Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
839/12.4T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: LIVRO DE RECLAMAÇÕES
DIREITO DE RECLAMAÇÃO
EXERCÍCIO DE DIREITO
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV - AVEIRO - JMPIC - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 4º, N.º 2, ALÍNEA C), DO DECRETO-LEI N.º 156/2005, DE 15 DE SETEMBRO, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA DECRETO-LEI N.º 371/2007, DE 6 DE NOVEMBRO
Sumário: I – A afirmação, no livro de reclamações, de factos capazes de prejudicar o bom-nome e a reputação de outrem, não é ilícita se o reclamante exerceu legitimamente o direito de reclamação.
II – O exercício do direito de reclamação é ilegítimo quando o seu autor descreve factos que sabe não serem verdadeiros ou quando ignora com culpa que são falsos.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A...., com residência profissional no ..., Aveiro, propôs a presente acção contra B..., residente na rua ..., Aveiro, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 8 000,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que no dia 31 de Outubro de 2010, a ré apresentou uma reclamação no ..., acusando a autora, que trabalha como enfermeira no referido hospital, de ameaçar e maltratar a utente C...(avó da ré); que a ré afirmou na reclamação factos que não eram verdadeiros; que a única explicação que encontra para a reclamação são ciúmes, pois a ré é a actual companheira do ex-namorado da autora; que a ré quis prejudicar o bom-nome da autora; que a autora viu-se humilhada perante colegas e utentes e sofreu grave desgosto e abalo moral; que a reclamação pôs em causa anos de dedicação à enfermagem; que estima em 8 000,00 euros a reparação dos danos não patrimoniais sofridos.   

A ré contestou, concluindo pela improcedência da acção. Na sua defesa alegou, em síntese, que se limitou a transmitir as queixas, angústias e temores que lhe foram revelados pela sua avó, C..., na impossibilidade de esta o fazer por si, exercendo legitimamente o direito de reclamação, enquanto utente do Serviço Nacional de Saúde.  

