Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
191/09.5TASRT-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
ACEITAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA COM SEDE EM SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ARQUIVAMENTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 34.º, N.º 1, 11.º, N.º 3, AL. B), DO CPP; ARTIGOS 179.º, 182.º E 502.º, DO CPC
Sumário: I - Ultrapassada, seja de que modo for, a situação de impasse processual definida no artigo 34.º, n.º 1, do CPP, deixa de existir conflito processualmente relevante.

II - É o que sucede quando um dos tribunais envolvidos no conflito assume, antes do conhecimento do mesmo, a competência ou a incompetência para a prática do acto processual em causa.

III - Perante a cessação superveniente do conflito, tornando-se impossível o atinente objecto processual e a solução inútil, finda a instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório:

A Sra. Juiz da Secção de Competência Genérica com sede em Sertã, integrada na Comarca de Castelo Branco, suscitou conflito negativo de competência para que, nos autos de instrução relativos ao processo n.º 191/09.5TASRT da referida secção de instância local, se determine se a inquirição de testemunha, com domicílio profissional na Comarca de Coimbra, deve efectuar-se através de teleconferência, conforme sustenta a Juiz da Secção de Instrução Criminal sedeada em Coimbra, ou pode ser efectivada através de carta precatória, nos termos preconizados pela primeira.

Mostra-se cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP.

O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer.

A Magistrada da Secção de Instrução Criminal de Coimbra apresentou resposta.


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II. Fundamentação:

A) Elementos relevantes:

1. No âmbito do processo em instrução acima individualizado, em 23-10-2014, na Secção de Competência Genérica da Sertã, foi ordenada a remessa de carta precatória à Secção de Instrução Criminal da Comarca de Coimbra, tendo em vista a inquirição de uma testemunha.

2. Com data de 31-10-2014, a Sr.ª Juiz da dita Secção de Instrução Criminal lavrou despacho cujo texto se reproduz:

«Verificando que, relativamente à instrução, a lei é omissa quanto ao modo de inquirição das testemunhas residentes fora da comarca, entende-se que deve ser aplicado subsidiariamente o disposto no artigo 502.º do CPC (aplicável aos casos omissos, por imposição do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal).

Assim, a testemunha deverá ser inquirida por videoconferência.

Posto isto, enviando cópia do presente despacho, solicite ao tribunal deprecante que informe se pretende ouvir a testemunha por teleconferência e, em caso afirmativo, em que data».

3. Em seguida, no dia 10-11-2014, a Sr.ª Juiz em exercício de funções na Secção de Competência Genérica com sede em Sertã pronunciou-se nos moldes infra transcritos:

«V. Por despacho proferido nestes autos, em 23-10-2014, decidiu-se deprecar “a inquirição da testemunha A... ao Juiz de Instrução Criminal da Comarca de Coimbra, onde a referida testemunha tem domicílio profissional”.

(…).

No entanto, pelo Tribunal deprecado (…) foi proferido o seguinte despacho:

(…).

Este Tribunal informou já o Tribunal deprecado de que se mantém o entendimento sufragado no despacho proferido em 23-10-2014, sem que se ache cumprido o ali determinado, até à presente data.

Nada mais resta, portanto, do que suscitar a apreciação do conflito negativo de competência, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 5 do art. 12.º do Código de Processo Penal.

(…).

De facto, em causa está carta precatória na fase da instrução, na qual não se privilegia o princípio da oralidade, inexistindo qualquer fundamento para que se entenda estarmos perante lacuna legal.

Deste modo, a inquirição de testemunhas arroladas em processo penal no requerimento de instrução e residentes fora da área deste Juízo (cfr. art. 173.º do NCPC, pode ser realizada por carta precatória.

(…)».

4. O Magistrado do Ministério Público conclui o parecer apresentado nestes termos:

«Face a tudo o que se deixa exposto, afigura-se-nos que o presente conflito negativo de competência não poderá ser desde já apreciado, uma vez que não se demonstra terem transitado em julgado os despachos em conflito, sendo que, por outra parte, neste momento nem nos parece tratar-se de um verdadeiro conflito.

Para a hipótese de ser o memo conflito apreciado, deverá, a nosso ver, ser declarada a competência do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra para a realização da diligência de inquirição deprecada».

