Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3915/18.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: EXPLORAÇÃO DE PEDREIRAS
QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO
PROPRIEDADE DAS PEDRAS
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 4º DO DL 89/90, DE 16.3 – JÁ REVOGADO – E ART.º 12º DO D.L. 270/2001, DE 6.10; ARTºS 213º E 408º, Nº 1, DO C. CIVIL.
Sumário: I – A qualificação do contrato de exploração de pedreiras não tem tido resposta unânime da doutrina, constatando-se a existência de teses opostas, partindo todas elas da classificação jurídico que efetuam da pedra extraída.

II- Uns defendem que estamos perante a constituição de um direito real de aquisição e outros de gozo.

III - Entre quem defende que através desse contrato foi constituído um direito real de aquisição está Oliveira Ascensão que entende que nesta categoria se encontra o direito à mineração, em que a coisa que se vai adquirir só tem existência autónoma depois da exploração o que implica a sua separação do conjunto.

IV - Por sua vez também tem sido defendido que no caso de direito de mineração há um direito de gozo sobre uma mina cuja faculdade de fruição permite a aquisição do minério, sendo a aquisição unicamente o resultado da fruição.

V - No entanto, em qualquer uma das teses, tendo em atenção que o objeto dos contratos celebrados era a exploração das pedreiras impõe-se apurar a natureza da pedra dela extraída com vista à determinação de qual o momento em que a sua propriedade transferiu para a Autora, questão que é a que agora está em apreciação.

VI - A doutrina tem vindo maioritariamente que as pedras extraídas das pedreiras são produtos da pedreira e não frutos.

VII - Quer se qualifique a pedra extraída da pedreira como produto ou fruto, a doutrina mostra-se unânime a defender que, no essencial, lhe é aplicável o regime dos frutos naturais, regime que também será o aplicável no caso do contrato de compra e venda.

VIII - Os frutos naturais percebidos ou colhidos, nos termos do disposto no art.º 213º do C. Civil, pertencem a quem a eles tinha direito durante a vigência do seu direito.

IX - Se qualificarmos o contrato como um contrato misto de compra e venda também neste a transferência da propriedade da pedra, aplicando-lhe o regime dos frutos naturais, apesar de ocorrer por mero efeito do contrato – art.º 408º, nº 1 do Código Civil – só se verifica no momento da extração ou separação, não se constituindo nestes casos uma obrigação de dare, da qual fique dependente a transmissão da propriedade.

X - A cessão da posição contratual coloca o cessionário na posição do explorador inicial, passando a ter o direito de gozar o terreno onde se situa a pedreira com a finalidade de dela extrair pedra, transmitindo-se o direito de propriedade sobre ela à medida que a for extraindo.

Decisão Texto Integral:




