Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/14.3TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INST. CENTRAL DE LEIRIA - SEC. INST. CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 359.º DO CP; ART. 68.º, N.º 1, AL. A), DO CPP
Sumário: A pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração deve-se considerar ofendida, porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, em consequência, perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo de inquérito 59/14.3TAPBL da Comarca de Leiria, DIAP de Pombal, Secção Única (Instrução Central de Leiria, Secção de Instrução Criminal, J2) findo o inquérito que teve por objecto factos susceptíveis de integrar os tipos de crime dos artigos 359ºe 360º do Código Penal, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos nos termos do artigo 277º, nº 2 do Código de Processo Penal.

A... , que apresentou a queixa que deu origem ao processo, veio requerer a sua constituição como assistente e requerer a abertura de instrução.

O Mmº Juiz de Instrução em 20 de Outubro de 2015 proferiu o seguinte despacho de indeferimento da constituição como assistente e do requerimento de instrução:

Notificado do despacho de arquivamento com que o Ministério Público decidiu encerrar o inquérito, veio o denunciante A... requerer a sua constituição como assistente e, nessa qualidade, a abertura da instrução, sustentando deverem B... e C... ser pronunciados pela prática do crime de falsidade de testemunho e D... pela prática de crime de falsidade de declaração agravado (cfr. fls. 330 a 334).

O Ministério Público referiu nada ter a opor à constituição do denunciante como assistente (cfr. fls. 337).

Cumpre apreciar e decidir.

O denunciante antecipa no seu requerimento ser entendimento maioritário da jurisprudência a inadmissibilidade da constituição como assistente do lesado com falsos depoimentos ou declarações.

A questão relativa à admissibilidade de intervenção de assistente em procedimento por crime de falsidade de testemunho é antiga, sendo que, à luz do Código Penal de 1886, a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores se manifestou contra tal admissibilidade[1].

A análise da jurisprudência publicada mais recente revela uma significativa divisão entre os que mantém tal posição e os defensores da tese propugnada pelo requerente, no sentido de o ofendido com as declarações ou depoimentos falsos ter legitimidade para se constituir como assistente no processo penal respectivo.

Assim, secundando o entendimento do requerente de que é admissível nesses casos a constituição de assistente, encontraram-se os seguintes arestos nas bases de dados constantes dos sítios www.dgsi.pt e www.pgdlisboa.pt:

I – do Supremo Tribunal de Justiça:

a) de 12/07/2005 – Relator Conselheiro Simas Santos;

II – do Tribunal da Relação de Coimbra:

a) de 06/05/2009 – Relator Desembargador Esteves Marques e

b) de 24/06/2009 – Relator Calvário Antunes;

III – do Tribunal da Relação de Lisboa:

a) de 14/12/2005;

b) de 18/07/2007, ambos tendo como Relator Desembargador Carlos Almeida e

c) de 22/09/2009 – Relator Desembargador Vieira Lamim e

IV – do Tribunal da Relação do Porto:

a) de 21/11/2012 – Relator Desembargador Ernesto Nascimento.

Sustentando o entendimento contrário, isto é, que não é admissível no procedimento por crime de falsidade de testemunho a constituição como assistente, encontraram-se nos sítios citados as seguintes decisões de Tribunais Superiores:

I – do Supremo Tribunal de Justiça:

a) de 29/02/1984 – Relator Conselheiro Vasconcelos de Carvalho;

b) de 17/06/1987 – Relator Conselheiro José Calejo e

c) de 14/11/2002 – Relator Conselheiro Carmona da Mota;

II – do Tribunal da Relação de Évora:

a) de 04/12/2001 – Relator Desembargador Pires Graça e

b) de 10/12/2009 – Relator Desembargador Gilberto Cunha;

III – do Tribunal da Relação de Guimarães:

a) de 18/12/2006 – Relator Desembargador Cruz Bucho e

b) de 23/04/2012 – Relatora Desembargadora Ana Teixeira;

IV - do Tribunal da Relação de Lisboa:

a) de 03/05/2005 – Relator Desembargador Cabral Amaral e

b) de 29/03/2007 – Relator Guilherme Castanheira;

III – do Tribunal da Relação do Porto:

a) de 09/02/2000 – Relator Desembargador André da Silva;

b) de 23/10/2002 – Relator Desembargador Coelho Vieira;

c) de 30/06/2004 e

d) de 15/06/2005, ambos tendo como Relatora Desembargadora Conceição Gomes e

e) de 18/05/2011 – Relatora Desembargadora Ana Paramés.

