Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
90/18.0T8OFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ACIDENTE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESUNÇÃO CULPA
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DE FRADES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 12.º, N.º 1, B), DA LEI N.º 24/2007, DE 18.7.
Sumário: I - O artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18.7, é de interpretar no sentido de que, no caso de acidente de viação nas auto-estradas concessionadas, provocados pelo atravessamento de animais, presume-se a culpa das concessionárias.

I – A presunção pode ser ilidida mediante a prova pelas concessionárias de que a presença do animal na auto-estrada ocorreu por factos que a elas não são imputáveis.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra           
O Autor intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de acção declarativa comum, pedindo a condenação das Rés a pagarem-lhe a quantia de €13.000,00, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou em síntese que sofreu um acidente de viação, do qual resultaram lhe danos.
Imputa à Ré a culpa exclusiva na ocorrência do acidente que alega ter ocorrido por culpa exclusiva da Ré, porquanto como concessionária da auto-estrada ..., por onde circulava não impediu que um javali nela se introduzisse e provocasse o aludido acidente.

A Ré A..., S.A. requereu a Intervenção Principal Provocada da Seguradora B... – Sucursal de Portugal, incidente que foi admitido e, contestando a acção impugnou, por desconhecimento as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os danos invocados, alegando que cumpriu todas as obrigações que sobre si impendiam.
Concluiu pela improcedência da acção.

A Ré B... – Sucursal em Portugal contestou, alegando a existência, no contrato de seguro que a une à Ré A..., S.A., de uma franquia de € 5.000.00 e, impugnando por desconhecimento as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os danos invocados, alegando que a co-Ré cumpriu todas as obrigações que sobre si impendiam.
Concluiu pela improcedência da acção.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condeno as Rés A..., S.A. e B... Sucursal em Portugal a pagarem, solidariamente, ao Autor a quantia de €9.352,48 (nove mil, trezentos e cinquenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais.
E mais condeno as Rés A..., S.A. e B... Sucursal em Portugal a pagarem, solidariamente, ao Autor, o montante de €2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais. Sendo que, a condenação da Ré A..., S.A. e Alta – Auto-Estradas da Beira Litoral e Alta, SA é sem prejuízo do contrato de seguro celebrado com a interveniente e da respectiva franquia prevista.
Às sobreditas quantias acrescem juros moratórios, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