Autora: S... – Exploração de Pedreiras, Lda.
Ré: C..., CRL




Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra  B... – Exploração de Pedreiras, Lda., pedindo que:
a) seja a autora declarada, com exclusão de outrem, proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ... até à presente data;
b) seja a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre os sobreditos blocos de calcário e, em consequência, a abster-se de, por qualquer meio, negociar, alienar, vender ou onerar os mesmos;
c) seja a ré condenada a permitir que a autora carregue os referidos blocos e os retire para um local à sua escolha.
Conforme consta do relatório da sentença recorrida que se passa a transcrever:
Para alicerçar esse seu conjunto de pretensões, muito em síntese, alegou que, por contrato celebrado em 11 de março de 2010, para pagamento da dívida de €1.920.000,00 a autora fez dação à C... da “licença de exploração nº..., emitida pela Direção Regional de Economia do Centro”, no contexto e nas condições que melhor descreveu, tendo permanecido na exploração da pedreira, a título gratuito, até final do mês de junho de 2014.
Por esta altura a autora tinha depositados no local da pedreira cerca de 2.000 blocos de calcário e foi acordado entre a ela e a C... que poderia manter os blocos de sua propriedade na área da pedreira, enquanto não fosse notificada por escrito para a desocupar, o que não aconteceu.
Em 12/12/2017 a autora tomou, casualmente, conhecimento de que a C... havia cedido a exploração da pedreira aqui em causa à ré, em termos e condições que desconhece, tendo vindo a apurar que o acordo incluía todos os blocos já extraídos pela autora e ainda depositados na pedreira do ..., que aquela visava começar a comercializar, como se fossem seus.
A ré foi devidamente citada e apresentou a respetiva contestação, na qual, em síntese, defendeu que a matéria extraída da pedreira integra esta e apenas pode ser comercializada por quem seja titular da respetiva licença de exploração, o que a autora transmitiu.
Defendeu, a final, a improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
Por apenso a esta causa foi deduzido incidente de oposição espontânea, no âmbito do qual foi determinado que a aí opoente C..., CRL passasse a assumir, nesta causa principal, a posição de ré, em substituição da primitiva ré B..., LDA, contra ela prosseguindo a presente ação intentada pela autora S...- EXPLORAÇÃO DE PEDREIRAS, LDA.
Consignou-se que, no seguimento dessa decisão, se entende que a matéria – de facto e de direito – a discutir na causa é aquela que foi definida nos articulados das partes entre as quais prossegue a ação, ou seja, na petição inicial desta ação e na petição inicial e na contestação apresentadas no referido apenso.
No âmbito daquela oposição espontânea, a aí opoente alegou, muito em apertada síntese, que a autora não é dona dos blocos calcários extraídos ou depositados na pedreira de ...; quem é dona dos blocos é a opoente, pelos fundamentos de facto e de direito que desenvolveu, tendo, para assim concluir, chamado à colação, a par do mais, as noções de pedreira e de dação em pagamento.
Mais defendeu que a autora bem sabe que não tem qualquer razão nos argumentos que invoca na petição inicial, litigando de má-fé.
Terminou pedindo que, na procedência da oposição, seja:
a) - A opoente declarada, com exclusão de outrem, a legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que fazem parte integrante da pedreira da qual é dona e titular da exploração, denominada “...”, devendo os mesmos ser recolocados dentro do espaço da pedreira pela autora;
b) – A autora condenada como litigante de má-fé devendo ser condenada em multa e indemnização a pagar à opoente, fixada livremente pelo Tribunal, sendo incluídos   honorários de advogado, nos termos do disposto no artigo 543º.

Notificada para os termos desse incidente, a aqui autora, também, nesta parte, em muito apertada síntese, impugnou alguns dos factos alegados pela opoente e reiterou a sua versão dos factos já constante da petição inicial da ação, havendo frisado as razões de facto e de direito em face das quais entende ser proprietária dos blocos alvo dos pedidos.
Acrescentou que a opoente deduz pretensão cuja completa falta de fundamento não ignora; altera a verdade dos factos de uma forma escandalosa, inclusive passando por cima de documentos da sua lavra; faz do processo um uso manifestamente reprovável, com o fito de conseguir um objetivo ilegal e entorpecer a ação da justiça, na decorrência do que defendeu que litiga de má-fé, “pelo que deverá ser condenada em multa exemplar e em indemnização a favor da oponida”.

