Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/23.6JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: IDENTIFICAÇÃO FOTOGRÁFICA E LOFOSCÓPICA
RECUSA
UTILIZAÇÃO DE FORÇA FÍSICA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1º, N.º 1, 3º, N.º 1, AL. A)-II), 4º, N.ºS 2 E 3, DA LEI N.º 67/2007, DE 9.8; 172º, 154º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 32º, N.º 2, 13º E 18º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I. A obrigatoriedade de sujeição a identificação fotográfica e lofoscópica quando é aplicada medida de coação privativa da liberdade [art. 3º, n.º 1, al. a)-ii), da Lei 67/2007] não viola os princípios constitucionais da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade, em articulação com os direitos de personalidade, da dignidade, da reserva da intimidade da vida privada e da proteção da identidade pessoal do arguido.
II. No caso de recusa do arguido à identificação fotográfica e lofoscópica, pode o juiz autorizar o uso da força física, na medida necessária ao cumprimento daquela obrigação legal.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo de Inquérito nº 60/23...., em 11/7/2023, foi determinado que o arguido

AA

fosse sujeito a identificação judiciária fotográfica e lofoscópica legalmente imposta e, mantendo o mesmo a recusa  em sujeitar-se à mesma, ser compelido a fazê-lo, se necessário com recurso à força física estritamente necessária a lograr tal objectivo.

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões do arguido

Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1ª – Ao impor ao arguido, coercitivamente e com uso de força física, que – em fase inquérito criminal, antes mesmo de contra ele ser deduzida acusação e muito antes ainda de se verificar o trânsito em julgado de decisão condenatória –, “entregue” à investigação criminal, contra a sua vontade e em desrespeito da sua recusa expressa, elementos lofoscópicos e fotográficos, que são identitários das suas características físicas, pessoais, próprias e únicas, com a hipótese de, a partir da obtenção desses elementos, a referida investigação progredir para alcançar novos dados a que, certamente, de outra forma, não se conseguiria chegar, a decisão recorrida não é compatível, violando-os inexoravelmente:

1.1ª – Com os princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e da proibição da auto-incriminação, este último em conexão com o princípio do acusatório, e, concomitantemente, como dimanação de todos eles, do direito ao silêncio, conforme previsto nos artigos 32º, n.ºs 2 e 5 da CRP, e artigos 61º, n.º 1-d) e 343º, n.º 1 do CPP (este, aplicado, na presente fase processual, com as devidas adaptações).

1.2ª – Conjugadamente com os anteriores:

            1.2.1ª – Com o princípio da máxima restrição/intervenção mínima do Sistema de Justiça Penal (in casu, aplicável no seu ramo adjectivo), da necessidade, da proporcionalidade e da adequabilidade (in casu, quanto à obtenção de prova ou meios de obtenção de prova), conforme previsto no artigo 18º, n.º 2 da CRP;

            1.2.2ª – Com o princípio consagrado no artigo 20º, n.ºs 4 e 5 da CRP, na sua concatenação com o artigo 6º da CEDH, que exige um processo justo e equitativo, que se traduza numa tutela efectiva de direitos, liberdades e garantias do arguido, respeitando-as integralmente e na sua globalidade, o que só será verdadeiramente assegurado e rigorosamente cumprido, se lhe for reconhecida a não obrigatoriedade de ser submetido, coercitivamente e contra sua vontade expressa, às diligências que a investigação pretende impor-lhe.

1.3ª – Ainda como decorrência dos princípios anteriormente citados, com os princípios da inviolabilidade, não consentida, da integridade moral e física das pessoas [especialmente, se estiver na condição processual de arguido privado da sua liberdade (per se stante, fragilizadora)] e da correlativa protecção dos direitos de personalidade associados à dignidade da pessoa humana, à reserva da intimidade da vida privada, à preservação e protecção da identidade pessoal e à não obtenção de informações pessoais (sem consentimento do visado), com consagração nos artigos 25º e 26º, n.ºs 1 e 2 da CRP, que encontram desenvolvimento e tutela, no artigo 126º, n.º 1, n.º 2-c) e n.º 3 do CPP, e nos artigos 70º, n.º 1, 80º e 81º (a contrario sensu) todos do Cód. Civil.

