Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2094/18.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
VIOLAÇÃO DE CONDIÇÕES DE SEGURANÇA
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 03/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 14.º, N.º 1, ALÍNEA A), DA LAT DE 2009
Sumário: I. A descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em violação por parte do trabalhador das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou pela lei; prática, por parte do sinistrado, de uma conduta activa ou omissiva violadora dessas regras ou condições de segurança; voluntariedade dessa conduta, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; existência de um nexo causal entre a conduta do sinistrado e o acidente ocorrido; possibilidade de imputação do acidente a comportamento subjectivamente grave do sinistrado.

II. Não se encontra descaracterizado o acidente que consistiu numa queda do sinistrado por este ter tropeçado numas mangueiras que se encontravam espalhadas no chão em virtude do sinistrado não ter procedido, como devia ter feito, à sua arrumação.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – AA, residente na Rua ... ..., instaurou a presente acção para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, contra:

1. “F..., SA”, pessoa coletiva nº ..., com sede no Largo ..., ...; e

2. “D..., SA”, com sede no ..., em ...; pedindo, na respectiva procedência, a condenação de ambas as Rés:

A) A pagar à trabalhadora a quantia de € 2.137,34, a título de indemnização devida pelas incapacidades temporárias sofridas;

B) A pagar à trabalhadora uma pensão anual e vitalícia, de acordo com o grau e natureza da incapacidade que lhe vier a ser fixada no exame por junta médica, atualizável;

C) A prestar à sinistrada todas as ajudas técnicas, medicamentos e tratamentos médicos ou fisioterapêuticos que vierem a ser determinados pela junta médica;

D) A pagar a quantia de € 32.000,00 a título de danos patrimoniais, a fim de permitir à trabalhadora a aquisição de um veículo compacto ligeiro de passageiros com caixa de velocidades automática, e,

E) A pagar a quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais.

Para tanto, alegou, em síntese, tal como consta da sentença impugnada, que foi vítima de um acidente ocorrido em 18.07.2017, quando trabalhava como operadora de máquinas de componentes de 3ª por conta, sob a autoridade e direcção da 2ª Ré, ao tropeçar nuns cabos, seguido de queda, resultando as sequelas que descreve, tendo ficado afectada, a final, com incapacidade permanente para o trabalho, pelo que tem direito ao pagamento das quantias peticionadas, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo das Rés, sendo que 2ª Ré não cumpriu com as normas de segurança que lhe eram exigíveis, designadamente com o fornecimento de botas de protecção, nem acondicionou devidamente os cabos que passavam sobre o solo do corredor onde a Sinistrada desenvolvia a sua actividade, que foram causa directa e necessária do acidente ocorrido.


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Regularmente citadas, as RR. apresentaram contestação:

A 1ª Ré, declinou qualquer responsabilidade na reparação do acidente, por entender que o mesmo se deveu exclusivamente a violação culposa de regras de segurança pela Sinistrada, impostas pelo empregador, devendo ser descaracterizado como tal.

A 2º Ré, não aceitou o episódio descrito como acidente de trabalho, alegando que cumpriu com todas as regras de segurança e saúde no trabalho, tendo inclusive disponibilizado botas de protecção à Sinistrada, que se as não utilizou, tal consubstanciaria, outrossim, o incumprimento de ordens e directivas emanadas pela EP, e que à data da ocorrência inexistiam quaisquer cabos que passassem pelo solo, bem como fazia parte integrante da máquina junto à qual caiu um tapete antiderrapante, pelo que não tem qualquer responsabilidade na produção do acidente, tendo sido a Sinistrada que agiu com negligência grosseira ao não acondicionar devidamente as mangueiras nas quais tropeçou, fazendo igualmente um uso indevido do processo, por alegar factos que não correspondem à verdade e formular pedidos de valor extremamente elevado, concluindo, a final, pela improcedência da acção e pela condenação da Autora como litigante de má fé, em multa de valor não inferior a 1.000,00 €.


***

II – Foi proferido despacho saneador e, após selecção da matéria de facto assente e da matéria controvertida, prosseguiram os autos a sua normal tramitação com prolação de sentença cujo dispositivo se transcreve:

“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência, absolvo as Rés “F..., SA” e “D..., SA”, dos pedidos contra si formulados pela Autora AA”.


***

(…)


IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

1) A Autora, AA, nasceu no dia .../.../1976 (certidão fls. 23);

2) A Ré “D..., SA” dedica-se à fabricação de injecção de plásticos, calçados e produtos para a sua protecção (certidão fls. 83 a 92);

3) No dia 18 de Julho 2017, a Autora trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de “D..., S.A.”, com sede no ... - lote ...9, ...54 ..., detendo a categoria profissional de operadora de máquinas de componentes de 3º, e auferia o salário de 569,00 € x 14 meses +4,85 € x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + 142,25 € x 12 meses subsídio de turno, no total anual ilíquido de 10.846,70 €, tendo sido admitida ao serviço da Ré em 03 Julho 2017(docs. fls. 6 e 7);

4) A sociedade “D..., S.A.” tinha transferido, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...48, e em vigor na data referida em 3), para a Ré “F..., SA”, a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho da Autora, pela retribuição de 569,00 € x 14 + 142,25 € x 12 meses de subsídio de turno, num total anual ilíquido de 9.673,00 €;

5) No âmbito das funções exercidas (enquanto operadora de máquinas de componentes de 3ª), competia à Autora operar uma máquina de produção de botins de borracha (apelidada de “...”), permanecendo em pé numa estação da linha de produção junto a tal máquina;