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A Ré A..., S.A. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
I. A sentença é nula, nulidade que expressamente se invoca de harmonia com o disposto no artigo 615º nº 1 alínea c) do C. P. C., porquanto é claro que os fundamentos (de facto, principalmente) estão em oposição (porque inexistem em alguns casos) com a decisão, além de que a sentença é ininteligível por ser ambígua e obscura;
II. Efectivamente, e desde logo, foi considerado na decisão que o alegado valor venal do veículo à data do sinistro devia ser deduzido do putativo valor do salvado deste na importância de € 1.100,00, quando é absolutamente evidente que esse putativo valor do salvado não decorre, por pouco que seja, do elenco dos factos provados, o que significa que a sentença “utilizou” factos que ali não figuram;
III. Depois, também parece que inexiste o mínimo suporte factual (cfr. ponto 27 dos factos provados) que permitisse à sentença concluir, como concluiu e decidiu em conformidade, que o A. pagou, a título de aluguer de veículo, o que quer que fosse e designadamente as quantias de € 61,50 e € 1.630,24;
IV. Acresce ainda referir, mais uma vez sem a menor base de facto que lhe permitisse avançar por aí (ainda que, refira-se, tenha depois decidido - e bem nesta parte - não “conceder” essa parcela de indemnização ao A.), que, ao contrário do que resulta do “corpo” da fundamentação de direito (e apenas aí), não está no rol dos factos provados que o A. pagou o que quer que tenha sido (€ 3.302,55 ou outra qualquer quantia) “pelo aparcamento da viatura enquanto aguardava o desfecho do litígio” (e isto já nem sequer tomando em linha de conta que o eventual agravamento dos danos – a ser real – ser-lhe-ia, em tal hipótese, totalmente imputável, já que a R. – cfr. facto provado nº 16 – tomou posição sobre a pretensão do A., tendo então declinado a responsabilidade);
V. Reitera-se, por isso, que a sentença é nula, com as legais consequências, arguindo-se expressamente nestas linhas essa nulidade na medida em que é absolutamente indiscutível que a sua fundamentação e respectiva decisão teve por base e lançou mão de “factos” pura e simplesmente inexistentes.
Isto posto,
VI. Independentemente do que antecede a respeito do ponto 27 dos factos provados, a R., como questão prévia, não se conforma por pouco que seja com a decisão que versou sobre os pontos 17, 22 e 23, bem como o já referido ponto 27 e ainda o ponto 31, todos dos factos provados, quer porque é nítido que essa matéria de facto teve como “base” documentos impugnados e não confirmados, quer porque se apoiou nas declarações de parte do A. (e este, convenhamos, não deixa de ser interessado num desfecho favorável da acção, tal como decorre p. ex. do ac. do T. R. Porto de 20.06.2016, tirado no âmbito do proc. nº 2050/14.0T8PRT.P1 e consultável em www.dgsi.pt );
VII. De todo o modo, e sem prescindir do antes referido, é obrigatório desde já concluir (apenas com a prova “disponível” nesta altura, portanto) que não é possível que a resposta ao ponto 27 dos factos provados fique tal como está, devendo esta, e apenas em tal caso, ficar limitada à seguinte resposta:
- provado que o Autor alugou um veículo por período de tempo que não foi possível apurar e por um valor que também não foi possível apurar;
VIII. E, da mesma maneira, por razões idênticas (e apenas para o caso de se entender que a matéria a que se refere o ponto 17. dos factos provados não deve integrar, como parece mais lógico, a resposta àquele facto nº 27, já que, em bom rigor, até por redundante, talvez devesse ser considerado não provado), a resposta ao referido facto nº 17 não deverá exceder a seguinte:
- provado que o Autor promoveu o aluguer de viatura de substituição, pagando diariamente valor não apurado.
Segue-se que
IX. Entende a R./apelante, que o tribunal a quo não analisou correctamente a prova produzida pelas partes (longe disso, aliás), desde logo porque replica de uma forma absolutamente acrítica a tese do A., a prova do A. e até argumentos do A., ma também porque é nítido que incorre em claro erro de apreciação da prova e também de julgamento no que se refere desde logo ao ponto 13 dos factos provados e às alíneas a), b) e c) dos factos não provados;
X. Na verdade, atendendo ao conjunto da prova produzida (sim, porque a R. também produziu alguma prova, embora não contraprova), concluímos, em primeiro lugar, que a prova do A. relativa ao ponto 13 dos factos provados colide necessariamente com aquela produzida pela R. a tal respeito e a propósito ainda da alínea c) dos factos não provados, além de que é evidente que estas são nitidamente incompatíveis entre si;
XI. Na verdade, “ouvindo” o depoimento transcrito de BB, depoimento esse que não se vê como possa ter sido vago ou sequer hesitante (cfr. 4m38s), mas igualmente aquele de CC que, ademais, o confirmou (cfr. 9m18s), não resta a mínima dúvida que este confirma, tal como a R. alegou, que na noite do acidente as vedações da auto-estrada (e não há dúvida que foi o único – nem sequer a B. T. da G. N. R. o fez, como facilmente se percebe - a ter verificado as vedações nessa noite) naquele local encontravam-se levantadas ou “em pé”, ao contrário, portanto, daquilo que um ou dias depois (nem isso se sabe) o A. e duas testemunhas terão visto (e falta também saber se vedações derrubadas ou inexistentes, dado a nítida contradição entre a resposta ao ponto 13 dos factos provados, ou seja, inexistência de vedações, e a fundamentação de direito da sentença, i. e., vedações derrubadas);
XII. Por isso, e porque o ponto 13 dos factos provados não corresponde à verdade e à prova produzida nos autos, deve esta matéria ser relegada para o rol dos factos não provados;
XIII. Por seu turno, e exactamente porque foi feita prova nesse sentido, diversamente do que considerou a sentença, a alínea c) dos factos não provadas deve fazer o trajecto inverso, ou seja, ser aquela matéria incluída, tal como está redigida, no elenco dos factos provados e, obviamente, considerada na decisão final;
XIV. Aliás, não deixa de ser curioso verificar, não obstante esta opção que nos parece manifestamente errada da sentença, que, ainda assim, isso não impediu a sentença de considerar provado, de forma visivelmente contraditória, de resto, o que resulta do ponto 38 dos factos provados, ou seja, que a R. nunca deixou de continuar a reposicionar provisoriamente as vedações afectadas por esses grandes incêndios sempre que isso se justificava e que era detectado, enquanto não aconteceu a substituição total destas;
XV. Está também em causa um nítido erro de apreciação da prova e inevitável erro de julgamento no que toca às alíneas a) e b) dos factos não provados, seja porque os depoimentos de CC e de DD supra transcritos nestas linhas assim o mostram muito facilmente, seja porque o documento junto pela R. (a tal “subsequente resposta da R.” à apreciação do assunto das vedações junto da AR) confirma de forma totalmente inequívoca esses depoimentos (isto sem esquecer que uma parte da factualidade constante daquelas alíneas até corresponde – parece-nos – a factos públicos e notórios);
XVI. Por isso, e tal como sucedeu com a alínea c) dos factos não provados, estas alíneas a) e b) de idêntico “local” na sentença devem transitar, exactamente com a mesma redacção, para o acervo dos factos provados e que devem ser atendidos e ponderados na decisão final;
XVII. Igualmente errada, salvo o devido respeito, é a decisão da matéria de facto respeitante aos pontos 1, 22 e 23 dos factos provados, ainda que por razões diferentes;
XVIII. Com efeito, e quanto ao facto provado nº 1, não deixa de ser curioso que seja apelidado de “notório”, quando, na realidade, a Base II, nºs. 1 e 2, do DL nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na sua versão original ou de acordo com as subsequentes alterações, mostra que o ali decidido está muito longe de ser exacto, motivo pelo qual esse facto deve passar a ter a seguinte redacção:
- provado que a Ré é a concessionária da Auto-estrada denominada ... entre ... e ...;
XIX. Depois, e agora em relação ao facto provado nº 22, visto que a documentação entretanto chegada aos autos na sequência das diligências de contraprova requeridas pela apelante (recibos datados de períodos não relevantes e recibos emitidos a entidades que não parece que tenham nada que ver com o ténis e até a circunstância de os próprios documentos respeitantes às declarações de rendimento do A. serem reveladores do seu nível de rendimento declarado anual que não se coaduna por pouco que seja com aquela “perda de ganho” alegado), não confirma minimamente o alegado pelo A. e, naturalmente, que este tenha “deixado de ganhar” o que quer que seja, donde, e por ausência de prova credível ou até lógica, mais não resta que responder negativamente (não provado) a tal matéria;
XX. No que concerne ao ponto 23 dos factos provados, o que se verifica, sem margem para qualquer dúvida, é a “insistência” da sentença, sem qualquer razão, na resposta que já havia sido dada na anterior versão da sentença, ou seja, que alegadamente o valor venal do veículo do A. à data do acidente situar-se-ia entre os montantes de € 7.500,00 e € 8.000,00;
XXI. Porém, para lá de se notar que essa decisão foi mantida, mesmo dizendo-se na sentença que o documento da U..., S. A. (que alegadamente foi “tido em conta”) refere um valor “na ordem dos € 7.000,00”, o que, só por si, já é bizarro, é totalmente evidente que não é essa a conclusão que decorre daquele documento (recebido nos autos devido às diligências de contraprova requeridas pela R., recorde-se), pelo que, de acordo com o que de tal documento decorre (e não certamente, e como é dito na sentença, por ser do conhecimento público, já que será seguramente necessário ter alguns conhecimentos sobre a matéria que certamente não estarão ao alcance do público em geral), a resposta a tal ponto da matéria de facto deve ser antes a seguinte:
- provado que o valor comercial do veículo do Autor situava-se, à data do acidente, no montante de € 6.500,00.
Por outro lado,
XXII. Na opinião da R./apelante, a sentença também incorreu em omissão
 de pronúncia em que incorreu a sentença, nomeadamente sobre a matéria de facto alegada por esta R. pelo menos nos artigos 25º, 28º, 50º e 51º da sua contestação, o que não tem, salvo o devido respeito, qualquer justificação plausível, considerando a prova produzida a esse respeito, ou seja, os depoimentos de CC e de DD, o diploma legal relevante (DL nº 142-A/2001, de 24 de Abril, alterado e republicado pelo DL nº 111/2015, de 18 de Junho, Bases nºs. XXIX, nº 4 alínea a), XXX nº 1, XXXVIII nºs. 1, 2, 5 e 6, XLV e L nº 4), o doc. nº 1 junto à contestação da R. e sobretudo a constatação evidente que aquela matéria é simultaneamente importante para a defesa da R. e sobretudo para a boa decisão da causa;
XXIII. Na verdade, não se vislumbra como pode ser possível concluir que a R./apelante cumpriu as suas obrigações de segurança (ou deixou de o fazer) num acidente com animal, quando nem sequer se trata de apurar se a vedação existente nas imediações do local do acidente era ou não aquela que ali devia ter sido instalada ou então se a vigilância/patrulhamento da via foi efectuada dentro do intervalo máximo previsto para tal;
XXIV. Ora, quer com apoio legal, quer especialmente com base no depoimento daquelas testemunhas, dúvidas não restam que devia ter sido (e deve ainda, ao abrigo dos poderes conferidos a este Venerável Tribunal ad quem) dada como provada a seguinte matéria de facto – que ainda não tivesse sido alegada pela R. devia ter sido dada como provada em face da instrução da causa (C. P. C., artigo 5º nº 2) e a acrescer, portanto, ao rol de factos provados destes autos:
a) As vedações daquela auto-estrada ... merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português) através dos organismos competentes (artigo 28º da contestação da R.);
b) À data do sinistro, as vedações que se encontravam implementadas no local do sinistro e suas imediações respeitavam o respectivo projecto e mereceram prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português, designadamente no que se refere à suas características, tais como a sua dimensão e altura, por exemplo (artigo 25º da contestação);
c) A R. obrigou-se para com o concedente, regra geral, ou seja, em condições de normalidade de tráfego/circulação, a efectuar passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de quatro horas durante os turnos diurnos compreendidos entre as 7 e as 23 horas, salvo se as condições de tráfego/circulação ou a eclosão de acidentes, incidentes ou outro tipo de ocorrências o não permitirem (artigos 50º e 51º da contestação).
Posto isto,