Posteriormente, a autora apresentou articulado superveniente, alegando ter sido constatada a existência de mais 525 blocos de calcário por si extraídos na pedreira supra mencionada, havendo ampliado o seu pedido no sentido de ser reconhecida a sua propriedade exclusiva sobre esses 525 blocos, que se encontram devidamente marcados e numerados dentro da pedreira.
A opoente, a par do mais, impugnou parte dos novos factos articulados pela autora.
Veio a ser admitido o articulado superveniente, bem como a ampliação do pedido.
Foi proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Pelo exposto e na decorrência das normas legais citadas:
- Julga-se a presente ação improcedente, absolvendo-se a opoente de todos os pedidos formulados pela autora.
- Julga-se procedente a oposição espontânea apresentada por C..., CRL e, na medida dessa procedência, reconhece-se esta como legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que fazem parte integrante da pedreira da qual é dona e titular da exploração, denominada “...”, devendo os mesmos ser recolocados dentro do espaço da pedreira pela autora.
- Julgam-se improcedentes ambos os incidentes de litigância de má-fé deduzidos nos autos, absolvendo-se cada uma das partes dos inerentes pedidos apresentados pela contraparte.
A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
A Ré apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão.
1. O objecto do recurso
- nulidade da sentença – 615º, n.º 1, d)
- impugnação da matéria de facto
- titularidade da pedra extraída
- nulidade da dação em pagamento
- nulidade da concessão da exploração
2. Nulidade da sentença
A Autora imputa à sentença proferida o vício da nulidade, alegando que o tribunal não se pronunciou sobre todas as questões que devia apreciar, invocando que na sentença é omitida qualquer referência à matéria de facto por si alegada bem como aos documentos que não foram impugnados.
Dispõe o art.º 615º, n.º 1, d) do C. P. Civil:
É nula a sentença quando o juiz …deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…
O art.º 608º, n.º 2, do C. P. Civil determina que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excep­tuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhe­cimento oficioso de outras.
A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do C. P. C. – quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – verifica-se quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudi­car a apreciação das restantes – artigo 608º, nº 2, do C. P. C.
Da conjugação das normas citadas o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação, mas está, naturalmente, impe­dido de se pronunciar sobre questões não submetidas ao seu conhecimento: no primeiro caso – se não se pronunciar sobre todas as questões – existirá uma omissão de pronúncia, no segundo caso – conhecer de questões não submetidas à sua apre­ciação – ocorrerá um excesso de pronúncia.
Das alegações agora apresentadas resulta manifesto que a Autora discorda do julgamento da matéria de facto quer por não considerar toda a matéria alegada quer por não considerar algum dos meios de prova.
Tanto a não valoração de um meio de prova relevante como a deficiência da matéria de facto não integram a falta de apreciação de uma questão, geradora de uma nulidade da sentença.
Deste modo não se verifica este fundamento de nulidade.
3. Os factos
...
Assim, mantém-se o facto contido na alínea a) como não provado.
...
 Assim, mantém-se o facto 23 nos exactos termos dos julgados provados.
Assim, exceptuando o que ficou decidido quanto à cláusula 6ª do contrato celebrado entre a Autora e Ré, mantém-se inalterada a matéria de facto.
Os factos provados são:
1. A autora é uma sociedade comercial que tem por objeto social, entre outras, a atividade de exploração de pedreiras (documento 1 dos autos de procedimento cautelar apensos).
2. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ..., em 10 de setembro de 1991, a Junta de Freguesia da ... concedeu à autora a exploração de uma pedreira, “sita em ..., situada na área de jurisdição daquela junta, abrangendo uma área de DOIS MIL E QUINHENTOS METROS QUADRADOS” (documento 2 dos autos de procedimento cautelar).
3. A concessão de exploração de pedreira foi outorgada pelo período de 3 anos, renovável.
4. Em 31 de dezembro de 1991 a autora celebrou com a Junta de Freguesia da ... um segundo contrato de concessão de exploração de pedreira.