6) A sua tarefa consistia na pulverização de moldes com um produto desmoldante, para que o excesso de produto PU não se fixasse nos moldes aquando da confecção das botas de borracha, utilizando para tanto umas pistolas de pressão, que estão acopladas a umas mangueiras que se encontram presas na parte lateral da máquina através do encaixe das pistolas;

7) A actividade da máquina era suspensa de 45 em 45 minutos, por forma a proceder à substituição de um parafuso em cada um dos dois injectores da referida máquina;

8) Para esse efeito, a ora Autora (ou uma outra trabalhadora) suspendia a actividade da máquina e dirigia-se (a Autora) para o seu lado esquerdo, na direcção de uma bancada, a cerca de 1,5 metros da sua estação, onde se encontravam as luvas de protecção que era necessário calçar para proceder à substituição dos referidos parafusos;

9) De seguida, a Autora calçava as referidas luvas e dirigia-se para o lado direito, regressando à sua estação e posicionando-se junto o injector;

10) Aí chegada, abria a porta do injector e retirava o parafuso;

11) Após o que se dirigia à bancada onde se encontravam os parafusos limpos (novos), regressando de seguida ao injector onde colocava o novo parafuso;

12) De seguida, a Autora regressava à sua estação e iniciava o processo de produção;

13) Para o referido efeito, a Autora percorria um corredor de cerca de 10 metros de comprimento e 1,5 metros de largura;

14) As mangueiras referidas em 6) não atravessavam o corredor referido, em 13), nem total nem parcialmente;

14) Na ocasião referida em 8) a Autora deixava de laborar com as pistolas de pressão, acopladas às ditas mangueiras;

15) Na data referida em 3), a Autora iniciou o seu turno pelas 22 horas, e era ela a única trabalhadora a quem competia manusear as pistolas e mangueiras da “...”;

16) Antes de iniciar o procedimento para substituição do parafuso, competia à Autora arrumar e pendurar as pistolas de pressão, por forma a que as mangueiras ficassem devidamente acondicionadas na parte lateral da máquina;

17) Na data referida em 3), a Autora, desde as 22 horas, já havia utilizado por diversas vezes as pistolas de pressão;

18) Pelas 23:30 horas, a Autora iniciou o procedimento de substituição do parafuso do injector, sem que para o efeito acondicionasse as referidas mangueiras, onde estavam acopladas as pistolas de pressão, à parte lateral da máquina;

19) E ao iniciar a marcha, para o corredor, do seu lado esquerdo, na direcção da bancada onde se encontravam as luvas de protecção, tropeçou nas referidas mangueiras e caiu para a frente, resultando-lhe traumatismo do seu pé esquerdo;

20) Na sequência do traumatismo sofrido, a Autora continuou a trabalhar sentindo dores no pé esquerdo;

21) Cerca de uma hora depois, porque as dores se intensificaram, foi transportada por uma colega ao Hospital ..., onde deu entrada, apresentando, como lesões, hematoma ao nível do bordo interno do pé esquerdo, com impotência funcional e dor à apalpação, tendo sido encaminhada para o Hospital ..., para onde foi transportada a fim de ser avaliada pela urgência de ortopedia, para eventual RX e exclusão de fractura;

22) Observada no serviço de Ortopedia no Hospital ..., em episódio de urgência, e realizado exame radiológico, a Autora não apresentava sinais de fractura, tendo recebido alta medicada por contusão no pé (docs. fls. 225 a 229);

23) A Autora regressou transportada ao Hospital ..., de onde saiu cerca das 06:00 horas do dia 19.07.2017, deslocando-se no seu próprio pé para sua casa, percorrendo uma distância de cerca de 3 km;

24) No dia 21.07.2017, em exame de tomografia computorizada do pé esquerdo, efetuado no Centro de Saúde ..., em ..., a Autora apresentava fractura cominutiva da base do 2º metatársico e fractura recente e alinhada do cuneiforme médio (doc. fls. 10);

25) No dia 09.11.2017, em exame de tomografia computorizada do pé esquerdo, efetuado no Centro Hospitalar ... – ..., em ..., a Autora apresentava alterações morfológicas e estruturais da extremidade proximal do 2º metatársico compatível com fractura, ainda não totalmente consolidada, e pouca expressão da fractura do cuneiforme médio, identificando-se apenas um arrancamento ósseo (doc. fls. 9);

26) Em 30.04.2018, a Autora apresentava sequelas de fracturas H3-H4 e cuneiforme do pé esquerdo, com tratamento conservador, e alterações degenerativas que não justificavam cirurgia, com indicação para evitar carregar pesos moderados a intensos, evitar pisos irregulares e permanecer muito tempo em pé, podendo beneficiar de calçado adaptado mais confortável (doc. fls. 11);

27) As lesões referidas em 19 e 24 e 25 são consequência da queda referida em 19;

28) Em resultado das lesões descritas, na sequência da queda descrita em 19), a Autora esteve em situação de: incapacidade temporária absoluta desde o dia 19.07.2017 a 30.10.2017 (104 dias); incapacidade temporária parcial de 2% desde o dia 31.10.2017 a 06.11.2017 (7 dias); incapacidade temporária absoluta desde o dia 07.11.2017 a 27.11.2017 (21 dias); incapacidade temporária parcial de 2% desde o dia 28.11.2017 a 04.03.2018 (97 dias); incapacidade temporária absoluta desde o dia 05.03.2018 a 30.04.2018 (57 dias) e incapacidade temporária parcial de 20% desde o dia 01.05.2018 a 23.05.2018 (23 dias), dia em que teve alta clínica, apresentando, como sequelas, metatarsalgia pós fratura enquadrável por analogia no capítulo 15.2.1 (pé plano), que lhe confere uma incapacidade parcial permanente de 4% desde 24.05.2018;