XXV. Salvo o devido respeito, e para lá das nulidades e erros que assinalámos, a sentença do tribunal a quo optou por “embarcar” numa linha de argumentação “redonda” e inconsistente, argumentação essa não concreta, não concretizável e sobretudo irrazoável, injusta e parcial (na medida em que não garantiu a igualdade de armas entre as partes, mormente em matéria probatória) que, além do mais, não tem o mínimo apoio legal, mormente na legislação relevante (p. ex. no Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril e suas alterações subsequentes que a sentença nem sequer cita, sendo, portanto, de concluir que nem para ele “olhou”);
XXVI. De forma que não é certamente ao “sabor das conveniências
 argumentativas” ou da ideia que se possa ter sobre o que será eventualmente correcto e/ou justo que temos de nos movimentar em matéria de fundamentação de direito, mas é antes atendo-nos desde logo aos factos provados e depois também ao direito (positivo) que, no caso, é constituído nomeadamente pelo disposto no Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, diploma esse que deve ser sempre chamado à colação quando é de um acidente ocorrido nessa concessão que se trata;
XXVII. Já vimos na primeira parte deste recurso e reitera-se agora que a sentença andou muito mal por ter decidido com base em “factualidade” pura e simplesmente inexistente e da qual, obviamente, não podia socorrer-se, o que tudo gera a nulidade da sentença (isto para além de ter admitido a junção de documentos que, pela sua data e pela altura em que a junção aconteceu, não devia ter acontecido);
XXVIII. Mas agora impõe-se também uma outra crítica relativamente à decisão tomada sobre os danos não patrimoniais, na medida em que, mais uma vez apoiou-se em factos, mais uma vez inexistentes, e que, muito contrariamente ao defendido pela sentença, não correspondem a factos públicos e notórios, além da “inovação” de se apoiar a este respeito em nítidas convicções e ideias pessoais da Mma. juíza julgadora (o que sabe p. ex. a Mma. juíza sobre a “condição económica e financeira da R.” e que relevância é que isso pode ter, considerando o contexto dos autos, para efeitos de atribuição de uma indemnização a tal título?!!!);
XXIX. E isto sem esquecer, considerando as contas da sentença, a irrazoabilidade de se ter decidido atribuir uma indemnização no montante de € 2.000,00 para um pedido, por defeito e aproximado, a este título, segundo a sentença, de € 2.200,00. Ou seja, quase tudo (e sem suporte de facto para tal), o que torna esta parcela da indemnização, sem prescindir de tudo quanto foi alegado, injusta, inadequada e completamente desproporcionada (quando não mesmo, e talvez com mais propriedade, indevida).
Dito isto,
XXX. Mas a sentença do tribunal a quo erra também do ponto de vista do direito, já que, como referido anteriormente, nem sequer atentou na legislação em vigor à data do sinistro e, naturalmente, relevante, sendo que tivera sido emprestada a devida atenção às alegações orais da R. (como foi a respeito da questão prévia que o tribunal sentiu ter de incluir na sentença) e certamente teriam sido captadas “pistas” que podiam/deviam conduzir a essa análise da legislação que se impõe;
XXXI. Curiosamente, a “evolução” que tem vindo a registar aquele diploma legal, em especial, e para o que aqui interessa, a sua Base LXXIII (redacção do DL nº 111/2015, de 18 de Junho) que prevê claramente uma exclusão de responsabilidade da concessionária caso sejam observados os critérios definidos no seu nº 2, mostra-nos até que p. ex. a periodicidade dos patrulhamentos/vigilância passou a obedecer a critérios “mais largos” ou “menos apertados” (uma periodicidade de 4 em 4 horas em vez de 3 em 3 horas e sem obrigatoriedade de patrulhamento durante o turno nocturno entre as 23h e as 7 h), sem que se tenha deixado cair (leia-se: retirado do texto legal) o advérbio de modo – permanentemente (cfr. Base XLV) – de que frequentemente se lança mão na fundamentação de decisões respeitantes a sinistros ocorridos em auto-estradas concessionadas;
XXXII. Ora, considerando que se trata de avaliar, neste como em qualquer outro acidente ocorrido numa auto-estrada concessionada a esta R., nomeadamente em que consistem (e qual será, por assim dizer, o respectivo conteúdo) as obrigações de segurança cuja demonstração de cumprimento lhe cabe, tal como se prevê, de resto, no artigo 12º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, entende a R. que esta recente (no ano de 2015) alteração à mencionada Base LXXIII do Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril constitui, mais que um subsídio irrecusável para a interpretação do “conteúdo” daquelas obrigações de segurança mesmo em relação a acidentes ocorridos antes da sua entrada em vigor por ser claramente interpretativa, um “factor” obrigatório e decisivo na análise dos acidentes ocorridos em auto-estrada e particularmente do desempenho operacional das concessionárias;
XXXIII. Sucede, porém, e como, aliás, é manifesto, que a sentença não o fez, “preferindo” um raciocínio e uma linha de argumentação/fundamentação que não têm o mínimo suporte legal e que não permitem sequer (por nítida falta de informação/concretização) que se possa perceber em que circunstâncias concretas (e não, aqui sim, meramente “genéricas”) poderia a R. legitimamente (sim, porque é natural que tenha essa expectativa) aspirar a ser absolvida do pedido formulado;
XXXIV. E nesse seguimento, é indesmentível que, tal como se exige nomeadamente no nº 2 daquela Base LXXIII (e já agora também na Base LIV), a R. cumpriu o Contrato de Concessão (p. ex. quanto a serem aquelas as vedações que deviam ali estar), o Manual de Operação e Manutenção (quanto à periodicidade da vigilância/patrulhamento antes do sinistro) e ainda o Plano de Controlo de Qualidade, o que, tudo “somado”, determina uma causa de exclusão de responsabilidade da R./apelante;
XXXV. É certo (não se pretende fugir da questão) que as vedações se encontravam queimadas em resultado dos incêndios e que ocorreu manifesta impossibilidade da sua substituição até à data do acidente como devidamente provado, mas isso não belisca minimamente o aludido desempenho operacional da R./apelante, constituindo este, como a lei também esclarece muito claramente, um nítido caso de força maior, como decorre, de forma absolutamente inequívoca, pelo menos do disposto na Base LXXVI (vide nºs. 1, 2 e a alínea a) do nº 4 dessa Base);
XXXVI. E o mesmo raciocínio deve ser seguido no que tange à demonstração do cumprimento das obrigações de segurança previstas na Lei nº 24/2007, de 18 de Julho (e, como evidente se torna, à conclusão de que foram cumpridas por parte da R. no caso destes autos), diploma legal este que, ainda que com algumas dúvidas quanto à sua interpretação (referimo-nos ao nº 3 do artigo 12º), também prevê os casos de força maior que devem, por isso, ter um tratamento diferente daquelas situações em que esses casos de força maior não ocorrem.
Segue-se que
XXXVII. É verdade que com o advento da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho se procedeu a uma inversão do ónus da prova (que não da ausência de culpa, mas apenas do cumprimento das obrigações de segurança) que agora impende sobre as concessionárias de AE, assim se criando um regime especial e inovador para este tipo de acidentes, embora – insista-se – sempre filiado na responsabilidade extracontratual;
XXXVIII. Contudo, e como bem se percebe do espírito e do texto da lei (dos nºs. 1 e 2 do artigo daquela lei), mas também do elemento histórico de interpretação (vide projecto de lei nº 164/X do BE), já não corresponde à verdade que com essa lei se tenha estabelecido uma presunção de culpa (ou de incumprimento, ou de ilicitude, ou do que quer que seja) em desfavor das concessionárias, pois que se assim fosse a redacção do citado artigo 12º nº 1 seria seguramente outra, bem diferente e certamente bem mais próxima daquela constante do artigo 493º nº 1 do Cód. Civil;
XXXIX. Com efeito, e quanto à dita presunção de culpa nem tal decorre da referida lei, nem tal resulta da já referida Base LXXIII do DL nº 142-A/2001, de 24 de Abril (com as alterações subsequentes), podendo tão-só concluir-se que com a entrada em vigor da lei citada passou a impender um ónus de prova (com aquelas características) sobre as concessionárias de auto-estradas (e nada mais que isso, tal como se pode concluir p. ex. do ac. RG de 23.09.2010, relatado por Amílcar Andrade).
Isto para além de não se poder, de forma alguma, concluir que sempre há situações de inversão de ónus de prova se quer(quis) consagrar uma presunção legal de culpa (cfr. Cód. Civil, artigo 344º nº 1);
XL. De outra parte, sendo verdade que a R. se obrigou a vigiar e a patrulhar a auto-estrada, assim envidando os seus melhores esforços no sentido de assegurar a circulação na auto-estrada em boas condições de segurança e comodidade, daí não decorre que essa sua obrigação implica uma omnipresença em todos os locais da sua concessão;
XLI. O artigo 12º nº 1 da citada lei faz recair sobre as concessionárias, entre as quais, a recorrente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, sendo que no caso dos autos é nítido e indiscutível que a R. satisfez o ónus que lhe competia, i. e., demonstrou que cumpriu com aquelas suas obrigações de segurança, particularmente no que se refere à conformidade da vedação com as normas em vigor e à vigilância da via no local de eclosão do sinistro;
XLII. Efectivamente, a definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo), num acidente com animais, pela prova de que as vedações ali instaladas eram aquelas que ali deviam estar e a verdade é que, pese embora não se deva também esquecer o caso de força maior que verifica in casu, essa prova foi claramente feita pela R./apelante;
XLIII. A não ser assim – i. e., a situarmo-nos num plano em que acaba por se colocar (mesmo que de forma pouco esclarecida) a sentença em matéria de exigência probatória -, cairíamos necessariamente no âmbito da responsabilidade objectiva, na prova impossível (e não apenas extremamente difícil ou na chamada probatio diabolica) para a concessionária que não se vê onde esteja prevista, nomeadamente na lei citada (cfr. também e a este propósito o ac. da RC de 10.01.2006, www.dgsi.pt );
XLIV. É, por isso, visível que o raciocínio seguido pela sentença é nitidamente especulativo, pois que parte claramente do princípio (e sem base factual para que o possa fazer) que o animal só poderia ter ingressado na AE devido a uma qualquer anomalia/falha na vedação (ainda que esta estivesse queimada pelas razões que os autos bem deixam perceber), sem considerar qualquer outra possibilidade/explicação perfeitamente plausível para a presença do animal na via (e a verdade é que essas possibilidades/explicações existem, não se podendo concluir automaticamente que o animal acedeu à via porque p. ex. as vedações apresentavam deficiências ou então que ocorreu uma qualquer anomalia, seja ela qual for);
XLV. Por outro lado, a R. também demonstrou, sem qualquer espécie de dúvida ou reserva, que desconhecia a presença do animal na via apesar do cumprimento integral (e permanente, no sentido de estar sempre no terreno, embora não esteja, como é evidente, em todo o lado ao mesmo tempo) da sua missão de vigilância e patrulhamento;
XLVI. De modo que, e não podendo a apelante (nem tal lhe sendo exigível) ser omnipresente, não se vislumbra como podia (ou pode) ser responsabilizada pela eclosão deste acidente, tanto mais que nos parece pacífico e totalmente indiscutível que as obrigações a seu cargo são claramente obrigações de meios. E não, portanto, obrigações de resultado, como acaba por concluir – sem o dizer, no entanto - a sentença do tribunal a quo (e isto sim, ou seja, a natureza das obrigações da concessionária, merecia uma outra análise bem mais ponderada por parte do tribunal, o que, como se vê, não sucedeu);
XLVII. De resto, não sendo possível à recorrente evitar em absoluto que os animais ingressem na AE (cfr. p. ex. Carneiro da Frada, “Sobre a Responsabilidade das Concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, pgs. 407 – 433) e, face ao que ficou provado e também ao que decorre do diploma legal que versa sobre a sua concessão, nada mais lhe devendo ser exigível em termos de conduta e de prova, parece claro que se impunha (e isso ainda sucede) a sua absolvição, já que esta demonstrou que cumpriu de forma positiva, em concreto (e não apenas “genericamente” – o que quer que isso signifique) com todas as suas obrigações, concretamente com aquelas de segurança;
XLVIII. A sentença, ademais de nula, como dito, violou, salvo o devido respeito, o artigo 12º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, mas igualmente o que se dispõe nas Bases XXX, nº 4, alínea a), XXXI, XLV, L nº 4, alínea e), LXXIII e LXXVI, nºs. 1, 2 e 4 alínea a) do Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável do Decreto-Lei nº 111/2015, de 18 de Junho, bem como nos artigos 342º nº 1, 346º, 483º e 487º do C. C. e ainda nos artigos 4º, 5º nº 2 alínea b) e 615º nº 1 alínea c) do C. P. C., devendo, por isso, ser revogada em conformidade com o expendido nestas linhas.
Conclui pela procedência do recurso.