Tal como sustentei já noutras decisões sobre o tema[2], considero que é este último entendimento aquele que melhor interpreta a letra e espírito da lei. Com vénia, cito a fundamentação expendida no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/12/2006, a que adiro integralmente:

«(…) Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal “Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos".

O texto legal em vigor é idêntico ao artigo 4º do DL n.º 35007 que por seu turno reproduzia o artigo 11º do Código de Processo Penal de 1929, que acolhia os ensinamentos de Beleza dos Santos (“Partes particularmente ofendidas em processo criminal”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57º, pág. 3).

E a mesma noção transparece claramente no artigo 113º do Código Penal, ao definir os titulares do direito de queixa, quando no seu n.º 1 estatui: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”

Consagra-se deste modo, o conceito estrito, imediato ou típico de assistente.

Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.

O objecto jurídico mediato do crime é sempre de natureza pública.

O imediato, pode ter por titular um particular.

Mas, nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, ofendido/assistente é “a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violada ou posto em perigo” (Direito Processual Penal, 1, 505).

Já em 1955 Cavaleiro Ferreira sublinhava que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato da infracção (…) Nem todos os crimes têm, por isso, ‘ofendido’ particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular” (Curso de Processo Penal, Lisboa, 1955, vol. I, págs. 129-130).

Também Germano Marques da Silva salienta que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime: ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular (Curso de Processo Penal, vol. I, 4ª ed., Lisboa S/Paulo, 2000, pág. 264, cfr. também, pág. 335).

Esta distinção entre lesado e ofendido é, de resto, claramente perfilhada pelo artigo 74, n.º 1 do Código de Processo Penal ao definir lesado como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente” (enfatizando este ponto cfr. Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, Porto, 1987, págs. 117-118).

(…) Vimos que nem todos os crimes têm «ofendido» particular.

Só o têm aquele cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.

Saber quais os interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação nem sempre se antolha tarefa fácil. “Por vezes - escrevia Cavaleiro Ferreira - torna-se difícil descobrir qual o ofendido em determinadas espécies; a dificuldade, porém, não respeita à definição, em si, de ofendido, mas à individuação do objecto jurídico do crime” (Curso de Processo Penal, vol. I, cit., pág. 130). É pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminosos.

Um primeiro indício resultará da própria sistematização da parte especial do Código Penal que está organizada de acordo com um critério que tem a ver com os interesses especialmente protegidos.

Depois de definido o interesse há que determinar o titular desse interesse. Se for um particular individualmente considerado só ele poderá intervir como assistente no processo. Se for o Estado enquanto colectividade, não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger, pelo que não é admissível a constituição de assistente (cfr. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1º Vol., Lisboa, 1996, pág. 317, aqui seguido de perto).

(…) O crime de falso testemunho, p. e p. pelo art. 360° do Código Penal assim como o crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 359° do mesmo Código, encontra-se inserido no Capítulo III “Dos Crimes contra a realização da justiça” do Título V “Dos Crimes contra o Estado”.

O interesse directa e imediatamente protegido é um interesse público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça.

O falso testemunho, apesar de poder prejudicar pessoas singulares e colectivas diferentes do Estado, foi incriminado para defender especialmente interesses do Estado, designadamente o de que a administração da justiça não seja prejudicada.

Como salienta Medina de Seiça “O bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho, falsa perícia, falsas declarações, etc., é essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, pág. 460 § 2).