1.4ª – Com os deveres de fundamentação impostos pelo artigo 205º, n.º 1 da CRP, em conjugação com o artigo 97º, n.º 5 do CPP, na sua conformação com o princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da CRP, e sem olvidar, também neste específico âmbito, os comandos constitucionais enumerados nas conclusões 1.1ª a 1.3ª, todos balizando a melhor interpretação e aplicação do citados artigos 1º, n.º 1 e 3º, n.º 1-a)-ii) da Lei 67/2017 de 09-08. Com efeito:

1.4.1ª – Impor a alguém que se sujeite, coercitivamente, contra a sua recusa expressa, à recolha de elementos lofoscópicos e fotográficos, somente porque se encontra subordinado a prisão preventiva, quando, nos outros casos, de acordo com o previsto na subalínea iii) da mesma alínea a) do n.º 1 do artigo 3º da citada Lei, se exige fundamentação, na ponderação das necessidades de prova, consubstancia clara violação do mencionado princípio da igualdade, além de – repete-se – também ocorrer clara colisão com os princípios elencados nas conclusões 1.1ª a 1.3ª;

1.4.2ª – Se, nos termos dessa subalínea iii), o despacho judicial que ordena a sujeição do arguido à recolha lofoscópica e fotográfica não pode descurar que sejam ponderadas as necessidades de prova – ponderação e necessidade estas que remetem, inultrapassavelmente, para a necessidade de cumprimento do referido dever de fundamentação –, então, havendo lugar à necessidade de prolação de despacho judicial no caso de recusa expressa e de não consentimento de arguido em prisão preventiva (como ocorre no presente caso), este despacho judicial também não pode deixar de ser devidamente fundamentado e, na fundamentação, não poderão, também, deixar de estar ponderadas as necessidades de prova;

1.4.3ª – A decisão recorrida falha, notoriamente, no cumprimento deste requisito, cingindo-se a mero enunciado genérico e abstracto, sem ponderar, nem fundamentar, as necessidades de prova no caso concreto sub judicio.

1.4.4ª – Tais vícios de fundamentação, relevantes, estendem-se, também, à legitimação, pelo Mmo. JIC, da utilização da “força física”, que não é fundamentada, nem concretiza de que forma deveriam materializar-se, na prática, os exactos actos passíveis de a caracterizar perante a recusa expressa e o não consentimento do arguido.

2ª – Na procedência do presente recurso, e como consequência, deverá ser proferido acórdão que declare a não obrigatoriedade de – perante esses recusa expressa e não consentimento –, o arguido se submeter à recolha lofoscópica e fotográfica, coercitivamente, com utilização de “força física”, revogando-se a decisão recorrida.

3ª – Desde já se suscitando, a inconstitucionalidade dos citados artigos 1º, n.º 1 e 3º, n.º 1-a)-ii) da Lei n.º 67/2017, de 09-08, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32º, nºs 1, 2 e 5, 18º, n.º 2, 20º, n.ºs 4 e 5, 25º e 26º, n.ºs 1 e 2, 205º, n.º 1 e 13º da CRP (aplicando-se o princípio da igualdade, na comparação do regime da subalínea iii) da citada alínea a) do n.º 1 daquele artigo 3º), na medida em que os mesmos possam ser interpretados em sentido contrário àquele que se preconizou nas precedentes conclusões 1.1ª a 1.4.4ª.

  


1.2.2 Da resposta do Ministério Público

Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, concluindo da seguinte forma :

1. O arguido deverá ser sujeito à identificação judiciária fotográfica e lofoscópica legalmente imposta e, mantendo a recusa em sujeitar-se à mesma, deverá ser compelido a fazê-lo, se necessário com recurso à força física estritamente necessária a lograr tal objectivo.

2. Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente.

3. A decisão proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal cumpre o dever de fundamentação, previsto nos artigos 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal e 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como ao estabelecido no artigo 154.º, n.º 3, quanto à ponderação da necessidade do questionado meio de obtenção de prova.

Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supracitadas, somos de parecer que o presente recurso deverá ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.

1.2.3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação teve vista do processo e entende que a decisão recorrida não merece censura, acrescentando que o Tribunal Constitucional tem decidido sempre que a Constituição autoriza a restrição dos direitos fundamentais invocados no recurso, designadamente para a prossecução das finalidades específicas do processo penal; e que o TEDH vem defendendo que a liberdade de disposição do corpo e a recusa de se submeter a uma ingerência corporal com vista a recolha de provas comporta excepções, a prever legal e limitadamente, nos casos em que se demonstre convincentemente a sua imperiosa necessidade.