Não foi apresentada resposta.

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1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é nula?
b) Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto?
c) Dos factos provados resulta que não pode ser imputada a título de culpa à Ré A..., S.A. a responsabilidade pelo acidente?

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2. Nulidade da sentença
A recorrente imputa à sentença o vício da nulidade enumerado no art.º 615º, n.º 1, c), do C. P. Civil, alegando que os seus fundamentos se encontram em oposição com a decisão e que a mesma é obscura e ambígua o que a torna ininteligível, nomeadamente quanto aos montantes parcelares em que foi condenada a título de danos patrimoniais.
Assim, defende que não consta provado que atribua valor ao salvado do veículo do Autor, que inexistem factos provados que permitam concluir pelo valor despendido pelo Autor com o aluguer do veículo, nem com o aparcamento do mesmo.
A causa de nulidade da decisão que invoca não é a adequada aos fundamentos que a Autora utiliza, pois, na sua tese, da mesma o que resulta é a ausência da fundamentação de facto justificativa da decisão que nos permitam concluir por nenhum dos valores mencionados, o que determina que o vício seja o referido no art.º 615º, n.º 1, b) do C. P. Civil.
Apesar da Recorrente ter invocado a existência de vício diverso, como fundamento para a anulação da sentença, o tribunal de recurso pode determinar essa anulação com fundamento na existência de outro dos vícios previstos nas alíneas do n.º 1, do art.º 615º, pois, para a intervenção anulatória do tribunal de recurso, apenas se exige que a parte recorrente revele a sua vontade de ver a sentença anulada, não sendo permitida uma intervenção oficiosa neste domínio. A exigência de um impulso processual das partes, como manifestação do princípio do dispositivo, apenas tem sentido no que respeita às consequências da verificação de uma causa anulatória e não quanto à denúncia do concreto tipo de vício que afecta a sentença. Aí tem o tribunal de recurso inteira liberdade para o qualificar entre as diferentes alíneas do n.º 1, do art.º 615º, do C. P. Civil.
Quanto ao valor do aparcamento referido na decisão da matéria de facto o mesmo não é relevante uma vez que o pedido inerente não obteve êxito. No que respeita ao valor do salvado é manifesto que ele não consta dos factos provados, bem com o montante despendido pelo Autor com o aluguer de um veículo, pelo que se anula a sentença na parte em que englobou no montante indemnizatório atribuído ao Autor, a título de danos patrimoniais, o valor despendido com o aluguer do veículo de substituição, bem como o valor do salvado recebido por aquele.