5. Este segundo contrato de cessão de exploração, foi celebrado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ... e teve por objeto uma área anexa à referida anteriormente, situada em “..., com a área de 17.500 metros quadrados” (documento 3 dos autos de procedimento cautelar).
6. Entre a autora e a Junta de Freguesia da ... veio a ser celebrado um terceiro contrato de concessão de exploração de pedreira, outorgado por escritura pública lavrada, em 11 de junho de 2007, no Cartório Notarial de ... em ... (documento 4 dos autos de procedimento cautelar).
7. Por via desse contrato, a Junta de Freguesia da ..., por delegação da Assembleia de Compartes dos Baldios da mesma freguesia, cedeu à autora a exploração de uma pedreira situada no “prédio rústico, sito em ..., freguesia da (…) inscrito na matriz sob o artigo (…) com a área de quarenta e três mil e vinte e três metros quadrados” (documento 4 dos autos de procedimento cautelar).
8. O contrato foi celebrado pelo prazo de 4 anos, renováveis “por iguais períodos, enquanto não for denunciado validamente por qualquer das partes” (documento 4 dos autos de procedimento cautelar).
9. Mais ficou a constar do referido contrato que “a concedente da exploração não goza do direito de renunciar ao contrato nem no final do período inicial nem no das suas três primeiras renovações(§ único da cláusula 1.ª) (documento 4 dos autos de procedimento cautelar).
10. Ficou ainda a constar do aludido contrato que “este contrato só produz efeitos com a atribuição da respetiva licença de utilização, sendo a partir daí que se contam os prazos acima referidos (cláusula 4ª, conforme o mesmo documento).
11. E que “a sociedade exploradora não poderá ceder a sua posição contratual sem acordo da concedente” (cláusula 6ª - mesmo documento 4).
12. A Direção Regional de Economia do Centro, a pedido da autora, emitiu, em 28/05/2009, o alvará de licença de exploração de uma pedreira sita em ..., freguesia de ..., com a área de 63.023 m2, (ou seja, a totalidade da área concessionada pela Junta de Freguesia da ... à autora) ao qual atribuiu o número ... (documento 5 dos autos de procedimento cautelar).
13. No início do ano de 2010 a autora devia, globalmente, à C... a quantia de €1.920.000,00 (um milhão novecentos e vinte mil euros).
14. Por via da dificuldade de vender e escoar os blocos extraídos, as suas dificuldades de tesouraria foram-se agravando, ao mesmo tempo que a C... ia insistindo no pagamento da dívida, por esta já estar em incumprimento.
15. Por contrato que as partes denominaram de “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, celebrado em 11 de março de 2010, para pagamento da dívida de €1.920.000,00, a autora fez dação à C... da “licença de exploração nº..., emitida pela Direção Regional de Economia do Centro” – nos moldes melhor vertidos no documento 6 dos autos de procedimento cautelar, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16. Ficou, nomeadamente, estabelecido no contrato que a exploração da pedreira seria doravante cedida pela C... “a título gratuito” à autora (considerando d) - mesmo documento), constando ainda da cláusula 6ª:
A Primeira Outorgante obriga-se a, durante o período de vinte e quatro meses (24 meses) período durante o qual irá ceder a título gratuito a exploração da pedreira à Segunda Outorgante, não proceder ao averbamento da Licença de Utilização a seu favor junto do Ministério da Economia.
17. Pelo referido contrato, a C... autorizou que, a partir daquele momento, a autora explorasse “a suprarreferida pedreira, dela retirando a pedra e comercializando-a da melhor forma que entenda” (Cláusula nona, nº 2) – citado documento 6).
18. Ficou ainda estabelecido que a “cedência gratuita” seria por dois anos, prazo findo o qual a autora seria notificada para recomprar a licença, sob a cominação de, não o fazendo, a C... poder dar à mesma o destino que bem entendesse (Cláusulas 12ª e 13ª, conforme o mesmo documento).
19. O prazo de dois anos fixado na cláusula 12ª do contrato foi, entretanto, prorrogado por mais um ano, até 21 de março de 2013, por aditamento celebrado em 21 de março de 2012 (documento 7 dos autos de procedimento cautelar).
20. Por carta datada de 13 de março de 2013, a C... notificou a autora para, nos termos do nº 2 da cláusula 12ª do contrato, no prazo de 180 dias, proceder à liquidação do montante em dívida e à recompra da licença (documento 8 dos autos de procedimento cautelar).
21. Nesta altura, a autora continuava a ter depositados na pedreira blocos de calcário, que não conseguia vender.