1.2.4. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Assim, examinadas as conclusões de recurso, a questão a conhecer no presente recurso prende-se com a manutenção ou não do despacho que determinou a sujeição do arguido a identificação fotográfica e lofoscópica, ainda que com recurso à força física.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Tem o despacho recorrido o seguinte teor:

            “O arguido AA encontra-se nestes autos sujeito a prisão preventiva desde 03/03/2023 cfr. fls. 377 a 388.

            Deverá ser sujeito a identificação judiciária fotográfica e lofoscópica, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al. a) ii), da Lei n.º 67/2017, de 09/08.

            O arguido recusou submeter-se a tal identificação cfr. fls. 507 v.º. Apesar de estar em causa diligência não intrusiva, que não põe em causa a integridade física do arguido, a mesma incide sobre características físicas do arguido, pelo que se aceita a reserva jurisdicional de decisão artigos 154º, n.º 3 e 172º, n.º 2, am bos do C. P. Penal.

A diligência é imposta por lei a arguidos na situação em que AA se encontra, tendo o legislador considerado já que tal imposição se revelava proporcional, tendo em conta a existência de fortes indícios de crime grave que conduziram à aplicação da prisão preventiva, a limitação do uso da identificação judiciária a finalidades de prevenção e investigação criminal e as cautelas legalmente estabelecidas para o acesso e tratamento de tais dados, Nessa medida, as finalidades acima apontadas sobrepõem-se notoriamente ao direito do arguido à reserva da intimidade, neste caso apenas afectada por recolha de fotografias e impressões digitais.

Assim, face ao exposto, deverá o arguido AA ser sujeito à identificação judiciária fotográfica e lofoscópica legalmente imposta e, mantendo a recusa em sujeitar-se à mesma, deverá ser compelido a fazê-lo, se necessário com recurso à força física estritamente necessária a lograr tal objectivo artigos 154º, n.º 3 e 172º, n.ºs 1 e 2, ambos do C. P. Penal.

Notifique (arguido e seu Defensor) e devolva os autos ao DIAP ...”.

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A identificação fotográfica e lofoscópica determinada no despacho recorrido está prevista na Lei nº 67/2017 de 9/8.

Concretamente, dispõe o seu artigo 3º que :

« 1 - São sujeitos a identificação judiciária os indivíduos:

a) Constituídos arguidos em processo-crime:

i) Quando existam dúvidas quanto à sua identidade; ou

ii) Na sequência de aplicação de medida de coação privativa da liberdade; ou

iii) Mediante despacho judicial, ponderadas as necessidades de prova;

b) Condenados em processo-crime;

c) Inimputáveis a quem tenha sido aplicada medida de segurança;

d) Suspeitos, nos termos do n.º 1 do artigo 250.º do Código de Processo Penal, que não sejam portadores de documento de identificação, não possam identificar-se por qualquer dos meios previstos nos n.os 3, 4 e 5 daquele artigo, ou recusem identificar-se perante autoridades ou órgãos de polícia criminal, nos termos aí prescritos.

(…)».

Nos termos do artigo subsequente, «2 - A recolha é precedida de informação ao visado sobre os motivos da diligência, devendo este consentir na realização da mesma.

3 - Em caso de recusa, a autoridade judiciária competente pode ordenar a sujeição à diligência, nos termos do disposto no Código de Processo Penal quanto à sujeição a exame.».

Por sua vez, o código de processo penal, nesta matéria dos exames, depois de prever a realização de exames das pessoas – cfr. o nº 1 do artigo 171º -, estipula no artigo 172º :

« 1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar animal ou coisa que deva ser objeto de exame, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 3 do artigo 154.º e 6 e 7 do artigo 156.º

3 - Os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter. Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.».

Prevê o nº 3 do artigo 154º que «Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior [despacho que ordena a perícia] é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.».

Não se transcreve o que dispõe o artigo 156º, nºs 6 e 7 do C.P.P., por ser manifestamente inaplicável ao caso em apreço.