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3. Os factos
A recorrente pretende a modificação dos factos provados sob os n.º 1, 13, 17, 22, 23 e 27. A redacção destes factos é a seguinte:
1. A Ré é concessionária da Auto-estrada denominada ... que liga o ... de ... à fronteira de ....
13. A Ré não efectuou a reparação nas vedações da ..., que foram destruídas pelos fogos de Outubro 2017 e isso desencadeou a inexistência de vedação.
17. Face à ausência de resposta da Ré, o Autor promoveu o aluguer de viatura de substituição, pagando diariamente a importância de €61,50.
22. O Autor aufere €20 euros à hora e esteve privado disso durante os 12 dias, pelo que lhe resultou um prejuízo de nunca inferior a €1.000,00.
23. O valor comercial do veículo do Autor situa-se entre €7.500,00 e os €8.000,00.
27. O Autor, todas as semanas, teve que pagar o aluguer de viatura na empresa de rent-a-car, e que fica a €430,50 por semana.
Quanto ao facto n.º 1 convoca a Lei de Bases do contrato de concessão consubstanciado no Decreto-lei 142-A/2001, de 24 de Abril que concessiona à Recorrente a ... que vai de ... até à fronteira de ..., pelo que se altera o facto nos termos requeridos.
No que respeita ao facto 13º convoca excertos dos depoimentos prestados por BB, CC, DD, para a sua modificação.
Na decisão recorrida este facto foi fundamentado pela seguinte forma:
No que concerne às reparações (ou neste caso, a ausência das mesmas) nas vedações da ..., após os incêndios de Outubro de 2017, resultou bem claro dos elementos fotográficos juntos, do depoimento do Autor e das testemunhas EE e FF (não obstante a proximidade com o Autor, não nos mereceram qualquer censura, bem pelo contrário, apresentaram depoimentos claros, espontâneos e assertivos). E dúvidas não temos que as vedações estavam derrubadas, sendo tal facto evidente a todos os que circulavam , à data, na ....
O Autor e as duas testemunhas supra referidas, seus amigos, deslocaram ao local, no dia seguinte, (ou no subsequente, não precisaram com total certeza), para captar os elementos fotográficos juntos aos autos.
Além do exposto, não podemos deixar de atender à própria confissão da Ré, no seu articulado, que vai dizendo que desde os incêndios tem vindo a realizar todos os esforços mas que não lhe havia sido possível reparar, na íntegra, provisória ou definitivamente, todas as vedações da auto-estrada em causa, nos mais diversos troços.
Ora, face ao exposto e porque não nos ofereceu credibilidade, neste particular, o depoimento da testemunha BB que nos disse, vagamente, que se recordava de ter visto as vedações “em pé” (nas suas palavras), no local do acidente, certo é que da participação da GNR não se extrai essa informação. Sendo a mesma plenamente afastada pelas declarações sérias do Autor e das testemunhas EE e FF. Já para não dizer que ainda que naquele preciso local a vedação estivesse provisoriamente erguida, o que não resultou provado, certo é que a Ré não fez prova que nas imediações estivessem as vedações reparadas. Muito pelo contrário, assume que não foi capaz de dar resposta às necessidades de reparação das vedações ao longo da .... Dito isto, porque foi produzida prova que nos convenceu, completamente, da falta de manutenção das vedações, demos como provado tal facto e, consequentemente, resultou não provado o facto diametralmente oposto alegado pela Ré.
A testemunha BB, trabalhador da Ré A..., S.A. como comercial de assistência desde 2001que declarou ter-se deslocado ao local do acidente logo após a sua comunicação, ter retirado o javali para a berma e ter constatado que nessa data só viu uma extensão muito pequena das vedações junto onde estava parado o veículo porque era noite escura, as quais estavam de pé, confirmando que nessa zona as mesmas foram, numa grande extensão, afectadas pelos incêndios.
GG, encarregado de assistência e conservação na Ré A..., S.A. desde 2001, não esteve no local na data do acidente, declarou que as vedações que tinham ardido nos incêndios de Outubro de 2017 foram provisoriamente levantadas para a sua posição original com a colocação de alguns prumos, situação em que se encontravam segundo relato que lhe foi feito pela testemunha BB.
 HH, engenheira civil, chefe de centro de assistência e manutenção da Ré A..., S.A. desde 200, foi quem juntou toda a documentação do acidente e remeteu para os serviços jurídicos a empresa. A testemunha declarou que os incêndios de Outubro de 20017 atingiram as vedações da AE em 66 KM, destruindo-as. A A..., S.A. logo de imediato procedeu ao levantamento das vedações queimadas, porque a substituição não podia ocorrer de imediato.
Da análise destes depoimentos não ase pode concluir que aquando do acidente as vedações da AE no local de encontravam correctamente posicionadas. A testemunha DD não referiu em momento algum como se encontravam as mesmas se encontravam, falando somente nos trabalhos que a Ré, em geral, desenvolveu após os incêndios para a recuperação de todas as vedações ardidas.
Também a testemunha GG não revelou qualquer conhecimento preciso sobre o estado das vedações no local e data do acidente, declarando só aquilo que lhe foi relatado por BB. Por sua vez a testemunha BB, quanto a este aspecto particular, prestou um depoimento em pouco comprometido, dizendo que só viu uma extensão muito pequena das vedações junto onde estava parado o veículo porque era noite escura. Assim, não permitem estes depoimentos a modificação pretendida pela recorrente que se encontra devidamente fundamentada, como se transcreveu. A análise da relevância das declarações de parte para o julgamento da matéria de facto não se revela aqui pertinente uma vez que não foi a única prova do facto cuja fundamentação também reside nos depoimentos das testemunhas EE e FF e fotografias juntas aos autos, fundamentação esta adequada às provas produzidas.
Assim, mantem-se como provado o facto 13º.
Também é impugnado o julgamento comos provado dos factos 17º e 27º que foram merecedores da seguinte fundamentação:
17º - Quanto ao aluguer de viatura resulta da prova documental junta que corrobora, integralmente, as declarações prestadas pelo Autor que nos disse que exerce a sua actividade de professor de ténis em ..., ..., ..., ... e ... e que, como tal, necessita de automóvel para se deslocar. Dado que, além da distância dos locais em causa, ainda acresce a inexistência de transportes públicos no local que pudessem suprir as suas necessidades.
27º - O facto 27 relativo ao aluguer do automóvel resultou provado, porquanto, no decurso da Audiência de Julgamento, foi junto o documento comprovativo do montante pago pelo Autor pelo aluguer de automóvel €1.630,24 relativo ao período de 2.03.2018 a 22.03.2018, mas já haviam sido juntos os recibos de fls 22. Que, tal como alegado, se cifra no montante diário de €61,50, perfazendo, semanalmente, o montante de €430,50.
A Recorrente insurge-se com a amplitude do facto 17º uma vez que não foi produzida qualquer prova quanto ao valo diário do aluguer nele referido. Do documento junto pela Autor sob o n.º 8 com a p. inicial, resulta que o valor pago pelo aluguer de um veículo em 27.2.2018 foi de € 65,00 o que é corroborado pelos documentos que o tribunal requisitou à locadora e juntos por esta em   19.12.2019, bem como que no período compreendido entre 2.3.2018 a 22.3.2018 o Autor pelo aluguer de um veículo pagou € 1630,24. É certo que a Ré impugnou tais documentos mas, face ao modo como os mesmos foram obtidos e à qualidade do apresentante – autor dos mesmos – essa impugnação é irrelevante, pelo que se julgam provados tais factos com a seguinte redacção conjunta  que passa a integrar o n.º 17º:
17º e 27º - O Autor promoveu o aluguer de viatura de substituição, pagando por cada dia de utilização a importância de € 61,50.
Por sua vez, no que respeita ao facto n.º 22º cuja fundamentação é:
Além do exposto, resulta dos documentos clínicos os danos físicos sofridos pelo Autor e a subsequente incapacidade temporária para o trabalho.
A este propósito depôs ainda o Autor e a sua mãe, uma vez mais referimos que com clareza e pleno conhecimento de causa, não nos merecendo censura, não obstante, como acima dissemos, o seu interesse no desfecho da acção, esclarecendo que aufere €20,00 por aula que lecciona e que, não obstante possa ser variável a semana, sempre se dirá que, em média, passará pelo exercício de cerca de 7 horas diárias. Obtendo plena confirmação com os recibos verde emitidos pelo Autor, as declarações de IRS juntas e preçários juntos.
De igual modo, as testemunhas EE e FF confirmaram a actividade do Autor e a procura que o mesmo tem na qualidade de professor, daí exercer em diferentes locais, inclusivamente, no ....
Pese embora todas as hipóteses colocadas pela Recorrente para colocar em crise a veracidade do facto conjugadas com os documentos juntos aos autos, não nos merece qualquer censura a sua prova, pois independentemente de todos os juízos de censura que se possam efectuar quanto à transparência da obtenção de rendimentos, é do conhecimento geral que, na grande maioria das vezes, o rendimento auferido pelas aulas do tipo das leccionadas pelo Autor não é declarado. Assim, mantém-se o facto como provado.
Finalmente quanto ao facto 23º que está fundamentado pela seguinte forma:
Quanto ao valor comercial do veículo, embora tenham sido suscitadas inúmeras questões, em Audiência de Julgamento, pela Ré, certo é que, nos dias que correm, podemos  considerar que, à semelhança do que foi alegado pelo Autor e porque corroboramos tal entendimento, o valor dos veículos é de conhecimento geral e devidamente público, designadamente, pela consulta de sites da especialidade. Como se fundamentou o Autor no presente caso. Resultando, ainda, o valor em causa, da avaliação constante da sociedade U..., S. A.
Desta feita, tendo em conta que o valor do automóvel é coincidente com os valores apresentados pelo Autor e o mesmo foi, ainda, corroborado pela testemunha II que havia, em data próxima do acidente, realizado uma pesquisa do valor do automóvel, no âmbito da sua actividade de bancário com vista à, eventual, realização de um contrato de aquisição de uma nova viatura em substituição daquela, demos como provado o facto 23.
A Recorrente pretende que, sendo reforçada a valoração do relatório junto pela U..., S. A., seja dado como provado que o valor comercial do veículo do Autor situava-se, à data do acidente, no montante de € 6.500,00.
Efectivamente do relatório junto aos autos em 12.12.2019 na sequência da notificação do tribunal para o efeito consta que o valor de mercado do veículo do Autora à data do acidente era de € 6.500,00, valor não coincidente com o adiantado pela testemunha II, bancário, amigo do Autor, que disse que o carro valeria cerca de € 8.000,00. Ponderados estes dois elementos de prova é indubitável que o constante do relatório, atento o conhecimento especializado que a sua autora terá, é aquele que deve ser considerado, alterando-se, em consequência o facto provado 23º que passa a ter a seguinte redacção:
23 - O valor comercial do veículo do Autor situava-se, à data do acidente, no montante de € 6.500,00.