29) Por virtude das sequelas referidas em 28), a Autora apresenta dificuldade na marcha na medida da IPP que padece, dor na imobilização do pé que se agrava em terrenos irregulares e não consegue usar qualquer tipo de calçado;

30) A 2ª Ré foi alvo de uma visita inspectiva pela ACT, em 21.11.2017, no âmbito da qual lhe foram efetuadas várias recomendações tendo em vista a melhoria das condições de segurança e saúde dos trabalhadores, a utilização correta de equipamentos de protecção individual necessários à prevenção de riscos em resultado da avaliação de riscos e sobre sinalização/demarcação, desobstrução, limpeza e arrumação das vias de circulação, que a 2ª Ré cumpriu (doc. fls. 130-139);

31) Tal visita e recomendações nada tinham a ver com o episódio ocorrido com a Autora e/ou com a máquina na qual esta laborava ou o seu posto de trabalho;

32) As mangueiras referidas em 6) sempre estiveram acondicionadas/presas à parte lateral da máquina “...”;

33) O processo de utilização das mangueiras e de substituição do parafuso era feito de forma repetida pela Autora durante o seu turno/horário de trabalho;

34) Era à Autora, que as manuseia, a quem compete arrumar e acondicionar, quer antes de se deslocar ao local onde se encontravam os parafusos que lhe competia trocar, quer no final do turno, conforme procedimento instituído pela 2ª Ré e transmitido à Autora durante a sua formação;

35) Na data referida em 3), a 2ª Ré já havia fornecido botas de protecção à Autora, assim como as fornece a todos os seus trabalhadores, dando-lhes indicações para as usarem, independentemente do seu posto de trabalho;

36) A Autora, aquando do referido em 19), não colocou as botas de protecção que lhe foram fornecidas pela 2ª Ré;

37) No posto de trabalho da Autora não existe risco de queda de materiais/objectos ou de perfuração de pés, pelo que o uso de botas não é obrigatório (conforme relatório de avaliação de risco do posto de trabalho de fls. 190-191);

38) No posto de trabalho da Autora, na data referia em 3), existia um tapete antiderrapante que faz parte integrante da máquina “...”, que é igualmente de anti-fadiga e de segurança;

39) A Autora tropeçou nas mangueiras porque, ao abandonar a máquina em que exerce as suas funções com as pistolas de pressão de ar acopladas às mangueiras, ao invés de as colocar em segurança presas ao gradeamento lateral da máquina, abandonou-as no chão para ir buscar as luvas de segurança para alterar o parafuso;

40) A Autora conhecia os procedimentos a adoptar no exercício das suas tarefas, bem como os riscos associados à não arrumação das mangueiras;

41) Caso as mangueiras estivessem presas ao gradeamento lateral da máquina, a Autora, aquando do referido em 19), nelas não teria tropeçado;

42) A Autora, em finais de 2018, foi trabalhar para a área da restauração e desde agosto de 2020 trabalha como assistente operacional no Hospital ... fazendo o acompanhamento de doentes, auferindo um salário de montante superior ao que recebia na 2ª Ré;

43) Cerca de um ano após o episódio referido em 19), conseguia subir dunas na praia sem dificuldade;

44) A Autora recebeu da Ré Seguradora a quantia de 3.470,69 € a título de indemnizações por incapacidades temporárias desde a data do acidente até à data da alta pela Seguradora.

Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, para além dos que estão em contradição com a matéria provada ou logicamente excluídos, não se provou:

- que as mangueiras da máquina “...” atravessavam parcialmente o corredor referido em 13) e não estavam presas/fixas nas suas grades laterais, tendo bastante folga;

- que a Autora, aquando do referido em 19), tropeçou nas mangueiras, ficando com o pé esquerdo preso numa delas, por estas não terem sido afixadas pela 2ª Ré à parte lateral da máquina; - que a 2ª Ré nunca forneceu à Autora botas de protecção;

- que caso a Autora usasse botas de protecção, aquando do referido em 19), não teria tropeçado, ou tropeçando, sofreria lesões de menor gravidade;

- que só após o episódio referido em 19) é que a 2ª Ré passou a acondicionar as mangueiras ou cabos daquela máquina de outra forma, fixando-as à barra de protecção das grelhas da máquina e passou a fornecer botas de protecção aos seus trabalhadores;

- que a 2ª Ré não tenha observado ou assegurado as medidas de segurança no posto de trabalho da Autora;

- que por força de tal inobservância pela 2ª Ré, é que a Autora tropeçou nas mangueiras da máquina com a qual operava;

- que por força do episódio ocorrido, e da falta de condições de segurança da 2ª Ré, a Autora tenha perdido grande parte da sua autonomia, se sentisse rebaixada, humilhada e incapaz, por depender de terceiros para efectuar todas as tarefas do dia a dia;

- que por força das sequelas que padece, a Autora, nos dia de hoje, não consegue trabalhar devidamente.

- que a Autora, por virtude das sequelas que apresenta, necessite de assistência de terceira pessoa; - que a Autora, por virtude das sequelas que apresenta, necessite de fisioterapia, hidroterapia, exercícios de reforço muscular de qualquer membro ou de qualquer tratamento médico ou medicamentoso;

- que a Autora, por virtude das sequelas que apresenta, necessite de ajudas técnicas para se poder locomover ou aliviar as dores de que padece no pé esquerdo;

- que a Autora, por virtude do referido em 19 dos factos provados, passou a ter dor constante no pé esquerdo que lhe dificulta de forma severa a marcha e a posição ortostática durante muito tempo e condiciona a claudicação da marcha prolongada;

- que a Autora, por virtude das sequelas que apresenta, não consegue conduzir durante mais do que 5 minutos em cidade, com “pára-arranca” constante, por ter fortes dores ao imprimir força no pedal da embraiagem com o pé esquerdo;

- que a Autora, por virtude das sequelas que apresenta, não consegue conduzir um automóvel com caixa de velocidades manual, necessitando de um automóvel ligeiro de passageiros com mudanças automáticas, sem necessidade de utilizar o pé esquerdo para efectuar a passagem de mudança, por forma a não ter dores no pé esquerdo enquanto conduz.