No caso em apreço, verificamos que a situação do recorrente está enquadrada nas normas acabadas de mencionar :  foi constituído arguido e  sujeito a uma medida de coacção privativa da liberdade (a prisão preventiva); recusou sujeitar-se à recolha da sua identificação, pelo que foi proferido despacho por um juiz; a recolha em causa não ofende o seu pudor e no despacho ponderou-se que não põe em causa a sua integridade física e que a mesma se justifica, perante a superioridade dos objectivos visados e em face das cautelas legalmente estabelecidas para o acesso e tratamento dos dados assim obtidos.

Deste modo, carece absolutamente de razão o recorrente, em face do despacho proferido, cujo teor se transcreveu supra, quando alega que o mesmo carece de fundamentação !

A Lei nº 67/2017 procedeu à adaptação do nosso direito a duas Decisões do Conselho da Europa : a Decisão 2008/615/JAI e a Decisão 2008/616/JAI.

Ambas reforçam a cooperação transfronteiriça, particularmente no âmbito da luta contra o terrorismo e criminalidade transfronteiriça.

Concretamente, estas Decisões acentuam a necessidade de existir intercâmbio de informações para as investigações em curso nos vários países, nomeadamente intercâmbio de ficheiros de análise automatizada de ADN, de sistemas automatizados de identificação dactiloscópica e dados de registo de veículos, tendo por objectivo prevenir infracções penais e manter a ordem e a segurança públicas, no que respeita a eventos importantes com dimensão transfronteiras – cfr. os considerandos (10) e (14) da primeira Decisão.

Simultaneamente, salvaguarda-se a protecção dos dados . Na verdade, por exemplo no que toca aos dados dactiloscópicos contidos nos sistemas automatizados nacionais criados para fins de prevenção e investigação de infracções penais, os mesmos não contêm dados que permitam a identificação directa da pessoa em causa – cfr. o artigo 8º da Decisão 2008/615/JAI. Tal identificação só será possível no âmbito de um caso concreto, e quando se verificar uma coincidência na comparação entre um dado dactiloscópico existente no Estado requerente e o dado existente no ficheiro do Estado requerido – cfr. os artigos 9º e 10º.

Mais, o artigo 25º, nº 1 da Decisão 2008/615/JAI estabelece que « No que respeita ao tratamento de dados pessoais que sejam ou tenham sido transmitidos ao abrigo da presente decisão, cada Estado-Membro garante na sua legislação nacional um nível de protecção de dados pelo menos tão elevado como o decorrente da Convenção do Conselho da Europa, de 28 de Janeiro de 1981, para a protecção das pessoas relativamente ao tratamento automatizado de dados de carácter pessoal, bem como do Protocolo Adicional de 8 de Novembro de 2001 …».

Por sua vez, a Decisão 2008/616/JAI regulamenta a primeira, no que respeita às medidas de execução. Concretamente no que toca aos dados dactiloscópicos, estabelece que «São tomadas medidas adequadas a fim de assegurar a confidencialidade e a integridade dos dados dactiloscópicos transmitidos aos outros Estados-Membros, incluindo a sua cifragem.» - cfr. o nº 4 do artigo 12º.

Após este enquadramento, vejamos em que se funda o recorrente para pugnar pela não obrigatoriedade de se submeter à recolha lofoscópica e fotográfica coercivamente :

O recorrente sustenta que o despacho recorrido viola o princípio da presunção de inocência, o princípio in dubio pro reo, o princípio da proibição da auto-incriminação, o princípio do acusatório, o seu direito ao silêncio, os princípios da necessidade e proporcionalidade consagrados no artigo 18º da CRP, a garantia do processo equitativo consagrado nos artigos 20º, nºs 4 e 5 da CRP e 6º da CEDH, os seus direitos de personalidade da dignidade, da reserva da intimidade da vida privada, da protecção da identidade pessoal; e o princípio da igualdade .

Relativamente aos dois primeiros princípios mencionados – da presunção de inocência e do in dubio pro reo -, estabelece o artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa que «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».   

No sistema penal português, de estrutura acusatória, a presunção de inocência é o ponto de partida do julgamento, constituindo a primeira, e mais relevante, garantia do arguido. Esta presunção apenas é contrariada quando a acusação logra fazer prova dos factos imputados ao arguido, de forma a não deixar dúvidas no espírito do legislador, relativamente à veracidade daqueles.