Quanto aos factos não provados e constantes das alíneas a), b) e c) pretende a Recorrente que os mesmos sejam julgados provados.
Os factos em causa são:
a) Em virtude de os ditos incêndios terem afectado, para além de outras situações e realidades, diversas concessões de auto-estradas, nomeadamente ao nível das vedações destas e em extensões consideráveis, não se registou grande disponibilidade por parte das empresas externas que executam este tipo de trabalhos, motivo pelo qual a mão-de-obra escasseava e apenas uma das quatro empresas consultadas respondeu aos contactos efectuados pela R. com esse fim.
b) Só foi possível iniciar a empreitada de substituição de vedações depois de meados de Novembro de 2017 e, ainda assim, com a capacidade limitada que aquela empresa estava em condições de assegurar, considerando o panorama geral provocado pelos incêndios e as exigências de mão-de-obra e de material que tais operações (que não só, portanto, na auto-estrada ...).
c) As vedações existentes no local do acidente e suas imediações encontravam-se, pelo menos na noite do acidente, direitas, ou seja, levantadas e, portanto, reposicionadas provisoriamente, não havendo sinal, pelo menos naquelas imediações verificadas, de quaisquer aberturas nem tendo sido avistado nessa ocasião nenhum local por onde o animal pudesse, ainda que com o seu “engenho” ou com a sua força, acedido à via.
Não convoca a Recorrente quaisquer meios de prova para alicerçar a sua pretensão quanto ao julgamento destes factos como provados, sendo certo que ouvida a mesma também não conseguimos concluir pela sua verificação, pois não foi produzida qualquer prova convincente que permitisse essa conclusão, mantendo-se os mesmos como não provados.
A Recorrente também pretende a inclusão nos factos provados dos alegados por si nos artigos 25º e 28º; 50º e 51º da contestação apresentada, propondo-os nos seguintes termos:
a) “As vedações daquela auto-estrada ... merecem a prévia aprovação por parte do concedente (Estado Português) através dos organismos competentes.” (artigo 28º da contestação);
b) “À data do sinistro as vedações que se encontravam implementadas no local do sinistro e suas imediações respeitavam o respectivo projecto e mereceram prévia aprovação por parte dos organismos competentes do Estado Português, designadamente no que se refere às suas características, tais como a sua dimensão e altura, por exemplo.” (artigo 25º da contestação).
c) - A R. obrigou-se para com o concedente, regra geral, ou seja, em condições de normalidade de tráfego/circulação, a efectuar passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de quatro horas durante os turnos diurnos compreendidos entre as 7 e as 23 horas, salvo se as condições de tráfego/circulação ou a eclosão de acidentes, incidentes ou outro tipo de ocorrências o não permitirem (artigos 50º e 51º da contestação).
Os factos a) e c) não revelam qualquer interesse para a discussão da causa e, no que concerne ao da alínea b) este não se provou, razão pela qual não são de aditar aos provados.

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Os factos provados são:
1. A Ré é concessionária da Auto-estrada denominada ... que liga ... à fronteira de ....
2. O Autor é e exerce profissão liberal de monitor/treinador de desporto, especificamente em ténis.
3. No passado dia 22 Fevereiro de 2018 ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ..., matrícula ...-...-SN, propriedade do ora Autor e por si conduzido.
4. Regressava de mais um dia de trabalho, quando pelas 00h30 daquele dia, ao quilómetro 58,5 na referida via (...) no sentido .../..., freguesia ..., concelho ..., lhe surgiu, inesperadamente, um animal de grande porte (javali) que não conseguiu evitar atropelar.
5. O Autor circulava com os faróis nos médios porque havia trânsito em sentido contrário e a velocidade seria de cerca de 100 / 110km/h, era de noite.
6. A velocidade era reduzida pois mesmo após o embate violento no javali, nunca perdeu o controlo do veículo, não entrou em despiste.
7. O javali surgiu a correr numa zona de curva, vindo do separador central da via.
8. O Autor é uma pessoa experiente e que já conduz há largos anos, conhecendo muito bem a estrada e passando no local várias vezes por semana.
9. O animal surgiu inesperadamente não permitindo qualquer desvio da trajectória.
10. O javali, que morreu em consequência do acidente, foi retirado da via por funcionários da Ré que, entretanto, apareceram no local.
11. O Autor, posteriormente, contactou a Ré no sentido de obter esclarecimentos quanto à sua responsabilidade no sucedido.
12. A notícia do acidente saiu no ...”.
13. A Ré não efectuou a reparação nas vedações da ..., que foram destruídas pelos fogos de Outubro 2017 e isso desencadeou a inexistência de vedação.
14. O veículo do Autor ficou inoperacional, e a peritagem efectuada atribuiu perda total.
15. O Autor, em 22.02.2018, comunicou à Ré A..., S.A. o acidente através do formulário na página da internet.
16. A Ré apenas respondeu em 21.03.2018, declinando quaisquer responsabilidades.
17. O Autor promoveu o aluguer de viatura de substituição, pagando por cada dia de utilização a importância de € 61,50.
18. O veículo de substituição é de “gama” bem inferior à viatura propriedade do Autor.
19. O Autor necessita de se deslocar diariamente no âmbito da sua actividade profissional.
20. O Autor ficou ferido e foi transportado de ambulância pelos ..., que circulavam no mesmo sentido.
21. O Autor esteve na situação de doença e impossibilitado de exercer a sua profissão por um período de 12 dias.
22. O Autor aufere €20 euros à hora e esteve privado disso durante os 12 dias, pelo que lhe resultou um prejuízo de nunca inferior a €1.000,00.
23. O valor comercial do veículo do Autor situava-se, à data do acidente, no montante de € 6.500,00.
24. O Autor pagou €68,00 pela certidão do acidente na GNR ....
25. O Autor pagou de taxa moderadora €4,50 no Centro Saúde ....
26. O Autor pagou à oficina de reboques a importância de €188,24.
27. eliminado.
28. O Autor para efectuar o pagamento semanal do aluguer da viatura, teve que pedir dinheiro emprestado a familiares e amigos.
29. A sua viatura automóvel é o seu meio e único para se deslocar a várias localidades para exercer a actividade profissional.
30. Nem de transportes públicos é possível exercer a sua profissão.
31. As dores da sua mão, ainda à data da entrada da presente PI, são acentuadas.
32. As mãos são o seu primeiro meio de trabalho, sem elas não pode ensinar os alunos a jogar ténis.
33. Em meados de Outubro de 2017, ocorreram incêndios de grandes proporções, sendo que tais incêndios não ocorreram apenas nas áreas adjacentes à auto-estrada ... e seus limites.
34. No caso concreto da ... foram simultaneamente afectadas pelos referidos incêndios um total de cerca de 66.330 ml (metros lineares) de vedações daquela AE, ou seja, mais de 66 Km.
35. Entre Outubro e Novembro de 2017, decorreram, numa primeira fase os trabalhos de reposição provisória das vedações levados a cabo por elementos ao serviço da R., ao mesmo tempo que era lançado o concurso para substituição das vedações afectadas pelos aludidos incêndios.
36. No dia do acidente, os funcionários da Ré efectuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da Concessão, passaram por diversas vezes no local do sinistro e não detectaram qualquer animal, designadamente um javali, nas imediações daquele local.
37. Os patrulhamentos da R. passaram no local onde o A. diz que aconteceu o sinistro por volta das 21h00m.
38. A R. nunca deixou de continuar a reposicionar provisoriamente as vedações afectadas por esses grandes incêndios sempre que isso se justificava e que era detectado, enquanto não aconteceu a substituição total destas.
39. Nessa altura e passagem efectuada no local do sinistro pela patrulha da R. não foi detectado, naquele local, nenhum animal que aconselhasse ou impusesse que os colaboradores da Ré A..., S.A. procedessem à respectiva recolha e expulsão da via.
40. À data do alegado acidente dos autos, a Ré A..., S.A. havia transferido, até ao limite 30 milhões de euros por sinistro, para a ora Interveniente, a sua responsabilidade civil pelos eventuais danos causados a terceiros em virtude da sua actividade, nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...31.
41. Nos termos das referidas Condições Particulares, foi convencionado que na anuidade de 2016, por cada sinistro participado, a Ré A..., S.A., segurada da ora Interveniente, suportaria uma franquia de €5.000 (cinco mil euros) em danos materiais (Cláusula 13.ª).
42. O Autor recebeu pela venda do salvado do veículo o valor de € 1.100,00 – facto confessado pelo Autor em requerimento subscrito, em 27.2.2019, pelo seu mandatário dotado de poderes especiais para confessar.