O processo prosseguiu os seus termos e depois de realizada a audiência de discussão e julgamento e de ter sido dada resposta à matéria de facto, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 5 250 [cinco mil duzentos e cinquenta euros], acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a alteração da sentença.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Considerou o tribunal “a quo” julgar parcialmente procedente a acção, condenando a recorrente a pagar à recorrida o valor de € 5.250.00 acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento, assim como nas custas na proporção do seu decaimento. O tribunal “a quo” andou, no entanto, mal ao decidir dessa forma, incorrendo em erros de julgamento da matéria de facto e erros de julgamento da matéria de direito.
2. Desde logo deu erradamente como provado o facto n.º 4, para o qual se fundou, entre outros, no depoimento da testemunha J ..., que afirmou ser sincero e coerente. No entanto, esta testemunha, responsável por dar resposta à reclamação feita pela recorrente no livro Amarelo, não só afirma que esta havia escrito na aludida queixa que a recorrida maltratava a utente C... – quando isso não consta da reclamação - como afirma que as queixas da utente não correspondiam à verdade. No entanto, não questionou a referida utente sobre esse mesmo assunto - se ela tinha ou não sido ameaçada -, mesmo avançando que ela o poderia confirmar.
3. Da mesma forma, a testemunha alega que inexistiam sinais que pudessem motivar uma reclamação por parte da utente, quando ela própria não observou a dita utente no dia em que esta deu entrada – dia 31 de Outubro –, bem como os registos desse mesmo dia foram feitos no serviço de Urgência Geral, que não foram analisados. E quanto aos restantes dias, não sabe precisar se os registos médicos contemplam outras análises que não aquelas que dizem respeito aos problemas cardíacos da utente.
4. A testemunha – responsável por dar resposta à dita reclamação – avança ainda que a recorrente avançou para a queixa sem dar oportunidade à recorrida de se defender, quando também isso não é verdade, uma vez que a primeira tentou efectivamente falar com a segunda. E isso decorre mesmo do depoimento da testemunha I....
5. Por fim, prova de que não se pode dar como provado sem mais que do comportamento da enfermeira não se apurou nada de anormal, é o facto de a testemunha J ..., aqui referida, enfermeira chefe, ter feito uma proposta de que as afirmações escritas pela recorrente fossem contextualizadas por esta, sendo que essa mesma proposta não teve qualquer seguimento, tendo mesmo sido arquivado o dito inquérito.
6. Pelo que tendo em conta tudo isto, verifica-se um erro na apreciação da prova, devendo consequentemente o facto n.º 4 ser dado como não provado, ou pelo menos provado no sentido de que: “na sequência da reclamação apresentada foi feito um inquérito interno no âmbito do qual nada de anormal se apurou na actuação da Senhora Enfermeira A..., aqui autora, ainda que não tenha sido ouvida nem a utente, nem a pessoa que apresentou a queixa em nome da utente em causa, aqui ré”.
7. Por outro lado, o tribunal “a quo” deu como não provados os artigos 2º, 3º e 4º da contestação, incorrendo, mais uma vez, em erro na apreciação da prova. Com efeito, o tribunal motiva-se desde logo, no raciocínio de que: “Profissionalmente a autora é conhecida por A...e a reclamação foi dirigida à enfermeira A.... De outra banda, não sabendo a paciente ler, não podia ter sido esta a transmitir o nome da enfermeira quer à filha quer à neta. Deste modo, o seu nome só poderia ter sido obtido na recepção ou junto de outros profissionais e, se assim tivesse acontecido, o nome veiculado teria sido A..., que não é o que consta da reclamação”.
8. No entanto, com este raciocínio, o tribunal assenta o seu juízo lógico dedutivo em factos que não estão assentes em lado nenhum, uma vez que não é alegado qual o nome profissional da autora, não sendo o mesmo dado como provado ou não provado. E tal método de raciocínio dedutivo – de fixar factos desconhecidos a partir de factos desconhecidos – não é permitido no nosso sistema legal, sendo contrário ao disposto no artigo 349º do Código Civil. Pelo que esta argumentação não pode fundar a decisão da matéria de facto dos artigos 2º, 3º e 4º da contestação, devendo esta ser alterada e dada como provada, tanto mais tendo em conta o depoimento de parte da ré onde esta afirma que se limitou a dar voz às queixas da avó.
9. O tribunal “a quo” funda também o seu raciocínio no seguinte argumento: “Acresce, ainda, que a autora teve muito pouco contacto com a utente e não é razoável acreditar que, a ter acontecido uma situação de ameaças e maus tratos (…) a utente só tenha reportado esta à sua filha no dia 31 de Outubro de 2010 e não o tenha referido em momento anterior, designadamente a alguém do lar, onde esta se encontra. É de igual modo, estranho que a referida situação não tenha causado qualquer alteração digna de registo no processo da paciente”. E também aqui parte de factos desconhecidos para afirmar factos desconhecidos, uma vez que não constam dos factos provados nem não provados, nem foi referido por ninguém aquando da produção de prova se a utente reportou ou não qualquer ameaça a alguém do lar onde se encontra. Pelo que este juízo de que ela o fez é meramente arbitrário e viola os mais básicos princípios de direito civil.
10. Acresce que a referida fundamentação aludida na conclusão n.º 9 refere-se a “maus-tratos”, quando a ré não o referiu na sua reclamação. E da mesma forma não é feita uma análise se os registos da paciente se debruçam sobre a sua situação clínica cardíaca ou sobre a sua situação psicológica ou emocional.
11. É ainda fundamentado para dar como não provados os artigos 2º, 3º, e 4º da contestação a argumentação de que “não é credível que a testemunha E... não fizesse, de imediato, a correspondência da enfermeira visada com a sua ex-namorada”. Ora esse juízo contraria as regras de experiência comum uma vez que da produção da prova resulta que a testemunha E...terminara o seu relacionamento com a recorrida há cerca de dois, três anos; na altura do relacionamento, a recorrida não trabalhava ali; pelo que tendo a testemunha um novo relacionamento estável, não tendo contactos com a sua ex-namorada há mais de dois anos, não se percebe porque haveria de fazer um imediato juízo de correspondência com a sua ex-namorada e a autora quando alguém refere o nome enfermeira e o nome A.... Tanto mais que – e partindo como faz o Tribunal “a quo” – de factos desconhecidos para factos desconhecidos – ninguém sabe se a testemunha tratava a Autora pelo seu nome próprio ou por um outro qualquer.
12. E assim sendo é evidente que incorreu o tribunal “a quo” em erro na apreciação da prova pelo que, consequentemente, têm de ser alteradas as respostas dadas aos artigos 2º, 3º e 4º da contestação, sendo estes considerados provados.
13. O artigo n.º 27º da contestação, segundo o qual “Aceita-se expressamente que, à data dos factos narrados na reclamação apresentada pela Ré, esta não conhecesse a Autora”, foi dado como não provado, quando na petição inicial, no artigo 7º havia sido alegado pela Autora: “Embora a Autora e a Ré não se conheçam”. E o que acontece é que se verifica um meio de prova plena, nomeadamente prova por confissão e acordo, cuja força probatória foi desprezada pelo tribunal “a quo” ao ter sido dado como não provado o artigo 27 da contestação, pelo que, nos termos do artigo 712.º n.º 1 al. b) do C.P.C deve ser dado como provado: “À data dos factos narrados na reclamação apresentada pela Ré, esta não conhecia a Autora”.
14. Sem prescindir, no que ainda a este artigo 27º da contestação diz respeito, mesmo que não se entenda que estão violados os mais básicos princípios relativos à prova plena, deve ser valorado o depoimento da ré quando afirma claramente que não conhecia a autora à data dos factos. E consequentemente serem também alterados os artigos 2º, 3º e 4º da contestação uma vez que se a ré não conhecia a autora, improcede a argumentação de que esta agiu motivada devido à sua relação com a testemunha E...e não devido às queixas da sua avó.
15. Mal andou o tribunal “a quo” ao dar como não provados os artigos 35º e 36º da contestação. Desde logo porque as únicas pessoas que poderiam saber da referida queixa eram a utente C..., a testemunha D..., a ré, a autora e o namorado da ré – a testemunha E...- uma vez que directamente envolvidos. E tendo em conta que nenhum deles, a não ser a autora, se movimentam ou trabalham dentro do hospital ou têm contactos com os profissionais de saúde, se a notícia da queixa e os motivos da mesma se espalharam, tal foi motivado pela única e outra pessoa que tinha conhecimento dela: a autora. Tanto mais que é a própria autora que reconhece que nem a ré nem o chefe de equipa, directamente envolvidos na situação, espalharam junto de terceiros o teor da reclamação contra si apresentada.
16. Assim, não há dúvidas que se a queixa e o teor da mesma se espalharam foi devido à actuação da própria autora, que confirma que as suas testemunhas têm conhecimento do acontecido, tendo sido ela a revelar às enfermeiras G... e H..., o que foi também confirmado pelas mesmas. Ora, sendo estas enfermeiras consideradas terceiras, no âmbito do processo de reclamação, necessariamente, tendo em conta esta prova produzida, tem de ser alterada a resposta aos artigos 35º e 36º da contestação.
17. Por outro lado, decorre da factualidade dada como provada que a conduta da recorrente não preenche os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483.º do Código civil.
18. Com efeito, a conduta da recorrente não foi ilícita uma vez que justificada através de uma cláusula de justificação: o exercício do seu legítimo direito. E estando em causa dois interesses constitucionalmente protegidos, o direito à honra da autora não tem um valor superior ao direito da ré de apresentar a reclamação, tanto mais que a sua acção visou apenas defender o direito daquela que pela sua idade e condições de formação o não podia fazer. Tendo actuado ao abrigo de um direito está afastada a ilicitude do acto, até porque no presente caso se aplica analogicamente o disposto às participações criminais e é doutrina assente a prevalência do direito de denúncia sobre o direito à honra do denunciado, sendo impensável impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso com a justificação de que, em consequência da participação, ir-se-á lesar a honra do participado.
19. Acresce que a recorrente não actuou com abuso de direito, não surgindo a sua actuação de um acto amadurecido e calculista de fazer queixa para com ela atingir a autora, mas antes de um produto de menor reflexão, surgido no impulso de dar voz à sua avó, que num estado fragilizado lhe demonstrou o medo que sentia. Tanto mais que foi nesse próprio momento que a recorrente fez essa participação. E logo, a boa-fé objectiva está presente, não se vislumbrando qualquer procedimento que uma consciência razoável não possa tolerar no comportamento da recorrente de: tentar falar com a autora; não conseguir; fazer a aludida queixa. Por outro lado, do cotejo da factualidade dada como provada inexiste qualquer facto que assente na convicção da Ré ter escrito a participação motivada por outra ordem de motivos, que não o facto de ser neta da utente, tendo sido dado como não provado todos os factos que conduziam a essa mesma intenção (Artigo 7.º, 10 e 14 da petição inicial).
20. Também da frase da Recorrente “Se esta não sabe (…) que não exerça” não se pode entender que haja uma violação da dignidade profissional da Recorrida que atente contra os bons costumes, uma vez que não há uma imputação directa à autora de que ela não sabe exercer enfermagem. Pelo que não se verificam os pressupostos do artigo 334.º do Código Civil relativamente ao abuso de direito. As afirmações da ré na aludida queixa apenas se podem traduzir numa mera indelicadeza, que não se confunde com abuso de direito.
21. A ré não agiu com culpa, outro dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, uma vez que da factualidade provada não se pode inferir que tenha agido com a consciência da falsidade das imputações constantes da reclamação que apresentou. A ré exerceu o seu direito para fazer ouvir a sua avó, que devido à sua idade, estado de saúde e formação académica o não podia fazer. E o seu comportamento tem uma lógica de preocupação pelo estado da utente, uma vez que antes de fazer a reclamação tenta falar com a enfermeira, escreve seguidamente no livro e depois fala ainda com o responsável pelo serviço de urgências para evitar danos futuros. E decorre dos juízos de experiência comum que se a ré apenas quisesse atingir a Autora faria apenas a reclamação, sem se dar a este trabalho. E tê-la-ia feito num dos inúmeros dias anteriores em que a sua avó ali estivera internada. Não se verifica por isso dolo nem mera culpa por parte da Autora uma vez que esta não só não quis ofender a Autora como as expressões constantes na reclamação não são susceptíveis de a prejudicar na sua honra e consideração.
22. Por outro lado os factos dados como provados como configurando danos por parte à recorrida não são bastantes para preencher o requisito do n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil. É que não ficou provado que a mesma tivesse sofrido um indescritível sofrimento com a actuação da Ré ou que tenha ficado com a sua reputação profissional posta em causa. O que se verifica são meros incómodos e desgostos que resultam de uma sensibilidade anómala, sendo mesmo necessário ponderar se uma mera queixa num livro de reclamações, com as afirmações que foram escritas, é de tal ordem que possa provocar uma ausência de sono numa enfermeira treinada e habituada a lidar com situações de “vida ou morte”. Pelo que não podem ser indemnizados. Tanto mais que decorre da prova produzida que a Autora não se sentiu humilhada perante os utentes visto que estes não sabiam; não se sentiu humilhada perante a maior parte dos colegas visto que estes não sabiam; não se sentiu humilhada perante os colegas que sabiam porque estes não acreditaram; pelo que não existe verdadeira humilhação, nem sofrimento, mas sim mero desgosto que não cabe no requisito da gravidade previsto no artigo 496.º do Código Civil.
23. Sem prescindir, a indemnização arbitrada à recorrente é meramente desproporcionada e arbitrária, uma vez que não tem em conta desde logo a situação económica da recorrente, nos termos do artigo 496.º, n.º 3 do código Civil, que é precária, intervindo esta no processo com apoio judiciário, sendo esse facto de conhecimento oficioso pelo tribunal. Pelo que deverá a referida indemnização ser manifestamente reduzida. Tanto mais que Autora participou criminalmente contra a Ré por esta ter cometido um crime de difamação por os mesmos factos por que propôs a presente acção, e no âmbito do processo que correu termos com o n.º 597/11.0T3AVR, reputou como valor necessário para compensar os seus aludidos danos a quantia de € 1 500.00, valor esse que peticionou a título de indemnização cível.
24. Por fim, a ser devida indemnização pelos alegados danos de natureza não patrimonial, os juros não são devidos desde a citação, de acordo com o artigo 805.º n.º 3 do Código Civil, uma vez que se assim for a compensação pelos aludidos juros constituirá uma compensação em duplicado por via do mesmo facto: o decurso do tempo. Pelo que apenas são devidos juros desde o primeiro dia após a prolação da decisão que atribui a indemnização.
25. Com a douta sentença ora em análise o tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 349.º, 483.º e 496.º e 805 n.º 3 do Código Civil e artigo 712.º n.º 1 al. b) do C.P.C.

A autora respondeu, propugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.


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Vê-se da exposição acabada de fazer que a ré pediu, em primeiro lugar, a alteração da decisão recorrida no sentido de ela ser revogada e substituída por outra que a absolva da condenação no pagamento da quantia de 5 250 euros.

Para a hipótese de esta pretensão não ser atendida, pediu:

1. A redução da indemnização para o montante de 1 500 euros;

2. A alteração do segmento da decisão que a condenou no pagamento de juros de mora a partir da citação no sentido de os juros de mora serem devidos a partir do primeiro dia após a prolação da decisão que atribuiu a indemnização.

As razões pelas quais a recorrente pediu a alteração da decisão condenatória foram, em síntese, as seguintes:

Em primeiro lugar, a recorrente entende que o tribunal a quo julgou erradamente a matéria do artigo 4º da petição inicial e a matéria dos artigos 2º, 3º, 4º, 27º, 35º e 36º da contestação;

Em segundo lugar, entende que não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, ou seja, a sua conduta não foi ilícita; não agiu com culpa; e os danos não patrimoniais não têm gravidade que mereçam a tutela do direito.

Em terceiro lugar, entende que, a ser devida indemnização, o montante que foi fixado é manifestamente excessivo, uma vez que não tomou em conta a situação económica da recorrente, devendo em consequência ser reduzido.

Por último, entende que a ser devida indemnização os juros de mora são devidos, não desde a citação, mas desde o 1º dia após a prolação da decisão que atribuiu a indemnização.

Expostas, de modo sintético, as pretensões da recorrente e os respectivos fundamentos, passemos ao conhecimento das questões de facto, uma vez que o julgamento destas têm precedência lógica sobre o julgamento das de direito.

Devemos começar por dizer, no entanto, que há duas questões que a ré qualifica como sendo de facto, que, na verdade, não têm esta natureza. Referimo-nos ao que a ré alegou nos artigos 4º e 27º da contestação.

Sob o artigo 4º alegou, referindo-se à reclamação por si apresentada no ..., Aveiro: “exercendo o legítimo direito de reclamação que àquela, enquanto utente do serviço nacional de saúde cabe”.

Esta alegação não suscita qualquer questão de facto, uma vez que o que ela contém é um juízo de valor de natureza jurídica sobre a acção da ré. Ora, ao julgador do facto não cabe pronunciar-se sobre juízos de valor desta natureza. Ao julgador do facto cabe pronunciar-se sobre alegações de facto, declarando quais as que julga provadas e quais as que julga não provadas [artigo 653º, n.º 2, do CPC aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de Dezembro, com as alterações posteriores, e artigo 607º, n.º 4, do novo CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho]. Dizer se a reclamação apresentada pela ré correspondeu ao exercício de um direito e se o exercício dele foi legítimo é incumbência do julgador de direito.

Por seu turno, sob o artigo 27º a ré alegou: “aceita-se expressamente que, à data dos factos narrados na reclamação apresentada pela autora, esta não conhecesse à autora”.

Com esta declaração, a ré, ora, recorrente limitou-se a tomar posição sobre a alegação feita pela autora na 1ª parte do artigo 7º da petição, segundo a qual “a autora e a ré não se conheciam”.

Ora, a posição que cada uma das partes toma sobre os factos articulados pela outra, embora tenha relevo para determinar se as alegações de facto devem considerar-se admitidas por acordo ou devem considerar-se controvertidas [artigos 490º e 505º do anterior CPC e artigos 574º e 587º, n.º 1 do novo Código de Processo Civil] não é questão de facto sobre a qual deva pronunciar-se o julgador do facto.  

Logo, não cabia ao julgador da matéria de facto declarar se julgava provada ou não aprovada a alegação do artigo 27º da petição. O que competia fazer, mas ao julgador do direito, era considerar admitido por acordo a alegação feita na 1ª parte do artigo 7º da petição inicial, segundo a qual a autora e a ré não se conheciam. Assim, lho impunham os artigos 659º, n.º 3 [na parte em que dispõe que na fundamentação da sentença o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo], o n.º 2 do artigo 490º do CPC [na parte em que dispõe que consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito].

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º, n.º 1, do novo CPC, irá aditar-se à matéria assente que “a autora e a ré não se conheciam”.

Posto isto, entremos na apreciação das questões de facto suscitadas pela recorrente.

O primeiro segmento da decisão de facto que é objecto de contestação é constituído pela resposta dada ao artigo 4º da petição.

Sob este número, a autora alegou que, depois da reclamação apresentada pela ré, “seguiu-se a normal tramitação, isto é, foi feito um inquérito interno que nada de anormal ou censurável detectou no comportamento da enfermeira, pelo que o processo foi naturalmente arquivado”.

Respondendo a esta questão, o tribunal a quo julgou provado que, “na sequência da reclamação apresentada, foi feito um inquérito interno, no âmbito do qual nada de anormal se apurou na actuação da Sr.ª enfermeira A..., aqui autora”.

A prova que concorreu para a convicção do tribunal foi constituída fundamentalmente pelo depoimento de J ....

A recorrente não concorda com a decisão e pede ou se julgue não provado o que foi alegado sob o artigo 4º da petição inicial ou se adite ao que foi julgado provado o seguinte: “… ainda que não tenha sido ouvida nem a utente nem a pessoa que apresentou queixa em nome da utente em causa”.

Diz a recorrente em abono destas pretensões que o depoimento que serviu de base à convicção do tribunal – o depoimento de J ... - não merece crédito pois está repleto de contradições, erros de julgamento e juízos de valor. Como exemplos destas contradições, erros de julgamento e juízos de valor aponta os seguintes aspectos do depoimento da testemunha:

1. A testemunha declarou que a recorrente havia escrito na reclamação que a recorrida maltratava a utente C..., quando isso não consta da reclamação;

2. A testemunha declarou que as queixas da utente não correspondiam à verdade, no entanto afirmou que não questionou a referida utente sobre esse mesmo assunto;

3. A testemunha declarou que inexistiam sinais que pudessem motivar uma reclamação por parte da utente, quando ela própria não observou a dita utente no dia em que esta deu entrada no hospital nem viu os registos que foram feitos nesse dia no serviço de Urgência Geral; quanto aos restantes dias, não sabe precisar se os registos médicos contemplam outras análises que não aquelas que dizem respeito aos problemas cardíacos da utente;

4. A testemunha declarou que a recorrente avançou para a queixa sem dar oportunidade à recorrida de se defender, quando também isso não é verdade, uma vez que a recorrente tentou efectivamente falar com a recorrida, o que decorre do depoimento da testemunha I ....

5. A testemunha declarou que fez uma proposta no sentido de as afirmações escritas pela recorrente serem contextualizadas, mas esta proposta não teve qualquer seguimento, tendo mesmo sido arquivado o dito inquérito.

Ouvido o depoimento da testemunha J ... fica a saber-se que, aquando dos factos que estão na origem do presente litígio, a testemunha trabalhava no mesmo serviço onde trabalhava a autora [Sala de Observações do Serviço da Urgência Geral do ..., Aveiro] e que era ela quem chefiava os enfermeiros e os auxiliares que trabalhavam nesse serviço. Na qualidade de enfermeira- chefe foi incumbida pela sua hierarquia de apurar o que se tinha passado e que levara a ré a apresentar a reclamação.

A audição do depoimento confirma que a testemunha produziu as declarações que lhe são atribuídas pela recorrente e que esse depoimento é passível de ser sujeito aos reparos que lhe foram feitos. Sucede que estes reparos não justificam a alteração da decisão de facto. Vejamos.

O facto que o tribunal a quo julgou provado foi que, “na sequência da reclamação apresentada, foi feito um inquérito interno, no âmbito do qual nada de anormal se apurou na actuação da Sr.ª enfermeira, ora autora”.

Ora, as realidades compreendidas na resposta ao artigo 4º da petição – realidades que dizem respeito apenas à realização do inquérito interno e ao resultado dele – colhem-se, de modo claro, quer no depoimento da testemunha, quer no documento junto a fls. 17.

O documento, que contêm a resposta que o Hospital deu à reclamação da ré, ora recorrente, transcreve a exposição da testemunha sobre o assunto. Ora nesta exposição, a testemunha, além de dar conta de que a autora “esteve ausente do serviço no gozo de folgas”, afirma que “nos registos de enfermagem não foram relatadas situações de stress para a doente e ou situações de instabilidade clínica agravada”; que “nos registos médicos, não consegui identificar algo que se possa relacionar com tal situação descrita pela exponente”.

As críticas que a recorrente faz ao depoimento da testemunha são pertinentes. Mas são pertinentes para se emitir um juízo sobre o rigor e o cuidado do inquérito levado a cabo pelo Hospital. Sucede que no artigo 4º da petição não está em causa nem o rigor nem o cuidado do inquérito. Daí que, ao dar-se como provada a alegação do artigo 4º, não se esteja a emitir qualquer juízo de valor sobre a bondade do inquérito, nem sequer se esteja a dizer que não há nada a apontar ao comportamento da autora. O sentido da resposta dada é simplesmente o de que, na sequência da reclamação, foi feito um inquérito interno e que, no âmbito deste, nada de anormal se apurou na actuação da Sr.ª enfermeira A..., aqui autora”.

Pelo exposto, mantém-se a decisão proferida sobre o ponto n.º 4 da base instrutória.

O segundo segmento da decisão de facto que é contestado pela recorrente é o constituído pela resposta dada aos pontos n.ºs 2 e 3 da contestação.

      Sob estes artigos a ré alegou que, ao apresentar a reclamação, transmitiu e deu palavras às queixas e angústias e temores revelados pela sua avó, C..., na impossibilidade de esta, pela sua idade, estado de saúde e debilidade, o fazer por si.

      O tribunal a quo julgou não provadas estas alegações e justificou esta resposta dizendo que os depoimentos de D... (mãe da ré) e de E...(namorado da ré) foram inconsistentes e eivados de contradições.

A recorrente contesta a decisão, pedindo se julguem provadas as referidas alegações de facto. Para tanto alegou, em síntese, que a resposta dada laborou com base em factos que não estavam assentes e em juízos contrários às regras da experiência comum e que resultou do depoimento da ré que esta limitou-se a dar voz às queixas da sua avó.

Antes de mais, cabe dizer que a questão de facto suscitada pela alegação feita sob os artigos 2º e 3º da contestação é a de saber se a ré apresentou a reclamação nos termos em que o fez em virtude de a sua avó [ C...] lhe ter dito que estava a ser ameaçada pela autora. Não está, assim, em causa saber se as ameaças foram efectivamente feitas.  

Ouvida a prova, verificamos que se pronunciaram sobre a questão, além da ré, as testemunhas D... (mãe da ré) e E...(namorado da ré)  

A ré declarou, em síntese, que, no dia 31 de Outubro, a avó estava nervosa e alterada e que não queria ficar no hospital porque, dizia, nos dias anteriores em que ela esteve internada [sabemos que esses dias anteriores foram os dias 27, 28, 29 e 30 Outubro] sofreu ameaças da autora.

D... declarou que, tendo sido informada no dia 31 de Outubro que a sua mãe fora internada no Hospital, deslocou-se ao mesmo. Aí encontrou a sua mãe muito agitada e a dizer “tira-me daqui que eu estou a ser ameaçada”, imputando as ameaças a uma enfermeira de nome A.... Mais declarou que quis reclamar, dando conta das ameaças, mas não o fez porque não tinha consigo o bilhete de identidade, sendo que este documento era necessário para fazer a reclamação. Foi por esta razão que pediu à filha, a ora ré 8 [a quem entretanto pedira para vir ter consigo ao Hospital], para fazer a reclamação.

Confrontando as declarações da ré com as da testemunha sobre o relato de C...relativo às ameaças, notamos a seguinte divergência. Enquanto a ré declarou que a avó se queixava de que as ameaças já haviam sido feitas no internamento anterior [isto é, no internamento entre os dias 27 a 30 de Outubro], a testemunha D...declarou que a sua mãe pedia-lhe para ser tirada do Hospital porque estava a ser ameaçada, sem dizer, no entanto, que as ameaças haviam sido feitas no internamento anterior.

A testemunha E... (namorado da ré), depois de relatar as circunstâncias que o levaram a ir ao Hospital na companhia da ré no dia 31 de Outubro, afirmou que a mãe da ré (a testemunha Patrícia) contou-lhe que a avó estava muito assustada e que tinha sofrido ameaças de uma enfermeira que se chamava A.... Divergindo, no entanto, da ré, afirmou que esta, no dia 31 de Outubro, só esteve com a avó depois de fazer a reclamação; antes da reclamação quem esteve com a avó foi a testemunha D...Lopes, mãe da ré, e que a reclamação foi feita com base no que a mãe da ré lhe contou.

Serão estas declarações suficientes, à luz de uma prudente convicção, para o tribunal julgar provado o que foi alegado sob os artigos 2º e 3º da contestação?

Este tribunal não encontra razões para pôr em causa o que foi declarado pela mãe da ré, a testemunha D... Rodrigues, quando afirmou que, no dia 31 de Outubro, encontrou a mãe muito agitada, pedindo para ser levada para casa. Também não temos razões para pôr em causa que nessa conversa a utente terá aludido a ameaças e as tenha relacionado com a autora.

Embora se deva avaliar com cuidado o depoimento desta testemunha, dada a relação familiar que ela tem com a ré, esta circunstância não é só por si decisiva para não darmos crédito ao que foi por ela declarado. É que há factos colhidos no depoimento da testemunha I ... (funcionário administrativo do ...) que são concordantes com o que declarou a testemunha D.... Em primeiro lugar, o facto de a ré, quando chegou ao hospital, ter pedido à referida testemunha para chamar a autora a fim de falar com ela. Uma vez que a autora e a ré não se conheciam pessoalmente uma à outra (facto admitido por acordo), é verosímil que a ré tivesse pedido para falar com a autora devido às queixas da avó. Em segundo lugar, o facto de os ânimos se terem exaltado quando a ré soube que a autora não tinha disponibilidade para falar com ela e de ter sido pedido, de seguida, o livro de reclamações. Estes factos convergem no sentido de que a reclamação foi motivada pelas queixas da avó da ré. Se as queixas tinham fundamento ou não, não sabemos.

Divergimos, assim, da convicção do tribunal a quo quando afirmou na fundamentação da decisão de facto que “a situação relatada não aconteceu e que a ré, não obstante ser conhecedora de tal realidade, apresentou a reclamação visando a aqui autora, por motivos não apurados, mas que se prendem com o relacionamento desta com o seu actual namorado”.

Aliás, esta convicção é contraditória com as respostas que o mesmo tribunal a quo deu aos artigos 7º, 9º e 14º da petição. Vejamos.

Sob o artigo 7º foi alegado o seguinte: “embora a autora e a ré não se conheçam a motivação desta última só pode ser ciúmes, pois é a actual companheira do ex-namorado da primeira – pelo menos a autora não encontra outra explicação, razoável, para o sucedido… ciúmes, repete-se!

Sob o artigo 9º foi alegado: “aquela reclamação/difamação, ao afirmar e divulgar factos inverídicos, mostra-se ofensiva da credibildiade, do prestígio e da confiança da autora”.

Sob o artigo 14º foi alegado: “…o animus injuriandi da ré é evidente e manifesto, pelo que, dolosamente, aquela quis mesmo prejudicar o bom nome da autora – o que conseguiu plenamente”.

Ora, se o tribunal a quo se convenceu de que “a situação relatada não aconteceu e que a ré, não obstante ser conhecedora de tal realidade, apresentou a reclamação visando a aqui autora, por motivos não apurados, mas que se prendem com o relacionamento desta com o seu actual namorado”, o que seria concordante com esta convicção seria o seguinte:

1. Em relação ao artigo 7º, que se julgasse provado que a ré apresentou a reclamação “por motivos que se prendiam com o relacionamento da autora com o actual namorado da ré”;

2. Em relação ao artigo 9º, que se julgasse provado que a ré, “ao apresentar a reclamação afirmou e divulgou factos que não eram verdadeiros;

3. Em relação ao artigo 14º, que se julgasse provado que “a ré, ao apresentar a reclamação, era conhecedora de que a situação relatada na reclamação não havia acontecido”.    

Não foi, no entanto, o que aconteceu.

Em relação à matéria alegada sob o artigo 7º, o tribunal a quo julgou provado apenas que “a ré é a actual companheira do ex-namorado da autora”. Esta resposta restritiva significa inequivocamente que o tribunal a quo julgou não provado que a ré agiu por motivos que se prendiam com o relacionamento da autora com o actual namorado da ré (leia-se ciúmes).     

Em relação à matéria alegada sob o artigo 9º, o tribunal a quo reuniu-a com a que foi alegada sob os artigos 10º e 11º e deu uma única resposta. Nela não fez qualquer menção à alegação de que os factos não eram verdadeiros. O significado que se deve dar a esta omissão é a de que o tribunal a quo não julgou provado que os factos não correspondiam à verdade.     

Por último, a decisão que julgou a matéria de facto incluiu a alegação feita no artigo 14º no rol da “matéria irrelevante, conclusiva ou de direito”, para justificar a não pronúncia sobre ela.

Pelo exposto, este tribunal considera suficientemente provado, em relação ao artigo 2º da contestação que a ré, ao reclamar, transmitiu a queixa da avó de que estava a ser ameaçada pela autora.

Quanto à matéria do artigo 3º [onde se alegava que a autora fez a reclamação na impossibilidade de C..., pela sua idade e estado de saúde e debilidade o fazer por si], o tribunal não a julga provado, pois esta alegação tem implícito o entendimento de que era vontade da avó da ré apresentar reclamação e que só a não fazia por estar impossibilitada. Ora, não há o mais leve indício de que a avó da ré quisesse apresentar reclamação e que só o não tenha feito devido à sua idade, estado de saúde e debilidade. Ouvidos os depoimentos da ré, da mãe da ré e do namorado da ré, a convicção que adquirimos foi a de que a decisão de reclamar partiu da mãe da ré.

Por último, a ré, ora, recorrente impugna a decisão proferida sobre os pontos números 35 e 36º da contestação.

Sob estas números, a ré alegou que qualquer divulgação a terceiros da reclamação feita pela ré teve como única responsável e autora a própria A..., que andou a propalar junto das suas colegas de trabalho da queixa apresentada pela ré e das razões de tal queixa.

O tribunal a quo julgou não provadas estas alegações.

A recorrente pede se modifique a decisão, no sentido de serem julgadas provadas estas alegações.

Para tanto alegou, em síntese, que as únicas pessoas que poderiam saber da referida queixa eram as pessoas directamente envolvidas no caso, a saber, a utente C..., a testemunha D..., a ré, a autora e o namorado da ré. Ora – continua a recorrente – tendo em conta que, a não ser a autora, nenhum deles se movimenta ou trabalha dentro do hospital ou tem contactos com profissionais de saúde, se a notícia da queixa e os motivos da mesma se espalharam, tal foi motivado pela pessoa que tinha conhecimento dela, a autora. Acresce, segundo a recorrente, que a autora reconheceu que nem a ré nem o chefe de equipa, directamente envolvidos na situação, espalharam junto de terceiros o teor da reclamação contra si apresentada. Mais alegou que a autora e as testemunhas G... e H... foram concordantes na afirmação de que tiveram conhecimento do conteúdo da reclamação através da autora.

      Entrando na apreciação da argumenta da recorrente, cabe dizer que o artigo que contém uma alegação de facto é o 36º, onde se afirmou que a autora andou a propalar a queixa apresentada e as razões da queixa, junto das suas colegas de trabalho. O artigo 35º contém a impugnação do que foi articulado sob os números 12º a 15º da petição e a afirmação conclusiva de que “qualquer divulgação a terceiros da reclamação feita pela ré teve como única responsável a autora”.

      Daí que a única questão de facto seja a de saber se a autora andou a propalar junto das suas colegas de trabalho a queixa apresentada pela ré e as razões de tal queixa.          

Ouvidos os depoimentos da autora e das testemunhas, não se colhe neles que a autora andasse a “propalar” junto dos colegas a reclamação.

O que a autora declarou foi que deu conhecimento da reclamação às testemunhas G...e H..., o que foi corroborado por estas. Daí que haja razões para modificar a resposta dada ao ponto n.º 36, julgando provado que a autora deu conhecimento às testemunhas G...e H... do teor da reclamação.         


*

Julgada a decisão de facto, consideram-se provados os seguintes factos:
1. A autora é enfermeira, trabalhando no ... em Aveiro.
2. No dia 31 de Outubro de 2010, pelas 18 horas e 30 minutos, a ré B... solicitou no serviço de urgências do ... o livro amarelo e nele após pelo seu punho e assinou, a reclamação de folhas 66, com o seguinte teor: “ no dia 27 de Outubro a utente C...deu entrada neste hospital e pelo correr dos dias esta tem vindo a receber ameaças da enfermeira A... enquanto a doente esteve no S.O.. Esta alterou o seu estado de saúde por estar com medo, contudo, no dia 30 teve alta. Hoje dia 31 voltou a dar entrada neste hospital está cheia de medo por estar a receber ameaças dessa tal enfermeira, a utente está mesmo com um estado de saúde crítico e a enfermeira está a ajudar para esse efeito. Se esta não sabe ter o profissionalismo suficiente que não exerça esta profissão. Se alguma coisa acontecer à utente foi por exclusiva culpa e responsabilidade desta enfermeira. O hospital é para curar e não para matar!”.
3. A pessoa identificada na reclamação é avó da ré.
4. A ré apresentou a reclamação, transmitindo a queixa da avó de que estava a ser ameaçada pela autora”.
5. Na sequência da reclamação apresentada foi feito um inquérito interno, no âmbito do qual nada de anormal se apurou na actuação da Sr.ª Enfermeira A..., aqui autora.
6. Finalizado o dito inquérito, foi a ré notificada do ofício de folhas 17, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, de onde consta designadamente o seguinte “Pela consulta do processo, a doente deu entrada no Serviço de Urgência Geral no dia 27/10/2010, tendo sido internada no SO no dia 28/10/2010, no turno da tarde, cerca das 20h. Teve alta no dia 30/10/2010 cerca das 15h, saindo acompanhada pelos Bombeiros. Neste período a Enfermeira esteve de serviço no dia 28/10/2010 (quinta-feira) das 15 às 24h, não sendo da sua responsabilidade cuidar da doente. Nos dias 29 e 30 de Outubro a Enfermeira visada esteve ausente do serviço no gozo de folgas. Nos registos de Enfermagem não foram relatadas situações de stress para a doente e/ou instabilidade clínica agravada. Confirmado nos registos médicos não consegui identificar algo que se possa relacionar com tal situação descrita pela Exponente”.
7. A autora é uma enfermeira briosa e dedicada ao serviço, encontrando-se, actualmente, por força da especialização que fez, a prestar serviço na área da pediatria.
8. A autora e a ré não se conheciam. A ré é a actual companheira do ex-namorado da autora.
9. A autora ficou muito ofendida na honra e consideração profissionais, que lhe são devidas.
10. A utente C...deu entrada no serviço de urgência geral no dia 27 de Outubro de 2010, tendo sido internada no SO no dia 28 de Outubro de 2010, no turno da tarde, cerca das 20 horas.
11. No dia 28 de Outubro de 2010, a autora estava de serviço no S.O. no turno da tarde, das 14 horas às 24 horas.
12. De acordo com o plano de trabalho a utente C...não foi atribuída à autora.
13. Todavia, no âmbito de uma parceria entre todos, a autora ajudou a enfermeira responsável – G... - a proceder à transferência da utente, colocando-a na cama e monitorizando-a.
14. Nos dias 29 e 30 de Outubro de 2010, a autora esteve de folga.
15. A utente teve alta no dia 30 de Outubro de 2010 cerca das 15 horas.
16. A utente voltou a entrar no serviço de urgência geral no dia 31 de Outubro de 2010.
17. Foi transferida para o SO pelas 22 horas.
18. No dia 31 de Outubro de 2010, a autora esteve de serviço no SO no turno das 14 às 24 horas.
19. Na instituição hospitalar acima identificada o teor da reclamação espalhou-se, tendo chegado ao conhecimento da direcção e da administração, do pessoal médico, do pessoal de enfermagem e do pessoal administrativo e auxiliar.
20. A autora deu conhecimento às testemunhas G..., H... do teor da reclamação.        
21. A autora nunca viveu uma experiência deste tipo, não só na sua vida profissional, como também na sua vida privada.
22. A autora é uma enfermeira competente, zelosa e diligente, e, dessa forma é considerada pela direcção e administração do ..., pelos colegas e utentes.
23. A autora sentiu-se humilhada perante os colegas e os utentes.
24. Este episódio colocou em causa os anos de dedicação da autora à enfermagem, bem como a sua própria vocação.
25. A autora contou com o apoio incondicional dos colegas.
26. A autora sentiu-se e, ainda, se sente angustiada, abalada e desgostosa sempre que recorda este episódio.
27. Este episódio causou na autora uma inquietação tal, que foram várias as noites que não conseguiu dormir.
28. A resposta à reclamação da ré, bem como todo o processo de audição e resposta final se encontra disponível na plataforma electrónica, gerida pela Tutela, SIM CIDADÃO.
29. E que a resposta foi enviada para o endereço postal da ré, a 15 de Novembro de 2010.

*

Fixados os factos, passemos à apreciação dos fundamentos do recurso.

O primeiro fundamento do recurso é constituído pela alegação de que a conduta da recorrente [a apresentação da reclamação] não foi ilícita. Esta alegação assenta na seguinte linha argumentativa:

1. A acção da autora correspondeu ao exercício legítimo de um direito, o direito de reclamação;

2. Estando em causa dois direitos, ambos constitucionalmente protegidos, o direito à honra da autora e o direito de reclamar, o direito à honra não tem um valor superior;

3. Tendo agido ao abrigo de um direito, está afastada a ilicitude da sua acção;

4. Deve aplicar-se a solução que vale para os casos em que as participações criminais ofendem a honra do visado e em que prevalece o direito de denúncia sobre o direito à honra, sendo impensável impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso com a justificação de que, em consequência da participação, ir-se—á lesar a honra do participado.

5. A recorrente não actuou com abuso de direito, não surgindo a sua actuação de um acto amadurecido e calculista de fazer queixa para com ela atingir a autora, mas antes de um produto de menor reflexão, surgido no impulso de dar voz à sua avó, que num estado fragilizado lhe demonstrou o medo que sentia. Tanto mais que foi nesse próprio momento que a recorrente fez essa participação. E logo, a boa-fé objectiva está presente, não se vislumbrando qualquer procedimento que uma consciência razoável não possa tolerar no comportamento da Recorrente de: tentar falar com a Autora; não conseguir; fazer a aludida queixa.

6. Por outro lado, do cotejo da factualidade dada como provada inexiste qualquer facto que assente na convicção da Ré ter escrito a participação motivada por outra ordem de motivos, que não o facto de ser neta da utente, tendo sido dado como não provado todos os factos que conduziam a essa mesma intenção.

7. Da frase da recorrente “ se esta não sabe (…) que não exerça”, não se pode pretender que haja uma violação da dignidade profissional que atente contra os bons costumes, uma vez que não há uma imputação directa à autora de que ela não sabe exercer enfermagem”.

Com a alegação que se acaba de expor, a recorrente visa a sentença na parte em que afirmou que a acção constituiu um acto ilícito e que a acção da ré não podia ser justificada pelo exercício do direito de reclamar. Segundo a decisão recorrida, a acção da ré não tinha cobertura no exercício deste direito porque a reclamação fora abusiva e excedera os limites da boa fé.

Entrando na apreciação dos fundamentos do recurso, começaremos por dizer que, ao escrever na reclamação, que a “utente C...deu entrada neste hospital e pelo correr dos dias esta tem vindo a receber ameaças da enfermeira A... enquanto esteve no SO” e que “esta alterou o seu estado de saúde por estar com medo… ”Hoje dia 31 voltou a dar entrada neste hospital está cheia de medo por estar a receber ameaças dessa tal enfermeira, a utente está mesmo com um estado de saúde crítico e a enfermeira está a ajudar para esse efeito” “se esta não está a ter o profissionalismo suficiente que não exerça essa profissão” e que “se alguma coisa acontecer à utente foi por exclusiva culpa e responsabilidade desta enfermeira”, a ré afirmou factos capazes de prejudicar o bom-nome e a reputação da autora. Tem de modo especial esta capacidade a afirmação de que a utente C...recebeu ameaças da autora enquanto esteve no Serviço de Observações das Urgência do ..., Aveiro.

Apesar de a reclamante não ter especificado as ameaças que alegadamente foram feitas pela autora a C..., a mera circunstância de ter afirmado que a autora fez ameaças é suficiente só por si para prejudicar o bom nome e a reputação da autora, uma vez que a ameaça está associada ao anúncio de um mal ilegítimo e injusto, o que mancha o bom nome e reputação da visada, enquanto enfermeira. Com efeito, o bom-nome e a reputação dos enfermeiros assentam de modo especial no respeito pela situação do doente e no cumprimento dos seus deveres profissionais.

 Ora, é isento de dúvida que a autora tinha - e tem – o direito a não ser prejudicada no seu bom nome e reputação [artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa] e que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral [n.º 1 do artigo 70º do Código Civil] e que “quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados” [artigo 484º, do Código Civil].

Também é certo, no entanto, como afirmou a sentença, que a apresentação de reclamação nos serviços públicos, designadamente nos hospitais, é um direito dos utentes desses serviços [artigo 4º, n.º 2, alínea c), do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção que lhe foi dada Decreto-lei n.º 371/2007, de 6 de Novembro] e que a afirmação de factos capazes de prejudicar o bom nome ou a reputação de outrem não será ilícita se corresponder ao exercício de um direito.

Com efeito, apesar de não haver no actual Código Civil uma norma como a do artigo 13º do Código Civil de Seabra segundo a qual “quem exerce o próprio direito não responde pelos prejuízos que possam resultar do mesmo exercício”, nem uma norma como a do artigo 31º, n.º1, n.º 2, alínea b), do C Penal, segundo a qual não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, quem age no exercício de um direito, não responde, em princípio, pelos danos emergentes da sua acção [dizemos, em princípio, pois como se sabe há casos excepcionais em que apesar da conduta não ser ilícita, a lei impõe ao autor da conduta a obrigação de reparar os danos causados a outrem. A título de exemplo cita-se o caso do artigo 339º, do Código Civil].

Assim, no estudo Causas Justificativas do Facto Danoso [BMJ, n.º 85, paginas 87 e 92], Vaz Serra afirmava que “o acto danoso não é antijurídico quando praticado no exercício de um direito, pois, se o agente tem direito de o praticar, não acta contra a ordem jurídica” [página 87]; “com efeito se a lei reconhece ao agente o direito de praticar certo acto, este não é contrário ao direito e não deve gerar, por isso, responsabilidade civil” [página 92].

Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume II, Lisboa 1988, página 102, escrevia em anotação ao artigo 334º do Código Civil: “se se ocasiona um prejuízo a uma pessoa, exercendo um direito que se tem em relação a ela, não existe, em princípio, responsabilidade por esse facto.”

Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, páginas 204, afirma: “quando alguém pratica actos que integram o exercício de um direito, logicamente actua de harmonia com a ordem jurídica; por isso, tais actos, ainda que prejudiciais a outrem são lícitos, e não constituem o agente em responsabilidade civil”.

Mário Júlio de Almeida Costa, referindo-se às causas justificativas do facto danoso, escreveu: “a pessoa que viola um direito alheio no exercício de um direito próprio não actua, em princípio, ilicitamente (…) [Direito das Obrigações, 11ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, página 568].

Rabindranath Capelo de Sousa, referindo-se precisamente às violações dos direitos de personalidade escreve que “…não é ilícito o facto praticado no exercício legítimo de um direito”; que “Tal cláusula de exclusão tem carácter geral e encontra tradução na alínea b), do n.º 2 do artigo 31º do Código Penal, no âmbito da consideração da ordem jurídica como totalidade”. Em nota de rodapé afirma que o princípio de que não é ilícito o facto praticado no exercício legítimo de um direito é também retirável do artigo 335º, n.º 2, do Código Civil [O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 436].

Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos afirma igualmente que as ofensas ao crédito e ao bom nome são lícitas quando praticadas no exercício de um direito [“Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, páginas 477 a 480]

Na jurisprudência citam-se a título de exemplo as seguintes decisões.

No acórdão do STJ de 27 de Novembro de 2001, proferido no processo n.º 2882/01 [publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, Tomo III – 2001, paginas 122 a 124], estava em causa a ofensa do bom nome que tinha tido origem na apresentação de uma queixa-crime. Escreveu-se aí, citando-se Antunes Varela: “a afirmação ou divulgação de facto pode não ser ilícita se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever”.

No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-05-2006, proferido no processo n.º 1103/06, publicado no sítio www.dgsi.pt, considerou-se que o direito de queixa, porque legitimamente exercido, constitui causa de exclusão da ilicitude, o que tanto bastava para afastar a indemnização pedida por ofensa da honra e do bom nome.

No acórdão do STJ de 18-12-208, proferido no processo n.º 08A2680, publicado no sítio www.dgsi.pt, estava em causa saber se uma determinada participação criminal que envolvia a narração de factos ofensivos do bom-nome e da honra dos denunciados era lícita ou ilícita. O Supremo Tribunal entendeu que a tutela da honra teria de ceder perante o exercício do direito de queixa e que, “para garantir a estabilidade, a segurança, a paz social no Estado de Direito, havia que assegurar ao cidadão a possibilidade, quase irrestrita, de denunciar factos que entende serem criminosos”. E dizia quase irrestrita, porque não era merecedora de tutela a denúncia caluniosa, nem a denúncia despida de factos, mas antes assente na emissão de juízos de valor ou “lançamento de epítetos sobre o denunciado”. Ainda segundo o STJ, “se tais juízos de valor ou epítetos integrassem “a se” uma ofensa à honra, então a denúncia podia, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado”.

No acórdão do STJ de 25 de Março de 2010, proferido no processo n.º 576/05 [publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVIII, Tomo I/2001, paginas 149 a 153], em que estava em causa a ofensa do direito ao bom nome e reputação através da imprensa escrita, escreveu-se que a harmonização de direitos em conflito “…só se torna necessária se, também, em concreto, a conduta potencialmente lesiva dos titulares de um deles – agora, a redacção e publicação da notícia a que respeitam os autos … - corresponder efectivamente ao exercício do direito de informar…”

No acórdão do STJ de 17-04-2012, proferido no processo n.º 479/07.9TVLSB, estava em causa a participação disciplinar com a imputação de factos ofensivos da honra e bom-nome do participado. O Supremo Tribunal de Justiça afirmou que não se têm suscitado dúvidas sobre a prevalência do direito de denúncia sobre o direito à honra do denunciado que, por via dela, sai ferido. Afirmou, no entanto, que “o problema da licitude colocava-se no confronto entre o direito ao bom nome e reputação com o conteúdo e modo de apresentação da denúncia”. E assim, “…, se o participante, em vez de se limitar à narração de factos – que tenha por verdadeiros ou não saiba serem falsos -, “entra em juízos de valor”, a sua conduta não é justificada, deixa de ser protegida e coloca-se no campo do ilícito”.

Por último, no acórdão do STJ de 15 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 2612/07.2TVLSB, www.dgsi.pt, suscitava-se a questão de saber se as declarações prestadas por uma testemunha em sede de audiência que continham factos ofensivos do bom nome e da honra de pessoa já falecido constituíam a autora do depoimento na obrigação de reparar os danos causados à memória de pessoa falecida. O tribunal afastou a obrigação de indemnização afirmando que, em princípio, as declarações prestadas por um testemunha em processo judicial, logo no cumprimento de um dever legal, não eram fonte de obrigação de reparação dos danos, a não ser que a depoente prestasse declarações falsas. E assim, corroborou o entendimento do tribunal recorrido, que fora no sentido de que a ré só estaria obrigada a reparar os danos causados ao bom nome se o depoimento fosse falso e houvesse da parte da depoente consciência dessa falsidade.

Vê-se, assim, da exposição acabada de fazer que o exercício do direito de reclamar justificava a afirmação de factos capazes de prejudicar o crédito e o bom nome da autora desde que fosse exercido legitimamente. E o exercício legítimo significava, desde logo, que a autora procedesse de boa fé. Na verdade, embora o princípio de que, no exercício de um direito, o seu titular deve proceder de boa fé esteja previsto no Código Civil para o exercício dos direitos de natureza obrigacional [artigo 762º, n.º 2], tal princípio vale para todos os direitos por força do instituto do abuso de direito que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé. Mas o exercício legítimo de um direito significava também que a ré não podia exceder manifestamente os limites impostos pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito [artigo 334º do Código Civil].