Nesta medida, o primeiro dos corolários deste princípio é transmitido pelo princípio in dubio pro reo, ou seja, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido ou, dito de outra forma, a dúvida sobre a realidade de um facto deve ser decidida a favor do arguido.

No entanto, cumpre referir que os dois princípios não se confundem. Acompanhando Alexandra Vilela (in Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, p. 79) quando refere que «o que os distingue essencialmente é que se o princípio da presunção de inocência actua necessariamente em qualquer caso, o in dubio apenas actuará em caso de dúvida, como último recurso».

Estamos perante princípios orientadores do processo penal ao nível da prova.

Sendo assim, não se vê como é que a sujeição do recorrente à identificação lofoscópica e fotográfica contra a sua vontade viole estes princípios !

A recolha destes dados não influencia em nada a prova dos factos de que venha ser, eventualmente, acusado e, portanto, uma sua futura condenação.

Os princípio da proibição da auto-incriminação, do acusatório, o direito ao silêncio do arguido e a garantia do processo equitativo estão inter-relacionados, pelo que serão apreciados conjuntamente .

A estrutura acusatória do nosso direito processual penal resulta, também, da Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 32º, nº 5 estipula : «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».

Conforme explica Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo 1996, p. 54, «O processo de tipo acusatório caracteriza-se, pois, essencialmente, por ser uma disputa entre duas partes, uma espécie de duelo judiciário entre a acusação e a defesa, disciplinado por um terceiro, o juiz ou tribunal, que, ocupando uma situação de supremacia e de independência relativamente ao acusador e ao acusado, não pode promover o processo…, nem condenar para além da acusação …».

Já o direito a um processo equitativo é garantido pelo artigo 20º da nossa Constituição - «4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.» -, bem como assegurado pelo artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela…».

Nas palavras de Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, volume I, UCE, p. 322 e ss, «A exigência de um processo equitativo … impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre partes na dialética que elas protagonizam no processo… Um processo equitativo postula, por isso, a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas.».

  Estes dois princípios/direitos – do acusatório e do processo equitativo – convergem nos dois outros princípios/direitos – da não auto-incriminação e do silêncio. Concretizemos :

O principio da não auto-incriminação (nemo tenetur se ipsem accusare) significa que ninguém é obrigado a contribuir para a sua própria incriminação, englobando o direito ao silêncio [o artigo 61º, nº 1, al. d) do C.P.P. confere ao arguido o direito de não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar] e o direito de não facultar meios de prova - neste sentido, ver Maria de Fátima Reis, «O direito à não auto-incriminação», in Sub Judice nº 40 (Jul.-Set. 2007), p. 59-74.

O Tribunal Constitucional já destacou, a este propósito (cfr. o Acórdão nº 340/2013, relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano no processo nº 817/12 da 2ª secção) que «O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo».

Assim, este direito à não auto-incriminação constitui uma decorrência daquele princípio do acusatório, segundo o qual a acusação deve provar a sua tese contra o arguido, sem o recurso a elementos de prova obtidos através de métodos coercivos, desrespeitando a vontade deste, ou seja, o arguido não tem de participar coactivamente na produção de prova.

Porém, este direito, tal como o direito ao silêncio, não é um direito absoluto, comporta restrições, tais como as apontadas pelo Desembargador Cruz Bucho no artigo de 5/10/2013 «Sobre a recolha de autógrafos do arguido: natureza, recusa, crime de desobediência v. direito à não auto-incriminação (notas de estudo)», in www.trg.pt.:

- a obrigação do arguido responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade (artigo 61.º, n.º3, al. b) do CPP);

- a obrigatoriedade de realizar determinados exames, por exemplo de alcoolemia ou de substâncias psicotrópricas, no domínio rodoviário (cfr. artigos 152.º e 153.º do Código da Estrada;

- a obrigatoriedade de sujeição a exames no âmbito das perícias médico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciária competente, prevista pela Lei n.º 45/2004, de 29 de Agosto (artigo 6.º);

- os deveres de cooperação perante a administração tributária impostos pela Lei Geral Tributária (artigo 59.º) e pelo Regime Complementar de Procedimento de Inspecção Tributária, aprovado pelo Dec-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro   

- os deveres de cooperação perante a Autoridade de Concorrência previstos na Lei da Concorrência (artigos 17.º n.º1 als, a) e b) da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho);

- os deveres de protecção perante a CMVM, previstos no CVM.