(…) Perante o que acima se expôs, facilmente se conclui que o recorrente carece de legitimidade para se constituir como assistente, relativamente aos factos constantes do seu requerimento de abertura de instrução. (…) Com efeito, estando em causa um crime de falso testemunho, o recorrente pode ser lesado, por eventualmente ter sofrido prejuízos com os factos denunciados, e que no seu entender constituem crime. Contudo, não tem a qualidade de «ofendido», para efeitos de admissão e constituição como assistente, nos termos do art. 68°, n.º 1, alínea a), do CPP, já que não é o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção, o qual, como vimos o Estado, na realização ou administração da justiça (…)».

Entendimento (que vale integralmente quanto ao crime de falsidade de declaração) que não é minimamente beliscado pela fixação de jurisprudência no sentido de ser admissível a constituição como assistente em procedimento por crime de denúncia caluniosa[3]. Como se refere no acórdão acima citado no que toca ao crime de denúncia caluniosa, «(…) não nos parece, porém, que seja possível estabelecer qualquer paralelismo entre os dois tipos legais de crime, para efeitos de constituição de assistente (…) como já fora, de resto, salientado no douto Ac. da Rel. de Lisboa de 18-05-2005, proc.º n.º 1967/05-3ª, rel. Mário Morgado, in www.pgdlisboa.pt, proferido ainda antes daquela jurisprudência uniformizadora, enquanto a esfera de protecção da incriminação da denúncia não se esgota na realização da justiça, já que com ela também se protege igualmente o bom nome, a honra e a consideração do caluniado, no falso testemunho o bem jurídico protegido é apenas a realização ou administração da justiça, enquanto função do Estado (…)».

Assim, face a todo o exposto:

a) não admito, por falta de legitimidade, A... a intervir nos autos como assistente;

b) consequentemente, não admito o requerimento de abertura da instrução formulado pelo mesmo na veste de assistente.

Notifique e, transitado em julgado este despacho, devolva os autos ao DIAP.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o queixoso A... , extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O presente Recurso vem interposto do Despacho que não admitiu o Recorrente a intervir nestes autos enquanto Assistente, por falta de legitimidade quanto aos crimes de falsidade de declaração e de depoimento, previstos e punidos nos artigos 359.0 e 360.º do CP, e, consequentemente, não admitiu o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado.

2. Entende, porém, o Recorrente, que a incriminação dos crimes sub judice, visa acautelar directa, imediata e simultaneamente; quer o interesse do Estado na realização e administração da Justiça, quer o interesse particular afetado.

3. Os aqui arguidos prestaram; de forma concertada, declarações e depoimentos falsos que motivaram o Tribunal a tomar uma decisão contrária à verdade, impedindo, assim, a realização e administração da Justiça.

4. Visado com tais delitos foi também o ora Recorrente, tendo ficado prejudicado na sua esfera patrimonial, no montante de 7.500€, acrescido de juros.

5. Em situações como estas tem entendido a Jurisprudência conceder legitimidade ao denunciante para se constituir Assistente.

6. Podemos apontar, a título de exemplo, os Acórdãos do TRC datados de 06/05/2009 e de 24/06/2009, Relatores Esteves Marques e Calvário Antunes, respetivamente, o Acórdão do STJ de 12/07/2005, Relator Simas Santos, o Acórdão do TRP, de 21/11/2012, Relator Ernesto Nascimento, e ainda o Acórdão do TRL, de 22/09/2009, Relator Vieira Lami.

7. Assim, salvo o devido respeito, entende o Recorrente não ter sido feita uma correta interpretação dos preceitos do CP nomeadamente dos artigos 359.º, 360.º e 361.º, violando assim o disposto nos artigos 68.º, n.º 1, al. a) e, consequentemente, o 287.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.

8. Face ao que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Despacho ora em crise e ser o mesmo substituído por outro que admita o Recorrente a intervir no processo como Assistente e lhe reconheça legitimidade pura requerer a Abertura de Instrução.