***

V - Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões as questões a decidir são as seguintes:

1. Se a matéria de facto deve ser alterada.

2. Se o acidente se encontra descaracterizado.

Como questão prévia há que decidir se a apelação foi interposta dentro do prazo legal.

O patrono inicialmente nomeado à sinistrada, Drº BB, veio pedir escusa (V. requerimento de 03.07.21 refº 7835469).

O pedido de escusa, apresentado na pendência do processo, interrompe[1] o prazo que estiver em curso (nº 2 do artº 34º da Lei 34/2004 de 29.06).

O presente processo é pela lei tipificado como urgente.

O prazo para apelar é, assim, de 15 dias - nº 2 do artigo 80º do Código do Processo do Trabalho.

Mas se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, como é o caso, àquele prazo de 15 dias acrescem 10 dias - nº 3 do citado normativo.

Deste modo, no caso, é de 25 dias o prazo para interposição do recurso.

A notificação da nova patrona ocorreu, por via electrónica, em 02/09/2021, pelo que se presume efetuada no dia 05/09/2021.

Todavia, como este dia foi Domingo (dia não útil) a notificação deve ter-se por efetuada em 06.09.2021, primeiro dia útil seguinte.

Ora, tendo o recurso de apelação sido apresentado via citius em 01/10/2021, é de concluir que foi interposto tempestivamente no último dia do prazo dos 25 dias.

2. Se a matéria de facto deve ser alterada.

Antes de mais, cumpre decidir sobre a admissibilidade da impugnação factual.

Alegam as rés que o recurso de impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado uma vez que a Recorrente, ainda que tenha procedido à transcrição de excertos ou passagens dos depoimentos gravados em audiência em que funda o seu recurso, não indicou ou identificou com exactidão o n.º dos ficheiros de onde resultam tais depoimentos, omitindo os minutos e segundos do início e do fim desse mesmos depoimentos;

Decidindo:

Nos termos do n.º 1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Sendo que, nas situações previstas na alínea b) em que os meios probatórios em causa tenham sido gravados, conforme disposto na al. b), do n.º 2, do mesmo artigo “incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, sem prejuízo de poder proceder, à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Verifica-se, efectivamente, que a recorrente procedeu à transcrição de vários excertos das testemunhas que identifica e na base dos quais funda a sua discordância relativamente à forma como a matéria de facto foi decidida.

Todavia, com excepção de parte dos excertos relativos aos depoimentos da testemunha CC, em que indica o início e o fim da passagem (7:23 – 8:52), e da testemunha DD, em que indica o seu início (07:32 e 25:31), a recorrente não faz referência aos concretos minutos e segundos em que os depoimentos transcritos foram prestados, limitando-se a indicar a hora de início e fim dos depoimentos com referência ao início e fim da respectiva gravação.

Ora, quanto à indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a discordância tem entendido o STJ que não deve adoptar-se uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respectivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento.

Subjacente a este entendimento jurisprudencial está o facto do recorrente, embora não indicando de forma concreta e exacta as passagens dos depoimentos em que funda a sua discordância com o decidido e impunham decisão diversa, ter procedido à transcrição dessas partes dos depoimentos, ou de se tratar de depoimentos de reduzida extensão (veja-se o AC. do STJ de 26.012017, tirado do âmbito do processo desta Relação nº 599/15.T8CLD.C1.S1[2] e jurisprudência aí citada, consultável em www.dgsi.pt).

No caso em apreciação, considerando, designadamente, a reduzida extensão das transcrições, a possibilidade desta Relação ter acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, a impugnação factual não é de rejeitar por se reputar cumprido o disposto no artº 640º do CPC.

Contudo, antes de entrar propriamente na reapreciação da matéria de facto, importa relembrar que essa reapreciação por parte do tribunal superior não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

Em princípio, a alteração da decisão da matéria de facto só deve ocorrer quando se configure o denominado erro de julgamento, ou seja, quando possa ser detectada uma flagrante discrepância entre os elementos de prova e a decisão sobre a matéria de facto, devendo o tribunal de recurso apenas controlar a convicção do julgador de 1ª instância quando tal convicção se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

E dizemos em princípio porque a possibilidade da modificação da decisão da matéria de facto não deve estar limitada de forma absoluta à verificação de erros manifestos de reapreciação pois “desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão” - Abrantes Geraldes “in” Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, págª 67[3].

Assim, sempre sem prejuízo desta convicção, em princípio, só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento sendo ainda de referir que, em caso de depoimentos testemunhais contraditórios deve dar-se prevalência ao decidido em 1ª instância atendendo ao princípio da livre convicção do julgador.

Por outro lado, como se escreveu no acórdão desta Relação de 02.06.17, procº 2280/16.0T8LRA.C1, aliás, no seguimento de outros anteriormente proferidos, “ … a reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação, na base de uma reapreciação de meios de prova sem força probatória vinculativa, deve ser levada a efeito com especiais cautelas tendo em conta os princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, sendo de relevar que aquela imediação assiste ao juiz de 1ª instância só por são apreensíveis um conjunto de circunstâncias que relevam para efeitos de se aferir da credibilidade de depoimentos orais (v.g., reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões, gestos corporais, trocas de olhares, ruboridades …), circunstâncias essas que são insusceptíveis de captação pela simples gravação áudio dos depoimentos.