Mais, o código de processo penal consagra, como um dos deveres do arguido, o de se sujeitar a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente – cfr. o artigo 61º, nº 6, al. d).

Em face desta norma é legítima a conclusão de que o direito ao silêncio previsto na alínea d) do nº 1 do mesmo artigo visa apenas as declarações verbais.

Neste sentido, ver, entre outros, Lara Sofia Pinto, «Privilégio contra a Auto-Incriminação versus Colaboração do Arguido», in Tereza Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto (coord.), Prova Criminal e Direito de Defesa, Coimbra, Almedina, 2011, p. 109.

Porém, tal não significa que o direito à não auto-incriminação não tenha margem de aplicação :

Como salienta Costa Andrade, in Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 127, existe uma «zona de fronteira e concorrência entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de medidas de coacção ou de meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva».

O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre estas questões e, no Acórdão nº 155/2007 (processo 695/06, 3ª secção, relatado pelo Conselheiro Gil Galvão), embora versando sobre a possibilidade da colheita coactiva de vestígios biológicos sem autorização do juiz,  esclareceu que «Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supra citada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação.».

 Em suma, respeitando-se a vontade do arguido em não prestar declarações, o direito à não auto-incriminação não abrange o uso de dados obtidos do arguido, ainda que com recurso à coerção, que tenham uma existência independente da sua vontade, isto é para cuja obtenção a sua colaboração não é imprescindível  .

É o caso, nitidamente, da recolha de dados lofoscópicos e fotográficos !

Mais, perante o nosso direito processual penal existe mesmo um princípio «da obrigatoriedade de sujeição a exame ou de disponibilização da coisa a examinar, a que se reportam os artigos 172º e 173º do CPP.

Este princípio expressa-se na possibilidade de a autoridade judiciária competente compelir o visado á observância de tais obrigações, ainda que condicionadas (no caso de exame susceptível de ofender o pudor das pessoas) ao respeito pela intimidade e dignidade da pessoa a examinar…» - cfr. o Acórdão da Relaçãop de Lisboa de 3/3/2016, processo 880/14.2gacsc-A.L1-9, relatado por Filipa Costa Lourenço, in www.dgsi.pt.

 Pelo exposto, os princípios/direitos que temos vindo a tratar não se mostram violados pelo despacho recorrido, o que nos impele a considerar os princípios, também invocados pelo recorrente, da necessidade e da proporcionalidade, em articulação com os seus direitos de personalidade, da dignidade, da reserva da intimidade da vida privada, da protecção da identidade pessoal  :

O artigo 18º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da proporcionalidade em sentido amplo : «2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.».

Das normas transcritas decorre que, podendo haver por via de lei ordinária restrição aos direitos, liberdades e garantias, para que a mesma seja constitucionalmente legítima, tem que cumprir cumulativamente as seguintes condições:

a)         ser a restrição, ela própria, expressamente admitida ou imposta pela Constituição – nº 2, 1ª parte;

b)         visar salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido – nº 2, in fine;

c)         ser a restrição exigida por essa salvaguarda, apta para alcançar esse efeito e limitar-se à medida necessária para alcançar esse objetivo – nº 2, 2ª parte;

d)        não aniquilar o direito restringido, atingindo o seu conteúdo essencial – nº 3, in fine.

O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

I) O princípio da adequação ou da idoneidade - as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos;

II) O    princípio da exigibilidade, da necessidade ou da indispensabilidade - as medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias para alcançar o mesmo desiderato;

III) O  princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida - não poderão adotar-se medidas legais restritivas excessivas, desproporcionadas em relação aos fins obtidos.

Transpondo estes princípios para a questão concreta do presente recurso – recolha de dados lofoscópicos e fotográficos contra a vontade do arguido -, temos que :

I) a recolha dos dados é apropriada para atingir o fim visado, ou seja, a sua inclusão no Ficheiro central de dados regulado na Lei nº 67/2017;

II) não é possível obter as informações em questão por outra via (menos lesiva para os direitos fundamentais do arguido);

III) ponderando os direitos individuais do arguido constrangidos pela recolha em causa e a defesa do interesse público de salvaguarda do exercício efectivo da justiça pena, alcança-se um justo equilíbrio.      

