alternativa, e no nº 2 se admitisse que a pena de prisão não fosse efetiva e a pena acessória de expulsão pudesse ser aplicada perante uma pena de prisão suspensa na sua execução, que pressupõe que o julgador efetuou um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, que, precisamente, determinou a sua aplicação. Neste sentido pode ver-se o Acórdão do TRL de 10.07.2025 [processo nº 96/23.7JBLSB.L1-9 disponível in www.dgsi.pt] sumariado da seguinte forma: “I. A expulsão admitida no art.° 33°, n.ºs 1 e 2 da CRPortuguesa, está regulada na Lei 23/2007 de 4 de Julho. II. O art. 151.º da citada Lei estatui critérios distintos para o afastamento do território nacional, consoante o vínculo do cidadão ao território nacional exigindo a aplicação de penas mais graves para os estrangeiros residentes no país do que para os não residentes, e esclarecendo que, no primeiro caso, há uma ponderação a efectuar sobre a gravidade dos factos praticados, o tempo de residência e o grau de inserção na comunidade que apresenta; de resto, quanto a estrangeiros permanentemente residentes, a expulsão só poderá sobrevir, nestes casos, quando a conduta que desenvolveu constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública e a segurança ou defesa nacionais. III. Ou seja, no artigo 151.º, da L 23/2007, identificam-se três situações distintas de aplicação da pena acessória de expulsão, impondo pressupostos diferentes no que tange a cada uma delas: o n.º 1 refere-se a estrangeiros não residentes, o n.º 2 a estrangeiros residentes – estrangeiros com residência temporária (artigos 74.º e 75.º), estrangeiros com residência permanente (artigos 74.º e 76.º) e estrangeiros residentes de longa duração (artigos 126.º a 133.º) – e o n.º 3, cumulativamente com o n.º 2, a estrangeiros com residência permanente. IV. Atenta a letra da do art. 151º, 1 e 2 da Lei 23/2007 – no caso dos não residentes, a expulsão poderá ser aplicada ao condenado por 1 crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efectiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses e no que se refere a cidadãos residentes a condenação terá de ser por crime doloso em pena superior a um ano de prisão – importará averiguar da compatibilidade da medida com a aplicação de penas de prisão suspensas na respectiva execução. V. Efectivamente a lei, no preceito do artigo 151º, usa sempre o conceito pena de prisão ou multa alternativa e já não outra qualquer pena, designadamente de substituição – ou seja, o teor do texto legal exclui qualquer possibilidade de uma pena de prisão suspensa fundamentar a expulsão. VI. Vale por dizer que, face à letra da lei, para ser possível a aplicação da pena acessória de expulsão, tem de ocorrer a condenação em pena de prisão efectiva, mesmo no caso do nº 2 do art. 151º da L 23/2007. VII. Até porque quer no citado art. 151º da Lei 23/2007, quer no art. 188º-A do CEPMPL, apenas se mostra regulada a execução da pena acessória de expulsão relativamente às penas de prisão efectiva, não existindo qualquer norma que explicite o modo de execução de uma pena acessória de expulsão sendo aplicada uma pena de prisão suspensa na respectiva execução. VIII. Racionalmente, com efeito, é incompatível a emissão de um juízo de prognose de que a ameaça da prisão afastaria os arguidos da prática de novos crimes e, concomitantemente, determinar a respectiva expulsão ficando a aguardar metade da execução da suspensão para a ordenar.” Concordamos com esta posição e, consequentemente, entendemos que estando perante uma pena de prisão suspensa na sua execução não será possível a aplicação da pena acessória de expulsão. Mas, mesmo que assim não se entendesse, não podemos esquecer que – como se afirma no acórdão do STJ de 27.09.2006 [processo . nº 06P2802, disponível in www.dgsi.pt]: “(…)a expulsão, mesmo quando aplicada como pena acessória, pode tocar com direitos fundamentais, desde, em certas circunstâncias, a interdição de tratamentos desumanos, até ingerências na vida familiar, protegidos pelos artigos 3° e 8° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Por isso, importa averiguar se a expulsão, nas circunstâncias de cada caso, é imposta por necessidades sociais imperiosas, que, na ponderação de proporcionalidade, sobrelevem os interesses individuais (cfr., v. g., inter alia, os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, MEHEMI c. França, de 26 de Setembro de 1997, “Recueil” 1997-VI, p. 1971; BOULTIF c. Suíça, de 2 de Novembro de 2001, e JAKUPOVIC c. Áustria, de 6 de Fevereiro de 2003). E, nesta medida, pese embora se trate de um crime cometido contra a saúde pública e que tem efeitos significativos no contexto social, assumindo, pois, alguma gravidade pelos seus efeitos nefastos diretos e indiretos, designadamente a criminalidade que normal e infelizmente a este anda associada, o certo é que o arguido tem uma aparente inserção social e profissional, explorando um estabelecimento de restauração, vivendo em apartamento a si arrendado juntamente com um amigo. Por outro lado, o recorrente não tem antecedentes criminais registados, vive em Portugal há mais de 3 anos e os factos reportam-se a uma situação localizada num curto período de tempo. Assim, ainda que se entendesse que, mesmo perante uma pena de prisão suspensa na sua execução, seria possível a aplicação da pena acessória de expulsão, na situação concreta este não seria de decretar. Deste modo impõe-se a revogação do acórdão recorrido quando aplicou a pena acessória de expulsão ao ora recorrente.
*** VI- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido … e em consequência: *** No presente acórdão, considerando os factos apurados e designadamente as condições atuais de vida do arguido …, foi decidida a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, por se ter entendido ser possível efetuar um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido em liberdade. Assim sendo, ao abrigo dos artigos 212.º, n.º1, al. b) declara-se imediatamente revogada e consequentemente extinta, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, aplicada ao arguido AA, devendo ainda proceder-se à entrega ao mesmo do seu passaporte. Oficie-se, de imediato e pela via mais expedita, aos serviços competentes, dando-se conhecimento da presente decisão, com vista a serem desencadeados os mecanismos necessários com vista à retirada dos dispositivos que foram aplicados para a mencionada vigilância eletrónica. Não é devida taxa de justiça [artigo 513º, n.º 1, à contrário, do Código de Processo Penal]. Notifique. * Texto processado pela primeira subscritora e revisto pela mesma, bem como pelo 1º e 2ª adjuntos (art. 94º, nº 2 do CPP) Coimbra, 20 de novembro de 2025. Os Juízes Desembargadores Sandra Ferreira António Miguel Veiga Cristina Pêgo Branco |