Aliás, é sabido que: i) a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram; ii) numa situação de comunicação, só 7% da capacidade de influência decorre do uso das palavras, correspondendo ao tom de voz e à fisiologia, respectivamente, 38% e 55% desse poder.

Justamente por causa do que vem de referir-se, cabe principalmente ao juiz da primeira instância o poder de avaliar a credibilidade dos depoimentos produzidos na sua presença, sujeitando-os continuadamente a uma apreciação racional e crítica à face das regras comuns da lógica e da razão, bem como das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, sem perder de vista as razões de ciência reveladas, as certezas e lacunas evidenciadas, as contradições, as hesitações, as inflexões de voz, a serenidade, a objectividade, o grau de convicção e capacidade de sustentação, o distanciamento de interesses em relação ao objecto do litígio, a coerência de raciocínio e de atitude, a seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, as coincidências e inverosimilhanças registadas.

Como ensina Enrico Altavilla, “O … testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.”.

Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, devendo ter-se sempre bem presente, a máxima de Bacon segundo a qual “Os testemunhos não se contam, pesam-se.” .

Importa ter em conta, igualmente, que as provas produzidas devem ser objecto de análise e valoração conjuntas e globais, e não de forma individualizada e descontextualizada ou fraccionada.

Assim sendo, em sede de reapreciação fáctica, cabe ao Tribunal da Relação aferir se a matéria de facto decidida pelo tribunal recorrido padece de erro evidenciável e/ou se tem suporte razoável nas provas produzidas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não sendo suficiente para alterar aquela matéria a diferente avaliação que os impugnantes fácticos façam da prova oral produzida”.

Deve ainda ser dito que a impugnação da matéria de facto não se basta com a simples transcrição dos depoimentos das testemunhas e/ou com a indicação do início e o fim das passagens constantes da gravação.

Tal impugnação exige, por parte do impugnante, uma análise crítica da prova[4] de maneira a justificar as alterações ou os porquês da alteração solicitada.

E, estando em causa a credibilidade de certo depoimento, há que demonstrar concretamente as razões em que assenta a falta de credibilidade, não bastado a mera alegação genérica de que a prova foi apreciada, v.g., sem apelo ao bom senso ou às regras da experiência.

A impugnação não se basta com a simples alegação de que certa testemunha disse isto ou aquilo[5] para que, o que ela afirmou, tenha necessariamente de ser dado como provado, ou seja, deve o recorrente apresentar as concretas razões pelas quais desses meios de prova se impunha retirar conclusões fácticas diversas daquelas a que chegou o tribunal recorrido.

Acrescente-se que a apreciação dos elementos probatórios deve ser contextualizada, ou seja, deve ter-se em conta, no que toca a depoimentos testemunhais, a totalidade do depoimento e não apenas este ou aquele excerto que pode dar uma ideia diferente quando apreciado fora do contexto em que foi produzido.

Aplicando tudo o que atrás ficou dito à impugnação factual em questão, diremos:

Pretende a recorrente que seja considerada não provada a seguinte matéria dada como provada:

32) As mangueiras referidas em 6) sempre estiveram acondicionadas/presas à parte lateral da máquina “...”;

34) Era à Autora, que as manuseia, a quem compete arrumar e acondicionar, quer antes de se deslocar ao local onde se encontravam os parafusos que lhe competia trocar, quer no final do turno, conforme procedimento instituído pela 2ª Ré e transmitido à Autora durante a sua formação;

35) Na data referida em 3), a 2ª Ré já havia fornecido botas de protecção à Autora, assim como as fornece a todos os seus trabalhadores, dando-lhes indicações para as usarem, independentemente do seu posto de trabalho;

A recorrente baseia a sua impugnação fundando-se nos depoimentos das testemunhas EE, CC, DD e FF.

Analisando os excertos transcritos pela recorrente e confrontando-os com os excertos transcritos pelas rés nas contra alegações não vislumbramos onde a 1ª instância errou ao dar como provada a materialidade que agora se impugna.

Na verdade, o teor dos depoimentos permite perfeitamente concluir que a julgadora tivesse formado a sua convicção do modo como a formou e explicitou na respectiva fundamentação.

Acresce que, quanto ao ponto 35) a Recorrente não impugna o facto provado 36) [“A Autora, aquando do referido em 19), não colocou as botas de protecção que lhe foram fornecidas pela 2ª Ré”], pelo que aceita que, de facto, as botas lhe foram fornecidas.

Por outro lado, quanto aos pontos 32) e 34) verifica-se ainda que a Recorrente não coloca em causa qualquer dos factos dados como provados versados sob os pontos 39) e 40) [“A Autora tropeçou nas mangueiras porque, ao abandonar a máquina em que exerce as suas funções com as pistolas de pressão de ar acopladas às mangueiras, ao invés de as colocar em segurança presas ao gradeamento lateral da máquina, abandonou-as no chão para ir buscar as luvas de segurança para alterar o parafuso; a Autora conhecia os procedimentos a adoptar no exercício das suas tarefas, bem como os riscos associados à não arrumação das mangueiras], o que revela, conforme refere a ré seguradora, o conhecimento da trabalhadora quanto aos procedimentos a adoptar na substituição do parafuso.

Por tudo isto, não se justifica a alteração factual pretendida, pelo que se decide manter inalterada matéria de facto tal como foi decidida em 1ª instância.