Concretizemos este último subprincípio :

Em primeiro lugar, importa considerar que a lei portuguesa só determina a identificação judiciária de pessoas (fora o caso de terem sido condenadas, ou inimputáveis a quem tenha sido aplicada medida de segurança) que tenham sido constituídos arguidos em processo crime e i) Quando existam dúvidas quanto à sua identidade; ou ii) Na sequência de aplicação de medida de coação privativa da liberdade; ou iii) Mediante despacho judicial, ponderadas as necessidades de prova.

No caso em apreço, verifica-se a situação retractada em ii).

Ora, a aplicação de uma medida de coacção privativa da liberdade (obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva) está sujeita, no nosso direito, à verificação de vários pressupostos.

São eles :

- pelo menos um dos perigos elencados no nº 1 do artigo 204º do C.P.P.;

- a existência de indícios fortes da prática de um crime doloso;

- punibilidade desse crime com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (no caso da obrigação de permanência na habitação) ou a 5 anos, tratar-se de criminalidade violenta ou de determinados crimes descritos no artigo 202º do C.P.P. (no caso da prisão preventiva).

Deste modo, constatamos que não é qualquer pessoa constituída arguida, nem a quem foi aplicada uma qualquer medida de coação, que pode ser sujeita à recolha de dados lofoscópicos e fotográficos contra a sua vontade, pelo que  afastada está a aplicação desta medida de forma geral e indiscriminada .

Depois, verifica-se o estabelecimento de prazos máximos durante os quais os dados recolhidos ficam armazenados . De acordo com o artigo 9º da Lei nº 67/2017 os dados recolhidos são mantidos por prazos que variam consoante o resultado do processo crime .

É verdade que a recolha em questão restringe direitos fundamentais do visado, no caso, do recorrente, os seus direitos de dignidade pessoal, da reserva da intimidade dos seus dados pessoais e da protecção da identidade pessoal/genética.

Mais, a recolha em questão não se destina a produzir prova no processo crime em curso, mas a ser inserida no Ficheiro Central de Dados Lofoscópicos (FCDL), visando facilitar a prevenção e investigação criminal em geral.

Assim, importa analisar se a recolha de dados identificativos de um arguido sujeito a prisão preventiva respeita o princípio da proporcionalidade :

Dúvidas não temos de que existe um interesse público na recolha em questão, dado que se visa a criação de um ficheiro, uma base de dados lofoscópicos e fotográficos, que serve finalidades de prevenção e investigação criminal ao nível europeu, nomeadamente em caso de terrorismo e criminalidade transfronteiriça.

Ora, a realização da justiça e a busca da verdade material têm assento constitucional no artigo 202º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa : «… incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática…».

Subscrevemos o que se afirmou no Acórdão nº 333/2018, no processo 195/2018, 1ª secção, relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, embora a propósito da recolha de amostras de ADN :

« O fim da recolha de ADN é, efetivamente, facilitar a investigação de crimes com autor desconhecido que tenham sido cometidos no passado ou que venham a ser cometidos ainda num futuro relativamente próximo (necessariamente dentro do prazo de manutenção da amostra na base de dados), podendo identificar-se neste ponto também alguns objetivos de prevenção penal, face à identificação das taxas de recidiva relacionadas com a prática de determinados crimes. Visa, portanto, a redução do número de investigações criminais não resolvidas, permitindo não só identificar os culpados, como afastar os inocentes da mira dos atos de investigação criminal, bem como proteger os direitos e liberdades fundamentais das vítimas. Acautela-se simultaneamente alguma persuasão dissuasiva da prática de futuros crimes por parte de agentes que sabem ter o seu perfil de ADN constante de uma base de dados acessível para efeitos de investigação criminal.».

Assim, nesta linha, podemos afirmar que a recolha dos dados de identificação, no caso, do recorrente, é adequado ao fim do diploma onde se inclui a respectiva previsão : a inclusão de dados de identificação no ficheiro central ali previsto aumenta as possibilidades de identificar os responsáveis pela prática de crimes, tanto mais quanto mais elevado for o número de amostras recolhidas.