E assim se fará JUSTIÇA

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1° - Em 20.10.2015 o Mmo. Juiz de Instrução exarou despacho decidindo não admitir, por falta de legitimidade, A... a intervir nos autos como assistente, e consequentemente, não admitir o requerimento de abertura da instrução formulado pelo mesmo na veste de assistente. Deste despacho veio A... interpor o presente recurso.

2° - "Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos" (e os mencionados nas alíneas b) a e)). - cfr. art.º 68º do C.P.P. Por seu turno, considera-se ofendido "o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação" - cfr. art.º 113º, nº 1 do C.Penal.

3° - Não é ofendido, para o efeito em análise, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime. Se o titular do interesse for o Estado enquanto coletividade, não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger, pelo que não é admissível a constituição de assistente.

4° - O falso testemunho/depoimento/declaração, apesar de poder prejudicar pessoas singulares e coletivas diferentes do Estado, foi incriminado para defender especialmente interesses do Estado, designadamente o de que a administração da justiça não seja prejudicada.

5° - Neste caso, o particular, podendo embora ser lesado, por eventualmente ter sofrido prejuízos com os atos denunciados, e que no seu entender constituem crime, não tem, contudo, a qualidade de «ofendido», para efeitos de admissão e constituição como assistente, nos termos do art.º 68º, nº 1, alínea a), do CPP, já que não é o titular do interesse que constitui o objeto imediato da infração, o qual, como vimos o Estado, na realização ou administração da justiça.

Contudo, Vossas Excelências farão a costumada

JUSTIÇA

Notificado, o arguido C... respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1.º

A MOTIVAÇÃO DO RECORRENTE ASSENTA NUMA POSIÇÃO MANIFESTADA PELA JURISPRUDÊNCIA, QUE NÃO É A POSIÇÃO COLHIDA PELO TRIBUNAL RECORRIDO, QUE ASSENTA NA OUTRA POSIÇÃO CONTRÁRIA QUE DEFENDE A ILEGITIMIDADE DE SE CONSTITUÍREM ASSISTENTES QUEM NÃO É O OFENDIDO CUJOS INTERESSES A LEI QUIS PROTEGER COM A INCRIMINAÇÃO DOS ARTIGOS 359.º E 360.º DO CÓDIGO PENAL.

2.º

O TRIBUNAL A QUO NÃO VIOLOU O DISPOSTO NO ARTIGO 68º DO CPP, POIS ANALISADO O PRECEITO LEGAL CONSIDERAM-SE COMO OFENDIDOS PARA EFEITOS DE CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE, " OS TITULARES DOS INTERESSES QUE A LEI ESPECIALMENTE QUIS PROTEGER COM A INCRIMINAÇÃO, DESDE QUE MAIORES DE 16 ANOS".

3.º

O RECORRENTE NÃO TEM LEGITIMIDADE PARA SE CONSTITUIR ASSISTENTE PORQUANTO NÃO É O "OFENDIDO" CUJOS INTERESSES A LEI QUIS PROTEGER COM A INCRIMINAÇÃO.

4.º

0 BEM JURÍDICO PROTEGIDO EM AMBOS OS PRECEITOS LEGAIS (ART. 359.º E 360.º) É A REALIZAÇÃO OU ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA COMO FUNÇÃO DO ESTADO.

5.º

CONFORME DECORRE DA LEI, NÃO É OFENDIDO, PARA ESTE EFEITO, QUALQUER PESSOA PREJUDICADA COM A PRÁTICA DO CRIME, MAS APENAS O TITULAR DO INTERESSE QUE CONSTITUI OBJECTO JURÍDICO IMEDIATO DO CRIME QUE PODE OU NÃO TER POR TITULAR UM PARTICULAR.

6.º

NA VERDADE NEM TODOS OS CRIMES 'TÊM COMO OFENDIDO UM PARTICULAR; SÓ O TÊM AQUELES CUJO OBJECTO IMEDIATO DA 'TUTELA JURÍDICA É UM INTERESSE OU UM DIREITO DE QUE É TITULAR UM PARTICULAR.