3. Se o acidente se encontra descaracterizado:

Segundo a autora o evento infortunístico ocorreu devido à inobservância de regras de segurança no trabalho por parte da ré empregadora.

Esta entende que tal evento se ficou a dever a negligência grosseira da sinistrada.

Por seu turno, a seguradora considera que o acidente ocorreu por a sinistrada ter violado sem causa justificativa condições de segurança imposta pelo empregador.

E foi com base nesta causa de descaracterização que o tribunal lhe negou o direito à reparação lendo-se, a propósito, na sentença o seguinte. “Ora, no caso em apreço, os factos dados como provados são suficientes para concluir que a Autora, de forma voluntária, consciente do perigo a que se expunha, e sem qualquer causa justificativa ou desculpável, violou as condições de segurança estabelecidas pela sua entidade patronal relativamente ao procedimento a ter em causa aquando da substituição do parafuso do injetor, ao qual deu início sem que antes tivesse acondicionado as mangueiras na máquina e nas quais tropeçou, e que naquelas circunstâncias se impunham, e que logicamente teria evitado o episódio sucedido.

Quanto ao nexo de causalidade exclusivo entre o comportamento da Autora, ao não ter acondicionado as mangueiras nas quais tropeçou, a que estava obrigada por ser esse o procedimento instituído e transmitido pela EP, e a ocorrência deste acidente, entende-se também que o mesmo se encontra verificado, não se vendo que outros factos (concretos) devessem ser provados pela Ré para se concluir pela prova desse nexo causal exclusivo.

Desta forma, temos que o presente acidente de trabalho se encontra descaracterizado (…).

A Jurisprudência do STJ encontra-se consolidada no sentido de exigir para verificação desta causa excludente do direito à reparação do acidente os seguintes requisitos cumulativos: 1 – A existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou pela lei; 2 - A prática, por parte do sinistrado, de uma conduta – acto ou omissão – violadora dessas regras ou condições de segurança; 3 - A voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa, por parte do sinistrado; 4 - A existência de um nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente ocorrido.

Por conseguinte, estão abarcadas pelo preceito quer as ordens expressas quer as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal e que sejam do conhecimento do trabalhador[6].

As condições de segurança a que alude o referido preceito são as normas ou instruções que visam acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores, visando eliminar ou diminuir os riscos ou perigos para a sua saúde, vida ou integridade física.

Há quem entenda que a lei não fez depender a descaracterização do acidente do grau de culpa do sinistrado, antes tendo optado por considerar que a simples violação, sem causa justificativa, das condições de segurança é razão suficiente para a fazer operar.

Assim, de acordo com PEDRO ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852)[7], neste caso, “o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras”.

E, mais adiante, conclui, “se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador. Contudo, a responsabilidade não será excluída se o trabalhador, atendendo ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento das condições de segurança ou se não tinha capacidade de as entender (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 143/99”.

Contra este entendimento tem vindo a decidir o STJ, lendo-se no AC de 12.12.2017, procº 2763/15.0T8VFX.L1.S1 in www.dgsi.pt que a Lei 100/97, para além de alterações de semântica, limitou-se a acrescentar à formulação da al. a) do nº 1 da Lei 2127, que também as violações das normas de segurança previstas na lei e não apenas as estabelecidas pela entidade patronal conduziam à descaracterização do acidente.

Também no âmbito desta Lei esta Secção vinha entendendo que não bastava a mera inobservância pelo sinistrado das normas de segurança legalmente prescritas, sendo ainda necessárioque o trabalhador desrespeite voluntariamente e sem causa justificativa tais regras e a sua conduta tenha tido como consequência a produção do sinistro”[8], mostrando-se “excluídas as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes, ou não, da habituação ao risco”[9], “não abrangendo a inadvertência momentânea do sinistrado”[10].

A formulação da Lei 100/97, com pontuais e irrelevantes alterações, foi mantida no actual art. 14º nº 1, al. a) da LAT.

Analisando este preceito refere Júlio Manuel Vieira Gomes[11] “sublinhe-se, desde logo, que “a prática de actos e omissões que importem a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei” não representa uma alínea autónoma, mas a parte final da alínea a) onde estão igualmente previstos os acidentes dolosamente provocados pelo sinistrado. Este elemento sistemático é importante, porque ilustra bem que estas situações de violação das condições de segurança contempladas pela lei são aquelas suficientemente graves para terem sido quase “equiparadas” ao dolo”.

E continua, mais adiante, o mesmo autor[12]: “a privação da reparação por acidente de trabalho é uma consequência desproporcionada, a não ser para comportamentos dolosos ou com um grau de negligência muito elevado que sejam, eles próprios, a causa do acidente, de tal modo que verdadeiramente se quebre o nexo etiológico entre o trabalho e o acidente.

(…)

Muito embora nos pareça que a lei dos acidentes de trabalho não distingue entre negligência grosseira e negligência grave do trabalhador sinistrado, afigura-se-nos que ainda mais criticável que esta distinção é inferir dela, por força da redacção da lei que tem outra explicação e outra génese histórica, que só nos casos de negligência grosseira é que haveria que atender a factores como a habitualidade ao perigo ou os usos da empresa ou da profissão. Pensamos ser, com todo o respeito, incompreensível, interpretar a lei como se a única causa justificativa da violação das condições de segurança fosse, exclusivamente, o desconhecimento, sem culpa, das regras de segurança ou a impossibilidade ou dificuldade em apreender o seu conteúdo.(…) Não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-‑se um comportamento subjectivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho.

Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstracto, e não poderá deixar de atender a factores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a passividade do empregador perante condutas similares no passado (…) e, simplesmente, factores fisiológicos e ambientais como o cansaço, o calor ou o ruído existente no local de trabalho, Destarte, deve considerar-se (…) que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além da dificuldade em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador”.