22. Acordou com a C... terminar a exploração em 2014, o que veio a acontecer no final do mês de junho, tendo-se a autora, na pessoa da sua sócia gerente, dirigido à sede da opoente e, de forma livre e voluntária, entregou as chaves do portão da pedreira.
23. Por esta altura, a autora tinha depositados no local da pedreira um número não concretamente apurado, mas certamente superior a 2672, de blocos de calcário, sendo este o número aproximado de blocos de pedra que continuavam na pedreira após as vendas infra referidas sob o facto provado 25.
24. A cláusula 17ª do supra identificado contrato celebrado em 11 de março de 2010, o qual a opoente figura como 1ª outorgante e a autora como 2ª outorgante, tem o seguinte teor:
«1 - A Segunda Outorgante, findo o prazo estipulado na Cláusula Décima Segunda e caso não proceda à recompra da Licença de Exploração, obriga-se a desocupar e entregar à Primeira Outorgante o prédio rústico que constitui a pedreira de calcário ornamental denominada “...”.
2 – A entrega deverá ser efetuada após prévia solicitação feita pela Primeira Outorgante por via postal, por carta registada com aviso de receção, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias.»
25. Desde que cessou a exploração da pedreira, em junho de 2014, a autora comercializou blocos de pedra existentes na mesma pedreira ou nas suas imediações, mais precisamente:
a) em 10/08/2015 à L..., Lda., dois blocos “moca creme D 3ª”, de 5,425 m3 e 2,850 m3 – doc. 17 dos autos de procedimento cautelar;
b) em 31/12/2015 à A..., Lda., dois lotes de 20 e 30 blocos cada, com diversas medidas – doc. 18 dos autos de procedimento cautelar;
c) em 05/07/2016 e em 03/12/2016 à M..., Lda., respetivamente, 14 contentores de blocos com diversas medidas e 20 contentores de blocos com diversas medidas – docs. 19 e 20 dos autos de procedimento cautelar;
d) em 13/07/2017 e em 14/12/2017 à T..., Lda., duas carradas de pedra sem medidas comerciais e 10 carradas de pedras, sem medidas comerciais, respectivamente – docs. 21 e 22 dos autos de procedimento cautelar.
26. Em dezembro de 2017, a legal representante da autora tomou conhecimento de que a C... havia acordado ceder a exploração da pedreira aqui em causa à supra identificada ré.
27. A legal representante da autora contactou o gerente da ré – a acima identificada S..., que a informou que o acordo com a C... incluía todos os blocos de pedra que se encontravam na pedreira do ...
28. A autora enviou à sociedade S..., com data de 15/12/2017, carta registada com aviso de receção, comunicando-lhe que considerava os blocos já extraídos que se encontravam na pedreira de sua exclusiva propriedade e intimando-a a abster-se de movimentar, deslocar ou dar qualquer destino aos mesmos, nos moldes melhor vertidos no documento 23 dos autos de procedimento cautelar.
29. A legal representante da autora contactou a Direção Regional de Economia do Centro, tendo por esta sido informada, em 20/12/2017, que a opoente havia obtido o averbamento a seu favor do alvará de licença de exploração da pedreira aqui em causa no dia 14 de março de 2016, na sequência de pedido para o efeito efetuado em 11/09/2015 (documento 24 dos autos de procedimento cautelar).
30. Na decorrência do contrato de dação em pagamento acima referido, a opoente deu início à transmissão da licença de exploração da pedreira denominada “...” e ao processo de averbamento da pedreira a seu favor na qualidade de exploradora.
31. A opoente registou a pedreira em seu nome junto da entidade competente (documentos 9 e 10 juntos com o requerimento inicial da oposição).
32. Em 16/07/2015, foi outorgada escritura pública de concessão de exploração entre a opoente e a União de Freguesias de ... (documento 12 junto com a petição da oposição).
33. Nessa mesma data, a opoente liquidou o valor das rendas da exploração que se encontravam em falta, num total de €47.767,50, referente aos anos anteriores (documentos 13 junto com a petição da oposição).
34. Do período compreendido de junho de 2014 a dezembro de 2017, a autora não contactou a opoente no sentido de reivindicar quaisquer pedras ou blocos que estavam na pedreira.
3. O direito aplicável
31. Natureza dos contratos de exploração de pedreira celebrado entre a Autora e a Junta de Freguesia
A questão fulcral em discussão neste recurso reconduz-se a apurar de quem são os blocos de pedra extraídos durante a vigência do contrato celebrado com o dono da pedreira e aí deixados após a transmissão daquele contrato por cessão da posição contratual, o que nos remete para a natureza dos contratos de exploração.