7.º

É PELA PRÓPRIA NORMA INCRIMINADORA QUE SE VÊ QUAL O INTERESSE QUE A LEI QUIS PROTEGER AO TIPIFICAR DETERMINADOS COMPORTAMENTOS HUMANOS COMO CRIMINOSOS.

8.º

UM PRIMEIRO INDÍCIO RESULTARÁ DA PRÓPRIA SISTEMATIZAÇÃO DA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL QUE ESTÁ ORGANIZADA DE ACORDO COM UM CRITÉRIO QUE TEM A VER COM OS INTERESSES ESPECIALMENTE PROTEGIDOS.

9.º

DEPOIS DE DEFINIDO O INTERESSE HÁ QUE DETERMINAR O TITULAR DESSE INTERESSE. SE FOR UM PARTICULAR INDIVIDUALMENTE CONSIDERADO SÓ ELE PODERÁ INTERVIR COMO ASSISTENTE NO PROCESSO. SE FOR O ESTADO ENQUANTO COLECTIVIDADE, NÃO HÁ UM TITULAR DE INTERESSE A QUEM A LEI ESPECIALMENTE QUIS PROTEGER, PELO QUE NÃO É ADMISSÍVEL A CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE (CFR. SIMAS SANTOS, LEAL HENRIQUES E BORGES DE PINHO, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ANOTADO, 1º VOL, LISBOA, 1996, PÁG. 317).

10.º

NÃO SE OLVIDA QUE O STJ, POR ACÓRDÃO DO PLENO DAS SECÇÕES CRIMINAIS DE 1 2 DE OUTUBRO DE 2006, (PROCESSO N.º2859/05-5), VEIO FIXAR A SEGUINTE JURISPRUDÊNCIA.

11.º

ENQUANTO A ESFERA DE PROTECÇÃO DA INCRIMINAÇÃO DA DENÚNCIA NÃO SE ESGOTA NA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA, JÁ QUE COM ELA TAMBÉM SE PROTEGE IGUALMENTE O BOM NOME, A HONRA E A CONSIDERAÇÃO DO CALUNIADO, NOS CRIMES PREVISTOS NO ART.360º, DO CÓDIGO PENAL E, DESIGNADAMENTE, NO CRIME DE FALSIDADE DE PERÍCIA O BEM JURÍDICO PROTEGIDO É APENAS A REALIZAÇÃO OU ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA, ENQUANTO FUNÇÃO DO ÉSTADO.

12.º

SALVO MELHOR OPINIÃO, É A POSIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO, QUE MELHOR DECIDE ESTA QUESTÃO LEVANTADA NO RECURSO.

DEVE CONSEQUENTEMENTE SER MANTIDA A DOUTA DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO.

TODAVIA, V.AS EX.AS DECIDIRÃO CONFORME FOR DE LÊI E DÊ JUSTIÇA.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer do seguinte teor:

O queixoso e ora recorrente A... alega que o depoimento prestado por C... , por B... e por E... , no âmbito do Proc. Comum Singular nº 2115/03.4TBPBL, foi realizado de uma forma concertada e com o intuito claro de lhe causar um prejuízo, pois "( ... ) Apesar de bem saberem a verdade dos factos, os arguidos mentiram perante o Tribunal, promovendo não só a não realização da Justiça, impedindo a instância decisora de concretizar a descoberta da verdade material, como também, fruto dessa viciação, prejudicaram os legítimos interesses do Recorrente, que se viu condenado injustamente no montante de 7. 500, 00€, acrescido de juros( ... )".

O queixoso e ora recorrente A... alega sentir-se "( ... ) lesado e prejudicado na sua esfera patrimonial por declarações e depoimentos disformes à realidade dos factos, que mais não visaram do que a intenção do lucro de terceiro - a arguida D... - a expensas suas( ... )".