Tudo para concluir que não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaracterizado. É necessário que essa infracção ocorra por culpa grave do trabalhador, que tenha consciência da violação[13], não relevando os casos (citando Carlos Alegre) de “culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco”.

Como acima ficou referido, para que ocorra a descaracterização do acidente de trabalho com base na apontada causa de descaracterização é necessário, em primeiro lugar, a existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou pela lei.

No caso dos autos o acidente ocorreu por a sinistrada, na operação de mudança do parafuso do injector, ter tropeçado nas mangueiras da “...” o que levou a que tivesse sofrido uma queda.

Embora se tenha provado que, antes de iniciar o procedimento para substituição do parafuso, competia à Autora arrumar e pendurar as pistolas de pressão, por forma a que as mangueiras ficassem devidamente acondicionadas na parte lateral da máquina e que a sinistrada conhecia os procedimentos a adoptar no exercício das suas tarefas, bem como os riscos associados à não arrumação das mangueiras, não se sabe quais os riscos concretos, conhecidos pela sinistrada, associados à falta da arrumação das mangueiras, não sendo possível concluir, sem mais, que tais instruções se destinassem, por via directa ou indirecta, a acautelar ou proteger a segurança dos trabalhadores intervenientes na operação de mudança do parafuso do injector da “...” contra o risco de tropeçamento (até se pode admitir que a arrumação das mangueiras tivesse em vista, por exemplo, facilitar a colocação do parafuso, ou seja, de modo a facilitar a execução dessa operação).

Por outro lado, desconhecemos o modo ou forma como a obrigação de arrumar a mangueira foi transmitida à autora.

É que, para se aferir se essa obrigação visava acautelar a segurança dos trabalhadores, haveria que saber o contexto em que essa instrução foi transmitida, transmissão esta que deverá ser feita de forma precisa e clara de maneira a ser perfeitamente perceptível pelos trabalhadores no sentido destes poderem assimilar convenientemente os riscos inerentes à sua violação.

No caso que nos ocupa, entendemos inexistir qualquer norma ou regra sobre condições de segurança no trabalho imposta pelo empregador, na medida em que não pode ser visto como tal a simples obrigação de arrumação das mangueiras por parte da sinistrada num dos lados da “...” aquando da substituição do parafuso do injector.

Mas ainda que, por hipótese, assim não seja entendido, sempre no contexto em que ocorreu a queda, jamais a inobservância da pretensa norma ou regra de segurança pode ser considerada como uma violação subjectivamente grave.

A sinistrada encontrava-se a executar uma tarefa banal de mudança de um parafuso, que tinha de ser feita de 45 em 45 minutos, ou seja, tal operação de mudança era realizada de forma rotineira ou habitual, executada várias vezes durante o período diário de trabalho e, necessariamente, havia já sido realizada inúmeras vezes pela trabalhadora, sem que se tenha procedido à prévia arrumação das mangueiras num dos lados da “...”.

Neste contexto, jamais se poderia afirmar a culpa grave da autora na inobservância da pretensa regra de segurança, sendo que a prova dos factos da inexistência de causa justificativa compete às entidades responsáveis pela reparação do acidente, por serem factos conducentes à descaracterização, e, por isso, impeditivos do direito invocado pelo sinistrado (artigo 342º, n.º 2, do Código Civil)[14].

Concluímos, assim, que o evento infortunístico não se encontra descaracterizado, dando lugar à reparação, na qual não se inclui a indemnização por danos não patrimoniais por não estar verificado o circunstancialismo a que alude o artº 18º nº 1 da LAT.

Por esta reparação são responsáveis a empregadora e a seguradora, esta nos limites da responsabilidade transferida.

Acrescente-se que não colhe a alegação da empregadora no sentido de que a sentença absolutória transitou em julgado no que a ela diz respeito.

Se é verdade que nas alegações a sinistrada pede apenas a condenação da “ré Seguradora, a pagar à Autora as quantias peticionadas”, não é menos verdade que também pede “a revogação da D. sentença recorrida e, em consequência, o reconhecimento dos direitos da Autora decorrentes do acidente de trabalho sofrido”, devendo ser a “sentença recorrida revogada e substituída por outra”.

Sem margem para quaisquer dúvidas, a recorrente não aceitou a totalidade da sentença e não apenas uma parte desta.

Só um mero lapso explica não se ter referido também à empregadora.

Não ocorreu, pois, o invocado caso julgado.


***

IV Termos em que, na revogação da sentença impugnada, se delibera julgar a apelação parcialmente procedente em função do que se decide condenar as rés a pagar à autora as seguintes quantias:

1. O capital de remição calculado com base na pensão anual de € 303,71, calculada com base no salário anual de € 10.846,70, sendo da responsabilidade da entidade seguradora o montante de € 270,84 calculado com base no salário anual transferido de € 9.673,00 e da responsabilidade da entidade patronal o montante de € 32,86 calculada com base no salário anual não transferido de € 1.173,70 reportada a 24/05/2018 e calculado com base na desvalorização de 4,00%

2.- A quantia de € 29,33 a título de diferenças de indemnizações por Incapacidades Temporárias, por parte da entidade seguradora;

3. A quantia de € 423,53 a título de indemnizações por Incapacidades Temporárias, por parte da entidade patronal;

4 – Juros de mora à taxa legal de 4% sobre o capital de remição desde o dia seguinte ao da alta e sobre cada uma das restantes prestações devidas, desde a data do seu vencimento e até integral pagamento.