Da matéria de facto apurada resulta que a Junta de Freguesia de ... celebrou com a Autora três contratos de exploração de pedreiras mediante o pagamento de uma quantia anual, englobando uma área total de 63.023m2.
A celebração dos contratos de exploração de pedreira, atenta a data em que foram outorgados, nos termos do art.º 4º do DL 89/90 de 16.3 – já revogado – e do art.º 12º do D.L. 270/2001 de 6.10, com a Junta de Freguesia e atribuição da licença referida no art.º 10º do mesmo diploma – conferiu à Autora o direito a extrair a pedra das respetivas pedreiras, fazendo sua a pedra extraída durante um determinado período contra o pagamento de uma renda.
A qualificação deste contrato não tem tido resposta unânime da doutrina, constatando-se a existência de teses opostas, partindo todas elas da classificação jurídico que efetuam da pedra extraída.
Uns defendem que estamos perante a constituição de um direito real de aquisição e outros de gozo.
 Entre quem defende que através desse contrato foi constituído um direito real de aquisição está Oliveira Ascensão [1] que entende que nesta categoria se encontra o direito à mineração, em que a coisa que se vai adquirir só tem existência autónoma depois da exploração o que implica a sua separação do conjunto.
Por sua vez também tem sido defendido que no caso de direito de mineração há um direito de gozo sobre uma mina cuja faculdade de fruição permite a aquisição do minério, sendo a aquisição unicamente o resultado da fruição. [2]
Atribuindo autonomia aos recursos geológicos, José Bonifácio Ramos [3] defendeu que estávamos perante um direito de exploração dos recursos geológicos consistente no aproveitamento dos mesmos, sendo eles próprios o objeto do contrato celebrado, concluiu que o direito de exploração dos recursos geológicos deve ser considerado um direito real de gozo, à semelhança, aliás com o que tinha sido defendido por Menezes Cordeiro, relativamente aos direitos de mineração e de aproveitamento de águas mineromedicinais [4]Posteriormente, este Autor, mudou a sua posição [5], considerando haver fundamento para o classificar como um direito real de aquisição, dado que o intuito do exercício do direito não será tanto a exploração do recurso, em si mesmo, mas de obter, em momento posterior, a propriedade sobre os bens extraídos em consequência da atividade explorativa.
Admitimos ainda que os contratos celebrados entre a Autora e a Junta de Freguesia de ... sejam contratos mistos uma vez que neles se reúnem elementos de diferentes tipos contratuais  - compra e venda e arrendamento porquanto visavam a venda daquela a esta da pedra que a mesma extraísse das pedreiras e ainda a proporcionar à Autora o gozo temporário dos prédios onde se situavam as pedreiras para poder extrair a pedra - sujeitos a regimes distintos [6], na modalidade de contratos típicos com prestação subordinada, adoptando a classificação de Ennecerus [7], em que a prestação principal é a típica do contrato de compra e venda e a subordinada a de arrendamento, pois este só se justifica pelo gozo do prédio que é necessário a Autora ter para poder extrair a pedra objeto do contrato de compra e venda.
No entanto, em qualquer uma das teses, tendo em atenção que o objeto dos contratos celebrados era a exploração das pedreiras impõe-se apurar a natureza da pedra dela extraída com vista à determinação de qual o momento em que a sua propriedade transferiu para a Autora, questão que é a que agora está em apreciação.
A doutrina tem vindo maioritariamente que as pedras extraídas das pedreiras são produtos da pedreira e não frutos.
A este respeito escreve José Alberto C. Vieira [8]:
Os frutos são coisas separadas da coisa mãe que esta pode, nas mesmas condições, continuar a gerar sem alteração da sua substância, ou seja, sem perda, ainda que parcial e diminuta da sua integridade.
Os produtos são novas coisas nascidas da separação da coisa mãe, mas que esta não tem possibilidade de gerar novamente, e cuja contínua exploração provoca o seu detrimento, ainda que este seja gradual e lento. Como exemplo de produtos, temos todos os minérios que não caibam no domínio público, o mármore da pedreira ou o granito do solo constituem produtos.
Oliveira Ascensão [9], entendendo que a extração do minério vai esgotando a mina, não se podendo dizer que resulte do poder reprodutivo da coisa, propende que o mesmo não seja integrado entre os frutos, mas antes um produto da mina.