Entendemos que assistirá razão ao queixoso e ora recorrente A... para a sua constituição como assistente nos autos, uma vez que invoca um prejuízo que sofreu, na sequência do falso depoimento prestado por C... , por B... e por E... , no âmbito do Proc. Comum Singular nº 2115/03.4TBPBL.

Com efeito, e salvo o devido respeito por opinião contrária, consideramos que, no caso em apreço, o queixoso e ora recorrente A... terá legitimidade para se constituir como assistente nos autos.

E, para sustentar esta nossa posição, citamos o sumário do douto Ac. TRC, de 06/05/2009, in Proc. nº 3773/06.3TALRA.Cl, admissível em www.dgsi.pt.,onde se diz que:

"( ... ) 1. O conceito de assistente não se confunde com o conceito de lesado contido no artº 74° nº 1 CPP.

2. A noção de lesado é mais ampla e extensiva do que a de assistente.

3. Sempre que se aprecia um pedido de constituição de assistente há que ter uma particular atenção à norma incriminadora já que é através dela que se alcança o interesse que o legislador quis proteger ao tipificar determinada conduta como criminosa.

4. No crime de falsidade de depoimento ou declaração p. e p. no artº 359º CP é admissível a constituição de assistente( ... )".

Assim, a questão colocada pelo queixoso e ora recorrente A... e que cumpre emitir parecer é a de saber se o mesmo terá legitimidade para se constituir assistente, em procedimento por crime de falsidade de testemunho.

Consta do art. 68º, al. a), do Cod. Proc. Penal, que podem constituir-se assistentes, os" ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos".

Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, I, pág. 335, diz, a propósito, que" só se considera ofendido, para os efeitos do art" 68~ nº 1 al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular uma pessoa".

No caso em apreço, o crime de falsidade de testemunho, previsto no artº 360º do Cod. Penal, encontra-se integrado no Título V - dos Crimes contra o Estado, Capítulo III - Dos crimes contra a realização da justiça, sendo que o bem jurídico protegido neste tipo de crime é o interesse na boa realização da justiça.

Contudo, e tal como se refere no citado Ac. TRC, de 06/05/2009, "( ... ) a jurisprudência do STJ vem nos últimos anos entendendo que, no que respeita à constituição como assistente, só caso a caso, e perante o tipo incriminador, é possível afirmar, em última análise, se a mesma é de admitir.

É disso desde logo exemplo o acórdão uniformizador de jurisprudência n. º 1/2003 DR- IA, de 03.07.27., DR-IA, de 27/2/2003, segundo o qual "No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, p. e p. pela alínea a) do n. º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente". Mais recentemente e num caso paralelo àquele que abordamos, escreveu-se (Ac. STJ de 05.07.12 Pº 05P2535, www.dgsi.pt 3):

"Recentemente, este Supremo Tribunal de Justiça [Ac. de 29.3.2000, Acs do STJ, VIII, t. 2, pág. 234,) começou a inflectir o caminho anteriormente percorrido e decidiu que «sendo o objecto mediato da tutela jurídico-penal sempre de natureza pública (sem o que não seria justificada a incriminação), o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular( ... )".

Assim, e passando ao caso em apreço, o queixoso e ora recorrente A... imputa a C... , a B... e a E... a prática de um crime de falsidade de testemunho, na sequência do qual invoca ter sofrido um prejuízo.

Ora, tal como se refere no citado o Ac. IRC, temos que "( ... ) não pode concluir-se pela inadmissibilidade da constituição de assistente somente a partir da natureza do crime, pois que, ... pode também visar a protecção de interesses particulares( ... )".

Com efeito, e continuando a seguir o entendimento deste aresto, relativamente a este tipo de crime"( ... ) a agravação e concreta punição depende já não da actividade desenvolvida, mas também da natureza e gravidade das consequências para o ofendido concreto.

O que impõe a conclusão que o tipo em causa visa proteger a administração da justiça, mas (também) os prejuízos que os atentados podem causar a interesses de particulares.

Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objectos imediatos da incriminação.