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4. O direito aplicável

4.1 Da responsabilidade da 1ª Ré
O Autor intentou a presente acção declarativa, visando com a sua proce­dência a condenação da Ré a pagarem-lhe a indemnização que peticiona, corres­pondente aos danos que lhe advieram em consequência do embate de um javali contra o veículo automó­vel que lhe pertencia, quando circulava na auto-estrada ....
 A sentença recorrida julgou parcialmente procedente a acção e a Ré concessionária pugna pela revogação da decisão proferida, por entender que a norma do art.º 12º, da Lei n.º 24/2007, não consagra uma inversão do ónus da prova da culpa
Defendem ainda que dos factos provados resulta que não houve culpa da Ré A..., S.A. na entrada do javali na auto-estrada uma vez que foram cumpridas todas as obrigações que à 1ª Ré são impostas.
Sobre esta questão consta do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17.11.2009[1], relatado pela agora também relatora, que aqui se transcreve:
O legislador determinou, na alínea b), do n.º 1, do art.º 12º, da Lei n.º 24/2007, uma inversão do ónus da prova da culpa pela ocorrência de acidentes de viação nas auto-estradas concessionadas causadores de danos em pessoas e bens, provocados pelo atravessamento de animais, pelo que deixou de fazer sentido, para este efeito, a discussão sobre se a responsabilidade da Brisa por estes acidentes tem natureza contratual ou extra-contratual.
Se, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova – art.º 342º, do C. Civil – era ao lesado que incumbiria demonstrar o nexo de imputa­ção do evento ao demandado, a título de culpa, nas situações previstas no art.º 12º, n.º 1, b), da Lei 24/2007, de 18.7., esse ónus é invertido, competindo à concessioná­ria da auto-estrada onde ocorreu o acidente provar que essa culpa não lhe poder ser atribuída.
Assim, o art.º 12º, n.º1, b), da Lei 24/2007, estabelece uma presunção legal de culpa retirada do facto do acidente ter sido causado pela presença de um animal na via, com a consequente oneração da prova do contrário à entidade a quem está atribuído o dever de zelar pelas condições de segurança da auto-estrada.
Num sistema assente na culpa, como refere SOUSA RIBEIRO, a inver­são do ónus da sua prova não tem um significado meramente técnico-processual, mas também um conteúdo de ordem material. Onde vem estabelecida, ela equivale a uma indicação legal da pessoa do responsável, ainda que sem carácter peremptório e definitivo, pois se lhe reco­nhece a faculdade de se desonerar [2].
O estabelecimento desta presunção não procura apenas fazer recair o ónus da prova sobre aquele que está em melhores condições para fornecer os elementos de prova relativos às circunstâncias que permitiram o atravessamento da faixa de roda­gem de uma auto-estrada por um animal, mas também funciona como um incentivo ao reforço por parte das concessionárias das medidas destinadas a evitar que estes eventos ocorram.
No referido artigo 12º, n.º 1, b), da Lei 24/2007, de 18.7, consignou-se que nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviá­rio, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumpri­mento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a atravessamento de animais.
Apesar da redacção adoptada na regra de inversão do ónus da prova, resultante do estabelecimento de presunção de culpa não ter sido a mais feliz, quando se refere que o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, o facto de estarmos perante a prova da culpa, como pressu­posto da responsabilidade civil, exige que a ilisão da presunção legal desse nexo de imputação só possa resultar da demonstração de um circunstancialismo donde resulte que o nexo presumido não se verifica.
Como dispõe o artigo 350.º, n.º 2, do C. Civil, as presunções legais podem ser ilididas, mediante prova em contrário.
A prova em contrário só pode ser feita mediante a demonstração que o facto ou a situação jurídica presumida não ocorreram e não simplesmente pela demonstração de factos que coloquem em dúvida a existência do facto ou da situa­ção jurídica presumida [3].
Daí que a ilisão da presunção de culpa estabelecida pelo referido artigo 12º, n.º 1, b), da Lei 24/2007, de 18.7, não possa ser feita pela simples prova do cumprimento genérico pela concessionária de medidas por si implementadas desti­nadas a evitar a presença de animais nas faixas de rodagem, mesmo que esse cum­primento abranja o tempo e o espaço em que ocorreu o acidente.
Se a prova destes factos é susceptível de criar a dúvida sobre a responsa­bilidade da concessionária pela ocorrência do acidente, não consegue a prova do contrário, ou seja de que a culpa do acidente não é imputável à concessionária da auto-estrada.
Este objectivo só pode ser atingido pela prova de que na situação con­creta a presença do animal na via não é devida ao incumprimento pela concessioná­ria da obrigação de impedir essa presença.
Deste modo, o artigo 12º, n.º 1, b), da Lei 24/2007, de 18.7, deve ser interpretado no sentido de que no caso de acidentes provocados pela presença de animais nas auto-estradas concessionadas presume-se a culpa das concessionárias, podendo estas ilidir essa presunção se lograrem provar que essa presença ocorreu por motivos que não lhe são imputáveis [4].
Provou-se que no dia 22 de Fevereiro de 2018, pelas 00 h 30 mn, na auto-estrada ..., km 58,5, ..., o Autor conduzia o veículo auto­móvel de matrícula ...-...-SN quando foi surpreendido por um javali que não conseguiu evitar atropelar.
Tendo o embate sido provocado pela presença de um javali na faixa de rodagem na auto-estrada, recai sobre a Ré, concessionária desta auto-estrada, uma presunção de culpa pela verificação do acidente.
Atento o raciocínio acima exposto, a pergunta a que temos de responder neste processo é a de saber se, face aos factos que resultaram provados, a Ré conse­guiu elidir a presunção de culpa que sobre si impende, através da demonstra­ção de factos que revelem que a presença daquele animal na faixa de rodagem da auto-estrada não lhe é imputável.
Nesta matéria apenas se provou o seguinte:
33. Em meados de Outubro de 2017, ocorreram incêndios de grandes proporções, sendo que tais incêndios não ocorreram apenas nas áreas adjacentes à auto-estrada ... e seus limites.
34. No caso concreto da ... foram simultaneamente afectadas pelos referidos incêndios um total de cerca de 66.330 ml (metros lineares) de vedações daquela AE, ou seja, mais de 66 Km.
35. Entre Outubro e Novembro de 2017, decorreram, numa primeira fase os trabalhos de reposição provisória das vedações levados a cabo por elementos ao serviço da R., ao mesmo tempo que era lançado o concurso para substituição das vedações afectadas pelos aludidos incêndios.
36. No dia do acidente, os funcionários da Ré efectuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da Concessão, passaram por diversas vezes no local do sinistro e não detectaram qualquer animal, designadamente um javali, nas imediações daquele local.
37. Os patrulhamentos da R. passaram no local onde o A. diz que aconteceu o sinistro por volta das 21h00m.
38. A R. nunca deixou de continuar a reposicionar provisoriamente as vedações afectadas por esses grandes incêndios sempre que isso se justificava e que era detectado, enquanto não aconteceu a substituição total destas.
39. Nessa altura e passagem efectuada no local do sinistro pela patrulha da R. não foi detectado, naquele local, nenhum animal que aconselhasse ou impusesse que os colaboradores da Ré A..., S.A. procedessem à respectiva recolha e expulsão da via.
Da análise destes factos apenas se pode concluir que a Ré, realiza uma série de procedimentos destinados a garantir segurança a quem circula nas auto-estradas das quais é concessionária.
Mas, como já acima concluímos, a prova destes factos não é suficiente para ilidir a presunção de culpa que, nos termos do art.º 12º, n.º 1, b), da Lei 24/2007, de 8.7, recai sobre ela.
A Ré, para conseguir a ilisão dessa presunção de culpa, teria que demonstrar que, no caso concreto, a presença do javali na via resultava de um facto que não lhe era imputável, o que não fez, não relevando para o efeito a prova do cumprimento de todas as obrigações impostas pelo contrato de concessão e que sobre si impendem.
Deste modo, encontra-se justificada a constituição da obrigação de indemnização questionada no presente recurso, pelo que importa julgar este improce­dente, confirmando-se a sentença recorrida na parte respeitante à culpa da Ré A..., S.A..