 Pires de Lima e Antunes Varela [10] entenderam que a extração da pedra de uma pedreira, apesar de afetar de algum modo a substância da coisa, pode e deve ser considerada como uma colheira ou recolha de frutos, se for realizada em lavra regular ou em arranque normal, por ser esse o processo usual, corrente, de explorar o rendimento (periódico) do capital em que a mina ou a pedreira se traduz.
Quer se qualifique a pedra extraída da pedreira como produto ou fruto, a doutrina mostra-se unânime a defender que, no essencial, lhe é aplicável o regime dos frutos naturais [11], regime que também será o aplicável  no caso do contrato de compra e venda.
Os frutos naturais percebidos ou colhidos, nos termos do disposto no art.º 213º do C. Civil, pertencem a quem a eles tinha direito durante a vigência do seu direito.
Se qualificarmos o contrato como um contrato misto de compra e venda também neste a transferência da propriedade da pedra, aplicando-lhe o regime dos frutos naturais, apesar de ocorrer por mero efeito do contrato – art.º 408º, nº 1 do Código Civil – só se verifica no momento da extração ou separação, não se constituindo nestes casos uma obrigação de dare, da qual fique dependente a transmissão da propriedade [12].
Atento o acima exposto, a transmissão da propriedade sobre as pedras para o explorador ocorreu aquando a sua extração, passando a pertencer como bens móveis ao explorador [13].
Nesta ação discute-se se cessado o respetivo direito de exploração, por transmissão da posição contratual, independentemente da eventual invalidade dessa transmissão, as pedras já extraídas, depositadas no prédio onde se localiza a pedreira, face a ausência de acordo sobre o seu destino, pertencem ao cedente ou ao cessionário.
A cessão da posição contratual coloca o cessionário na posição do explorador inicial, passando a ter o direito de gozar o terreno onde se situa a pedreira com a finalidade de dela extrair pedra, transmitindo-se o direito de propriedade sobre ela à medida que a for extraindo.
Quanto à pedra já extraída pelo cedente, mesmo que se encontre depositado no terreno da pedreira, salvo acordo em contrário, ela continua a pertencer-lhe, não sendo abrangida pela transmissão da posição contratual.
A esta conclusão não se opõe o disposto no Decreto-Lei n.º 270/2001, nomeadamente a definição de pedreira constante da alínea p) do art.º 2º, a qual, em primeiro lugar, ao incluir no conceito de pedreira os depósitos de massas minerais extraídas não se reporta as massas em si, mas sim ao lugar a elas destinado.
Em segundo lugar, a inclusão desses depósitos da noção de pedreiras não visou a previsão de um regime de exceção ao direito de propriedade dos produtos, o qual não é objeto de regulação por este diploma, destinando-se antes a delimitar o âmbito físico das pedreiras com vista ao cumprimento de regras técnicas constantes dos art.º 41º e seguintes daquele diploma.
Além destes argumentos seria incompreensível que a propriedade sobre as pedras variasse conforme elas fossem colocadas num lugar junto à pedreira destinado ao seu depósito, ou o titular da exploração as colocasse noutro local.
Por essa razão deve o recurso ser julgado procedente, ficando prejudicada a apreciação das questões relativas à validade da transmissão pela Autora da sua posição contratual, devendo os pedidos formulados pela Autora serem julgados procedentes quanto ao número de blocos que se apurou terem sido por si extraídos e que se encontram na pedreira os quais perfazem o total de 2672 – dois mil, seiscentos e setenta e dois – uma vez que são sua propriedade e que correspondem à totalidade daqueles que são objeto do pedido por si formulado e concretizado no articulado superveniente deduzido, tal como veio a ser julgado pelo despacho proferido em 16 de Janeiro de 2020.
Decisão
Nos termos expostos julga-se a apelação procedente e, revogando-se a decisão recorrida, decide-se:
- declarar a Autora proprietária de 2672 – dois mil, seiscentos e setenta e dois - blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ...
- condenar a Ré a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre os sobreditos blocos de calcário e, em consequência, a abster-se de, por qualquer meio, negociar, alienar, vender ou onerar os mesmos;
-  condenar a Ré a permitir que a autora carregue os referidos blocos e os retire para um local à sua escolha.
Custas da ação e do recurso pela Autora.
Coimbra, 23/03/2021