Depois, os critérios escolhidos pelo legislador para sujeitar as pessoas à recolha em questão não oferece crítica. É que além dos condenados e daqueles a quem foi aplicada uma medida de segurança, ficam sujeitos à recolha dos dados aqueles a quem foi aplicada uma medid/a de coacção privativa da liberdade. Ora, como se afirmou atrás, a aplicação destas medidas está condicionada a vários pressupostos, que incluem a existência de indícios fortes da prática de determinado tipo de ilícitos (os mais graves), além da verificação de necessidades cautelares .

Por outro lado, não vemos como seja possível obter as informações em questão por outra via : a identificação realizada quando se tira o cartão de cidadão incide apenas sobre os dois dedos indicadores e apenas é tirada uma fotografia da cara, de frente; enquanto a identificação lofoscópica que está em causa na Lei nº 67/2017 incide sobre os 10 dedos das duas mãos e sobre as duas palmas das mãos, e as fotografias incidem sobre o corpo inteiro, de perfil, a três quartos e de frente – cfr. os artigos 4º, nº 4 e 6º.

Acresce que não vemos que a recolha deste tipo de dados seja desproporcionada, se considerarmos o tipo de exposição a que a pessoa é sujeita : a recolha dos dados lofoscópicos acarreta somente sujar momentaneamente as mãos e as fotografias, à partida, não pressupõem o seu desnudamento.

Deste modo, não é muito intensa a afectação da integridade pessoal do visado.

Mais, como se acentuou também anteriormente, a conservação dos dados é limitada no tempo, até à sua eliminação.

Outro aspecto a considerar, em termos de restrição do direito à identidade pessoal, é que os dados em causa nestes autos, identificando o sujeito, é certo, não permitem o conhecimento de características genéticas.

Por último, importa considerar também, o cuidado que a Lei nº 67/2017 de 9/8 dedica à protecção dos dados recolhidos : veja-se o que dispõem os arigos 10º, 14º, 16º, 17- e 19º.

Deste modo, concluímos que a recolha dos dados lofoscópicos e fotográficos determinada no despacho recorrido é uma medida útil, necessária e proporcional aos objectivos visados com a mesma .

Por fim, importa atender ao princípio da igualdade que, na perspectiva do recorrente, se mostra violado :

Este princípio tem assento constitucional no artigo 13º : «1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.».

Este princípio comporta duas dimensões. Na sua dimensão negativa, equivale à proibição de privilégios e discriminações; na sua dimensão positiva, implica «(i) tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) ; (ii) tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador; (iii) tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; (iv) tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir  (acrescentando-se, assim, uma componente ativa ao princípio  e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através  da lei); (v) consideração do princípio não como uma «ilha», antes como princípio a situar no âmbito dos padrões materiais da Constituição» - cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, volume I, UCE, p. 166.

O recorrente defende que a norma aplicada pelo tribunal recorrido – o artigo 3º, nº 1, al. a), ii) da Lei nº 67/2017 - na comparação com a subalínea iii) da mesma alínea e artigo, viola o artigo 13º da CRP, por não se exigir na fundamentação da medida uma «ponderação das necessidades de prova» .

Porém, não lhe assiste qualquer razão, na medida em que, ao contrário do que sucede na subalínea iii), no caso aplicado pelo tribunal de primeira instância, a recolha dos dados lofoscópicos e fotográficos pressupõe uma certa gravidade do crime imputado, que os indícios existentes contra o arguido sejam fortes, e, além disso, que se verifiquem determinadas necessidades cautelares .

Assim, se o arguido não for sujeito a medida de coacção privativa da liberdade – seja porque o crime imputado é dos menos graves, seja porque os indícios existentes nos autos não são fortes quanto ao arguido, ou porque inexiste, em concreto, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nem perigo de continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas -, já o legislador exige que o juiz só determine a recolha dos dados lofoscópicos e fotográficos se tal se justificar em termos de prova . 

Assim sendo, não existe qualquer violação do princípio da igualdade, como inexiste qualquer das inconstitucionalidades apontadas pelo recorrente.    

Pelo exposto, é de manter o despacho recorrido .

 

 

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos:

Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs (cfr. o artigo 513º do C.P.P. e artigo 8º do RCP e tabela III anexa).


Coimbra, 20 de Março de 2024

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(Helena Lamas - relatora)

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(Maria José Guerra)

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(Teresa Coimbra)