*

Custas a cargo de cada uma das partes na proporção da sua sucumbência (sem prejuízo do apoio judiciário concedido à sinistrada).

*

(…)

*

Coimbra, 11 de Março de 2022

*

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)



[1] A interrupção implica a inutilização do tempo que, entretanto, tenha decorrido.
[2] V., ainda, AC.STJ. de 22.01.207, procº 988/08.3TTVNG.P4.S1.
[3] No domínio do novo Cód. Proc. Civil escreve este autor in Recursos no Novo Cód.Proc. Civil, 2013, págª 224 que “quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre a apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência
[4]A omissão, a insuficiência ou a suficiência da análise crítica, pelo recorrente, das provas a reapreciar é questão que tem a ver com o mérito da impugnação, com a procedência ou improcedência do recurso, mas não com a sua liminar rejeição ou aceitação.” – Acórdão do STJ de 22/2/2018, proferido no processo 8948/15.1T8CBR.C1.S1, cujo sumário poderá consultar-se em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/social/Mensais/Fevereiro_2018.pdf, no qual se lê que Na verdade, ao recorrente ao dizer que determinado facto não devia ser dado como provado pelo confronto da prova testemunhal com a documental fazendo uma transcrição da primeira, não está a fazer uma análise critica da prova, nem sequer a fornecer os elementos necessários para permitir que o tribunal a faça, deixando nas mãos do tribunal uma actividade “recolectora” de todos os documentos e dos depoimentos identificados, não sendo assim possível ao tribunal de recurso refazer o percurso/raciocínio lógico-jurídico que o próprio recorrente fez para concluir de forma diferente daquilo que a instância inferior decidiu.
            Uma correta impugnação que cumpra o ónus previsto no art. 640º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorrectamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado e não provado”..
[5] Acórdão do STJ de 3/12/2015, proferido no processo 1348/12.7TTBRG.G1.S1, acórdão do STJ de 9/7/2015, proferido no processo 961/10.1TBFIG.C1.S1, este último com sumário disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Mensais/civel2015_07.pdf, acórdão do STJ de 9/7/2015, proferido no âmbito do processo 961/10.1TBFIG.C1.S1, acórdão da Relação do Porto de 17/3/2014, proferido no processo 3785/11.5TBVFR.P1, acórdão da Relação de Coimbra de 24/2/2015, proferido no processo 145/12.4TBPBL.C1, acórdão da Relação de Guimarães de 2/3/2017, proferido no processo 97/12.0TBVRM.G1.
[6] Segundo Pedro Romano Martinez (Dtº Trabalho, 3ª ed. p.851) estas condições de segurança “podem constar de regulamento interno de empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado da empresa”.
[7] Obra levada à estampa do domínio da LAT anterior mas que mantém inteira actualidade em face do regime da LAT, atualmente em vigor e aplicável ao caso dos autos.
[8] Ac. desta Secção de 6.12.2011, proc. 5139/07.97TTLSB.L1.S1 (Sampaio Gomes):“(…) III - Para que o acidente de trabalho se deva descaracterizar por violação de regras de segurança por parte do trabalhador é necessário, por um lado, que essas regras estejam estabelecidas por directivas da entidade empregadora ou por disposição da lei e que a entidade empregadora crie condições para o seu cumprimento e, por outro lado, que o trabalhador desrespeite voluntariamente e sem causa justificativa tais regras e a sua conduta tenha tido como consequência a produção do sinistro (…)”.
[9] Acórdão de 10.12.2008, proc. 1893/08 (Sousa Grandão): “I - A descaracterização do acidente de trabalho, com esteio na al. a), do nº 1 do art. 7.º, da LAT exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: que se evidencie uma conduta do sinistrado, por acção ou por omissão, suportada por uma vontade dolosa ou intencional na sua adopção; que existam condições de segurança, impostas por lei ou pelo empregador, e que as mesmas tenham sido desprezadas pelo acidentado, sem causa justificativa. II - Da previsão normativa em análise mostram-se excluídas as chamadas culpas “leves”, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimentos ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes, ou não, da habituação ao risco. III - Não pode afirmar-se o preenchimento desta hipótese de descaracterização se os autos não fornecem o menor elemento que habilite a afirmar a natureza volitiva - e, consequentemente, o seu grau - da omissão do sinistrado em colocar guarda-corpos na plataforma de trabalho de que veio a cair (…)”.
[10] Acórdão de 11.10.2005, proc. 2062/05 (Sousa Grandão): “I - A descaracterização do acidente de trabalho pressupõe a constatação de que o sinistrado incorreu na violação de normas de segurança, sendo essa violação causal do acidente (art. 7.º, n.º 1, a), da LAT) ou que este se ficou a dever a negligência grosseira e excessiva do mesmo sinistrado (art. 7.º, n.º 1, b), da mesma lei). II - A previsão referida na alínea a), importa a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: existência de condições de segurança impostas pela entidade patronal ou pela lei; violação, por acção ou por omissão do sinistrado, dessas condições; actuação voluntária embora não intencional, e sem causa justificativa da vítima; acidente provocado, em exclusivo, por aquela actuação, não abrangendo a inadvertência momentânea do sinistrado (…)”.
[11] In O ACIDENTE DE TRABALHO – O ACIDENTE IN ITINERE, Coimbra Editora, 2013, págs. 226-227, dissentindo, aliás, da tese defendida por Pedro Romano Martinez, in DIREITO DO TRABALHO, 2017, 8ª edição, Almedina, página 897/898.
[12] In ob. cit. págs. 232/234 e 240/246.
[13] Sublinhado nosso.
[14] Ac. STJ de 06.07.2017 procº 1637/15.05T8VFX.L1.S1.