[1] Direito Civil Reais, 4ª edição, pág. 499-500, Coimbra Editora.

[2] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 774-775, Lex.

[3] O Regime a Natureza Jurídica do Direito dos Recursos Geológicos dos Particulares, edição 1994, pág. 179-186, Lex.

[4] Ob. citada pág. 186.

[5] Manual dos Direitos Reais, ed. 2017, pág. 433-434, AAFDL Editora.
[6] Sobre os contratos mistos, VAZ SERRA, União de Contratos. Contratos Mistos, no B.M.J. n.º 91, pág. 11-28, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, pág. 372-379, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 86-87, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol I, 10.ª ed., Almedina, 2000, pág. 279-281 e 286-300, MENESES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol I, 10ª ed., Almedina, 2013, pág. 188-192, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pág. 211-214, RUI PINTO DUARTE, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Almedina, 2000, pág. 44-50, EDUARDO DOS SANTOS JÚNIOR, Direito das Obrigações I, AAFDL, 2010, pág. 190-193, e FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA CIOELHO, Contratos Complexos e Complexos Contratuais, Coimbra Editora, 2014, pág. 239 e seg.

[7] Na tradução espanhola da 15.ª revisão de Heinrich Lehman, Derecho de obligaciones, vol. 2.º, 1.ª parte, 3.ª ed., Bosch, 1996, pág. 7-18.

[8] Direitos Reais, ed. 2008, pág. 196, Coimbra Editora e Código Civil Comentado, Vol. I – Parte Geral, pág. 596-597.

[9] Direito Civil, Teoria Geral, Volume, 2ª edição, pág.384-385, Coimbra Editora.

[10] Código Civil Anotado, 4ª edição, Volume I, pág. 205, Coimbra Editora.

[11] José Alberto C. Vieira obras citadas, pág. 197 e 597, respectivamente.

  Oliveira Ascensão, ob. citada, pág. 385:
Mas como o esgotamento é muito lento, as utilidades recolhidas assemelham-se de um ponto de vista económico-social aos frutos. Se associarmos o fato ao carácter continuado da extracção confirma-se uma analogia como os frutos que leva a que se lhe aplique o regime traçado para estes.

   Heinrich Hörster e Eva Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2ª ed. pág. 203, defendem que as riquezas do solo que não são abrangidas pelo próprio conceito de prédio, na medida em que são objecto regular de uma actividade extractiva, são frutos naturais.

[12] Neste sentido ver Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações Contratos em Especial, Volume I, 2ª edição, pág. 88, Almedina.

[13] Ver o acórdão do S. T. J. de 29.11.2005 relatado por Azevedo Ramos e acessível em www.dgsi.pt  onde consta:
 Se a pedra for objecto de um negócio de alienação que vise ou envolva a sua separação do prédio, a transferência da respectiva propriedade para o adquirente só se opera no momento da separação material - art. 408, nº2, do C.C.
Até ao momento da separação efectiva, o adquirente apenas terá um mero direito de crédito, ou seja, o direito de exigir que o alienante lhe permita retirar a pedra objecto do contrato.