O que se evidencia igualmente através das condicionantes da já referida possibilidade de retratação, tributária igualmente da extensão dos prejuízos causados aos ofendidos.

O queixoso e ora recorrente A... invoca que a falsidade dos depoimentos prestados por C... , por B... e por E... lhe causou um prejuízo, avaliado em € 7.500,00, acrescido de juros.

Estamos perante uma situação em que o queixoso e ora recorrente A... se sente directamente ofendido, defendendo Beleza dos Santos, in Partes particularmente ofendidas em processo criminal, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 57, pág. 2, que "( ... ) os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores( ... )".

Ora,"( ... ) a análise do tipo legal de falsidade de depoimento do art. 360. º do Código Penal, permite concluir que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente." - cfr. citado A. TRC .

Assim sendo e uma vez que o queixoso e ora recorrente A... invoca, no pedido de admissão como assistente, que o depoimento prestado por C... , por B... e por E... , no âmbito do Proc. Proc. Comum Singular nº 2115/03.4TBPBL era falso e que lhe causou um prejuízo, não se vislumbra razão para não o admitir como assistente nos autos, dado o seu interesse em agir.

Face ao exposto, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que admita o queixoso e ora recorrente A... a intervir nos autos na qualidade de assistente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido C... respondeu, continuando a pugnar pela improcedência do recurso.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais com realização de conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Apreciação do Recurso

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal). 

Confrontadas as conclusões do recurso interposto e acima transcritas, verificamos que a única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se nos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e de falsidade de testemunho, perícia interpretação ou tradução dos artigos 359º e 360º do Código Penal é admissível a constituição como assistente de pessoa que haja sofridos danos decorrentes da sua prática.

Não obstante a longa querela judicial existente sobre a matéria, de que o despacho recorrido dá desde logo nota, até ao momento a questão em apreço não mereceu acórdão de uniformização de jurisprudência.

Temos, pois, a tarefa de nos colocarmos “de um dos lados da barricada” na guerra instalada de argumentos jurídicos.

            As soluções inconciliáveis em causa partem de diferente interpretação essencialmente do disposto no artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal quando preceitua que “Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos”.

Assim, não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, afirmação que é consensual para todos, já não o sendo quando à definição de que seja o conceito d “titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

Como se refere no acórdão parcialmente transcrito na decisão recorrida da Relação de Guimarães, o objecto jurídico mediato do crime é sempre de natureza pública, o imediato, pode ter por titular um particular. Mas, nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular.

Também Germano Marques da Silva salienta que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime: ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular (Curso de Processo Penal, vol. I, 4ª ed., Lisboa S/Paulo, 2000, pág. 264, cfr. também, pág. 335).

A distinção entre lesado e ofendido é claramente perfilhada pelo artigo 74º, nº 1 do Código de Processo Penal ao definir lesado como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.

Nem sempre é tarefa fácil saber que interesses a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Será pela análise da norma incriminadora e da sua inserção sistemática em confronto com os valores constitucionais que possam estar em causa que se concluirá qual será o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminoso.

Um primeiro indício resultará da própria sistematização da parte especial do Código Penal que está organizada de acordo com um critério que tem a ver com os interesses protegidos.

Depois de definido o interesse ou interesses haverá que determinar o titular deles. Se for um particular individualmente considerado só ele poderá intervir como assistente no processo. Se for o Estado, exclusivamente este, enquanto colectividade, não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger, pelo que não é admissível a constituição de assistente (cfr. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1º Vol., Lisboa, 1996, pág. 317).

O crime de falso testemunho, p. e p. pelo artigo 360° do Código Penal assim como o crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 359° do mesmo Código, encontra-se inserido no Capítulo III “Dos Crimes contra a realização da justiça” do Título V “Dos Crimes contra o Estado”. Sem dúvida que é interesse directa e imediatamente protegido o público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça. O falso testemunho, podendo prejudicar pessoas singulares e colectivas diferentes do Estado, foi incriminado para defender interesses do Estado, designadamente o de que a administração da justiça não seja prejudicada. Mas tal não significa que aí se esgote a sua tutela directa, “especial”.