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4.2. Da indemnização

Declarada que foi a decisão na parte em que englobou no montante indemnizatório atribuído ao Autor, a título de danos patrimoniais, o valor do aluguer do veículo de substituição, bem como o valor do salvado, importa, nos termos do disposto no art.º 665º, n.º 1, do C. P. Civil apreciar essas parcelas integrantes do pedido formulado pelo Autor de condenação das Rés nos danos patrimoniais por si sofridos em consequência do acidente.
 Não está em discussão a responsabilidade das Rés pela indemnização dos danos patrimoniais sofridos pelo Autor, mas somente a sua quantificação, tendo em atenção a anulação efectuada.
O segmento decisório da decisão recorrida é o seguinte:
Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condeno as Rés A..., S.A. e B... Sucursal em Portugal a pagarem, solidariamente, ao Autor a quantia de € 9.352,48 (nove mil, trezentos e cinquenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais. E mais condeno as Rés A..., S.A. e B... Sucursal em Portugal a pagarem, solidariamente, ao Autor, o montante de €2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais. Sendo que, a condenação da Ré A..., S.A. é sem prejuízo do contrato de seguro celebrado com a interveniente e da respectiva franquia prevista.
Às sobreditas quantias acrescem juros moratórios, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
No mais, vão as Rés absolvidas.
Da fundamentação da decisão é inequívoco que a indemnização atribuída para ressarcimento dos danos patrimoniais resulta do somatório dos seguintes valores:
- € 6.400,00 – correspondente ao valor de €7.500,00 atribuído ao veículo, deduzindo ao mesmo o valor de € 1.100,00 que o Autor teria recebido pelo salvado;
- € 1.000,00 de retribuições que o Autor deixou de auferir;
- € 260,74 pagamento do reboque, taxa moderadora e certidão:
- € 1.691,74 pelo aluguer de veículo de substituição.
Da alteração da matéria de facto acima efectuada não resulta dos factos provados o montante que o Autor pagou pelo veículo de substituição, pelo que não estando em causa a obrigação da Ré em ressarcir este dano e não se tendo feito prova do valor deste elemento não é possível determinar, neste momento, o valor da indemnização por este dano, pelo que devem as Rés ser condenadas no valor que vier a ser liquidado em incidente a ser deduzido posteriormente, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do C. P. Civil.
No que concerne à parcela indemnizatória respeitante ao valor do veículo há que ter presente, para a sua determinação o valor do veiculo - € 6.500,00 – e o valor já recebido pelo Autor da venda do salvado - € 1.100,00 -, o que perfaz o montante de € 5.400,00, sendo este o valor a contabilizar na indemnização devida pelas Ré.
Assim, devem as Rés ser condenadas a pagar ao Autor a título de danos patrimoniais a indemnização de € 6.660,74 correspondente a:
- € 5.400,00 - valor ao veículo, depois de deduzido ao mesmo o valor de € 1.100,00 que o Autor recebeu pelo salvado;
- € 1.000,00 de retribuições que o Autor deixou de auferir;
- € 260,74 pagamento do reboque, taxa moderadora e certidão:
- a quantia, a liquidar posteriormente em incidente próprio, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do C. P. Civil, relativas ao dano das despesas do Autor com o aluguer do veículo de substituição.
A Recorrente insurge-se quanto à sua condenação a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 a título de danos não patrimoniais, alegando revelar-se a mesma injusta, inadequada e completamente desproporcionada (quando não mesmo, e talvez com mais propriedade, indevida).
A este respeito consta da decisão:
O Autor peticiona, por defeito, o diferencial entre os danos patrimoniais e o pedido, ficando, nos termos do que foi dado como provado, no montante aproximado de €2.200,00.
No âmbito dos danos não patrimoniais, dispõe o art. 496.º do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Nestes termos, nem todos os danos sobrevindos ao acto são indemnizáveis, exigindo-se uma gravidade tal que justifique a tutela do direito. Como refere Antunes Varela (in Das obrigações em Geral, Volume I, 9ª Edição, p. 628), a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, o que exclui a sua avaliação do campo da mera sensibilidade particular do lesado. Em outra obra (Código Civil anotado, Volume I, p. 499) refere o mesmo autor, em parceria com Pires de Lima, que preferiu o legislador não enumerar os casos de danos não patrimoniais que justificam a indemnização, remetendo antes para o tribunal a tarefa de, caso a caso, dizer se o dano é ou não merecedor de tutela jurídica.
De todo o modo, sempre acrescentam, após fornecerem alguns exemplos de danos não patrimoniais indemnizáveis (como a dor física, a dor psíquica, o desgosto, etc.), que os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização.
No caso em apreço, considerando a insusceptibilidade de avaliação pecuniária dos direitos absolutos lesados coma verificação do acidente, o montante da indemnização há-de ser fixado de acordo com critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do lesante e à sua condição económica e à do lesado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 494.º e 496.º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil.
No caso, importa salientar que a Ré é uma das sociedades comerciais mais importantes e lucrativas do tecido empresarial nacional e o Autor é um trabalhador independente que, perante a ocorrência do acidente, além de se ver afectado numa parte do corpo imprescindível para o exercício da sua actividade profissional de professor de ténis, sofreu dores e as limitações inerentes ao período de convalescença.
Já para não dizer que, sem que haja qualquer necessidade de alegação ou de prova, é por demais evidente que qualquer pessoa que sofra um acidente de viação nas condições em que este sucedeu, por irromper na via um javali, fica, natural e significativamente, abalado e afectado física e psicologicamente, como ocorreu nos autos.
Tendo em linha de conta tudo o que acima deixámos expresso e às condições económicas da lesante e do lesado, fazendo a competente apreciação das circunstâncias do caso concreto, julgamos justo, adequado e proporcional fixar a indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 2.000,00 (dois mil euros). Pelo que, condenamos a Ré no seu pagamento.
Dos factos provados e com interesse para a quantificação dos danos não patrimoniais são de considerar as circunstâncias de tempo e modo em que ocorreu o acidente, os ferimentos sofridos pelo autor, bem como as dores que tem na mão lesionada.
Ponderados estes elementos, bem como os demais considerados pela decisão recorrida, nomeadamente a situação económica da responsável conhecida através do seu relatório de contas e gestão acessível na net, julgamos adequada, num juízo de equidade, a quantia de € 2.000,00 para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.

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Nos termos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso e em consequência:
- Declara-se nula a sentença na parte em que englobou no cômputo do montante indemnizatório atribuído ao Autor, a título de danos patrimoniais, o valor despendido com o aluguer do veículo de substituição e o valor por este recebido pela venda do salvado.
- Altera-se a decisão recorrida e, em sua substituição, julgando-se a acção parcialmente procedente, condenam-se as Rés a pagar ao Autor a título de danos patrimoniais a indemnização de € 6.660,74 e a quantia, a liquidar posteriormente em incidente próprio, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do C. P. Civil, relativa ao dano das despesas do Autor com o aluguer do veículo de substituição, fixando-se em € 65,00 o seu valor máximo diário.
- Mantém-se, no mais, a decisão recorrida.

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Custas da acção por Autor e Rés na proporção de 35% e 65% respectivamente.
Custas do recurso pelo Autor na proporção de 23,5% e pela Recorrente na proporção de 76,5%.
                                                                      
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                                                                                   15.2.2022




[1]  Proc. n.º 1803/07.0TBMAI.P1 acessível em www.dgsi.pt .

[2] In Ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação, em “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, pág. 455.

[3] Vaz Serra, in Provas, no BMJ n.º110, pág. 184-187, Rui Rangel, in Ónus da prova no processo civil, pág. 219, ed. 2000, Almedina.

[4] Neste sentido decidiram, entre outros, os acórdãos do S. T. J.:
13.11.07, relatado por Sousa Leite, acessível em www.dgsi.pt., proc. n.º 07A3564,
9.9.08, relatado por Garcia Calejo, acessível em www.dgsi.pt., proc. n.º 08P1856,
16.9.08, relatado por Garcia Calejo, acessível em www.dgsi.pt., proc. n.º 08A2094,
2.11.08, relatado por Azevedo Ramos, C.J. A.S.T.J., Ano XVI, Tomo III, pág. 108.