5. Transcreve-se a resposta da Sr.ª Juiz da Secção de Instrução Criminal de Coimbra:

«Na sequência da notificação recebida (…), cumpre-me dizer que nunca recusei o cumprimento da carta precatória enviada da instância local da Sertã, Comarca de Castelo Branco.

Considero que a diligência devia e podia ser efectuada pelo Tribunal da Instância Local da Sertã, através do sistema de videoconferência, conforme deixei consignado no despacho cuja cópia se encontra junta a fls. 9, em obediência ao disposto no artigo 502.º do CPC, aplicável por imposição do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Todavia, como a diligência requerida não se nos afigura ilegal, estando prevista no artigo 111.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, e mantendo a colega interesse na realização da mesma, agendámos, no dia 12-11-2014, data para a inquirição da testemunha.

(…)».


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B) Cumpre decidir:

1. Suscita o Sr. Procurador-Geral Adjunto a questão prévia acima referenciada.

Porém, a solução que o caso concreto reclama - inutilidade superveniente da lide - torna absolutamente inútil o seu conhecimento.


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2. Preliminarmente, importa verificar se estamos perante um conflito de competência, nos temos em que ele é definido no artigo 34.º do Código de Processo Penal.

Dispõe este normativo, no seu n.º 1:

«Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».

A lei é clara sobre os pressupostos legais do conflito referido. Consiste na divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para investigar e apurar a existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.

Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.

Assim, no vertente caso, é apodíctico não estarmos em presença de conflito típico porquanto, desde logo, o tribunal deprecado não devolveu a competência que lhe foi atribuída, antes a aceitou implicitamente, entendendo, tão só, não ser permitido pela lei a diligência processual solicitada pelo tribunal deprecante. Dizendo por outras palavras, as escritas no Ac. da Rel. do Porto de 24-01-2001, publicado na CJ, tomo I, pág. 228/9, «Quando (…) o tribunal deprecado não invoca como fundamento da sua recusa ao cumprimento da carta precatória a falta de competência para o acto requisitado, antes a reconhece, implicitamente, ao decidir que, apesar de a possuir ou deter, a requisição não pode ser por ele atendida por se referir a acto que a lei interdita, não se verifica um tal conflito - cfr. arts. 184.º e 185.º do C. P. Civil», a que correspondem hodiernamente os artigos 179.º e 180.º (em sentido equivalente, cfr., ainda, o Ac. da Rel. do Porto de 06-12-2000, CJ, tomo V, págs. 231/2).

Não obstante, sem intervenção deste tribunal, a situação exposta redundaria, no domínio do acto referido, numa paralisia da relação processual penal, impasse que nos leva a seguir a posição sustentada no Ac. do STJ de 01-10-2003 - proferido no proc. n.º 03P1229, publicado em www.dgsi.pt -, ou seja, a de considerar a existência de um conflito de competência atípico, definidora de uma situação a que urgia dar resposta, não fora, como já ficou referido, a evidente inutilidade (superveniente) da solução do dissídio inicialmente apresentado. 


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3. O presente conflito de competência, como os demais conflitos de igual natureza, visa ultrapassar um estado de impasse, no contexto acima explicitado.

Porém, ultrapassado, seja de que modo for, o pressuposto obstáculo processual, deixa de existir conflito juridicamente relevante, ou seja, conflito a necessitar de intervenção do presidente de secção criminal [cfr. artigo 12.º, n.º 3, alínea a), do CPP].

É o que, inequivocamente, decorre do n.º 2 do artigo 34.º do CPP, onde consta: «O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso».

Antes da resolução do conflito, qualquer um dos tribunais nele envolvidos pode reverter a sua própria decisão de competência ou incompetência, eliminando os fundamentos que lhe deram causa.

Se tal acontecer - e sucede no caso dos autos, porquanto a Sr.ª Juiz do tribunal deprecado aceitou expressamente a sua competência para o cumprimento da carta precatória que lhe foi endereçada -, passa a inexistir interesse processualmente relevante no prosseguimento do conflito e, consequentemente, tornando-se impossível o definido objecto processual e a solução inútil, está definitivamente finda a instância [cfr. artigo 287.º, alínea e), do CPP, aplicável em razão da norma integrativa do artigo 4.º do mesmo diploma].


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, declara-se extinto o presente “conflito”, determinando-se o oportuno arquivamento do processo.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 3 de Dezembro de 2014

(Doc. elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, deste Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)