Como salienta Medina de Seiça “O bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho, falsa perícia, falsas declarações, etc., é essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, pág. 460 § 2).

Sublinhámos propositadamente “essencialmente” porque essa função do Estado apenas se compreende como forma de garantir aos cidadãos o seu reconhecido direito à justiça. Protegendo a realização de justiça protege-se igualmente o direito de cada cidadão a obter justiça. São estas duas realidades incindíveis.

Assim, não temos qualquer dúvida em afirmar que independentemente do que conste dos tipos legais, todos os tipos de crime do capítulo “dos crimes contra a realização da justiça” protegem simultaneamente a realização e administração da justiça como função do Estado e o direito individual à justiça que faz desde logo parte da noção de Estado de Direito democrático constante do artigo 2º da CRP e expressamente previsto no artigo 20º.

E sendo esta, como cremos, a correcta densificação dos valores penalmente protegidos por tais incriminações, nem compreendemos porque não o tem enfatizado a doutrina e a jurisprudência, como decorrência constitucional do direito (individual) a tutela jurisdicional efectiva e a processo equitativo que precisamente podem ser completamente desvirtuados em função de falsidade de depoimento ou declaração.

Aliás, grande número de direitos, liberdades e garantias consagrados no texto constitucional são objecto de tutela por via penal. Mal se compreenderia que o essencial direito à justiça dos cidadãos não o fosse.

E a análise do texto legal no que respeita aos crimes em causa também não oferece dúvida de que o direito à justiça do cidadão está também na base da incriminação, se cotejarmos as circunstâncias que agravam o crime, como sejam “do facto resultar demissão de lugar, perda de posição profissional, destruição de relações familiares ou sociais de outra pessoa, outra pessoa seja condenada pelo crime praticado pelo agente, se resultar privação da liberdade de uma pessoa” ou ainda os efeitos da retractação na pena.

Só não consideramos que este seja o argumento essencial (antes o é o constitucional) como consideram os defensores da tese da admissibilidade   da constituição de assistente do lesado, porque ofendido (cfr. por todos o Ac. do STJ de 12.7.2005, relatado pelo Exmº Conselheiro Simas Santos).

Em suma, o facto de na sistematização do Código Penal não se apelar ao direito individual à justiça apenas significa uma opção de classificação segundo determinado critério que não exclui que crime catalogado como defendendo interesse colectivo possa simultaneamente e especialmente defender interesse particular, bastando que a respectiva matéria tenha eco constitucional ao nível dos direitos liberdades e garantias individuais.

Não há como negar, a nosso ver, que a pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração se deve considerar ofendida porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, por consequência, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público.

Merece provimento o recurso interposto.


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III. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo queixoso A... e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que admita o recorrente a intervir nos autos na qualidade de assistente e conheça do mérito do seu requerimento de instrução.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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Coimbra, 7 de Junho de 2016

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora; a primeira signatária).


(Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)


(José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)


[1] A título meramente exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do STJ de 21/07/1965, de 18/05/1966, de 12/03/1967, de 20/12/1967 e de 24/07/1974, nos BMJ n.º 149, pág. 249, n.º 157, pág. 213, n.º 172, pág. 136, n.º 172, pág. 149 e n.º 239, pág. 107, respectivamente e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 03/03/1965 e de 19/01/1966, na Jurisprudência das Relações, ano 11º, pág. 181 e ano 12º, pág. 39, respectivamente.

[2] Por exemplo, nos inquéritos n.ºs 422/08.9TARMR e 109/12.8TARMR, que correram ambos termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Rio Maior – decisões de 29/01/2009 e 27/04/2012, respectivamente.
[3] Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2006, de 12/10/2006, Relator Conselheiro Costa Mortágua, publicado no Diário da República, Iª Série, n.º 229, de 28/11/2006, fixando jurisprudência nos seguintes termos: «No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador».