Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1028/13.6TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: DIREITO DE REMIÇÃO
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 842.º DO CPC
Sumário:
I - O direito de remição é um direito de preferência legal de formação processual conferido a determinados familiares próximos do executado (cônjuge, descendentes e ascendentes) – que não figurem, eles próprios, também como executados na causa  -  de adquirirem os bens adjudicados ou vendidos, visando proteger a integridade do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva.
II - A lei não confere às filhas de um sócio e gerente de uma sociedade executada o direito de remir um imóvel penhorado, propriedade desta, ainda que se trate de uma empresa familiar.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

Na ação executiva para pagamento de quantia certa que Banco Espírito Santo, S.A. (e posteriormente habilitada no seu lugar) A... Unipessoal Lda. move a P..., LDA., AA e BB, vieram as filhas destes dois últimos executados, CC e DD requerer nos termos do artigo 842º do CPC a reversão do bem cuja adjudicação foi pedida.

Por despacho de 20-01-2022 foi indeferido direito de remição pretendido, por não estarem preenchidos os requisitos legais.

Inconformados com esta decisão, os executados AA e BB interpuseram recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se reproduzem):

“1. O direito de remição que a lei processual concede ao cônjuge e aos parentes em linha recta do executado (art.º 842º do CPC) apresenta-se como um especial direito de preferência e tem por finalidade a protecção do património familiar, evitando, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.

2. É um direito com origem processual, que se constitui no momento da venda ou da adjudicação dos bens, que no seu exercício tem os mesmos efeitos do direito real de preferência e que permite aos familiares mais próximos do executado preterir a proposta de compra apresentada por terceiros, evitando que os bens saiam da família e integrem património de estranhos.

3. Por requerimento de 23/12/2021, as filhas dos executados EE e AA, em que é igualmente executada a sociedade P..., LDA, vieram exercer o direito de remição.

4. Os executados singulares são igualmente executados e sócios gerentes da sociedade executada.

5. Assim o indeferimento do direito de remição não pode colher efeito, desde logo porque a sociedade executada é uma pequena empresa, que fundamentalmente funciona como empresa familiar, e nada obsta a que se considere o seu centro funcional como património e sustento familiar, cuja preservação no seio da família constitui o escopo do art.º 842° do CPC.

6. A lei não proíbe que a remição seja exercida por um descendente de um sócio gerente da Executada, e executado, que figuram como pessoas singulares, respeitando toda a finalidade do instituto da remição, e a lei é omissa quanto a esta questão, e julgamos que se encontram preenchidos todos os pressupostos legais.

7. Impõe-se nos presentes autos, uma aplicação analógica da norma em apreço ao caso concreto, uma vez que o legislador foi omisso relativamente a casos semelhantes aos dos autos, e que têm sido cada vez mais frequentes no caso destas pequenas e médias empresas familiares.

8. Ora, o que está em causa, é proteger o património familiar, evitando os bens saíssem para fora da família;

9. A família do sócio e gerente da 1ª executada (sociedade) em nada se confunde ou identifica com a realidade jurídica, distinta e autónoma, da sociedade executada, contudo sendo uma empresa familiar de compra e venda, que se dedica à compra e venda de bens imoveis.

10. A executada como proprietária do imóvel, ou seja, a empresa/estabelecimento comercial em causa encontra-se na esfera jurídica dos executados – pessoas singulares.

11. Estamos na presença de “pequenas e médias empresas que fundamentalmente funcionam como empresas familiares, e obrigatoriamente teremos que concluir, que se acham preenchidos os pressupostos legais para o pretendido exercício do direito de remição.

Tendo o Tribunal a quo, violado os art.ºs 10° do Código Civil e 824°, 842° e seguintes e 615° c) e d) do Código de Processo Civil (CPC), entre outros.

Termos em que, deverá ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão recorrida, julgando valido e deferindo-se o pedido de direito de remição exercido, ordenando-se a alteração do despacho proferido.

ASSIM FAZENDO V. EX.AS A COSTUMADA JUSTIÇA

               Não foi apresentada resposta.

               O recurso foi admitido.

               Colhidos os vistos, cumpre decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em saber se verificam os requisitos legais para o exercício do direito de remição.

FUNDAMENTOS DE FACTO

Para a decisão deste recurso relevo a tramitação e o quadro fáctico referido no relatório, devendo ainda atentar-se nos seguintes factos extraídos a consulta dos processos eletrónicos:
1. Em 21-12-2017 foi efetuada a penhora da fração autónoma designada pela letra "O", do prédio urbano constituído em propriedade horizontal situado na Rua ..., ..., ..., descrita sob o nº...18... da freguesia ... - FF, na Conservatória dos Registos Predial ..., correspondente ao terceiro andar esquerdo – para habitação e sótão para arrumos, com acesso por escada a partir do interior da fração, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...71... ...- FF, ... e ....
2. A aquisição desta fração autónoma encontra-se registada a favor de P..., LDA.
3. O executado é sócio gerente da executada P..., LDA.
4. Foi decidido proceder à venda da fração penhorada mediante propostas em carta fechada.
5. Em 6-12-2021, procedeu-se à abertura da única proposta apresentada pela exequente, a qual foi aceite.
6. Em 23-12-2021, vieram as filhas dos executados requerer nos termos do artigo 842º do CPC a reversão da venda do bem que foi adjudicado.
7. Em 28-12-2021, a agente de execução respondeu, dizendo que após a venda da Fração penhorada, vieram as filhas dos executados, pessoas singulares, exercer, perante a agente de execução, o direito de remição, ao abrigo do que preceituam os artºs 842º e 843º, nº 1, al. b) do CPC – cfr. doc. anexo. O direito de remição pode ser exercido pelos familiares com as ligações indicadas no art.º 842º do referido diploma legal, nos quais se inserem os descendentes do executado.
Acontece que o imóvel é da propriedade da executada, pessoa coletiva P..., LDA, cujos seus legais representantes são, efetivamente, os executados, pessoas singulares.
8. Em 13-01-2022, a exequente respondeu, dizendo em síntese que entende que sendo a executada uma pessoa coletiva a P..., LDA, a família dos sócios e gerentes da sociedade por quotas, em nada se confunde ou identifica com a realidade jurídica, distinta e autónoma, desta sociedade e, menos ainda, com o lastro ostensivo inerente à atividade da empresa/estabelecimento comercial a que respeitam os bem imóvel penhorados e vendido, o que obsta ao exercício do direito de remição por parte das filhas daqueles legais representantes da sociedade, tanto mais que o imóvel, objeto da presente ação encontra-se na esfera jurídica da sociedade executada.
9. Em 20-01-2002 foi proferido o seguinte despacho:

“Requerimento a peticionar o exercício do direito de remição com a Ref.8288877

CC e DD vieram, na qualidade de filhas dos executados AA e BB, requerer, nos termos e para os efeitos do artigo 842º e 843 do Código de Processo Civil (C.P.C.), que lhes seja deferido o exercício do direito de remição relativamente ao bem vendido em 06.12.2021 – a saber, fracção – artigo 4571 fracção ... da freguesia ....

A agente de execução veio suscitar esclarecimentos ao Tribunal face ao requerido, aduzindo que se trata de bem imóvel pertença da sociedade executada P..., LDA, cujos seus legais representantes são, efetivamente, os executados, pessoas singulares.

A exequente que adjudicou o imóvel em questão opõe-se ao exercício do direito de remição, por entender que tratando-se de bem da sociedade executada, está afastada a previsão do artigo 842º do C.P.C.

Decidindo.

O bem adjudicado ao exequente consiste no TERCEIRO ANDAR ESQUERDO – Para habitação e sótão para arrumos, com acesso por escada a partir do interior da fracção descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n. º ...18 – da  freguesia ... – FF, cuja propriedade se mostra inscrita a favor da P..., LDA, executada, pela Ap.4049 de 2009/10/01.

Nos termos do artigo 842.º do Código de Processo Civil, o cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.

O artigo 843.º estabelece, no seu n.º 1, que “no caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do artigo 825.º” e “nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta”.

Face à previsão dos art.ºs 842º e seguintes do CPC, certos interessados (o cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou ascendentes do executado) podem, potestativamente, fazer-se substituir ao adjudicatário ou ao comprador, na preferencial aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido.

Trata-se, assim, de um direito de preferência qualificado, com o qual se quis proteger “o património familiar, evitando que os bens saíssem (...) da família, pondo o património do executado (membro dela) a coberto de outros maiores prejuízos, de qualquer das maneiras sem pôr em causa a essência da satisfação do interesse do exequente (Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, AAFDL Editora, Lisboa, págs. 885 e seguinte e o acórdão da RG de 05.6.2008-processo 844/08-2, publicado no “site” da dgsi e citado na referida obra).

A lei processual concede assim ao cônjuge e aos parentes em linha recta do executado um especial direito de preferência (direito de preferência qualificado, dada a prevalência sobre o direito de preferência em sentido estrito, sobre os restantes direitos de preferência/legal e convencional com eficácia real – art.º 844º do CPC), denominado direito de remição, tendo por finalidade a protecção do património familiar, porquanto evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.[ Vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 385 e seguinte, que alerta, sob a “nota 13”, para as distorções que o abuso da figura causa na economia da execução].

O direito de remição constitui um direito de preferência legal de formação processual que, tendo por finalidade a protecção do património familiar, evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado [J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 621].

É indiscutível que o direito de remição pode ser exercido sempre que o cônjuge ou o familiar do executado seja um terceiro perante a execução, isto é, não seja ele mesmo executado na execução em que se realizou a venda (ou a adjudicação).

No caso, o executado proprietário do bem é uma sociedade comercial.

Esta, independentemente do que seja essa realidade, é comerciante, pelo simples facto de existir como tal. Esta qualificação resulta do disposto no art.º 13º, n.º 2 do Código Comercial. A sociedade comercial é, assim, sujeito do Direito Comercial.

Toda e qualquer sociedade comercial, nas relações com terceiros, apresenta uma individualidade jurídica distinta dos sócios, o que terá de valer também para a esfera das relações entre a sociedade e os sócios [A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Sociedades Comerciais, Universidade de Coimbra, 1968, pág. 88].

In casu, importa indagar se o pretendido direito de remição sobre bens penhorados e vendidos que pertenciam à sociedade executada, da qual o executado é sócio, sendo os remidores filhas deste.

Ora, a família dos sócios não se confunde com a realidade jurídica distinta e autónoma da sociedade executada.

Acompanhando o Acórdão da Relação de Coimbra datado de 06.11.2018, disponível in www.dgsi.pt, “diversa poderia ser a solução se porventura estivesse em causa a penhora e a venda da quota social do 2º executado na sociedade 1ª executada (cf. o art.º 239º do CSC), o que não sucede, ou, então, se se tratasse da penhora e da venda do estabelecimento comercial pertencente a um ascendente ou descendente do (…) (filho do legal representante da 1ª executada)”, o que também não se verifica.

Por isso, indefere-se o direito de remição pretendido, por não estarem preenchidos os requisitos legais conforme supra-exposto.

Notifique.”

FUNDAMENTOS DE DIREITO

O direito de remição consiste num mecanismo de proteção do património do executado, na medida em que permite que o mesmo se conserve na esfera patrimonial dos seus familiares diretos em caso de adjudicação ou venda, sem prejudicar a satisfação do crédito exequendo. Trata-se, por isso, de um “beneficio de carácter familiar (…) funcionando como um direito de preferência a favor da família no confronto com estranhos.

Assim, nos termos do art.º 842º do CPC, o cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou os ascendentes do executado têm o direito potestativo de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda[1].

“O direito de remição é um direito de preferência especial, que se constitui no contexto da liquidação judicial de bens, visando proteger a integridade do património familiar, ao permitir que se impeça que os bens da família passem para as mãos de estranhos. A proteção do património familiar é potenciada pela atribuição de um direito de preferência qualificado às pessoas enunciadas no preceito, a quem é atribuída a faculdade de se substituírem ao adjudicatário ou ao comprador na aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido. O relevo conferido a esta figura leva a que o direito de remição prevaleça sobre o próprio direito de preferência (art.º 844º, nº 1)”[2].

Conforme referem José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre[3] “O direito de remição constitui um direito de preferência legal de formação processual que, tem por finalidade a proteção do património familiar. E mais adiante, acrescentam que não tem este direito, a família do sócio gerente da sociedade por quotas, ainda que funcione como pequena empresa familiar (Ac. do TRC de 6-11-18[4]).

Segundo Alberto dos Reis[5] (Proc. Execução, 2/476), “consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução.”

Com tal direito real de aquisição ou de resgate, de carácter estritamente pessoal quis proteger-se o património familiar, evitando que os bens saíssem para fora da família, pondo o património do executado (membro dela) a coberto de outros maiores prejuízos, de qualquer das maneiras sem pôr em causa a essência da satisfação do interesse do exequente. É que o bem continuará a servir a família, integrado num património próximo e, em princípio, juridicamente ligado ao que foi objeto de execução[6].

Na situação dos autos importa equacionar o pretendido direito de remoção sobre o imóvel penhorado e vendido que pertencia à sociedade executada, da qual o executado AA é sócio e gerente, sendo as requerentes filhas deste e da executada BB.

Naturalmente, a família do sócio e gerente da 1ª executada (sociedade) em nada se confunde ou identifica com a realidade jurídica, distinta e autónoma, da sociedade executada, a quem pertencia o imóvel penhorado.

Não ocorrendo qualquer um das situações em que é admissível o exercício do direito de remição pelo familiar segundo a previsão do art.º 842º do CPC, pensamos que a decisão recorrida não merece censura, independentemente de estarmos na presença (no dizer dos recorrentes) de “pequenas e médias empresas que fundamentalmente funcionam como empresas familiares” (o que, de resto, não vemos demonstrado), sob pena de quedar irrelevante a existência de uma individualidade jurídica distinta dos sócios e da efetiva e necessária autonomia patrimonial dos bens da sociedade.

Concluímos assim que não se acham preenchidos os pressupostos legais para o pretendido exercício do direito de remição, não sendo possível a aplicação analógica, conforme requerido pelos recorrentes[7].

Improcede, assim a apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida.

                                                                          x

As custas são devidas pelos apelantes, atendendo ao seu decaimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

                                                                                         Coimbra, 28 de setembro de 2022

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

(Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original)



([1]) Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, p. 393.
([2]) Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Felipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pp. 262-263.
([3]) Código de Processo Civil Anotado Volume 3º, 3ª Edição, Almedina, p. 834
([4]) Proc. 2387/16.4TBCBR-E.C1, relator Fonte Ramos, www.dgsi.pt.
([5]) Proc. Execução, 2/476.
([6]) Ac. do TRG, de 5-06-2008, proc. 844708-2, relator Gomes da Silva, www.dgsi.pt.
([7]) Cf. Ac. do TRC, de 6-11-18 acima citado.