Como se expôs acima, a sentença concluiu que o exercício do direito de reclamação excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé. Esta conclusão assentou nas seguintes razões:
1. Para exercer o seu direito de reclamação a ré não necessitava de ofender, de forma apreensível, a dignidade da autora; “podia referir-se a uma má prestação dos cuidados de saúde, por parte de um concreto profissional de saúde, para que fossem tomadas as providências necessárias”;
2. A ré não podia limitar-se a redigir uma reclamação com base no que lhe foi transmitido pela sua avó – C...– sem antes comprovar se o teor da reclamação tinha algum fundamento”.
3. “O motivo que norteou a reclamação terá sido somente a anterior relação da autora com o actual companheiro da ré”;
4.  “A actuação da autora descrita na reclamação não aconteceu”, “circunstância que a ré não podia nem devia ignorar”;
5. A faculdade de apresentar reclamação de que gozava a ré (em virtude de ser neta da utente C...) não pode justificar, só por si, o teor ofensivo para a autora da reclamação em causa nos autos, pois tal faculdade lhe não permite ofender culposamente os direitos de personalidade de outro cidadão”.

Concorda-se com a sentença quando dela resulta que a reclamação deve limitar-se ao necessário para denunciar o mau funcionamento dos serviços e contribuir para a sua melhoria. Daí que, como se escreve no artigo 4º, n.º 2, alínea c), do Decreto-lei n.º 156/2005, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 371/2007, de 6 de Novembro, a reclamação deve consistir numa descrição de forma clara e completa dos factos que a motivam. Daí que dela devam estar ausentes juízos de valor ofensivos da honra e consideração dos visados.

Concorda-se também com a sentença quando dela resulta que o exercício do direito de reclamação é abusivo quando ele é exercido com um objectivo estranho ao seu fim social, que é o da defesa dos direitos dos cidadãos, o da denúncia do mau funcionamento dos serviços e da melhoria desses serviços. E assim será abusivo quando for exercido para prejudicar o visado com a reclamação.

Concorda-se também com a sentença quando dela resulta que o exercício do direito de reclamação é abusivo quando os factos que são descritos na reclamação são falsos e quando o reclamante sabe que eles são falsos ou quando ignora a falsidade devido a negligência [no sentido de que “a obrigação de indemnizar por divulgação de factos ofensivos ao bom nome e ao crédito surge quando ficar demonstrada a censurabilidade do agente pelo desconhecimento da falta de veracidade das afirmações fácticas divulgadas” se pronuncia Filipe Miguel Cruz de Albuquerque de Matos, na obra supra citada, página 501].

Em qualquer destas hipóteses, não pode sustentar-se a boa fé do reclamante.

Sucede que a sentença, para reputar de ilegítimo o exercício do direito de reclamação partiu de premissas que não estão demonstradas, a saber: em primeiro lugar, laborou no pressuposto de que os factos narrados na reclamação [referimo-nos às ameaças] eram falsos, não correspondiam à verdade; em segundo lugar, laborou no pressuposto de que o que motivou a reclamação foi a anterior relação da autora com o namorado actual da ré.

Ora, como resultava dos n.ºs 2 e 3 do 659º do anterior CPC [vigente na altura em que foi proferida a sentença recorrida] e como resulta do artigo 607º, n.º 3, do novo CPC, os únicos factos que servem de fundamento à decisão são os que juiz discrimina na sentença como estando provados.

Logo, a sentença recorrida só podia laborar no pressuposto de que os factos narrados na reclamação [referimo-nos às ameaças] eram falsos, não correspondiam à verdade e no pressuposto de que o que motivou a reclamação foi a anterior relação da autora com o namorado actual da ré se estes factos estivessem sido discriminados na sentença como provados. Sucede que não foram. Os factos em que o tribunal se apoia para julgar ilegítimo o exercício do direito de reclamação foram julgados não provados na decisão que julgou a matéria de facto. Esta é a conclusão que se extrai do confronto da matéria alegada na petição inicial com a resposta à matéria de facto.

A situação com que se defrontava a sentença era a seguinte.

A reclamação continha a afirmação de factos capazes de prejudicar o bom-nome e a reputação da autora, mas o tribunal ignorava se esses factos eram falsos ou verdadeiros [isto é, ignorava se a autora havia ameaçado ou não a avó da ré, como ignorava se a ré sabia se os factos eram falsos ou verdadeiros].

Ora, à luz do que se expôs acima, não estando provado que os factos contidos na reclamação eram falsos nem estando provado que o autor da reclamação tinha conhecimento da falsidade deles, ou que os ignorava com culpa, não havia base factual para concluir no sentido de que o exercício do direito de queixa havia sido ilegítimo por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé.

É certo que também não se provou que os factos eram verdadeiros e que a ré reclamou convencida da veracidade deles.

Sucede que o exercício ilegítimo do direito de reclamação era um dos pressupostos do direito de indemnização invocado pela autora. Logo era sobre a demandante que recaía o ónus de provar os factos necessários à afirmação da ilegitimidade do exercício do direito de reclamação [n.º 1 do artigo 342º do Código Civil]. Isto é, era sobre ela que impendia o ónus de provar que os factos eram falsos e que a ré tinha conhecimento desta falsidade ou que a ignorava com culpa [a favor deste entendimento cita-se Filipe Miguel Cruz de Albuquerque de Matos, na obra supra citada, páginas 501 e 502].

E era contra ela que o tribunal devia decidir em caso de dúvida sobre a ilegitimidade do exercício do direito de reclamação, por força do princípio enunciado no artigo 516º do CPC, segundo o qual “a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita” [princípio reafirmado no artigo 414º do novo CPC].   

Não vale aqui, como aparentemente entende a sentença recorrida, ao afirmar que a actuação da ré traduzida na reclamação contra a autora, eivada de infundadas por não provadas imputações desabonatórias da honra e consideração que lhe eram devidas e com o que se esgotou na prática a sua finalidade”, a regra enunciada no artigo 180º, n.º 2, alínea b), do CP, segundo a qual a conduta daquele que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo só não é punível quando o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para em boa fé, a reputar verdadeira.

No presente processo, não cabia à ré, para afastar a ilicitude da sua acção, a prova de que os factos afirmados eram verdadeiros ou a prova de que tinha fundamento sério para em boa fé os reputar como verdadeiros.  

Uma vez que não estão provados os factos necessários à afirmação da ilicitude da conduta da ré, conclui-se que a pretensão da autora não tem cobertura nem no artigo 483º, n.º 1 nem no artigo 484º, ambos do CPC.

A propósito desta última norma importa esclarecer o seguinte. Apesar de a letra do preceito inculcar, à primeira vista, que a responsabilidade nele prevista basta-se com a afirmação ou difusão de um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, não é, no entanto, com este sentido que a norma vale. Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 27 de Junho de 1995, no recurso n.º 87207, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano III, 1995, Tomo II, páginas 138 a 142, “…a ofensa no crédito e bom nome prevista no artigo 484º não é mais do que um caso especial de facto antijurídico definido no artigo 483º precedente, pelo que se deve considerar subordinada ao princípio geral do artigo 483º”.

Assim sendo, a afirmação de um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome constituirá o seu autor na obrigação de reparar os danos causados ao visado se essa afirmação for ilícita [isto é, contrária à ordem jurídica, considerada na sua totalidade] e culposa.

Pelo que se deixou escrito atrás, não é o que se passa no caso em relação à ilicitude.

Assim, ao condenar a ré, a sentença violou os artigos 334º, 483º e 484º, todos do Código Civil, pelo que se impõe a sua revogação.

Por último cabe dizer que, tendo este tribunal chegado à conclusão que não há prova de que a acção da ré foi ilícita e que esta falta de prova determina só por si a revogação da decisão recorrida, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se e substitui-se a decisão por outra a absolver a ré da condenação no pagamento da quantia de 5 250 euros, acrescida de juros.


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As custas da acção e do recurso serão suportadas pela autora.

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Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões